Quem é Classe Média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe*
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, tornou-se comum no Brasil ler, ouvir e discutir a respeito da
chamada “nova classe média brasileira”, a já famosa “classe C”. O debate sobre
esse tema foi impulsionado primeiramente pela publicação dos resultados de uma
pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV), coordenada pelo economista Marcelo
Neri, na qual se afirmava que em 2008 o Brasil havia se tornado um “país de
classe média”. Tal conclusão decorria da constatação de que entre os anos de
2003 e 2008, devido aos então recentes avanços socioeconômicos do país (Barros
et_al.,_2010), a maior parte da população brasileira já se encontrava na camada
intermediária de renda–a “classe C”.O estudo da FGV (Neri,_2008) chamava a
atenção para o fato de que nos últimos anos milhares de indivíduos e famílias,
que antes se encontravam nas camadas inferiores da escala de distribuição de
renda, haviam atingido os níveis intermediários e, dessa maneira, foram
identificados por Neri (ibidem:5) como a “nova classe média brasileira”, cuja
emergência teria permitido ao Brasil tornar-se “um país de classe média”1.
A pesquisa da FGV lançou luzes sobre uma grande transformação socioeconômica
que, de fato, tem estado em curso na sociedade brasileira nos últimos anos.
Entre 2002 e 2008, milhares de indivíduos e famílias obtiveram aumentos
substantivos em seus rendimentos e, como consequência, houve um crescimento
importante de seu poder de consumo2. Essas pessoas atingiram níveis de
rendimentos intermediários e passaram a fazer parte da camada da população que
mais se assemelha ao “brasileiro mediano” – não somente em termos de renda, mas
também no que se refere à educação, ocupação etc.3 Baseando-se neste fato, Neri
(2008) denominou essa camada social de “classe média no sentido estatístico”.
Iniciada, portanto, com a publicação dos resultados da pesquisa da FGV (Neri,
2008) e posteriormente seguida por autores como Souza_e_Lamounier_(2010), a
“tese da nova classe média brasileira”, apesar de seu enorme sucesso nos meios
de comunicação de massa (foram muitas as reportagens em jornais impressos, na
internet, rádio e televisão a respeito da “classe C”) foi fortemente criticada
por alguns autores (como por exemplo, Souza,_2010; Sobrinho,_2011). As
críticas, que em geral provinham do campo da sociologia, tinham como principal
alvo o critério adotado por Neri_(2008) para definir a “classe média” – somente
a renda –, sob o argumento de que, segundo outras características, como
categorias ocupacionais (Sobrinho,_2011; Pochman,_2012) e/ou capital cultural
(Souza,_2010), aquele contingente de pessoas não poderia ser considerado
“classe média”. Na esteira desse tipo de argumentação, também publicamos alguns
trabalhos problematizando a tese da “nova classe média brasileira” pelo prisma
sociológico (Scalon_e_Salata,_2012; Salata,_2012).
Em nossa opinião, a polêmica entre a perspectiva sociológica, mais estrutural,
e a perspectiva econômica, mais focada nos rendimentos, deve ser aprofundada, e
pode gerar resultados interessantes. No entanto, o empenho em desenvolver o
presente trabalho surgiu da percepção de que, para além do embate entre essas
duas perspectivas, outra importante disputa tem sido travada desde a divulgação
da pesquisa da FGV. Trata-se de um embate que não poderia ser compreendido nem
pelo prisma econômico de Neri_(2008), nem pela perspectiva sociológica que o
vinha criticando (Sobrinho,_2011; Souza,_2010; Scalon_e_Salata,_2012).
Referimo-nos a uma grande discussão a respeito da própria definição da classe
média brasileira. Afinal, quem se identifica, e é por sua vez reconhecido como
classe média no Brasil? Essa é a questão principal que trataremos no presente
artigo. Assim, apesar de reconhecermos a importância do debate a respeito das
vantagens e desvantagens de utilizar diferentes critérios e variáveis – como
ocupação ou renda – para a análise das desigualdades econômico-sociais, não
temos, nesse trabalho, a intenção de tomar uma posição nesta discussão4. Para
além dela, procuraremos chamar a atenção para a importância de analisar como os
próprios indivíduos percebem sua posição socioeconômica.
Para examinar essa questão, usaremos metodologia quantitativa que será
detalhada mais adiante. Antes de apresentar a análise empírica, faremos, na
próxima seção, alguns breves comentários a respeito da literatura recente sobre
identidades de classe.
IDENTIDADES DE CLASSE E CLASSE MÉDIA NO BRASIL
Podemos identificar, na literatura sociológica, um grande número de trabalhos a
respeito dos aspectos subjetivos da estratificação social, em especial no que
se refere à consciência (ou identidade) de classes5. Tradicionalmente, a maior
parte das pesquisas sobre identidade/consciência de classe baseava-se na famosa
abordagem “S-C-A” (Structure-Consciousness-Action), de maneira que a esfera
subjetiva era vista somente como uma consequência – necessária ou contingente –
da estrutura objetiva (Devine_e_Savage,_2005). Nos últimos anos, entretanto,
uma nova abordagem tem lançado dúvidas sobre essas ideias, atribuindo maior
importância aos aspectos subjetivos e tomando-os não somente como uma
consequência da estrutura objetiva, mas também como uma dimensão independente
da estratificação que teria, por sua vez, consequências reais para a própria
formação das classes sociais (Devine_et_al.,_2005; Charlesworth,_2000; Skeggs,
1997; Reay,_2005)6.
Com efeito, essa nova abordagem procura enfatizar as qualidades independentes
das identidades de classe. Essas são tomadas não como etiquetas de dadas
posições objetivas, mas sim como reivindicações de pertencimento e
reconhecimento que são contestadas e disputadas. Assim, ao invés de interpretar
os dados sobre localização subjetiva como um indicador que mediria o grau de
“consciência” dos indivíduos em relação à sua posição objetiva, a identidade de
classe é tomada como uma reivindicação de pertencimento a grupos sociais, e
tais reivindicações poderiam ser endossadas ou negadas por outros indivíduos/
grupos, o que caracterizaria as disputas em relação às formações de classe.
Dessa maneira, as ambivalências presentes nos resultados de estudos sobre a
consciência/identidade de classe são analisadas em seus próprios termos, sem
tomar parâmetros supostamente “corretos” como referência. Como as identidades
de classe não são vistas somente como consequência das condições econômicas,
mas também como reivindicações de pertencimento, não seria possível afirmar que
um indivíduo não é “consciente” de sua posição, ou que ele possui uma
consciência falsa ou equivocada, ou uma percepção “distorcida” de sua
localização social. Nesse sentido, a identidade de classe de um indivíduo não
seria um reconhecimento– correto ou distorcido– de sua “verdadeira” posição;
tratar-se-ia, na verdade, de uma maneira de se diferenciar ou aproximar de
outros, um modo de afirmar a que classe de indivíduos gostaria de estar
próximo, e das quais pretenderia se distinguir.
Já que a subjetividade não é mensurada por um parâmetro objetivo, mas constitui
uma informação importante por si mesma, tem havido uma crescente reorientação
da ideia de “consciência de classe” em direção à noção de “identidade” (Devine
e_Savage,_2005). Essa reorientação pode ser verificada nos trabalhos de autores
como Devine_(1992); Scott_(1996); Charlesworth_(2000); Savage_et_al.(2001) e
Lammont_(1992).
As identidades são compreendidas, portanto, como um processo em eterno
movimento, nunca acabado, nunca resolvido, envolvendo o constante entendimento
de quem somos e de quem as outras pessoas são, e, reciprocamente, o
entendimento de outras pessoas sobre elas mesmas e sobre os outros7. Ou seja, o
processo de identificação diria respeito ao sistemático estabelecimento e
significação de relações de similaridade e diferença. Afinal, dizer quem eu sou
é dizer quem eu não sou (diferença), e também dizer com quem creio ter coisas
em comum (similaridade). Com efeito, seria através do processo de identificação
que criaríamos a noção de “nós” e “eles” (Jenkins,_1996)8.
Tal processo envolveria sempre, portanto, disputas e negociações, num constante
jogo de forças, e se daria através de afirmações, resistência, reivindicações,
aceitação, imposição etc., em uma contínua relação entre seu momento interno
(autoidentificação) e externo (categorização)9. Nesse sentido, a literatura
recente busca interpretar as identidades de classe como parte de um processo de
constantes disputas e negociações que envolvem tanto classificações quanto
autoidentificações10.
Essa literatura tem reconhecido, portanto, a necessidade de considerar ambos os
aspectos – objetivo e subjetivo – da estratificação. Classes sociais são
entendidas não (somente) como um agregado de posições objetivas, mas (também)
como “[um] rótulo aplicado a um nexo de relações desiguais decorrentes da
organização social da produção, distribuição, troca e consumo” (Bradley,_1996:
46; tradução livre). Seria o próprio processo de identificação que – entre
outros fatores – unificaria situações socioeconômicas relativamente
heterogêneas, e que de outra maneira seriam um mero agregado de indivíduos
ocupando posições objetivas similares11.
Além disso, conforme lembrado por parte dessa literatura (Skeggs,_1997; Savage
et_al.,_2001; Eijk,_2012; Reay,_2005; Sayer,_2005), uma importante
característica das identidades de classe seria seu conteúdo moralmente
carregado. Argumenta-se que a ideia de pertencimento a diferentes classes
estaria relacionada à percepção de uma distribuição desigual de reconhecimento
social. Identificações de classe, portanto, além de diferenciar os indivíduos,
também imprimiriam uma hierarquia a essa diferenciação, e por esse motivo não
seriam propriamente classificações neutras, mas hierarquias de valor.
Tomaremos então as informações subjetivas não como percepções corretas ou
equivocadas de uma definição de classe média a prioriestabelecida por nós, mas
como reivindicações de pertencimento, que participam ativamente na própria
formação, manutenção e questionamento dos contornos e fronteiras que definem a
classe média no Brasil.
Na verdade, a questão das identidades de classe sempre foi fundamental no
debate a respeito da(s) classe(s) média(s). Seja colocando-a em segundo plano,
seja atribuindo-lhe um papel central, grande parte dos autores que trataram do
tema da classe média tiveram que lidar com a esfera subjetiva. Algumas
perspectivas têm, inclusive, se concentrado nessa esfera como uma maneira de
enfrentar a principal questão – ou dificuldade – que perpassa todo debate em
torno da classe média, que é o de sua formação enquanto categoria socialmente
significativa (Butler_e_Savage,_1995), ou a identificação/definição de seus
contornos (Wacquant,_1992).
Isso nos leva à principal questão deste artigo, que é analisar se aqueles
indivíduos que ocupam posições intermediárias se identificam tipicamente na
posição de classe média, ou se, numa hipótese alternativa, essa identificação
seria mais comumente encontrada entre os mais abastados. Dessa maneira,
queremos entender como os próprios indivíduos percebem sua posição, e qual o
“perfil socioeconômico” que no Brasil mais tipicamente se identifica (e, por
sua vez, é reconhecido) como “classe média”. Além disso, procuraremos também
analisar qual imagem os brasileiros têm dessa classe.
Nossa hipótese alternativa é sustentada por parte da literatura sociológica
mais recente a respeito da classe no Brasil (Owensby,_1999; O’Dougherty,
2002)12. Dado o caráter periférico da sociedade brasileira, já tão bem
caracterizado e analisado (Fernandes,_1975), a noção de “classe média” foi
introduzida por aqui tardiamente, de fora para dentro. Importada do chamado
“mundo desenvolvido” – Estados Unidos e, principalmente, Europa – nas primeiras
décadas do século XX, e incorporada pelas camadas médio-superiores urbanas, que
buscavam uma identidade social em meio às grandes transformações pelas quais o
país passava, a concepção de “classe média” presente no Brasil se traduziria em
uma imagem idealizada da classe média do “mundo desenvolvido”, à qual somente
as camadas mais abastadas da população brasileira poderiam corresponder.
Buscaremos, no decorrer do artigo, testar esta hipótese.
DADOS E MÉTODOS
A fim de conduzir as análises empíricas neste artigo, analisaremos os dados
provenientes do “surveysobre a classe média”, produzido no Brasil no ano de
2008, que traz dados nacionais representativos sobre identidade de classes,
percepções sobre estrutura social e informações socioeconômicas – como renda,
educação etc. O surveyfoi conduzido em 141 cidades, entre os dias 8 e 12 de
setembro, e sua amostra é representativa para a população brasileira com 16
anos ou mais de idade, contendo 2.002 casos13. O critério de seleção foi
probabilístico nos dois primeiros estágios (cidades e agregados geográficos), e
para a seleção dos entrevistados no terceiro estágio foram utilizadas cotas de
gênero, idade, escolaridade e setor de atividade. A margem de erro estimada é
de dois pontos percentuais para os resultados do total da amostra14.
Com o uso de estatísticas descritivas e modelos multivariados, buscaremos
testar a hipótese de que, no Brasil, os indivíduos mais abastados (perfil AB) –
e não aqueles estatisticamente intermediários (perfil C) – seriam os que
tipicamente se identificam com a classe média; além disso, analisaremos a
percepção dos brasileiros sobre essa classe e sobre as características que lhes
parecem mais importantes para uma pessoa fazer parte dela.
RESULTADOS
A base de dados do “surveysobre a classe média”, que usaremos nesta seção, traz
duas variáveis principais relacionadas com a questão das identidades de classe.
Em primeiro lugar, os entrevistados deviam responder à seguinte pergunta, sem
qualquer categoria de resposta prédefinida: “hoje em dia muito tem se falado
sobre classes sociais. A qual classe você acha que você pertence?”. As
respostas dadas foram codificadas nas seguintes categorias: classe alta, classe
média alta, classe média, classe média baixa, classe trabalhadora, classe
baixa/pobre e nenhuma classe. Em seguida, os entrevistados deviam responder à
seguinte questão: “e, entre a lista de opções abaixo (classe alta, classe média
alta, classe média, classe média baixa, classe trabalhadora, classe baixa/pobre
e nenhuma classe), a qual classe você acha que você pertence?” Ou seja, havia
primeiramente uma pergunta aberta, e, em seguida, uma pergunta estimulada em
que as categorias de respostas eram pré-formuladas.
Trabalharemos neste artigo somente com as identidades de classe “espontâneas”.
Já que estamos analisando identidades de classe na qualidade de reivindicações
de pertencimento, acreditamos ser mais adequado investigar como as pessoas se
classificam “espontaneamente”, o que pode ser considerado um indicador melhor
do que as respostas estimuladas – quando suas alternativas de resposta são
dadas a priori.
Segundo os dados apresentados no Gráfico_1, a maior parte dos brasileiros se
identifica como classe baixa (32,6%), seguidos por aqueles que se reconhecem
como classe média (24,5%), classe trabalhadora (19,1%), classe média baixa
(16,2%), nenhuma classe (6%), classe média alta (1,5%) e, finalmente, classe
alta (menos de 1%):
Gráfico 1 Frequência das Identidades de Classe (Brasil, 2008)
Assim, a maior parte dos brasileiros se vê entre a classe baixa/pobre e a
“classe média”. É importante ressaltar, desde já, a pequena porcentagem de
pessoas que se classificam como classe média alta ou classe alta, o que pode
ser um primeiro indicador de que, no Brasil, a classe média é tomada quase como
um limite superior.
Com o objetivo de estudar a relação entre as identidades de classe e o nível
socioeconômico dos indivíduos, trabalharemos com quatro variáveis: rendimentos,
nível de escolaridade, categoria ocupacional e tipologia de consumo. Nos
próximos parágrafos teceremos breves comentários sobre as variáveis utilizadas,
na intenção de facilitar a interpretação dos resultados.
Devido à natureza original da variável “rendimentos” da base de dados, as
faixas de renda com que trabalhamos não coincidem exatamente com aquelas
construídas por Neri_(2008). Nosso intervalo de renda “E” é formado pelas
pessoas com rendimento domiciliar total mensal de até R$ 726,00; o nível “D”
agrega os que têm renda entre R$ 726,01 e R$ 1.195,00, o que é próximo da
mediana da distribuição em 2008 (que se situava em R$ 1.245,00); o nível “C”,
por sua vez, agrega as pessoas com renda entre R$ 1.195,01 e R$ 3.474,00 (valor
que delimita aproximadamente os 15% mais ricos no Brasil em termos de renda
domiciliar); por fim, acima deste último valor, fica o nível “AB”15. Ou seja, a
principal diferença de nossas faixas de renda em relação àquelas utilizadas por
Neri_(2008) é que o nosso limite superior da “camada C” – ou o limite inferior
da “camada AB” – separa aproximadamente os 15%, e não os 10%, mais abastados.
Apesar de os níveis de rendimentos serem informações socioeconômicas muito
importantes, outros dados, como nível educacional e categoria ocupacional,
podem fornecer uma ideia mais confiável da posição social dos indivíduos, já
que tornam possível acessar os mecanismos mais estruturais que explicam as
desigualdades de renda (Wright,_2005; Goldthorpe,_2009; Crompton,_2010). É por
essa razão que, além dos rendimentos, também iremos trabalhar com categorias
ocupacionais e anos de escolaridade.
A classificação ocupacional aqui adotada deriva do famoso EGP (Erikson_et_al.,
1979)16. Para construir as categorias, trabalharemos com as informações
ocupacionais dos chefes de domicílio17. Seguindo as instruções oferecidas por
Ganzeboom_e_Treiman_(1996), classificamos as informações ocupacionais nas
seguintes categorias: trabalhador rural; trabalhador manual não qualificado ou
semiqualificado; trabalhador manual qualificado; trabalhador não manual de
rotina; e profissionais e administradores18. Já os anos de escolaridade, por
sua vez, foram categorizados da seguinte maneira: até5 anos de estudo; de5a8
anos de estudo; de 9 a 11 anos de estudo; e 12 ou mais anos de estudo.
Felizmente, além das informações sobre rendimentos, educação e ocupação, a base
de dados do surveysobre a classe média também traz algumas informações a
respeito do padrão de consumo dos entrevistados. Mais precisamente, eles deviam
responder, separadamente, se estavam planejando comprar uma casa, um carro,
mobília e eletrodomésticos nos próximos 12 meses. Além disso, se tinham plano
de saúde particular, previdência privada, poupança/investimentos, filhos
estudando em escolas/universidades privadas, e se haviam ido ao teatro ou
viajado para o exterior nos últimos 12 meses.
Com o objetivo de facilitar a utilização deste conjunto de variáveis19, criamos
uma tipologia. O primeiro passo foi a aplicação de uma Análise de
Correspondência Múltipla; a partir dela, extraímos os dois primeiros eixos, que
juntos explicavam 39,8% da inércia. Posteriormente, salvamos as coordenadas dos
indivíduos nas duas dimensões extraídas e utilizamos essas informações em uma
análise de Cluster20, que resultou na criação de três “tipos” de indivíduos.
Como se pode ver no Gráfico_7 (Anexo), o primeiro tipo – “baixo” – é
caracterizado pela não participação nas práticas de consumo analisadas; o
segundo – “intermediário” –, apresenta uma tendência a participar dessas
práticas, mas especialmente naquelas relacionadas a bens de consumo como casa,
mobília e eletrodomésticos; por fim, o terceiro tipo – “alto” – é caracterizado
pela tendência a participar de todas as práticas e, principalmente, daquelas de
caráter mais distinto – como viagens internacionais, educação particular, plano
de saúde, poupança etc.
O Gráfico_8 do Anexo, traz o cruzamento entre as variáveis socioeconômicas
(rendimentos, nível de escolaridade, categoria ocupacional e tipologia de
consumo) com as identidades de classe. Conforme podemos verificar, se por um
lado as categorias inferiores apresentam uma clara tendência de identificação
com a “classe baixa/pobre”, por outro a identificação com a “classe média” é
destacadamente mais comum entre “profissionais” e “administradores”, pessoas
com rendimentos elevados (AB), 12 anos ou mais de escolaridade, e práticas de
consumo distintas. Entre as categorias intermediárias, no entanto, a
distribuição das identidades de classe é mais “apagada“, menos clara, de modo
que nenhuma categoria se destaca das demais.
A fim de analisar e expor as relações entre identidades de classe, nível de
escolaridade, intervalos de renda, categorias ocupacionais e práticas de
consumo de maneira integrada, facilitando a exploração dos dados, rodamos uma
Análise de Correspondência Múltipla21, resultando em dois eixos extraídos que,
juntos, explicavam 75% da inércia (variação), sendo 47% explicados pelo
primeiro eixo e 28% pelo segundo. Apresentamos a seguir o Gráfico_2 formado por
esses dois fatores22.
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0111-gf02.jpg]
Gráfico 2 Análise de Correspondência Múltipla** (categories plot): Identidades
de Classe*, Categorias Ocupacionais, Tipologia de Consumo, Anos de Escolaridade
e Intervalos de Renda (Brasil, 2008)
Como se pode ver no Gráfico_2, o primeiro eixo ordena as categorias desde o
intervalo de renda “AB”, “12 ou mais” anos de escolaridade, tipo “alto” de
consumo e “profissionaise administradores”–à direita – até o intervalo de renda
“E”, “0a 4” anos de escolaridade, tipo de con sumo “baixo” e “trabalhadores
rurais” ou “inativos e desempregados” – à esquerda. Ou seja, este fator
discrimina, em termos de nível socio econômico, do mais alto para o mais baixo
– da direita para a esquerda, respectivamente. Já em relação ao segundo eixo,
enquanto as catego rias intermediárias se encontram na parte superior, as
categorias extre mas – baixas ou altas – estão na parte inferior. Ou seja, esse
segundo eixo separa as categorias intermediárias das demais.
Podemos então identificar quatro “tipos” no Gráfico_2: o primeiro, lo calizado
no quadro inferiorà esquerda, possui rendimentos baixos (E) e pouca
escolaridade (0-4), tende a não participar nas práticas de consumo analisadas
(baixo), está na categoria de “trabalhador rural” (ou “inativo/desempregado”) e
se percebe como “classe baixa/pobre”; o segundo tipo, localizado no quadro
superiorà esquerda, possui rendi mentos na faixa “D”, “5 a 8” anos de
escolaridade, tende a participar das práticas de consumo (intermediário), se
encontra na categoria de “trabalhador manual não qualificado” e se percebe como
“classe traba lhadora”; o terceiro, por sua vez, localizado no quadro superior
à di reita, possui rendimentos intermediários (C), “9 a 11” anos de escolari
dade, tipo “intermediário” de consumo, ocupação “não manual de rotina” e se
identifica com a “classe média baixa”; finalmente o quarto tipo, localizado no
quadro inferior à direita, apresenta rendimentos altos (AB), “12 ou mais” anos
de escolaridade, está na categoria dos “profissionais ou administradores”,
participa de práticas distintas de consumo (tipo “alto”) e se identifica com a
“classe média”.
Assim, verificamos que o tipo “E” está mais perto da identidade de “classe
baixa/pobre”, o “D” está mais próximo da identidade de “classe trabalhadora”, o
“C” encontra-se mais próximo da identidade de “classe média baixa”, e o tipo
“AB” localiza-se próximo da identidade de “classe média”.
Um fato interessante a se observar no Gráfico_2: as categorias de nível
socioeconômico superior encontram-se tão distantes da identidade de “classe
média” quanto as categorias “intermediárias”. Isso ilustra o fato de que o
nível “AB” é o único que está completamente distante de outras identidades de
classe que não a identidade de “classe média”. Assim, apesar de podermos
encontrar uma proporção substantiva de indivíduos se identificando como “classe
média”, no perfil “C”, por exemplo, também podemos encontrar uma grande
proporção de pessoas se reconhecendo como “classe baixa/pobre”, “classe
trabalhadora” e, especialmente, “classe média baixa” nesse perfil. Mas é
somente entre os indivíduos do perfil “AB” que a identidade de “classe média”
ofusca todas as outras, fazendo deste tipo algo muito mais “fechado” e
unificado em sua identidade de classe (média).
Com efeito, a análise acima nos fornece um quadro geral, e bastante relevante,
da relação entre posição social e identidade de classe no Brasil. Além disso,
já serve também como forte indicador de que é somente entre os indivíduos que
ocupam posições superiores (com renda alta, educação universitária, ocupação de
prestígio e consumo distinto) que encontramos uma forte e clara identificação
com a classe média.
A Análise de Correspondência Múltipla, entretanto, não testa nossas hipóteses
de uma maneira formal. Para fazer isso de modo mais apropriado, também
trabalhamos com análise de regressão (logit multinomial23), tomando as
“identidades de classe” como variável dependente, na intenção de examinar as
diferenças nas chances (e probabilidades) de identificação com a “classe média”
de acordo com as variáveis de nível socioeconômico.
O Quadro_1 descreve as variáveis utilizadas em nossos modelos24, e a Tabela_2 –
em anexo – apresenta a descrição dos modelos rodados e suas respectivas
estatísticas de ajuste25.
Quadro 1 Modelos Multinomiais para Identidades de Classe: Descrição das
Variáveis (Brasil, 2008)
Posição Nome Tipo Categorias/Unidades
Idade Contínua Anos
Região Geográfica Dummies Reg1: NO/CO (ref=Sul) Reg2: NE (ref=Sul) Reg3: SE (ref=Sul)
Localização Dummies Loc1: Cap. (ref=int)
Gênero Dummy Loc2: Per. (ref=int) Gênero: Masc. (ref=fem)
Escolaridade Dummies Esc1: 0-4 (ref=12+) Esc2: 5-8 (ref=12+) Esc3: 9-11 (ref=12+)
Independente Tipologia de Consumo Dummies Tipo1: baixo (ref=alto) Tipo2: interm. (ref=alto)
Renda Dummies Renda1: E (ref=AB) Renda2: D (ref=AB) Renda3: C (ref=AB)
Categoria Ocup1: Inativos (ref=Prof. Adm.) Ocup2: Trab. Rural (ref=Prof. Adm.)
Ocupacional (EGP) do Dummies Ocup3: Trab. Manual N-Qualif. (ref=Prof. Adm.) Ocup4: Trab. Manual
Chefe de Domicílio Qualif. (ref=Prof. Adm.) Ocup5: Trab. Não Manual de Rotina (ref=Prof.
Adm.)
Dependente Identidade de Classe CategóricaClasse Média Classe Média Baixa Classe Trabalhadora Classe Baixa/Pobre
(espontânea) (referência) Nenhuma Classe
Obs.: Quadro elaborado pelo autor.
Na base do Quadro_1, vemos que nossa variável dependente possui cinco
categorias: “nenhuma classe”, “classe baixa/pobre” (categoria de referência)26,
“classe trabalhadora”, “classe média baixa” e “classe média”. Entre as
variáveis independentes, temos a idade (contínua, em anos), gênero (dummy),
região geográfica (dummies), localização27 (dummies), renda domiciliar
(dummies), anos de escolaridade (dummies), tipologia de consumo (dummies) e
categorias ocupacionais (dummies).
Por fim, a Tabela_3, em anexo, apresenta os parâmetros (razões de chance)
estimados pelo modelo rodado (aquele que inclui todas as variáveis descritas
acima). É possível verificar que possuir nível superior de escolaridade – ao
invés de primário, fundamental ou secundário – aumenta as chances de os
indivíduos adotarem uma identidade de qualquer outra classe que não seja a
“classe baixa”. Por exemplo, ter um nível “básico” de escolaridade ao invés de
“superior” reduz em 77% as chances de adotar uma identidade de “classe média”
em vez de “classe baixa”. Além disso, possuir nível “secundário” de
escolaridade em vez de “superior”, reduz em 50% as chances de identificação com
a “classe média”, em lugar da “classe baixa”28.
O nível de rendimentos também se revelou muito importante. Até mesmo quando
controlamos os efeitos das demais variáveis (como escolaridade e ocupação) é
possível ver que o fato de um indivíduo estar na faixa “C” – e não na “AB” –
reduz em 78% suas chances de adotar uma identidade de “classe média” em
oposição à de “classe baixa”; e estar na faixa “D” reduz essas chances em mais
de 90%. Além disso, estar nas faixas “C” ou “D” (ao invés de “AB”) também
reduz, porém de maneira menos acentuada, as chances de os indivíduos se
reconhecerem como “classe média baixa”, e não “classe baixa”.
Conforme esperado, variáveis como escolaridade, consumo e, principalmente,
renda, produzem fortes efeitos sobre as identidades de classe. De uma maneira
geral, a identidade de classe média está bastante associada à escolaridade
superior, a um nível elevado de rendimentos (AB) e a práticas distintas de
consumo.
Mas, como o modelo multinomial trabalha com razões de chance, e dado o número
de categorias na nossa variável dependente – há quatro parâmetros explícitos
para cada variável independente –, seria muito difícil interpretar a grande
quantidade de informações que o modelo fornece29. Além disso, como já deve
estar claro, estamos interessados na relação entre identidades de classe e
“perfis socioeconômicos”, e não exatamente nos coeficientes relativos a
variáveis específicas.
A fim de melhor atender aos objetivos do estudo e relativizar as dificuldades
de interpretação impostas pelo modelo multinomial, faremos uso das
probabilidades preditas (Long_e_Freese,_2006). Assim, a partir do nosso modelo,
extraímos as probabilidades preditas das diferentes identidades de classe para
quatro casos fictícios (simulados), empregados como proxiesdos quatro
diferentes tipos socioeconômicos (E, D, C e AB), analisados anteriormente.
Todos eles compartilham algumas características básicas, como: ter 35 anos de
idade, ser do sexo masculino e viver em uma capital no sudeste do Brasil30. Por
outro lado, eles são bastante diferentes no que se refere às características
socioeconômicas.
O tipo “E” caracteriza-se por nível educacional baixo (0-4 anos), poder de
consumo “baixo”, nível “E” de rendimentos e situação ocupacional de
“trabalhadores rurais”; o tipo “D”, por ter de5a8 anos de escolaridade, poder
de consumo “intermediário”, encontrar-se na camada de renda “D” e na categoria
ocupacional dos “trabalhadores manuais não qualificados”; o tipo “C” tem nível
educacional médio (9-11 anos), poder de consumo “intermediário”, rendimentos na
faixa “C” e situação ocupacional de “trabalhadores não manuais de rotina”; por
fim, o tipo “AB” apresenta nível “superior” de escolaridade (12 anos ou mais),
poder de consumo “alto”, encontra-se na camada “AB” de rendimentos e na
categoria ocupacional dos “profissionais e administradores”.
Esses casos fictícios, simulações, podem ser vistos como proxies– ou tipos
médios – dos diferentes perfis socioeconômicos agregados pelos intervalos de
renda de Neri_(2008), e também captados anteriormente por meio da Análise de
Correspondência Múltipla.
O Gráfico_3 mostra as probabilidades preditas das identidades de classe para
cada um desses tipos31. Podemos ver que, de acordo com as probabilidades
preditas pelo modelo – representadas no Gráfico_3 –, o tipo “E” apresenta uma
probabilidade de 0,55 de se reconhecer como “classe baixa/pobre”, sendo
caracterizado pela predominância desta categoria. A probabilidade da identidade
de “classe baixa/pobre” diminui conforme caminhamos em direção aos outros
tipos, chegando a 0,02 para o tipo “AB”, no qual, por sua vez, encontramos uma
predominância da identidade de “classe média” – probabilidade de 0,68. Enquanto
o tipo “AB” é marcado pela identidade de “classe média” e o tipo “E” pela de
“classe baixa”, os tipos “D” e “C” não apresentam nenhuma probabilidade que se
destaque das demais.
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0111-gf03.jpg]
Gráfico 3 Modelo Logit Multinomial para Identidades de Classe: Probabilidades
Preditas por Tipos Socioeconômicos (Brasil, 2008)
Se, por um lado, o tipo “E” se destaca pela alta probabilidade de identificação
com a “classe baixa/pobre”, o tipo “AB” se distingue pela predominância da
identidade de “classe média”. De fato, é somente para o tipo “AB” que a
probabilidade predita para “classe média” ultrapassa 0,50 e que a probabilidade
para “classe baixa” é menor que 0,10.
Como vemos na Tabela 7 em anexo, a diferença nas probabilidades de
identificação com a “classe média” entre os tipos “C” e “AB” é estatisticamente
significativa32. Além disso, vemos, ainda na Tabela 7 que, para o tipo “C” – ao
contrário do que acontece para o tipo “AB” –, as probabilidades de
identificação com a “classe média” não são significativamente33 superiores às
probabilidades de identificação com a “classe média baixa” nem com a “classe
trabalhadora”.
A probabilidade de o tipo “C” identificar-se com a “classe média” é de 0,35, e
de 0,24 para identificar-se com a “classe média baixa”; no entanto, esse tipo
também apresenta probabilidade de 0,23 e 0,15 de se identificar com a “classe
trabalhadora” e com a “classe baixa/pobre”, respectivamente.
Assim, o modelo utilizado nos informa que os indivíduos do tipo “C”, uma
proxydo setor da população que nos últimos anos tem sido definido como a “nova
classe média brasileira”, não se percebem claramente como integrantes da
“classe média” ou reivindicam pertencer a essa classe. Embora seja esta a
identidade de classe mais provável para esse tipo, as outras identidades também
estão muito presentes, inclusive a “classe baixa”. Pode-se dizer, então, que
não há uma identidade de classe muito clara para este perfil socioeconômico
intermediário. Somente no tipo “AB” – formado por indivíduos com nível superior
de escolaridade, profissionais, administradores, com maiores chances de possuir
plano de saúde, previdência privada, cujos filhos estudam em colégios
particulares, e que frequentam teatros e fazem viagens internacionais – é que a
identificação com a “classe média” se mostra nitidamente. O tipo “AB”, perfil
mais abastado da população brasileira, é o único em que as pessoas se
identificam de modo bastante claro com a “classe média”.
Complementando nossa análise, com o objetivo de tornar mais palpável a
consideração dos efeitos de cada uma das principais variáveis independentes
sobre as probabilidades de identificação com a classe média, o Gráfico_4 traz
algumas outras simulações com as probabilidades preditas, as quais nos ajudam a
entender os efeitos das variáveis socioeconômicas (ocupação, escolaridade e
renda) sobre a probabilidade de identificação com a “classe média”.
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0111-gf04.jpg]
Gráfico 4 Modelo Logit Multinomial para Identidades de Classe: Probabilidades
Preditas para “Classe Média”, por Tipos Socioeconômicos (Brasil, 2008) (%)
O gráfico mostra as variações na probabilidade de os indivíduos adotarem uma
identidade de “classe média” de acordo com seu nível de escolaridade (até 4
anos de estudo; de 5a8 anos; de 9a 11 anos; 12 anos ou mais), categoria
ocupacional (trabalhadores rurais; manuais não qualificados; manuais
qualificados; não manuais de rotina e profissionais e administradores) e nível
de renda (E, D, C e AB) – que são as variáveis socioeconômicas que mais
contribuem para o poder explicativo do modelo34.
No conjunto de gráficos acima, cada quadro representa um nível educacional,e
dentro de cada quadro, da esquerda paraa direita, temos os níveis de renda (do
“E” para o “AB”). Além disso, cada linha nos gráficos representa uma categoria
ocupacional. Consequentemente, o espaço entre linhas representa os “efeitos da
categoria ocupacional”, a inclinação das retas representa o “efeito da renda”,
e as diferenças entre os quadros representa o “efeito da escolaridade”.
Conforme esperado, verificamos uma inclinação positiva a partir do nível de
renda “E” até o nível “AB” para todas as linhas em todos os quadros, o que
representa visualmente o efeito positivo dos rendimentos sobre a probabilidade
de identificação com a “classe média”. Além disso, vemos que o efeito da renda
sobre essas probabilidades é maior que o efeito da escolaridade ou da ocupação;
isso é verdade especialmente pela inclinação mais acentuada que verificamos
entre os intervalos de renda “C” e “AB”.
É possível verificar que, apesar de uma inclinação quase constante do nível “E”
até o “C”, há um aumento bastante acentuado da inclinação entre o nível “C” e o
“AB”. Isso significa que esse último intervalo de renda, que agrega os
indivíduos e famílias mais abastados do país, possui probabilidades muito
maiores que os demais de identificação com a “classe média” – controlando pelos
efeitos de outras variáveis, inclusive o grau de escolaridade e a categoria
ocupacional, conforme exposto no Gráfico_4.
Essas observações nos permitem tirar duas conclusões. A primeira é que os
indivíduos situados em posições superiores (perfil “AB”) são os que possuem
probabilidades mais altas de se identificarem com a “classe média” no Brasil;
enquanto os que ocupam posição intermediária – e que vêm sendo denominados
“nova classe média” – não apresentam identificação muito clara com nenhuma
classe. Em segundo lugar, nosso modelo também mostrou que a principal
influência sobre a probabilidade de identificação com a classe média provém da
renda – mesmo quando comparada com escolaridade, consumo e ocupação –, e que
alcançar o nível “AB” de rendimentos se mostra extremamente relevante para que
o indivíduo se perceba como integrante da classe média.
As análises apresentadas neste trabalho indicam que os indivíduos que nos
últimos anos têm sido reconhecidos como “a nova classe média brasileira”– ouo
agregado de renda “C”– não possuem uma clara identidade de classe. Ao
contrário, vimos que somente entre os indivíduos agregados pelo intervalo “AB”,
os mais abastados, é que se pode encontrar uma predominância da identidade de
“classe média”.
O QUE É NECESSÁRIO PARA FAZER PARTE DA CLASSE MÉDIA NO BRASIL?
Conforme comentamos anteriormente, o chamado processo de identificação poderia
ser dividido em dois momentos, interno e externo, correspondentes à
autoidentificação e à classificação externa. Apesar de empiricamente não ser
possível separá-los de todo, trata-se na verdade de uma importante distinção
analítica, já que, por exemplo, identificar-se como pertencendo à classe média
não significa, necessariamente, ser aceito ou reconhecido por terceiros
enquanto tal. Por essa razão, consideramos importante tratar, também, da
percepção dos brasileiros sobre esta classe, verificando o que eles acreditam
ser necessário para ser reconhecido como parte dela35.
No “surveysobre a classe média brasileira”, pediu-se aos entrevistados que
declarassem em que medida (“essencial”, “muito importante”, “mais ou menos
importante”, ou “nada importante”) eles acreditavam que, para fazer parte da
classe média, seria importante possuir os seguintes atributos: ter nível
superior de escolaridade; ter uma ocupação de prestígio; possuir rendimentos
altos; ter casa própria; ser dono do próprio negócio; ter acesso a lazer e
diversão; possuir um padrão de vida estável; e ter acesso a escolas/
universidades privadas.
O Gráfico_5 apresenta a porcentagem de pessoas que disseram ser “essencial” ou
“muito importante” possuir cada uma das características citadas:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0111-gf05.jpg]
Gráfico 5 Características Importantes para se Fazer Parte da Classe Média:
Porcentagem Afirmando que é “Essencial” ou “Muito Importante” (Brasil, 2008)
Podemos verificar que todas as características mencionadas são altamente
valorizadas. Aquela que apresentou a menor porcentagem de respostas positivas
foi “possuir seu próprio negócio”, com aproximadamente 70% dos entrevistados
afirmando ser este um fator “essencial” ou “muito importante” para ser da
classe média. Por outro lado, “possuir um padrão de vida estável” foi a
característica mais valorizada, com quase 95% de respostas positivas. Ela é,
então, seguida por “casa própria”, “acesso a lazer e diversão”, “renda alta”,
“acesso a educação particular” e, finalmente, “negócio próprio”.
Assim, no Brasil, a imagem do que é fazer parte da classe média envolve, em
grande medida, possuir um padrão de vida estável, ter feito universidade, ter
renda alta, ter acesso a lazer e diversão etc. Como vimos, essas são
características que dificilmente se encaixam no perfil do brasileiro “mediano”;
ao contrário, trata-se de uma imagem que é muito mais próxima da camada mais
abastada, de perfil “AB”.
Mas, talvez, o fato mais surpreendente é que parece haver uma espécie de
consenso, que atravessa as camadas sociais, a respeito da importância de
diferentes fatores que caracterizam o integrante da classe média. O Gráfico_6
corrobora esse argumento ao mostrar as porcentagens de avaliações positivas
(“essencial” ou “muito importante”) entre os diferentes níveis de renda e
escolaridade:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0111-gf06.jpg]
Gráfico 6 Características Importantes para se Fazer Parte da Classe Média:
Porcentagem Afirmando que é “Essencial” ou “Muito Importante”, por Níveis de
Renda e Anos de Estudo (Brasil, 2008) (%)
Pode-se ver que, com algumas exceções, a porcentagem de avaliações positivas
para cada uma das características é alta e similar em todos os níveis de
escolaridade e rendimentos. De qualquer maneira, algumas variações devem ser
consideradas. Por exemplo, enquanto somente 50% dos indivíduos agregados pelo
nível de renda “AB” – ou também pelo nível “superior” de escolaridade (12 anos
ou mais) – acreditam que “negócio próprio” é uma importante característica para
se fazer parte da classe média, entre os indivíduos agregados pelo nível “E” de
renda – ou também com baixa escolaridade – esse percentual chega a quase 80%.
Um padrão similar, embora menos acentuado, ocorre no que se refere a “renda
alta” e “educação privada”, com porcentagens menores para o nível “AB” de renda
ou “superior” de escolaridade. Por outro lado, níveis mais elevados de
rendimentos e educação tendem a apresentar percentuais mais altos de avaliação
positiva em relação a características como “padrão de vida estável” e “acesso a
lazer e diversão”.
Assim, se por um lado parece haver um consenso entre os diversos níveis
socioeconômicos de que as características mencionadas seriam todas importantes
para uma pessoa ser considerada de classe média, por outro, os indivíduos de
nível socioeconômico mais elevado apresentam uma tendência um pouco maior a
negar a importância de características como “ocupação de prestígio”, “negócio
próprio” e “renda alta”, e a atribuir maior importância a fatores como “padrão
de vida estável” e “acesso a lazer e diversão”.
Uma vez mais devemos lembrar, no entanto, que o fato mais marcante é que a
grande maioria dos brasileiros, independentemente de seu nível socioeconômico,
tende a considerar as características analisadas como muito importantes ou
essenciais para uma pessoa fazer parte da classe média. Isso é ainda mais
surpreendente quando levamos em conta a natureza das características avaliadas,
que incluem renda alta, nível superior de escolaridade, ocupação de prestígio,
acesso a lazer e diversão, padrão de vida estável etc. Consequentemente, quando
são estimulados a revelar suas identidades de classe, esses indivíduos têm em
mente a imagem de uma classe média que dificilmente corresponde ao perfil do
brasileiro mediano. Isso nos ajuda a compreender por que somente entre as
camadas mais abastadas a proporção de pessoas que se identificam como de classe
média se destaca.
Dessa maneira, os dados apresentados nesta seção evidenciam que a ideia de
classe média no Brasil não parece corresponder às características dos setores
intermediários – intervalo de renda “C” – da população brasileira. Ao
contrário, ela se encontra muito mais próxima do perfil “AB”, de indivíduos e
famílias mais abastados. Nesse sentido, parece pouco provável que aqueles
milhões de pessoas que nos últimos anos alcançaram níveis intermediários de
rendimento possam vir a ser reconhecidos como membros da classe média
brasileira.
CONCLUSÕES
Neste artigo tratamos de uma questão central para a compreensão das mudanças
pelas quais a sociedade brasileira passou nos últimos anos: o surgimento do que
vem sendo denominado de “nova classe média brasileira”. Trata-se, como vimos,
da ampliação daquela camada estatisticamente intermediária da população em
termos socioeconômicos, e cuja participação no seio da população brasileira
ultrapassou os 50% no ano de 2008. Por esta razão, foi feita a afirmação de que
o Brasil havia se tornado um país de classe média.
Essa declaração foi o estopim de um enorme debate, no qual se travaram disputas
a respeito da interpretação desses movimentos recentes na estratificação
social, havendo basicamente duas posições contrárias: a primeira, mais próxima
dos estudos econômicos, e que tomava esta camada estatisticamente intermediária
como proxyda classe média brasileira; e a segunda, que discordava dessa
interpretação ao lembrar da importância de outros fatores além da renda, como
categorias ocupacionais e/ou capital cultural, para o estudo e definição das
classes. Assim, segundo esta última perspectiva, não seria correto
identificarmos essa camada intermediária e seus integrantes como classe média,
tendo em vista que eles careceriam seja de uma posição ocupacional-estrutural,
seja do aporte de capital cultural, supostamente “típicos” dessa classe.
Em trabalhos anteriormente publicados, argumentamos que a análise de classes
feita através de categorias sócio-ocupacionais mostrava que a estrutura de
desigualdades da sociedade brasileira não teria passado por transformações
substantivas nos últimos anos, lançando dúvidas então sobre a tese da “nova
classe média” (Scalon_e_Salata,_2012). No entanto, se por um lado é verdade que
as informações ocupacionais, e também aquelas relativas ao capital cultural,
nos permitiam uma análise e compreensão mais profundas da estrutura de
desigualdades e de sua reprodução, quando comparadas com os estudos que focam
somente em informações de rendimentos, por outro, percebíamos que esse tipo de
análise também não conseguia dar resposta a importantes questões: esses
indivíduos, a agora famosa “classe C”, se reconheceriam como integrantes da
classe média? Seriam eles considerados por outros indivíduos como parte dessa
classe? Afinal, qual estrato no Brasil tipicamente se identificaria, e seria
identificado, com a classe média? Essas questões, que, a nosso ver, assinalam
pontos essenciais deste debate, não podiam ser respondidas somente com as
informações de renda, escolaridade ou ocupação.
Não se trata, como vimos, de um problema novo na bibliografia, muito pelo
contrário. A definição dos contornos da classe média tem sido uma das tarefas
mais desafiadoras da sociologia. Assim, em vez de adotarmos uma definição
teórica, dada a priori, para então verificarmos se aquela crescente camada
intermediária poderia ou não ser considerada como a classe média brasileira,
decidimos nos dedicar à análise de como os próprios indivíduos se percebem,
identificando-se ou não com essa classe.
Ao seguir este caminho, nos inserimos em um importante movimento que tem
ocorrido dentro dos estudos internacionais a respeito das desigualdades e
classes sociais. Tendo sido por alguns anos relegada a segundo plano, a esfera
subjetiva da estratificação foi retomada como aspecto central dos estudos de
classe (Devine_e_Savage,_2005), conforme procuramos evidenciar nas primeiras
seções deste artigo.
Os resultados por nós alcançados mostram que a classe média no Brasil diz
respeito não àquela camada estatisticamente intermediária – a “classe C” de
Neri_(2008) –, mas sim aos indivíduos mais abastados (camada “AB”) da
população: pessoas com renda domiciliar elevada, nível superior de
escolaridade, inseridas em categorias ocupacionais de prestígio médio-alto, com
maiores probabilidades de possuir plano de saúde, poupança, frequentar teatros,
viajar para o exterior, ter os filhos estudando em escolas privadas etc. São
essas pessoas que formam a classe média brasileira, embora estejam longe de ser
a imagem mais próxima do brasileiro mediano, ou a camada intermediária.
Além disso, foi também possível verificar, através de nossa análise, que a
renda é a variável mais importante para a identificação com a classe média,
quando comparada com escolaridade, ocupação etc. Atingir um nível “AB” de
rendimentos se mostra como condição fundamental para a identificação com a
classe média, mesmo quando mantemos constantes as outras variáveis
independentes.
A fim de aprofundar nossa análise, no decorrer deste artigo tomamos como objeto
não somente as identidades de classe, mas, também, as percepções dos indivíduos
sobre o que os mesmos consideram ser necessário para fazer parte da classe
média. Como resultado, vimos que parece haver um consenso, que percorre os
vários estratos sociais, acerca da importância de algumas características que
uma pessoa deve ter a fim de fazer parte da classe média no Brasil; e isso é
ainda mais surpreendente quando levamos em conta a natureza das características
avaliadas, que incluem renda alta, nível superior de escolaridade, ocupação de
prestígio, acesso a lazer e diversão, padrão de vida estável etc. Essas são
características que, com algumas ressalvas, poderiam facilmente ser
compartilhadas pelos indivíduos e famílias provenientes das camadas mais
abastadas da sociedade brasileira (perfil AB), mas dificilmente corresponderiam
à realidade daqueles que estão situados em posições intermediárias, ou seja, a
chamada “classe média estatística” (Neri,_2008).
Esses resultados corroboram os argumentos levantados pela literatura
sociológica mais recente sobre a classe média brasileira (O’Dougherty,_2002;
Owensby,_1999). Tais autores, como vimos, afirmam que a ideia de classe média
no Brasil teria sido formada tendo como referência a imagem – um tanto
idealizada – da classe média europeia e norteamericana. Isso significa que,
conforme verificado em nossas análises empíricas, apenas os setores mais
abastados da população brasileira seriam capazes de corresponder àquele ideal.
Dessa maneira, a análise aqui empreendida corrobora nossa hipótese, mostrando
que no Brasil a classe média– ao menos na condição de uma coletividade com a
qual os indivíduos se identificam, e são identificados – não corresponde às
características dos setores intermediários (intervalo de renda “C”) da
população brasileira; ao contrário, ela estaria muito mais próxima do perfil
“AB”, dos indivíduos e famílias mais abastados.
Deve-se ter em vista, portanto, que dada a posição periférica de países como o
Brasil, a ideia de “classe média” surgiu nos chamados países centrais, e foi
posteriormente absorvida pela sociedade brasileira no contexto específico de
meados do século XX. Conforme argumentado por autores como Owensby_(1999), numa
situação em que os países centrais eram vistos como ápice do desenvolvimento em
direção ao qual, acreditava-se, o Brasil estava começando a caminhar, ser
reconhecido como pertencente à “classe média” significava ser reconhecido como
parte desse mundo “desenvolvido”. Significava, portanto, uma posição social
superior, que deveria corresponder a certo grau de prestígio ou statussocial.
Afirmava-se, dessa maneira, aquilo que Souza_(2003) identificara como a
separação simbólica entre “europeizados” e “não europeizados”; e se reconhecer
e ser reconhecido como membro da “classe média” significa(va) também fazer
parte da primeira categoria.
Conforme procuramos argumentar anteriormente, baseando-nos na bibliografia
recente sobre o tema, as identidades de classe devem ser tomadas não como
percepções corretas ou equivocadas de uma dada posição objetiva definida a
priori, mas como reivindicações de pertencimento que participam ativamente na
própria formação, manutenção e questionamento dos contornos das classes e
hierarquias sociais. Com efeito, os resultados por nós alcançados, mostrando
que somente a camada mais abastada da população possui uma identificação
bastante clara e profunda com a classe média no Brasil, indicam que, ao menos
enquanto um grupo socialmente significativo (ou uma formação social), a classe
média brasileira seria composta pelos setores mais abastados (“AB”) da
população, e não pelos setores intermediários (“C”). Nesse sentido, não haveria
uma coincidência entre a “classe média estatística” de Neri_(2008) e a formação
de classe média no Brasil.
Apoiada no discurso oficial, a tese da “nova classe média brasileira” ganhou
força nos meios de comunicação de massa e no debate público de uma maneira
geral. No entanto, conforme verificamos no presente trabalho, há uma aparente
desconexão entre a denominação que vem sendo utilizada e as percepções dos
brasileiros em geral e, mais especificamente, dos indivíduos que fazem parte da
camada intermediária de renda. Dada essa discrepância entre parte do discurso
acadêmico (e oficial) e as percepções dos indivíduos, acreditamos ser pouco
provável que, nos próximos anos, esse contingente de indivíduos
“estatisticamente intermediários” venha a ser incorporado à formação de classe
média.
Esperamos, assim, que as análises e resultados apresentados neste artigo, ao
ressaltarem a esfera subjetiva da estratificação, possam trazer uma importante
contribuição para o debate em curso sobre a classe média no Brasil.