Democracia e dominação: uma discussão (via Índia) com referência à América
Latina (Brasil)
DEMOCRACIA E SERIALIDADE
Em seu longo livro sobre a democracia, Habermas definiu, de maneira algo
surpreendente, o Estado democrático constitucional (Rechstaat) como que baseado
no "exercício burocrático da dominação legal (Herrschaft)":
Em suma, o Estado torna-se necessário como um poder (Gewalt)
sancionador, organizador e executivo, uma vez que a lei tem de ser
efetivada [...]. Estes são certamente complementos não apenas
funcionalmente necessários para o sistema do direito, mas antes
implicações legais objetivas, que estavam contidas in nuce nos
direitos subjetivos [...]. Não é a forma legal como tal que legitima
a dominação política, mas somente seu vínculo com o direito
legitimamente produzido (Habermas, 1992:168-170; grifo do original;
tradução do autor).
Essa definição é, com efeito, mais surpreendente porque surge no bojo do que
seria um esforço sistemático para substituir as teorias elitistas da democracia
por um modelo "discursivo", comunicativo e muito mais democrático. É verdade
que o abandono da ideia de "colonização" do mundo da vida por sistemas
autorregulados, processo no qual o direito poderia operar como "meio" da
colonização destes antes que como expressão daquele (idem, 1981, vol. 2:458 e
536-539), anuncia a teoria benigna e um tanto aguada da democracia que
emergiria de seu modelo mais geral ulteriormente. Neste, ao passo que o Estado
segue sendo um sistema autorregulado conduzido pelo poder (ladeado pela
economia, dirigida pelo dinheiro), o mundo da vida, mediado por meio da ação
comunicativa e da interação significativa, seria representado pela sociedade
civil, um foco de solidariedade. Esta, por sua vez, seria discursivamente
mediada por meio das esferas públicas, que permitem uma "política deliberativa"
que gera normas (legalmente) vinculantes, calcadas na "liberdade subjetiva"
(produzidas histórica e intersubjetivamente). O universalismo teria de resultar
desse processo público-discursivo. O "poder comunicativo", por um lado, e o
"poder político" mais o "poder administrativo" (conceitos sempre difíceis de
diferenciar em sua obra), por outro, são totalmente distinguidos no "Estado
democrático constitucional", que já não é visto como o centro da sociedade. Eis
aí o que é democracia para Habermas, para além da teoria elitista dos grupos de
poder, bem como para além das preocupações dos pluralistas com interesses
(fixos) livremente expressos (1992, especialmente pp. 359 ss). Sua definição
contrasta, assim, com os tipos de dominação em Weber (1980 [1921-1922]), em
particular a racional-legal, mas remete diretamente a eles.
Cohen e Arato (1992) expandiram historicamente essa divisão e sublinharam o
caráter triplo da vida social (mercado, estado, sociedade civil), o papel das
associações e dos movimentos sociais, assim como o cunho autolimitante destes
últimos (que não deveriam visar assumir a "sociedade política"). A participação
e inclusive a desobediência civil são cruciais em suas propostas, porém o papel
constitucional do direito e os limites que impõe a todos os membros da
sociedade, um ensinamento liberal, são centrais em sua concepção.
Mais recentemente, Alexander (2006) produziu outra versão mais próxima da
"esfera civil", na verdade retomando o conceito de Parsons de "comunidade
societária" e uma oposição binária entre o "sagrado" e o "profano", aquela
relativa àquilo que estimamos na sociedade civil. Se Alexander aceita os
limites impostos por formas "incivis" de vida social e como a esfera civil se
encontra entrelaçada com eles, insiste em sua especificidade em termos de
solidariedade, universalismo e individualismo, como o elemento-chave da
democracia, para além da hierarquia e da desigualdade, assim como do
particularismo, inevitável em outras esferas sociais principais.
Em Habermas (1990:150-159; 1992:632-659), esse procedimento de construção da
democracia está intimamente ligado ao que chamou de "patriotismo
constitucional", cujas origens se encontram na recusa ao nacionalismo étnico
alemão que culminou no nazismo. Ou seja, Habermas opõe fortemente o
universalismo em termos normativos ao particularismo, conquanto processos
históricos concretos sejam requeridos para que esse patriotismo cívico se
estabeleça. Essa é, em certa medida, também a perspectiva de Anderson (1998,
sobretudo caps. 1 e 17), que enfatiza o que chama de "serialidade aberta"
(infinita e mais livre) e a força integrativa, universalizante, do nacionalismo
(em que aquela pode fluir dentro de certos limites), contra o particularismo
que se difunde em tempos recentes, com sua "serialidade fechada", repetitiva,
rígida, finita, e sua política da identidade, seja no sudeste da Ásia, seja em
outros lugares do planeta, com frequência sob as vestes da política étnica (a
estatística sendo originalmente um de seus pilares-mores).
De forma quase inversa, Chatterjee (2004) introduziu, para falar da política
popular na "maior parte do mundo", a oposição entre a política da "sociedade
civil", em sentido mais tradicional, como legal e formalmente estabelecida, e a
política da "sociedade política". Esta última é uma esfera em que os governos -
ou as práticas de governamentalidade - implementam políticas que têm de lidar
com práticas ilegais e informais levadas a cabo por populações que se convertem
em alvo de perspectivas particulares (isto é, "fechadas" versus universais,
"abertas"), a serviço, hoje globalmente, do capital, enquanto que, ao mesmo
tempo, lutam para afirmar seus próprios desejos e necessidades:
Em suma, a ideia clássica de soberania popular, expressa nos fatos
político-legais da cidadania igualitária, produziu o constructo
homogêneo da nação, ao passo que as atividades de governamentalidade
requerem classificações múltiplas, que se cruzam e transformam, de
populações como alvos de políticas múltiplas, produzindo um
constructo necessariamente heterogêneo do social (ibidem:36; tradução
do autor).
Esse foi, aliás, um problema que, de acordo com Chatterjee (ibidem:36-38),
Marshall não entendeu em sua afirmação clássica sobre os direitos civis,
políticos e sociais, os quais são eles mesmos heterogêneos e levam diretamente
à governamentalidade. Já esta é conceito que, por sua vez, nos permitiria ir
além dos conceitos clássicos de "dominantes" (rulers) e "dominados" (ruled). A
democracia na Índia tem se desenvolvido, de maneira bastante ambígua, segundo
ele, a partir da complicada dinâmica dessa "sociedade política" e de seu
caráter heterogêneo, além de sua relação particularística com o Estado.
Chatterjee aparentemente assume como dados, ao menos tanto na Índia quanto no
Ocidente, os aspectos constitucionais da democracia, embora esta "democracia
capitalista moderna", assevera de modo curioso, pertença somente ao último. O
autor não focaliza explicitamente o movimento e os partidos Hindutva (o
nacionalismo hindu radical e excludente), mas esse desenvolvimento lamentável
da política indiana é um dos alvos subjacentes em sua crítica à modernidade
homogeneizante (1998:228-231, com tons frankfurtianos), que permanece na
retaguarda de seu argumento à medida que ele atribui aquela tendência
homogeneizante apenas à dinâmica do capitalismo. Por outro lado, pode-se
legitimamente perguntar se o Hindutva não deveria ser visto exatamente como
política étnica radical e seu nacionalismo do tipo de uma serialidade fechada
etnicamente determinada1.
Embora a questão dessa "sociedade política" seja muito mais dramática do que
qualquer fato que se possa encontrar no Ocidente, decerto espelha discussões
encetadas por formas de governamentalidade neoliberais e maneiras de operar por
meio das próprias noções de liberdade e responsabilidade individual (Rose,
1999). Conquanto a influência de Gramsci sobre Chatterjee (2008) permaneça
difusa, aqui ele se apoia em Foucault e explicitamente argumenta contra a
preferência de Anderson pelo universalismo, em conexão com o nacionalismo
homogeneizante, e em favor do particularismo, bem como, até certo ponto, da
informalidade, reconhecendo ainda o caráter heterogêneo do espaço social (em
contraposição ao espaço homogêneo do capital). Três formas do moderno exercício
do poder, na verdade, da "dominação" - soberania, disciplina e biopolítica -,
foram delineadas nos trabalhos do último Foucault (1997 [1976], especialmente
pp. 23, 24, 30-36 e 215-225; 1979). A soberania descende da problemática da
legitimidade do poder real no Ocidente e foi, no século XVIII, traduzida nos
direitos do cidadão, a rigor, na concepção de Foucault, sempre transferida ao
Estado e terminando por meramente mascarar o funcionamento do poder
disciplinar. Este foi aplicado ao indivíduo, em torno a saberes específicos, no
conjunto da sociedade, sem se concentrar no Estado. Já a biopolítica, que
Foucault às vezes denomina governamentalidade, lida com as populações e a
"regulação" da vida, permitindo um tipo de sobrevida para o Estado diante do
poder disciplinar. Enquanto a segunda forma leva a uma sociedade "normalizada",
a terceira se vincula ao Estado por meio da mesma noção de "norma". Essas
formas são produtivas, e não apenas "repressivas". Foucault, ademais, não
considerou suficiente, nem de fato adequado, pensar o poder basicamente em
termos da soberania do Estado, opondo a esta os direitos dos cidadãos. Em vez
disso, um discurso antidisciplinar mais amplo era necessário.
É contra esse pano de fundo que quero discutir a democracia na América Latina,
em particular no Brasil, nas últimas décadas (o subcontinente havendo sido
mencionado, aliás, somente por Cohen e Arato (1992), entre esses autores). Em
primeiro lugar, proponho-me aqui a rejeitar a ideia de Habermas, para mim
absurda, de que a democracia equivale à dominação, não importando como esta é
definida. A democracia existe, e pode apenas sobreviver, contra a dominação,
mesmo que não possamos hoje divisar formas de democracia que possam dar cabo
dela - afinal, falamos do Estado, controlado por coletividades políticas e
burocráticas, separadas dos cidadãos e baseadas em um aparato hierárquico e no
"comando" (Befehl), estando esse Estado, além disso, nas sociedades modernas,
estreitamente entrelaçado com o capitalismo e suas classes dominantes (ainda
que a dominação não possa ser reduzida seja ao Estado, seja às classes sociais,
não obstante a importância que ele ou elas possam ter). Fazer da necessidade
virtude já é uma tarefa difícil, mas transformar o vício em virtude não faz
sentido. É verdade que esses sistemas políticos são competitivos, com as
coletividades dominantes sendo substituídas de tempos em tempos por processos
eleitorais, conquanto os aparatos burocráticos estatais escapem desses
processos. De qualquer modo, grandes máquinas organizacionais e hierárquicas,
com múltiplas camadas, mantêm-se ativas em múltiplos níveis. Logo, se não temos
como romper com as formas elitistas da democracia, sejamos ao mesmo tempo mais
radicais e mais realistas, deixando patentes as limitações do presente, mas
simultaneamente as desafiando do ponto de vista da relação entre o Estado e a
sociedade. É por isso que a ideia de liberdade como uma "criação" (ou seja lá
como for que se a denomine) do poder me parece também totalmente
insatisfatória: a liberdade não é um produto da dominação, mas seu exato
oposto, embora certamente se relacione à noção de poder também, afirmativamente
por parte das subjetividades individuais e coletivas.
Em segundo lugar, muitos na América Latina têm assinalado os problemas que a
democracia tem de encarar na região. Não viso contestar esses problemas, mas
espero oferecer uma visão mais larga e otimista da questão. Afinal, a
"sociedade civil", no sentido de Habermas, bem como no de Chatterjee, está se
expandindo - isto é, associações e movimentos sociais têm de modo geral se
fortalecido - em ritmos distintos e em países diferentes, em momentos
distintos, com a inclusão formal e legalmente vinculada avançando de maneira
acelerada nas últimas décadas em certo número de aspectos, em especial em
termos estritamente políticos. A "sociedade política", no sentido que
Chatterjee lhe atribui, tem fortemente se reiterado em muitas áreas também, com
a simples violência igualmente se expandindo. De todo modo, ao passo que essas
categorias de fato possuem uma materialidade própria, são problemáticas se
apresentadas dessa forma tão aguda. A dicotomia que opõe aquelas "sociedades"
não pode ser aceita, a menos que se adote algo como a concepção binária de
Alexander (2006) da divisão "sagrado-profano", com um sinal invertido no que
concerne a Chatterjee e com, além disso, uma suposição de que a divisão provê
mais do que uma estrutura discursiva, o que não é de maneira nenhuma o caso. O
longo debate acerca do dualismo na América Latina deveria nos aconselhar contra
tal uso dos conceitos, porquanto esses dois mundos se encontrem muito mais
entrelaçados do que Chatterjee sugere.
Visando alcançar minhas metas neste artigo, tomarei como apoio ideia que
desenvolvi em termos mais gerais, assim como em relação à América Latina. Para
começar, afasto qualquer visão dualista. De ângulo mais positivo, introduzirei
em especial o par cidadania instituinte e instituída, mais o conceito de
"abstrações reais" e o retrato em quatro dimensões do imaginário moderno como
baseado em liberdade, igualdade, solidariedade e responsabilidade, que aparecem
em conexão e em oposição à dominação, desigualdade, fragmentação, egoísmo e
irresponsabilidade (Domingues, 2002; 2009a)2.
É verdade que, em muitos aspectos e especialmente em alguns países, a
democracia parece frágil. Nesse sentido, uma tensão, de modo algum negativa e
que exploraremos adiante, por vezes tem papel importante a cumprir, ou seja,
aquela entre o que Eisenstadt (1999, sobretudo cap. 2) denomina aspectos
"participativos" e "constitucionais" da democracia (embora simples tentativas
de eliminar ou restringir a democracia mediante perspectivas antidemocráticas
ou elitistas serem repetidamente muito mais problemáticas). É por meio dessa
tensão que a articulação do que seriam para Castoriadis (1975:138 ss e 493 ss;
1999:119) os dois principais aspectos da democracia - o poder do "demos",
enraizado na autonomia dos agentes, e sua autolimitação, por meio de um "nomos"
- poderia ser alcançada. Talvez uma solução mais interessante possa ser assim
obtida para os dilemas apresentados pelas concepções opostas de Habermas e seus
associados, por um lado, e a de Foucault e Chatterjee, por outro.
Comecemos por uma breve discussão dos desenvolvimentos contemporâneos da
democracia na América Latina. Debruçar-nos-emos então sobre certos aspectos da
democracia brasileira. Parece-me que, tudo considerado, e a despeito dos muitos
problemas que podem ser localizados, a democracia tem florescido na região, bem
como no Brasil, logo, de maneira alguma ficando estagnada ou se erodindo, como
alguns sugeririam (Mainwaring e Pérez-Liñan, 2005). Finalmente, retornaremos a
uma discussão teórica mais sistemática.
Tendências Democratizantes na América Latina: Avanços, Limites e Problemas
A crítica de O'Donnell (1994; 1996) às democracias liberais que existem na
América Latina tornou-se bem conhecida. Ele enfatizou seu aspecto "delegativo",
ou seja, a eleição de líderes poderosos (como Carlos Menem, na Argentina, e
Alberto Fujimori, no Peru), dando-lhes um cheque em branco que lhes permitiu
fazer o que quisessem, até mesmo mudar suas políticas iniciais e perspectiva
geral, fazendo-as irreconhecíveis. O'Donnell sublinhou também os traços
particularistas de muitos desses sistemas políticos nos quais o clientelismo se
destacava. Enfim, a falta de controle e de transparência (accountability)
desses detentores do poder em relação à sociedade foi também enfatizada.
Outros, se reconheceram avanços em toda a América Latina, têm sido muito
críticos a países onde os governos são forçados a renunciar em função de
protestos populares sem supostamente respeito por regras constitucionais
(Mainwaring e Hagopian, 2005:1-2) (algo que de resto ocorre quando esses
governos não cumprem suas promessas e rompem com as políticas com que se haviam
comprometido). Roniger (2005) sublinhou ainda o que via como "neopopulismo" e
"neoclientelismo", e sua ação deletéria sobre o tecido democrático, a
persistência da violência e a falta de respeito pelos direitos civis básicos,
levando talvez a uma erosão da confiança na democracia, tal qual medida por
instrumentos como o "Latinobarómetro" - problema destacado também por outros
estudos acerca do tema (Méndez, O'Donnell e Pinheiro, 2003).
"Populismo" parece-me uma construção problemática, que dificilmente fazia
sentido na perspectiva proposta por Gino Germani, profundamente devedora do
funcionalismo e da teoria da modernização (ver Domingues e Maneiro, 2007),
sendo hoje demasiado vaga conceitualmente, operando mais como um termo de abuso
e denúncia de demagogia em geral ("cesarismo", seja "progressista", seja
"conservador", seria provavelmente um conceito melhor nesse caso). O
"clientelismo", contudo, tem sido traço realmente recorrente e saliente da
política de toda a região, como vários estudos recentes demonstram (por
exemplo, para a Argentina e o México, ver Auyero, 2001; Fox, 1997). O mesmo é
verdadeiro no que se refere à efetivação da cidadania civil por um Estado ainda
"despótico" que amiúde trata suas populações como "súditos" e possui um "poder
infraestrutural" relativamente reduzido, isto é, não é capaz de governar muito
da sociedade por intermédio de suas próprias instituições (Mann, 2006),
abandonando seus "cidadãos" à sua sorte em face de condutas criminosas
(especialmente quando são pobres) e tratando violentamente e, com frequência,
de maneira ilegal aqueles que seriam transgressores da lei, em outras palavras,
punindo-os sem respeito por seus direitos civis (mais uma vez, especialmente
quando são pobres). Os direitos sociais tiveram pior destino, uma vez que foram
efetivados de modo bastante limitado durante o período do Estado
desenvolvimentista e do corporativismo e, quando ocorreu a democratização, a
partir da década de 1980, o credo neoliberal não tinha lugar para eles, ao
contrário (Barrientos, 2004).
Em seu argumento, Roniger (2005) assinala, contudo, conquanto por vezes soe
algo pessimista, que essa confiança reduzida na democracia pode significar
simplesmente que ela está consolidada, mas que os cidadãos não estão lá muito
satisfeitos com seus resultados. Afinal, podemos acrescentar, os cidadãos
parecem estar insatisfeitos não somente na América Latina, mas em todo o mundo,
especialmente em função das reformas neoliberais (cf. Hagopian, 2005:321-324).
Roniger também assinala certo número de mudanças que têm levado, a despeito
desses problemas e da falta de recursos de muitos grupos populares para
participar plenamente da política, a novas formas de política participativa e a
uma perspectiva da democracia que vai além das teorias "elitistas" que
prevaleceram na vida acadêmica durante a transição das ditaduras militares e
após seu fim nos anos 1980-1990. Ao passo que estas eram "minimalistas", as
novas experiências implicaram participação de massa, controle público e
deliberação. É isso que estudos, por exemplo, sobre o México (controle
eleitoral) e o Brasil (orçamento participativo) mostram, assim como sugerem
discussões sobre uma esfera pública ampliada e pluralizada (Avritzer, 2002;
Avritzer e Costa, 2005), já para não falar do que a paulatina abertura, e por
vezes pluralização, dos sistemas judiciais evidencia (Domingues, 2009a, cap.
1). Mais recentemente, em particular a Bolívia tem sido o cenário para um
aprofundamento das práticas democráticas, da forte mobilização social e de
eleições tradicionais à grande participação comunitária e ao uso constante de
referendos (um instrumento comumente usado na Europa, porém odiado pelos
conservadores na América Latina), a despeito de tensões relativas a
"serialidades étnicas" (García Linera, 2004; Domingues et alii, 2009).
Meu recente argumento é também que, a despeito da persistência do clientelismo,
da importância dos poderes "fáticos" (tais como a alta concentração dos meios
privados de comunicação de massa, programaticamente orientados para o
neoliberalismo) e as restrições ao exercício de direitos, a democracia nunca
foi tão forte na América Latina. O subcontinente vem passando, nas últimas
décadas, por uma verdadeira "revolução molecular", a despeito do também
corrente projeto "transformista" do neoliberalismo, que propugna por uma
democracia mínima - configurando-se assim dois "giros modernizadores" em
competição, os quais, em seu choque, têm moldado a região nas últimas décadas
(Domingues, 2009a, cap. 3). O télos do imaginário moderno, tendo em seu centro
a liberdade igualitária, tem se traduzido em ampla mobilização social, levando
a uma mudança dos grupos políticos dominantes (as chamadas "elites", termo que
deveria ser realmente evitado, ao menos em função de sua bagagem ideológica
excessivamente pesada, que inclui o papel negativo ou limitado que reserva para
as "massas") e ao restabelecimento, mudança e consolidação das instituições
democráticas. Na verdade, a defenestração de políticos que traem seus
compromissos básicos deveria ser vista como um avanço na região, que
produtivamente evidencia a tensão antes mencionada entre os aspectos
constitucionais e participatórios da democracia, incluindo a desobediência
civil, em particular na medida em que isso não significa que tenham sido
substituídos por líderes militares. Em vez disso, os vice-presidentes assumiram
o cargo ou novas eleições foram convocadas, sem quebra das regras
constitucionais. Ademais, presidentes "delegados", como Menem e Fujimori, têm
sido presos, processados e podem terminar seus dias na cadeia por corrupção e
abuso contra os direitos humanos.
Ondas de mobilização popular vão e vêm na América Latina; estão possivelmente
na vazante na maior parte desses países, se bem que não em todos eles, mas seu
legado é inegável. A constitucionalização tem também progredido, implicando
cobertura legal mais forte para o Estado e mais legitimação, bem como um
reconhecimento mais avançado dos direitos e a flexibilização de códigos
jurídicos anteriormente mais rígidos, com uma tendência a avanços nos sistemas
legais e no império da lei, não obstante problemas e limitações. A moldura
estatal tem se mostrado, de modo geral, mais adaptável e capaz de responder à
crescente complexidade da modernidade (Domingues, 2009a, cap. 1). As
constituições têm sido consistentemente universalistas, mas os direitos
coletivos dos povos originários e por vezes também das populações negras têm
sido transplantados para dentro dos novos textos democráticos (Dávalos, 2005),
por meio, em larga medida, dos giros modernizadores de "serialidades fechadas"
enquanto subjetividades coletivas ativas e autoconstruídas.
Devemos acrescentar que a América Latina tem avançado exatamente naqueles
lugares onde uma virtual conjunção entre movimentos sociais de todos os tipos
tem logrado, direta ou indiretamente, realizar mudanças nas instituições e
práticas, antes que permanecendo alheios ao sistema político, ao tentar
preservar uma autonomia absoluta e quimérica (Adel Mirza, 2006; Svampa, 2008).
Obviamente, o risco de cair nas mãos dos governos e inclusive nas da
governamentalidade, na América Latina, em especial pelo clientelismo ou ao
menos suportando quietamente administrações de esquerda, aumenta com a decisão
de entrar mais diretamente no jogo político e engajar-se no plano das
instituições. Contudo, novas redes, de colaboração efetiva e mais ampla, entre
os movimentos, mas também entre eles e governos realmente democráticos, podem
desdobrar-se disso (Maneiro, 2007; Domingues, 2009a, cap. 1; Domingues et alii,
2009). Escusado dizer que algumas vezes as coletividades dominantes se
mantiveram no poder, outras vezes foram deslocadas por outras coletividades. A
competição eleitoral funciona em toda a América Latina, e em parte se
reestruturaram os sistemas de dominação burocrático-políticos.
O peronismo, o varguismo e o Estado mexicano, bem como as relações entre o
campesinato e o Estado, depois da revolução boliviana de 1952 - em suma, o
corporativismo em geral -, proveram os esquemas disciplinares mais fortes
aplicados às classes trabalhadoras na América Latina (por vezes combinando a
ação estatal com algum tipo de fordismo privado e outros tipos de ideologia, e
apoiando-se talvez em elementos remanescentes das ideologias estatais
coloniais). Enquanto esses esquemas perderam o suporte que um dia desfrutaram
dessa armação corporativista e em muitos casos da transformação massiva das
populações em trabalhadores e da absorção da disciplina industrial, eles têm
sido continuamente, conquanto desigualmente, aplicados a toda a sociedade. Os
esquemas disciplinares não têm recebido, contudo, um tratamento sintético no
subcontinente (ao contrário, por exemplo, da China e do Sudeste Asiático em
relação ao neodesenvolvimentismo e ao neoliberalismo, cf. Ong, 1999; 2006). No
que tange ao "biopoder", este parece encontrar suas principais expressões nos
esquemas sociais focalizados, vis-à-vis os programas sociais e as novas
políticas derivadas originalmente dos programas compensatórios vinculados às
"políticas de ajuste" (para uma visão geral destas últimas, ver Domingues,
2009a, caps. 1 e 3, embora não haja pesquisa sobre o biopoder ainda levada a
cabo seriamente na América Latina, exceto no que se refere à administração das
raças, seu branqueamento no início do século XX e sua miscigenação
posteriormente). Mas o elemento de dominação presente em tais esquemas tem sido
largamente ignorado pelos pesquisadores. Se é que seus avanços são decisivos,
por outro lado a cidadania tem sido muito amiúde tomada de maneira acrítica
como a solução de todos os problemas da região (por exemplo, em O'Donnell et
alii, 2004).
A Trajetória Brasileira
O Brasil desdobrou ao longo do século XX o que alguns autores (Elisa Reis, Luiz
Werneck Vianna, inspirados por Barrington Moore Jr.) caracterizaram como um
processo de "modernização conservadora", originada de um acordo entre os
grandes proprietários de terra e a burguesia industrial. Esse processo
engendrou, a longo prazo, a industrialização, o fim das formas pessoais de
dominação e o estabelecimento de uma "poliarquia" (no sentido de Dahl, 1971),
isto é, liberdade de ir e vir, de vender a própria força de trabalho e de
participar, a partir de meados dos anos 1980, do direito de voto, dos debates
públicos e de manifestações, além, é claro, de eleições formalmente justas,
apesar da violência contínua, endêmica, típica da história do país. A
modernização conservadora se completou basicamente com a transição da ditadura
militar (que foi sua última manifestação, autoritária, mas também
industrializante) para o governo civil, eleito indiretamente em 1985, e com a
promulgação, em 1988, de uma nova e progressista Constituição. Ampliação e
pluralização da esfera pública foram igualmente um aspecto do processo. As
eleições seguintes consolidaram a nova democracia, com suas virtudes e
problemas (Domingues, 2004; Costa, 2002; Weyland, 2005).
A participação popular tem sido bastante significativa, não obstante todas as
restrições postas pelas profundas desigualdades e a falta de reconhecimento de
largos setores da população, bem como, a despeito da extrema concentração dos
meios privados de comunicação, o poder remanescente das oligarquias rurais
regionais e os enclaves autoritários dentro do Estado3. Aquela revolução
molecular democrática vem se desdobrando ao menos até recentemente (malgrado a
longa onda de mobilização social que deslanchou nos anos 1970 haver se
dissolvido já faz tempo). O Partido dos Trabalhadores (PT), mais uma vez ao
menos originalmente, representou uma nova forma de combinar, em uma vasta rede
de diferenças, movimentos sociais e política institucional, e sua ascensão ao
poder representou uma ruptura (bastante) parcial com as políticas
"transformistas" neoliberais que governos anteriores implementaram (Werneck
Vianna, 1997; Domingues, 2009a, caps. 1 e 3). O Brasil compartilhou aquele mais
amplo padrão de transição para a democracia com outros países latino-
americanos: a transferência formal da soberania a seus cidadãos, no molde
tradicional assinalado por liberais clássicos ou concepções "elitistas", assim
como incluindo elementos apontados por discussões inovadoras sobre a sociedade
civil, de qualquer modo, porém, muito distantes da compreensão de Foucault
daquela noção como atinente tão somente ao poder de Estado - ainda que, para
reiterar a questão, os sistemas de dominação tenham sido reestruturados.
No entanto, o caráter "despótico" de muito do Estado brasileiro não desvaneceu,
e sistemas de dominação operam de maneira brutal em certas dimensões. As forças
policiais tratam a criminalidade e as classes populares com frequência sem
interesse ou então com extrema dureza; os direitos civis não são protegidos
nesse sentido (embora o componente da propriedade certamente o seja!). Por
outro lado, a pobreza continua sendo um problema generalizado, focalizado pelo
governo Fernando Henrique Cardoso, em meados dos anos 1990, por meio de
políticas compensatórias derivadas das políticas sustentadas pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, e que acompanharam seus
programas de "ajuste estrutural". Aquelas políticas se desdobraram na direção
de programas de transferência de renda, levando enfim ao Bolsa Família,
implementado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva. Esse programa alcançava
mais de 11 milhões de famílias em 2009. Se, inicialmente, era possível ver
nesses programas claramente uma maneira de "administrar" a pobreza, antes que
eliminá-la (Lautier, 2004), o Bolsa Família tornou-se algo cuja definição é
extremamente difícil - questão tão mais curiosa quanto poucos estudos
acadêmicos têm sido realizados acerca de seu funcionamento concreto, ao passo
que o programa se converte no principal paradigma para a política social na
América Latina (para visão geral e exploração de várias hipóteses, ver
Kerstenetzky, 2009).
O Bolsa Família disponibiliza pequenas somas de dinheiro para domicílios com
renda muito baixa como política focalizada que visa impedir os mais pobres
entre os pobres de passar fome, idealmente os ajudando a sair dessa situação de
miséria com duas "condicionalidades": acompanhamento médico e escolar de suas
crianças. Seria ele basicamente um programa clientelista - por meio do qual o
governo Lula ganha apoio entre os mais pobres -, que teria dado a Lula sua
reeleição em 2006, ou se trata de um programa limpo baseado em critérios
técnicos e sem interferências políticas, quase mobilizando uma filosofia
calcada em direitos (Hunter e Power, 2007; Hilgers, 2008)? Trata-se sobretudo
de uma política moderna que a longo prazo se converterá em uma renda básica do
cidadão, ainda que hoje pudesse se confrontar com outros programas de
transferência direta de renda (Lautier, 2006-2007; Domingues, 2009a, cap. 1)?
Implica o programa uma estratégia econômica que ajuda a reforçar o mercado
interno de bens não duráveis, uma espécie de keynesianismo dos pobres, ou é
simplesmente uma maneira de lidar pragmaticamente com a enorme dívida que a
sociedade brasileira tem com seus setores mais pobres a um custo muito baixo
(Barros et alii, 2006; Domingues, 2009b)?
Martínez (2003:46-47) observou, em uma ocasião, provavelmente se apoiando na
noção de "imaginário magmático" de Castoriadis (1975), que o peronismo na
Argentina poderia ter qualquer significado através de inflexões sucessivas. Se
isso não é exclusivo da América Latina (a política em particular e a vida
humana em geral são constitucionalmente articuladas por essa flutuação
magmática do sentido), as políticas não muito bem definidas ideologicamente dos
partidos progressistas no poder, no subcontinente desde meados do século XX,
levam isso bastante longe. Creio que, em certa medida, é o que ocorre com o
Bolsa Família, o que significa também que sua direção futura não está ainda
estabelecida. Penso que ele tem um componente de clientelismo que se encontra,
contudo, distante do tipo "denso" que implica a troca de benefícios diretamente
por votos, assim como das relações "cliente-patrono" que até recentemente
tinham peso predominante na América Latina, com tipos bastante particularistas
de vínculo de confiança - de resto o clientelismo mudou muito em todo o mundo
(Eisenstadt e Roniger, 1984; Roniger, 2004). Creio que se encontra distante
inclusive da versão "fina" do clientelismo, na qual essas relações são muito
mais frouxas e o "cliente" é virtualmente autônomo, de modo absoluto, para
tomar decisões eleitorais.
"Clientelismo burocrático" foi como o denominei. Não estamos falando de um
direito, de maneira alguma, embora realmente muitos estejam inclinados a
empurrar o programa nessa direção, sendo possível que isso ocorra no futuro. No
entanto, tal leitura não pode ser feita no presente, pois se trata de um
benefício concedido de cima para baixo, como política social condicional (a
saber, miséria e comportamento regulado), sem armação constitucional (embora
gravada na legislação ordinária congressual), envolvendo algum tipo de
dependência e aliança política frouxa (Domingues, 2009a:45-54)4. Deve-se
acrescentar que, dadas as circunstâncias, o Bolsa Família tem enormes méritos.
Obviamente não é de modo nenhum irracional que as "massas" o sustentem
eleitoralmente: ele de fato contribui seriamente para a redução da miséria. Tem
ademais funcionado como uma maneira de desenvolver alguns aspectos do mercado
interno. Contudo, o que quero explorar neste artigo é antes o caráter
focalizado e particularista do programa (no momento, a bem dizer), que implica
um tipo específico de "subjetividade coletiva", ou seja, uma serialidade
agudamente fechada - a vasta serialidade fechada e passiva dos muito pobres.
Ela é estabelecida estatística e econometricamente, embora na base os comitês
locais tenham um importante papel a cumprir. Além disso, do ponto de vista dos
beneficiários, a bolsa é recebida de cima para baixo, embora as raízes do
programa se encontrem em uma mobilização social ampla (conquanto não
principalmente por parte dos setores mais pobres da população) e na constante
tematização da questão da pobreza em debates públicos que tiveram lugar desde
ao menos o começo dos anos 1990. Antes de seguir adiante, gostaria de
desenvolver uma curta digressão teórica.
A cidadania nasceu no Ocidente, por meio dos direitos civis, originalmente como
uma forma de assegurar a vida dos indivíduos, garantindo seus títulos de
propriedade, a base do capitalismo e das classes sociais modernas. Os direitos
políticos eram vistos como uma maneira de controlar o Estado, uma nova entidade
formada pelo contrato geral dos cidadãos, que assim transferiam ao Estado sua
soberania. Uma liberdade igualitária universalista subjazia a essa definição,
especialmente no que concerne ao deslocamento pessoal dentro de um território
nacional e à possibilidade de estabelecer contratos, embora os pobres - de modo
geral, simplesmente as classes trabalhadoras - tenham sido postos em posição
muito mais problemática desde o começo, no que se refere ao feixe de direitos
políticos. A burguesia não ganhou esses direitos sem luta (e sem, às vezes,
perigosas alianças com o proletariado, e com compromissos evidentemente com as
classes dominantes agrárias fazendo parte do processo também). Os direitos
sociais foram introduzidos para corrigir a exclusão das classes trabalhadoras
dos benefícios da modernidade, da economia de mercado e para facilitar sua
inclusão na vida social, de modo que aquela liberdade pudesse ser realmente
desfrutada. Se, em alguns momentos, houve movimentos preventivos do Estado em
relação às classes trabalhadoras nesse sentido, e havia algumas preocupações
biopolíticas na base da criação dos Estados do Bem-Estar Social europeus, esses
direitos foram duramente conquistados, por vezes em lutas ferozes, em um
processo histórico dilatado. O contraste entre a situação atual, mesmo na
Europa, e aquela dos anos 1960-1970 deveria nos alertar para isso. A princípio,
os direitos sociais tendiam a ser vistos também como universais, conquanto a
questão do particularismo surgisse desde o começo e os sistemas
"corporativistas" criassem ainda outros problemas. Direitos implicavam o que
chamei de "abstrações reais", à medida que os cidadãos individuais, em sua
universalidade e falta de qualidades específicas, a eles tinham franquia; com,
além disso, a própria estrutura da vida social tornando-se, em larga medida,
determinada por seu estabelecimento. Eles implicavam também o elemento
"instituinte" da cidadania, muito embora, ao serem conquistados, esses direitos
tenham se convertido no que pode ser chamado de cidadania "instituída", ao lado
da entrega da soberania ao Estado, que agora se depara com cidadãos passivos.
Isso se agrava com o fato de que os direitos sociais são, em grande medida,
implementados por um corpo burocrático (Domingues, 2002, caps. 2-4).
Tudo isso é verdadeiro, mas a complexidade do processo desapareceu da descrição
de Chatterjee acima e está ausente de sua crítica excessivamente rápida a
Marshall. Por outro lado, na América Latina, a cidadania civil tem sido
contemplada de maneira benigna demais, como se a dominação e a desigualdade,
por intermédio da propriedade e das relações de trabalho capitalistas, não
fossem introduzidas precisamente por ela desde as constituições do século XIX;
e a cidadania política, com a cessão formal (e, ademais, certamente ideológica)
da soberania, não legitimasse a existência do sistema de dominação estatal que
mesmo autores como Habermas não podem deixar de reconhecer (para não falar de
Marx e Weber, Poulantzas, Foucault e Mann) (Domingues, 2009a, caps. 1 e 3). No
Brasil, a Constituição de 1988 abraçou precisamente essa concepção
universalista dos direitos, em todas as suas dimensões. Se não se
concretizaram, é possível afirmar, como fazem alguns, que o texto traçou um
"programa" para a sociedade brasileira (Oliven, Ridenti e Brandão, 2008).
Destarte, foi sobretudo uma serialidade aberta que se pôs nas bases da
Constituição de 1988 (não obstante proteções específicas para uns poucos grupos
específicos). É exatamente com esse núcleo de universalismo nacional que o
Bolsa Família e sua serialidade fechada, com sua biopolítica e leves propósitos
disciplinares (mediante condicionalidades), efetivamente rompem, a despeito de
assertivas de que no futuro o programa pode levar a uma renda básica cidadã - a
uma serialidade aberta. O fato de que condicionalidades não parecem ser
severamente vigiadas não muda o cerne do Bolsa Família.
Uma questão adicional deve ser tratada aqui. Chatterjee fala da "política dos
governados" como implicando não passividade, mas sim um alto nível de atividade
para seus realizadores. Com efeito, encontramos isso no Brasil também, por
exemplo, e talvez, acima de tudo (na verdade, de modo similar em parte ao que
ele mesmo narra para a Índia), no que diz respeito aos graves problemas dos
assentamentos ilegais das cidades, as favelas. Estas têm consistido em áreas de
preocupação do Estado, de poder disciplinar e biopolítico (com seus peritos e
agora amiúde por meio de organizações não governamentais - ONGs). Há nesse
sentido limitações no que tange a políticas concretas (provavelmente isso
ocorre igualmente na Índia), uma vez que laços informais são fortes e escapam
da visão do Estado. Por vezes atenção é dirigida às favelas sem atuação
coletiva imediata por parte de seus moradores, mas há uma longa história de
mobilização pacífica e de criação de associações representativas, bem como de
revoltas, além de guerra de fato entre traficantes de drogas e entre eles e a
polícia, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro (ver Valladares, 2005). A
serialidade fechada implicava atividade nesse sentido. Esse não é, porém, o
caso do programa Bolsa Família, no qual a serialidade fechada significa
passividade - exceto talvez quando chega a hora de votar -, sem o universalismo
e os direitos do conceito da "cidadania instituída".
É verdade que serialidades fechadas são, em certa medida, inevitáveis, tendo
permanecido assim desde ao menos que a cidadania social adentrou a cena, visto
que ela dificilmente permite um universalismo consistente e completo, com os
problemas que a colonização da vida social pelos corpos burocráticos que têm
sido tão centrais para o Estado do Bem-Estar nos força a encarar (cf. Habermas,
1981). É verdade ainda que a heterogeneidade da vida social e a pluralidade de
identidades das subjetividades coletivas têm crescido tremendamente na atual
fase da modernidade, a terceira, que inclui um espaço-tempo igualmente mais
heterogêneo5, para além das possibilidades que o mercado e o Estado um dia
desfrutaram de homogeneizar o tecido social - fenômeno que pertence tanto ao
centro quanto às periferias e semiperiferias da modernidade global (Domingues,
2002; 2009a). Contudo, devemo-nos pôr a questão: isso significa que temos de
replicá-la nos arranjos da política social ou será que podemos perseguir algum
tipo de perspectiva universalista também nesse sentido, enquanto nos esforçamos
para dar novo sentido à cidadania civil e revigorar a cidadania política?
Apesar das limitações, é dentro do imaginário da modernidade, com suas demandas
universalizantes de liberdade igualitária, solidariedade e responsabilidade,
contra a dominação, a desigualdade e a fragmentação, ao que se agrega uma
concepção de responsabilidade, para além do egoísmo neoliberal, que a América
Latina vem avançando nos últimos anos. A cidadania está em larga medida
instituída. A atividade dos cidadãos se faz, todavia, necessária para ampliá-
la, bem como para evitar que decaia na soberania sem peias dos grupos
dominantes do Estado e da burocracia. Dever-se-ia escolher um caminho
sobretudo particularista?
Cada região, na modernidade global, tem suas próprias raízes civilizatórias, e
é bastante evidente que as da Índia diferem enormemente das da América Latina.
Essas questões ventilam, porém, mais do que temas regionais. Embora se possa
também afirmar que o Estado vem se tornando mais duro e violento na Índia,
podemos singularizar a atitude original de acomodação do centro a uma
pluralidade de demandas de outros setores da sociedade como típica desse país
do sul da Ásia (Nandy, 2002, caps. 3-4; Eisenstadt, 2003), engendrando o
particularismo (seja por meio da serialidade das castas reestruturadas, seja
por questões mais circunscritas), embora o universalismo da Constituição
indiana de 1949 seja bastante óbvio (não obstante proveja em si defesas
particularistas para os setores destituídos da população, em especial as castas
inferiores). Podemos talvez contrastar isso com o imaginário moderno latino-
americano, mais universalista, conquanto de modo mais geral a região não tenha
sido palco de divisões ideológicas agudas (em contraposição a ferozes batalhas
sociais e políticas) e tenha tido como ideologia de Estado, em muitos períodos,
a integração de todos na nação. Tanto o tema da heterogeneidade quanto as
demandas de universalismo e soberania popular - para além de reações àqueles
que governam ou da simples afirmação de demandas que, na Índia, têm, por meio
de demonstrações violentas, mas sem consequência, com frequência assumido uma
forma ritual em vez de demonstrar cunho substantivo (Chakrabarty, 2007) - são,
sem embargo, hodiernamente inescapáveis em ambos os subcontinentes. Ademais,
aqueles que estão incluídos na cidadania formal, no que se refere aos direitos
políticos, e demandam direitos civis e por vezes sociais são os mesmos que
(passando diariamente de uma dimensão a outra) compartilham laços informais e
podem tornar-se, de uma forma ou de outra, mais passiva ou ativamente, os alvos
de políticas focalizadas.
CONCLUSÃO: DE VOLTA À TEORIA, DE VOLTA À DEMOCRACIA
Chatterjee visa que sua contribuição, de modo foucaultiano, deixe para trás
discussões sobre dominantes (rulers) e dominados (ruled), debruçando-se sobre
aqueles que governam e aqueles que são governados. Não quero entrar em disputas
semânticas. Basta dizer que não consigo ver muita diferença na formulação, uma
vez que aqueles que governam o fazem porque dominam, e aqueles que são
governados o são porque, por sua vez, são dominados. Por outro lado, a
dominação é possível em uma sociedade complexa tão somente na medida em que
aqueles que estão por cima podem governar, moldando a subjetividade e os modos
de vida dos que estão por baixo, por meio do poder "infraestrutural", ou seja,
de modo mais sofisticado e sutil que o uso do puro poder "despótico". É certo
que a "produtividade" do poder, para além de seus aspectos repressivos (embora
obviamente não os desconsiderando), deve ser central para uma análise das
hierarquias e da dominação na vida social moderna. Nesse sentido, como Foucault
demandava, carecemos de uma política que vá além do Estado e do momento da
soberania, visto que o poder se espraia pelo tecido social. No entanto,
carecemos também de uma política para além do poder do Estado no sentido
ascendente, globalmente, isto é, considerando que as sociedades não são
autocontidas, como logo argumentarei em termos mais concretos.
Contudo, ao passo que o poder das corporações e do capitalismo de maneira geral
(ou de brancos e homens) permanece formidável no plano societal, e a
emancipação não pode ser completa se as corporações e o capitalismo não são
radicalmente enfrentados, o Estado é um lócus de poder - e de luta - que segue
sendo extremamente importante na modernidade contemporânea. É ainda, em alto
grau, o centro da vida política, ao contrário da posição quase luhmanniana de
Habermas, na qual a esfera pública e a sociedade o deslocariam de algum modo,
diminuindo sua relevância. Não vejo evidência empírica disso. Na verdade,
embora a democratização seja fato com significado profundo na América Latina, e
o fortalecimento e a pluralização da esfera pública venham cumprindo papel
vital, é em outra direção que o descentramento do Estado nacional vem
ocorrendo. Organizações internacionais - como o FMI e o Banco Mundial, bem como
poderosos governos centrais e as "agências de avaliação de risco" - têm forçado
políticas que sistematicamente passam ao largo de discussões democraticamente
encetadas, como podemos testemunhar, por exemplo, no caso da América Latina
(Domingues, 2009a, cap. 2) e da África (Ferguson, 2006, cap. 4). Se na primeira
isso foi revertido em certa medida mais recentemente, na segunda o
descentramento do Estado é ainda mais radical e tem ocorrido sem uma revolução
democrática molecular que o acompanhe, fazendo assim da democracia quase que
uma casca oca em grande parte do continente africano.
É possível e desejável reafirmar a necessidade de um Estado nacional mais forte
nesse sentido? Creio que sim, mas esse não é exatamente o ponto que quero fazer
aqui. Na verdade, quero dividir essa questão e fazê-la mais condicional a uma
concepção mais profunda do significado da democracia, que pode, como afirmado
no início deste artigo, apontá-la como um baluarte contra a dominação.
Necessitamos o império da lei, necessitamos a cidadania instituída;
necessitamos serialidades de caráter aberto e fechado (não é preciso dizer, em
especial as primeiras) que estejam consagradas no direito constitucional ou
infraconstitucional, bem como em arranjos burocráticos, oxalá para além de
qualquer forma de clientelismo - denso, fino ou burocrático. Em outras
palavras, necessitamos o Estado e seus aparatos, uma vez que não sabemos como
nos livrarmos dele mais do que sabemos como nos livrarmos do capitalismo
(embora mais recentemente venhamos aparentemente confiando em nossa capacidade
de dar cabo do racismo e da patriarquia). Contudo, se podemos pensar no Estado
em certa medida representando, por meio do direito, dos funcionários públicos e
dos políticos, a vontade do povo, agora preso à passividade, como cidadania
instituída, devemos estar cientes do fato de que, uma vez que a soberania é
cedida aos funcionários e aos políticos, a semente da dominação é
inevitavelmente semeada. Habermas está atento para isso e reconhece um sistema
político poderoso, autônomo e autorreferido, mas parece crer que a mera
agregação da "democracia deliberativa" como outra dimensão da política resolve
o problema. Não resolve. Foucault e Chatterjee estão corretos nesse sentido. No
entanto, não podemos escolher apenas a resistência ou os aspectos
extrainstitucionais da política para chegar a mais democracia, como o último
deles sugere. A política da soberania ainda tem um papel a cumprir contra a
dominação. É óbvio que a Índia não é a América Latina e que seria exagerado e
abusivo julgar aqui a política daquele país - conquanto não possamos tratar
levianamente nem sua tradição constitucional nem a força que a democracia tem
continuamente demonstrado ali. Fato é que o desenvolvimento democrático
paulatino da América Latina tem incluído ambas as dimensões da política que
Chatterjee descreve como aquelas das sociedades civil e política. Contudo, a
questão particularismo versus universalismo não é simples de solucionar, é algo
que se expressa significativamente, por um lado, pela emergência (e, esperemos,
pela queda) do chauvinismo do Hindutva na Índia e, por outro, pelas demandas
étnicas democratizantes em toda a América Latina. O nacionalismo pode, de
maneira mais abrangente e abstrata, reconciliar e superar essas duas
possibilidades de desenvolvimento? Isso é improvável e compromissos têm de ser
de algum modo alcançados, como a Índia tem com efeito buscado desde sua
independência, enquanto na América Latina, não obstante o corporativismo,
apenas mais recentemente essa questão se tem posto de maneira frontal.
O Estado precisa ser, portanto, recolonizado pela sociedade, de forma que se
torne mais representativo da vontade popular; precisa de coalizões populares
que possam mudar a face da modernidade contemporânea para além do
neoliberalismo, da fragmentação, da administração da pobreza, bem como das
situações radicais da política étnica e religiosa. Este é o momento da
democracia instituinte - nesse sentido, também participativa, seja lá como a
divisemos - como autolimitante no que se refere à garantia de liberdade para
qualquer um debater e discordar, de maneira geral mantendo-se o império da lei;
é o momento da democracia constitucional, com seus elementos de cidadania
instituída. Obviamente, a etnicidade radical milita precisamente contra essa
autolimitação e contra a liberdade igualitária que a democracia em parte
pressupõe e deveria produzir, quaisquer que sejam os mecanismos institucionais
e os resultados substantivos que deve mobilizar para isso. Seja como for, a
desobediência civil deveria ser vista como um modo legítimo da política,
inclusive em democracias constitucionais bem-estabelecidas, e não deveria haver
razão para os movimentos sociais sustentarem qualquer "fetichismo legal",
destarte por vezes combinando giros legais e ilegais (em princípio pacíficos,
se vivemos em uma democracia) para atingir suas metas (Santos, 2007:97-98).
Todavia, é mister termos em mente também que não deveria haver razão para que
os movimentos sociais limitassem o alcance de suas opções à "sociedade civil"
na tradição habermasiana, como se a política propriamente dita fosse espaço
privilegiado de uma "elite" específica ou como se eles nela pudessem se poluir
e a seu mundo da vida. A América Latina tem realmente uma tradição de ir além
disso, seja no sistema corporativista dos anos 1930-1960, seja hoje, nas
relações em rede entre os movimentos sociais, os partidos e os Estados que
assinalei anteriormente. É evidente que o risco de cooptação sempre se insinua,
mas parece que os movimentos sociais têm de encará-lo a fim de se aprofundar no
sistema político e impulsionar mudanças que respondam a seus programas (ver
Domingues, 2007, cap. 6).
Isso nos leva a uma questão final: a representação. Não pretendo retomar um
debate já longo e algo tedioso que vem se desenvolvendo há alguns anos e se
relaciona com a óbvia crise da representação, de modo geral, e em particular
com a falta de credibilidade dos partidos políticos. Enquanto a América Latina
tem recentemente mostrado que eles podem ser produtivos, em muitos casos, na
vida democrática, se expressam a renovação da vida social, essa forma bem pode
revelar falhas que a fazem problemática para a expressão de uma gama complexa
de questões e subjetividades coletivas na modernidade contemporânea. Além
disso, os partidos políticos - assim como os movimentos sociais - sofrem dos
mesmos males que os sistemas políticos, nomeadamente, a cristalização de
coletividades dominantes (ou governantes) que terminam por estabelecer sistemas
de dominação. Estes são, contudo, os canais de representação que temos na
sociedade contemporânea, e o corte do laço entre representação e autorização
(para representar) parece altamente problemático e perigoso a essa altura, seja
em relação às organizações da "sociedade civil" (como ONGs, na verdade corpos
burocráticos privados) e causas públicas (Avritzer, 2007), seja como corpos
estatais e a dita "representação funcional", como no caso do Ministério Público
brasileiro (Werneck Vianna et alii, 1999). A mediação, em particular no que
concerne a direitos e a questões "difusas", segue sendo o melhor caminho para
observar a contribuição desses agentes aos processos democráticos.
De todo modo, a cidadania instituída permanece como questão-chave para a vida
democrática, com a atividade das subjetividades coletivas, sua concretude e
seus giros modernizadores, de inspiração mais universalista ou mais
particularista, em oposição à dominação, à reificação e à passividade. A
democracia floresce ou decai dependendo da dinâmica da cidadania instituinte.
Nesse processo, embora em si mesmas não sejam o bastante nem ademais deem cabo
dos grupos políticos dominantes e autorreferentes (as chamadas "elites"), a
extensão das instituições "poliárquicas" têm evidentemente papel importante a
cumprir, permitindo a discussão racional livre (logo a constituição e a
ampliação das esferas públicas), bem como a participação e a ampliação do
direito de voto. Giros modernizadores defensivos, no sentido de manter certos
aspectos da democracia ante poderosas subjetividades coletivas estatais,
dependem, em grande medida, da cidadania instituída e instituinte, assim como o
fazem giros que tencionam ir além do presente estado da democracia em qualquer
parte do mundo, seja deslanchados pelo que podem se tornar em estágios
ulteriores serialidades abertas, seja por serialidades fechadas. Eis o caminho,
creio, pelo qual a democracia liberal pode corresponder, desafiada e
transformada, a suas promessas originais e pelo qual a liberdade, no que tange
aos sistemas políticos, pode ainda ter chance contra a dominação. Essa é a
forma pela qual a teoria crítica pode permanecer crítica, realista e engajada
com a democracia. Isso é verdade tanto no que tange aos países centrais quanto
no que se refere à periferia e à semiperiferia, pois são questões que, com
peculiaridades e características específicas, concernem à situação da
democracia nas sociedades altamente complexas da terceira fase da modernidade.
No entanto, aqui devemos pausar com sobriedade, pois à democracia e à cidadania
se tem com frequência pedido mais do que podem produzir. Podemos e devemos
desafiar a democracia liberal a avançar para além de seus limites. Todavia, há
outros sistemas de dominação com que temos de nos engajar, tais como o
capitalismo, a patriarquia, de dominação étnica e racial (nesse caso, nos
planos econômico e social também). Mesmo o avanço da democracia depende da
espécie de cidadão que lhe empresta suporte. Este deriva de uma ampla gama de
relações sociais, às quais não se deve permitir que desapareçam nas sombras.
Essas relações não têm sido capazes de quebrar o desenvolvimento da democracia
na América Latina, em tempos recentes, nem na Índia, como muitos não sem razão
temeram, embora o Ocidente tenha um registro de longo prazo que demonstra os
limites da democracia e da "sociedade civil" quando o poder é tão desigualmente
distribuído. Seja como for, decerto essas desigualdades são, para não avançar
demasiado, elementos que não contribuem para o desenvolvimento da democracia e
certamente lhe impõem barreiras. Uma tensão crucial e iniludível da modernidade
radica aqui.
NOTAS
1. De qualquer forma, o nacionalismo é um inimigo antigo para Chatterjee (1986;
1993). Para discussão suplementar sobre a democracia na Índia, ver Jayal
(2007).
2. A esfera pública - abarcando não apenas a chamada ação comunicativa, mas
todas as formas de coordenação da ação, incluindo o mercado, a hierarquia e as
redes - se destacará na descrição a seguir da democratização, antes da
sociedade civil. Essa noção é demasiadamente vaga, não obstante sua importância
em discussões-chave sobre a democracia e a democratização na América Latina.
Não creio que seja aceitável nos quadros adaptados de Cohen e Arato ou do
Habermas tardio, pois ela não se encaixa realmente na teoria geral deste último
(Habermas, 1981), consistindo em uma manobra ad hoc. Por seu turno, o antigo
uso gramsciano na verdade aponta sobretudo para a sociedade em seu conjunto,
mesmo se ele não sublinha a dimensão econômica que era tão central para o
"sistema das necessidades" em Hegel. Deve-se, contudo, observar que, para um
tipo de discussão que não desenvolverei neste artigo, o conceito paralelo de
"hegemonia" é ainda de imenso valor; e, obviamente, associações de todos os
tipos são cruciais para o estado da democracia.
3. Essa falta de reconhecimento implica uma condição de "subcidadania" para
largos setores da população brasileira (cf. Souza, 2003)? Há um problema real
aqui, porquanto as condições sociais que contribuem para os cidadãos concretos
têm de ser levadas em conta - e elas são deficientes em todo o mundo, mas em
particular em sociedades em que as desigualdades estão profundamente
enraizadas, como é o caso do Brasil. Por outro lado, a cidadania instituída é,
em grande medida, formal e devemos, por conseguinte, ser cuidadosos para não
estender excessivamente o alcance daquela reserva, já para não falar da
mobilização instituinte, de enorme impacto, da população brasileira nas últimas
décadas.
4. Em 8 de janeiro de 2004, a Lei da Renda Básica de Cidadania, por longo tempo
uma bandeira do senador Eduardo Suplicy, foi aprovada, mas não há recursos para
sua implementação, embora Suplicy e o governo, o próprio presidente na ocasião,
a tenham vinculado ao Bolsa Família, criado em 9 de janeiro de 2004, pela Lei
10.836, como meio de dar molde formal ao aspecto específico, mais limitado, do
programa conhecido como Fome Zero. Beneficiários focalizados (por nível de
renda) e condicionalidades são claramente definidos por lei (ajustada em 10 de
junho de 2008, pela Lei 11.692). Por seu turno, o volume de recursos
disponíveis e o número de beneficiários são definidos, de acordo com a lei,
pelo governo em relação aos recursos disponíveis no orçamento. Desde então não
houve nenhuma movimentação no sentido de transformar o Bolsa Família em um
esquema de renda básica.
5. Chatterjee (2004, em especial p. 8) está parcialmente correto a esse
respeito, embora antes do capital e meramente do espaço social devêssemos falar
do espaço homogêneo, vazio, abstrato e paramétrico (kantiano-newtoniano) da
cidadania e de suas "abstrações reais" em contraste com o (pós-einsteiniano)
espaço-tempo desigual, concreto, heterogêneo, pleno de relações sociais e
afetos que é característico dos reencaixes concretos da modernidade (que podem
assumir forma serial fechada) (Domingues, 2002, cap. 4). É verdade, contudo,
que a dinâmica expansiva do capital tem sido crucial e particularmente
importante na disseminação das "abstrações reais" pelo mundo, afora o Ocidente
(e a América Latina também).