A Macrodinâmica Social Brasileira: Mudanças, Continuidades e Desafios
INTRODUÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO
Ao final da primeira década do século XXI, o cenário econômico oscilava entre
crise e controvérsia. De forma similar à última parte da década de 1990, uma
grande crise, desencadeada pelo crashde 2008, criou ambiente de enorme
incerteza. Quanto aos atores dessa ordem internacional, a China permanece como
um dos grandes motores da economia mundial; os Estados Unidos, por sua força e
apesar de a crise ter irrompido desde sua economia, continuam referência
obrigatória na cena internacional;ea União Europeia, ainda que seja um
importante playerinternacional, permanece entre os dilemas de sua unificação e
uma posição acessória no xadrez mundial, agravada por suas próprias respostas
conservadoras à crise de 2008. Já a América Latina, com graus variados, parece
oscilar entre a conservação e a mudança.
Quanto ao Brasil, vem recebendo substantiva atenção no cenário internacional,
em diversos aspectos. Não porque tenha resolvido suas históricas questões
relativas à desigualdade – embora as esteja amenizando – ou aos problemas de
infraestrutura. O destaque advém, para além dos vários resultados concretos, de
ações continuadas apontarem para um rumo: a convivência entre soluções
ortodoxas em política monetária e preocupações objetivas quanto ao papel do
Estado e sua capacidade de investimento, entendido tanto como indutor e
promotor de ações regulatórias e de intervenção direta, quanto como formulador
de políticas sociais e setoriais.
Como exemplos, destaque-se o aumento da participação brasileira no comércio
mundial, particularmente no mercado de commodities(o que não deixa de ser
controverso tendo em vista a diminuição da participação nas exportações de
produtos industriais, de maior valor agregado, mas que não é objeto deste
artigo); a diversificação dos seus mercados (priorização à América Latina e ao
Mercosul, novas relações com o Oriente Médio e África, entre outros), o que
implica nova visão acerca das relações internacionais; papel mais ativo na
própria internacionalização econômica, para além, portanto, de sua histórica
inserção “passiva”, entendida esta como dependência quase exclusiva e
subalterna, quanto ao comércio internacional, aos mercados dos EUA e Europa1,
assim como protagonismo político no G-20; o potencial energético, notadamente
petróleo e biocombustíveis; e a rápida resposta à crise mundial de 2008, pela
via da combinação de crédito, redução de impostos de bens de consumo duráveis,
investimento estatal e políticas compensatórias e setoriais.
Essas ações credenciaram o Brasil à posição de protagonismo num mundo
relativamente instável diante dos riscos econômicos(notadamente dúvidas quanto
à retomada do crescimento, as crises de balanço de pagamentos, a confiança dos
agentes) e políticos(tensões desafiadoras no cenário internacional,
reposicionamentos geopolíticos e geoeconômicos, a ascensão particular da China,
tensões militares e regimes políticos desafiadores do establishmen
tinternacional)2.
Observe-se, contudo, que uma dimensão importante da atenção ao Brasil deriva do
movimento de suas decisões políticas e econômicas. Nesse sentido, embora o país
venha obtendo notável presença internacional, este artigo procura analisar
dimensões endógenas da realidade brasileira, olhando-se para o cenário mundial
como contexto, notadamente o econômico. O estudo pretende indicar dados sobre a
macrodinâmica da sociedade brasileira, analisando-se indicadores desde 1995,
mas sem perder de vista o contexto internacional, uma vez que cenário
importante à tomada de decisões nacionais, internas. Não se trata do balanço de
períodos presidenciais, e sim a tentativa reflexiva de compreensão da
macrodinâmica social, especificamente o mercado de trabalho e indicadores
sociais relevantes que auxiliem na tarefa de analisar tendências quanto às
transformações efetivas na estrutura social e econômica brasileira, daí
derivando seus desafios3.
Note-se que o que se entende por macrodinâmica social, que estaria em movimento
particularmente desde o início dos anos 2000, implica um conjunto de variáveis
– tais como ampliação de vagas de trabalho, formal e informal; renda do
trabalho e transferências governamentais distintas, como bolsas e, de certa
forma, o próprio crédito; o papel do salário mínimo e da Previdência Social; e
elementos macroeconômicos impactantes na vida social – que, vistas de forma
conjugada, organizam um quadro representativo de mudanças na sociedade
brasileira, que estaria em movimento. Nunca é demais ressaltar que mudanças
convivem com permanências e, dependendo do aspecto observado, com recuos. No
entanto, a hipótese aqui perseguida refere-se ao vetor de mudanças – daí a
ideia de dinamismo – que estaria transformando a sociedade brasileira, apesar
das contradições inerentes, como é sempre bom enfatizar.
Daí não ser objetivo deste texto o aprofundamento de cada variável observada,
tais como os movimentos e contramovimentos, com respectivas literaturas
específicas, acerca do trabalho, do emprego e das ocupações, formais e
informais; da renda advinda do trabalho; do papel do Estado em relação ao
crédito, ao salário mínimo, às bolsas e à Previdência; dos aspectos
macroeconômicos, como o crescimento do produto interno bruto (PIB), a dinâmica
das exportações; e do cenário político e particularmente econômico
internacional; entre outros. O aprofundamento de todas essas variáveis, e de
subvariáveis que advêm delas, seria simplesmente impossível tendo em vista os
parâmetros de um artigo.
Dessa forma, é justamente o olhar em perspectiva, panorâmico, sem, contudo,
perder densidade analítica – com vistas justamente a promover a articulação
dessas variáveis, observando sua organicidade e, consequentemente, seu vetor –
que este artigo objetiva. Em outras palavras, pretende-se analisar variáveis
decisivas ao mundo social, numa perspectiva macro (entendida tanto no sentido
de composição sistêmica de informações como das balizas da economia política),
cujo foco é a compreensão do movimento, aqui pressuposto, da sociedade
brasileira rumo à construção de bases universais, inclusivas e igualitárias no
que tange ao tecido social.
TRABALHO E EMPREGO: INDICADORES DE MUDANÇA
Retomando as reflexões típicas dos anos 1990 sobre o mercado de trabalho no
Brasil, deve-se destacar a perspectiva um tanto pessimista das análises. De um
lado, a tese conservadora do sufocamento do mercado, pois asfixiado por leis
excessivas e rigidez (Pastore,_1998; Camargo,_1996); de outro, a crônica
incapacidade em gerar empregos derivada da “terceira revolução industrial”
(Mattoso,_1995) ou do “fim dos empregos” e os desafios da automação (Rifkin,
2004). Outra vertente apontava para a questão do “capital humano”, decorrente
da escolarização precária e da formação escolar deficiente. E ainda pode-se
verificar a versão, mais à esquerda, em que o capitalismo em mutação forçaria
alterações significativas aos trabalhadores, ameaçando suas conquistas
(Antunes,_1995); assim como apontam “a crise da centralidade do trabalho”
(Offe,_1991). Em todas as perspectivas, que por vezes se cruzam, o trabalhoé
colocado na berlinda, ainda que os diagnósticos sejam muito distintos
(inclusive os dos autores citados), bem como as soluções propostas. Essas
perspectivas demonstram, neste texto, os termos do debate ao qual o Brasil
esteve presente e pode posteriormente, por meio de decisões políticas e de
economia política, aplicar políticas públicas nos mais diversos setores sociais
que desanuviaram esse ambiente pessimista, conforme os números demonstram no
Gráfico_1:
Gráfico 1 Ga st o Social Federal por Área de Atuação (1995/2002/2010)
Como se observa, na década e meia compreendida entre 1995 e 2010 o gasto social
federal (GSF) cresceu 4,3% do PIB e 172% em valores reais, acima da inflação
(índice nacional de preços ao consumidor amplo – IPCA). De 1995 a 2003, o GSF
cresceu 1,7% do PIB, e de 2004 a 2010 cresceu 2,3% do PIB. De 1995 a 2010 o GSF
per capitacresceu cerca de 120% acima da inflação (IPCA), como mostra o Gráfico
2:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf02.jpg]
Gráfico 2 Trajetóri a do Gasto Social Federal 1995-2010
Tendo em vista essas perspectivas, observa-se que, transcorrida pouco mais de
uma década, a crise do mercado de trabalho não se configurou; ao contrário.
Ainda que seja necessário refinar os dados, aprofundando-os ao nível das
diferentes atividades, dos rendimentos médios por atividade, nível de
escolaridade e distribuição funcional, a agenda assentada na debacle do
trabalho necessita ser repensada, tomando-se como referência de análise o
Brasil4. Afinal, o nível de atividade apresenta tendência clara, como pode ser
observado no Gráfico_3, bem como a queda no desemprego (Gráfico_4).
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf03.jpg]
Gráfico 3 Tax a de Ocupação (%) (Brasil, 2002-2010)
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf04.jpg]
Gráfico 4 Desemprego (%) (Brasil, 2002-2010)
Observe-se que a taxa de ocupação, expressa pela relação entre os ocupados e a
população economicamente ativa (PEA), oscilou entre 87% e 93,8% entre 2002 e
2008, ainda com leve tendência de alta (dados de 2010). A elevada taxa de
ocupação tem seu correlato também na redução dos indicadores de desemprego.
Entre março de2002 e setembro de 2010 o nível de desemprego caiu pela metade,
sendo que a partir de março de 2009 o indicador decresceu de forma praticamente
ininterrupta até o patamar de 6,2%, em setembro de 2010.
Se considerarmos o tipo de vínculo (ou a ausência de), também parece invertida
a tendência de desmonte do mercado de trabalho. Como aludido, um dos aspectos
mais notáveis da literatura, particularmente a equivalente à chamada “rigidez”
deste mercado, referia-se à incapacidade de admissão pelo excesso de regulação
e pela tendência à informalidade, dados os desestímulos da “extorsiva” carga
tributária e complexidade legal.
O Gráfico_5 indica números de empregados com registro e sem registro, com as
duas tendências. Verifica-se o movimento oposto entre ambas as categorias,
revelando evolução crescente entre os empregados registrados. Observe-se,
contudo, que não se está considerando a qualidade específica dos empregos, uma
vez que sua geração pode ocorrer em setores demandadores de mão de obra menos
qualificada, como aparentemente é o caso. Deve-se ressaltar, como se observa
neste artigo, que a taxa de ocupação, sobretudo a formal, se eleva com o
crescimento do PIB.
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Gráfico 5 Emprego por Tipo (%) (Br a sil , 2002-2010)
Um dado interessante é o movimento em torno da informalidade. O Gráfico_6
revela uma indicação importante, particularmente porque se utiliza de uma série
mais longa5.
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Gráfico 6 Informalidade (Brasil, 1995-2007)
Nas áreas urbanas não metropolitanas, a relativa estabilidade deu lugar à
tendência de queda visível. Em 1995 havia informalidade de 64,5%; em 2002
estava na casa dos 59%. A partir daí, a queda foi acentuada. Já a curva para as
áreas metropolitanas é diversa, uma vez que entre 1995 e 2002 a informalidade
havia aumentado de 42,6% para 47,2%, partindo daí para queda muito mais lenta.
Tanto que a reta de tendência é estável no tempo, até com pequena elevação.
Aqui reside interessante comparação para a dinâmica do “emprego” informal. Até
2002, a elevação da informalidade mostrava que a incapacidade em gerar emprego
formal não indicava que isto se devesse a qualquer rigidez estrutural, desde
que comparemos este período com o posterior. A queda de quase quatro pontos
entre 2002 e 2007 nas áreas metropolitanas contrasta com a queda acima de nove
pontos nas áreas não metropolitanas. Neste caso, a dinâmica da formalização,
intensificada a partir de 2002, teve impacto muito mais forte no conjunto do
país e menos em áreas mais densamente populosas das grandes cidades. Destaque-
se que o crescimento do país, importante para o crescimento das taxas de
emprego como um todo, e formal em particular, não foi concentrado nas regiões
mais dinâmicas, mas tendeu a formalizar mais emprego onde antes isso acontecia
menos, ou seja, em regiões mais periféricas. Com dados mais recentes, de 2013,
a tendência de redução da informalidade continua: nas regiões não
metropolitanas atingiu 43,1%, e nas metropolitanas a queda foi de 31,9%. Na
média, o Brasil atingiu queda de 39,3%6.
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Gráfico 7 Trajetória do Gasto Social (1995-2010)
Por outro lado, a maior lentidão na queda dos trabalhadores informais em
regiões metropolitanas indica que há um longo caminho a percorrer. Afinal,
outros determinantes estruturais interferem nessa dinâmica, tais como a
necessidade de maior escolarização; o aumento da capacidade produtiva,
particularmente no setor industrial; os instrumentos de crédito para
investimento com condições competitivas de captação; a qualificação
profissional; e a desoneração da folha, paralelamente aos impactos positivos
dos programas sociais.
Os níveis de crescimento representam estimulante poderoso, capazes de reduzir
contingentes de mão de obra ociosa, saindo-se da inércia da etapa “lenta” do
ciclo. A linha de variação é fortemente dispersa, como se observa no Gráfico_8:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf08.jpg]
Gráfico 8 Variação Anual PIB (%) (Bra sil , 1994-2010)
A tendência indica propensão de crescimento entre 1994 e 2010, ainda que leve e
muito variante. Como reflexo das estratégias de estabilização dos anos 1990,
entre 1994 e 1996 e entre 1997 e 1999 o resultado é decepcionante, agravado
ainda pela crise internacional de 1997-1998. A estupenda redução ocorrida em
1998 foi tão forte que a retomada seguinte era esperada (em 2000), inclusive
fortalecida pelas alterações na política cambial, no início do segundo governo
de Fernando Henrique Cardoso. Os dois primeiros anos do governo Luiz de Inácio
Lula da Silva não foram melhores, pois houve ajustes duros do novo governo,
seguindo-se a mesma cartilha do anterior. O período Palocci no Ministério da
Fazenda mantinha concepção de aperto fiscal e monetário idêntico ao do período
Cardoso e reduziu ainda mais o crescimento em 2003, mas o período seguinte,
apesar da elevada taxa de juros, foi de grande salto no crescimento. A crise do
chamado “mensalão”, a queda de Palocci e a reorientação dada à política
econômica – progressivamente mais expansionista, creditícia, com investimento
estatal e estímulos setoriais – iniciou trajetória ascendente nos anos de 2005
a 2007, e, de certa forma 2008, mas que, como resultado da crise internacional,
declinou novamente8.
Observe-se a relação entre o crescimento do PIB e o desemprego, no Gráfico_9:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf09.jpg]
Gráfico 9 Va riaçã o do PIB e do Desemprego (%) (Brasil, 2000-1010)
As linhas que apontam as tendências são opostas, mas como há indiscutível
crescimento do PIB, a redução do desemprego é previsível. Há de se observar que
a crise em 2008/2009 não provocou aumento geral na taxa de desemprego, antes o
contrário. As alternativas anticíclicas adotadas em 2008 (e principalmente em
2009) mantiveram a atividade mais geral do emprego e estabilizaram as “perdas”.
O aumento do investimento (com o suporte de crédito), as desonerações
tributárias (Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI e Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS da “linha branca”) e o mercado
interno garantiram no mínimo o PIB “empatado” em zero e o desemprego estável.
Ainda que a curva do PIB permaneça em formato “errático”, persiste tendência de
alta, com a notável exceção de 2009, o que vem ao encontro da tese de que o
crescimento é um indutor de emprego, embora não o único fator. Dada a propalada
“crise do emprego”, conforme debatida por parcela importante da literatura
sobre reestruturação produtiva e sua sinergia com a questão da flexibilização
do modo de produção (pós-fordista), parecia improvável que houvesse aumento do
emprego, ainda mais o formal. Passada uma década, o desemprego recuou para
quase 7% em 2010. Já em 2013, a taxa de desemprego atingiu 4,6% mantendo a
tendência de queda9.
Quadro 1 Evolução Anual PIB e Desemprego (1995-2013)
Ano PIB Desemprego
1995 4,42 4,65
1996 2,15 5,43
1997 3,38 5,67
1998 0,04 7,60
1999 0,25 7,56
2000 4,31 7,14
2001 1,31 7,50
2002 2,66 11,80
2003 1,15 12,30
2004 5,71 11,50
2005 3,16 9,80
2006 3,96 10,00
2007 6,09 9,30
2008 5,16 7,90
2009 -0,19 8,10
2010 7,50 7,10
2011 2,70 4,70
2012 1,00 4,60
2013 2,30 4,30
Fonte: IBGE, Elaboração própria.
Com o aumento do emprego formal e a redução da informalidade, o mercado teria
se tornado menos “rígido”? Aparentemente não, pois não houve alteração capaz de
decisivamente mudar os processos formais e legais relativos ao mercado de
trabalho. O que mudou, em verdade, foi a ação mais efetiva do Estado pela via
ativa de estímulo setorial e de alavancas (creditícias e tributárias, entre
outras) ao ciclo virtuoso do consumo/produção, paralelamente à redistribuição
“estrutural” da renda por meio do Sistema Único de Assistência Social e da
Previdência Social, que, dessa forma, criam colchões protetores às crises e
mantêm o consumo estável num patamar mínimo.
É possível, contudo, interpretar alternativamente o fenômeno do emprego no
Brasil, na medida em que se afirma ser o aumento do emprego formal não apenas
sazonal, portanto não sustentável ao longo do tempo, como principalmente um
fenômeno em que estruturalmente a ocupação informal substitui – na lógica do
desemprego estrutural tecnológico – a formalização do emprego. Em outras
palavras, o estoque de empregos formais seria estrutural e progressivamente
decrescente, tal como no exemplo da indústria automobilística, que nos anos
1940 empregava dez vezes mais trabalhadores para produzir um número muito
inferior de automóveis, situação que se inverte dos anos 1980 aos dias de hoje.
Nessa perspectiva, apenas um inventário por meio de uma série histórica longa –
por exemplo, entre os anos 1940 aos dias de hoje – poderia analisar a relação
entre estoque de empregos, reais e potenciais,e empregabilidade. Mas trata-se
de outra pesquisa, e de uma visão alternativa baseada na lógica do modelo de
acumulação. Seja como for, o fato é que os números referentes à formalização do
emprego no Brasil são claros e impactantes o suficiente para colocar em questão
tanto as restrições econômicas internacionais quanto o ceticismo de parte
significativa da literatura quanto ao “futuro do emprego”. Com efeito, dado o
cenário atual, é possível dizer que há tendência de manutenção do emp rego no
curto e médio prazo.
Nunca é demais reafirmar que este artigo pretende – ao rememorar os termos do
debate sobre o emprego e questões afins na literatura, e ao demonstrar os
números de sua ampliação recente – lançar luz na macrodinâmica brasileira
recente, sem tirar conclusões acerca dos fatores estruturais relativos a
questões como o estoque de empregos e outros fatores tidos como “estruturais”
nas premissas, lógica e dinâmica do capitalismo contemporâneo. Somente
pesquisas com esse intuito podem concluir a respeito e numa perspectiva
comparada entre países e regiões.
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Gráfico 10 Inflação e Salário Mínimo (Brasil , 2003-2010)
A RENDA EM MOVIMENTO
Se o emprego se ampliou, há dois aspectos adicionais que precisam ser
considerados. Em primeiro lugar, é inegável que a taxa de inflação sob controle
e em patamares decrescentes, entre 2003 e 2007, foi um fator relevante. Porém,
mais relevante ainda foi a política de aumento real – acima da inflação, de
forma sustentável,e depois, inserida em lei – do salário mínimo (SM). Apenas em
2003 a inflação superou o SM, pois este acumulou alta significativa no decorrer
do tempo. Em 2004 o SM atingiu a marca de quase 10 pontos; entre 2005 e 2007
atingiu saltos maiores (de 10 pontos e quase 14 pontos, respectivamente), para
voltar a se acelerar somente no início de 2010. É sabido que a maior parte do
SM é percebida por aposentados e trabalhadores de segmentos básicos da
economia, mas o valor referencial baliza tanto os mínimos estaduais (que podem
diferenciar-se para cima do piso nacional) como serve de valor de referência
para benefícios sociais. Atingindo parcelas em situação mais vulnerável, seu
impacto na redução da desigualdade é ainda mais efetivo que políticas
focalizadas, como o Programa Bolsa Família, mesmo sendo este um importante
fator de estabilidade na renda das famílias – notadamente das camadas mais
pobres, como aludido.
Para além do salário mínimo, é certo que, considerando o período entre 2002 e
2009, os salários no setor público representaram importante diferencial ao
longo do tempo. A média de R$ 1.960,00 em 2002 saltou para mais de R$ 2.300,00
em 2010. Esse fator revela dois aspectos da ação governamental que precisam ser
considerados, a saber: o maior nível de investimento no reposicionamento do
papel do Estado (seu caráter planejador e de prestação de serviços) e a maior
atratividade de quadros para o nível público. É visível que o volume dos gastos
com pessoal tenha crescido no tempo, mas esse aumento expressa tanto o pessoal
empregado quanto o aumento exponencial de contratação de servidores para
recomposição dos quadros por meio de concursos públicos.
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Gráfico 11 Remuneração (em R$) (Brasil, 2002-2010)
Segundo o Ministério da Fazenda, entre 2004 e 2008 a despesa com pessoal da
União referente aos três poderes permanece relativamente estável em relação ao
PIB, como se pode ver na Tabela 1.
Tabela 1 De spes a com Pessoal da União, Todos os Poderes, em Relação ao PIB
(Brasil, 2004-2009)
Ano % PIB – DespesCrescimento PIB
2004 6,03 5,71
2005 5,8 3,16
2006 6,32 3,96
2007 5,89 6,09
2008 5,54 5,19
2009 5,8 -0,19
Fonte: Banco Central do Brasil – Dados consolidados (2010).
Entretanto, como o crescimento do PIB foi importante nos últimos anos, de 1995
a 2002 com média de 2,3% a.a, e de 2003 a 2012 de 3,6% a.a10, em termos reais
os gastos gerais com pessoal apresentaram aumento nominal e real não
desprezível. Isso nada mais significa senão o maior grau de investimento do
Estado, a fim de tornar seu aparelho mais robusto, na contramão dos que
adotaram plataformas liberais. Note-se que não se tratou de explosão de pessoal
nas contas públicas, como quiseram fazer crer a grande mídia e os setores
conservadores e neoliberais, e sim, reitere-se, de reaparelhamento do Estado
tendo em vista tanto as defasagens em diversos setores como, principalmente, um
novo papel estratégico a ele conferido. Outro dado importante é o aumento real
do ganho em relação ao setor privado não formal.
Ainda que a economia, como visto, apresente maior grau de formalização, o
aumento do salário médio no setor privado formal acelerou mais lentamente que
no setor público e no informal: em verdade, caiu e voltou a se recuperar. O
ganho efetivo dos trabalhadores informais é mais direto – foi subindo
lentamente e se aproximando mais do setor formalizado. Esse é um aspecto
interessante nos últimos anos: aumentou o nível de formalização, mais empresas
se organizaram e se formalizaram, mas o avanço da economia também ocorreu no
setor informal naquilo que se refere à remuneração. Apesar da aparente
“contradição”, o fato é que ganhos surgiram em ambos os setores. Nesse sentido,
é importante apontar que possivelmente o setor informal, no capitalismo
contemporâneo, esteja inserido estruturalmente na dinâmica de cadeias
produtivas, referendando – em tese, dada a necessidade de pesquisas de longo
prazo que a comprovem – a perspectiva do desemprego estrutural tecnológico, que
se apoiaria sistemicamente num amplo setor informal.
O salário mínimo apresentou importante variação, como já observado. É o que
demonstra o Gráfico_12. O ganho real do salário mínimo vem se ampliando ano a
ano, como é sabido, mas o avanço real, descontada a inflação, oferece dimensão
mais clara desse processo. A cada ano o SM sofre aumento, mas também enfrenta a
desvalorização monetária; por isso a forma de “degraus” no gráfico. Mas, sob
qualquer leitura, o aumento real é nítido, até porque previsto em legislação, o
que é uma importante inovação do governo Lula da Silva, tornado lei (o aludido
aumento real acima da inflação), no governo Dilma Rousseff. Um efeito direto
desses rendimentos, combinado com maior oferta de emprego em uma economia mais
“acelerada”, tem impactos positivos sobre a renda geral, as contas
previdenciárias e o mercado interno: este último, um importante estabilizador
da economia. Mais ainda, pode-se dizer que um mercado interno amplo,
estruturado e sustentável ao longo do tempo é uma demanda histórica da
sociedade brasileira e fator decisivo da estabilidade do tecido social.
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Gráfico 12 Salário Mínimo Real (em R$) (Brasil, 2002-2010)
POBREZA E DESIGUALDADE
Se existe uma situação em que a combinação virtuosa de crescimento econômico,
emprego e renda apresenta reflexos (ainda que incapaz, nesse curto prazo, de
retirar do país a condição dos mais desiguais do mundo), esta se dá nos
indicadores de pobreza e desigualdade. É sabido, pela literatura, que o
conceito de pobreza é multidimensional e pode considerar aspectos como
“privação de capacidades” (Sen,_2000) ou, ainda, medidas quantitativas
referidas aos níveis de mínimo ou suficiente para a vida, estabelecidos em
termos de alimentação, vestuário e bens básicos. Ou, no caso da extrema
pobreza12, ou indigência, o mínimo levaria em conta possibilidades nutricionais
abaixo de um standar d. Sem pretender tomar um lado na polêmica, sob a ótica
quantitativa do IBGE as taxas de pobreza e de extrema pobreza, no âmbito da
privação de necessidades básicas, vêm caindo de forma segura e claramente mais
acelerada desde 2003. É o que se vê no Gráfico_13.
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Gráfico 13 T ax a de Pobreza e Extrema Pobreza (Brasil, 1995-2009)
Note-se que a queda de 35,08% para 21,4% na taxa de pobreza é um grande
movimento, mas a de 15% para 7,3% na extrema pobreza é ainda mais
significativa. Independente das controvérsias que cercam o debate (sobre os
significados e os parâmetros de pobreza e as formas de combatê-la, pois fogem
aos objetivos deste artigo), é essencial observar que, sob critérios
quantitativos mensuráveis, o recuo é nítido. De acordo com os indicadores
adotados, o impacto dessas mudanças atua diretamente sobre a fome e a carência
alimentar, uma vez que a medida quantitativa é “nutricional”.
Aqui, programas como o PBF13 têm papel acessório importante, atuando mais
diretamente sobre a pobreza. Pela lei que o criou (no 10.836/04), o PBF paga
benefícios fixos às famílias pobres ou extremamente pobres (R$68,00 hoje) e
auxílios variáveis às famílias com crianças e adolescentes na mesma condição
(de R$22,00 e R$33,00, respectivamente). O mesmo ocorre com o Benefício de
Prestação Continuada (BPC)14: dados do Ministério do Desenvolvimento Social
indicam um número crescente e importante de famílias beneficiadas, conforme o
Quadro_2.
Quadro 2 Famílias Beneficiárias do PBF e Pessoas Beneficiárias do BPC (Brasil,
2006-2010)
Ano Famílias Beneficiárias (em milhõePessoas Beneficiárias (em milhões)
2006 10,9 2,5
2007 11,02 2,7
2008 10,5 2,9
2009 12,4 3,1
2010 12,6* 3,3**
Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)/IPEADATA, vários anos.
Elaboração própria.
* Até outubro de 2010; ** até setembro de 2010.
Segundo estudo de Queiroz_et_al._(2010), com base no MDS, em 2009 o total
despendido com o BPF atingiu R$11,3 bilhões, enquanto o BPC representou R$15,39
bilhões; em 2004 eram respectivamente R$3,8 e R$5,8 bilhões e, em 2008, R$10,6
e R$13,8 bilhões. O nordeste representou, em 2009, 52,3% dos beneficiários do
PBF e 35,6% daqueles que percebem o BPC (ibi dem:15-16). Como detalhe
adicional, o número percentual de beneficiários do PBF no nordeste caiu: eram
57% em 2004 e 52,4% em 2006. Se considerarmos o total de pessoas atingidas, em
2010 o PBF estaria se aproximando da marca de 50 milhões de pessoas nas
famílias atendidas, ou mais de 25% da população brasileira. Em 2013, o gasto
foi de 24,9 bilhões de reais15.
Em termos da despesa, o BPC representou apenas 0,4% do PIB em 2009, enquanto o
Bolsa Família despende 0,3% do PIB. Sob qualquer ângulo, por seus resultados
esses programas não representam nem de forma longínqua qualquer ameaça fiscal
às contas públicas e apresentam, segundo o melhor conceito do
mainstreameconômico, “alto custo efetivo”, isto é, representam, ao contrário,
dispêndios muito modestos, seja se comparados ao pagamento de juros da dívida
interna, seja quando os comparamos com gastos em países similares16. Ao
conjugar-se política de valorização do salário mínimo e ampliação do crédito,
transferências de renda focalizadas, programas universais, controle da
inflaçãoe queda (ainda que lenta) dos juros, percebe-seo modus operandida
política pública brasileira. Esse arranjo não suprime, contudo, contradições de
inúmeras ordens, tais como o ainda altíssimo patamar da taxa básica de juros,
aumentado toda vez que a inflação ameaçou subir, mesmo que minimamente, nos
governos Lula da Silva; o peso do serviço da dívida pública interna;a estrutura
tributária perversa; a assimetria orçamentária e do financiamento público em
relação aos grandes empreendimentos em detrimento dos micro, pequenos e médios
empreendedores; entre inúmeros outros problemas estruturais não enfrentados.
Mas tais contradições não impediram a existência de avanços, reitere-se.
Afinal, com a redução da pobreza, resultado desse conjunto de estratégias
conjugadas, a desigualdade também apresentou queda relevante. No Gráfico_14
observamos a evolução do índice de Gini desde 1995:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf14.jpg]
Gráfico 14 Coeficiente de Gini (Brasil, 1995-2009)
Malgrado a clara linha de tendência (a descontinuidade deve-se a uma mudança de
metodologia em 2000), a antiga “estabilidade inaceitável”, expressa por Barros
et_al._em_2001, foi substituída pela queda significativa da concentração de
renda desde 2002. Entre 2001 e 2009 o recuo foi de 0,596 para 0,543, tendo se
acelerado a partir de 2003. Esse dado se repete para o Coeficient e Tde Theil,
e talvez seja um dos mais fortes indicadores do movimento da sociedade, com
reflexos no consumo, no crédito, no investimento e, certamente, no mercado
interno: daí o frenesi acerca da chamada “nova classe C”. Considerando-se a
distribuição regional de uma política pública como o PBF, este pode contribuir
também, ao longo do tempo, para a redução das desigualdades regionais, dada sua
atuação no nordeste. Ressalte-se que a existência do Cadastro Único gerido
pelas prefeituras é um instrumento poderoso de acompanhamento das ações. Ainda
que possam existir problemas gerenciais no cadastro, a ação do MDS tem sido
crescente, com vistas a preservar a integridade e a respeitabilidade do
programa, uma vez que frequentemente atacado pelos setores conservadores. Em
contraposição, deve-se ressaltar o reconhecimento mundial do programa,
considerado pela ONU como “paradigmático”, a ponto de ser recomendado
internacionalmente. Comparado com o brasileiro, o Programa Oportunidades do
México é o que mais se aproxima dos padrões de modelos de programas de
transferência de renda, que passaram a ser referenciados pelo Banco Mundial,
antes resistente a soluções que não o “mercado”.
Aspecto relevante quanto aos temas da desigualdade e pobreza, combinado com
índices de pleno emprego atuais (inferiores a 4,9%), é a distribuição funcional
da renda nacional. Por este elemento macroeconômico é possível perceber também
uma paulatina mudança, cuja tendência é positiva, conforme demonstra o
Comunicado 47, do Ipea.
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf15.jpg]
Gráfico 15 Brasil Evoluçã o da Participação do Rendimento do Trabalho na Renda
Nacional e do Grau de Desigualdade em Anos Selecionados (em %)
Como se observa, há uma crescente participação do trabalho na renda nacional,
que é, por si só, um indicador extremamente positivo, mesmo que,
comparativamente a outros países similares, ainda seja menor que o desejável.
O Brasil tem ainda composição demográfica que, no tempo, pode ajudar a
minimizar alguns problemas e indicar resultados. Na “ponta” inferior do ciclo,
a fecundidade vem enfrentando forte redução, como se observa Gráfico_16:
[/img/revistas/dados/v58n1//0011-5258-dados-58-1-0151-gf16.jpg]
Gráfico 16 T ax a de Fecundidade (%) (Brasil, 1980-2009)
Se a redução de 4,06 filhos em 1980 para 2,95 filhos em 1990 já era expressiva,
deu-se novo salto, agora para menos de dois filhos por mulher. A diminuição da
pressão demográfica na “parte de baixo” da sociedade trará reflexos importantes
para o mercado de trabalho nos próximos 20 anos, reduzindo a pressão sobre o
emprego. Mantidas as condições de crescimento e estabilidade, ainda que em
equilíbrio precário em um ou outro ano – sem contar situações de crise
internacional não previstas –, a combinação de políticas de formação
profissional, treinamento de mão de obra com estabilidade e crescimento poderão
reduzir ainda mais o desemprego e (continuar a) subsidiar a Previdência, ainda
que pressões advindas do fator etário também afetem, em momentos distintos, o
caixa.
Deve-se ressaltar, alternativamente, o impacto negativo de um país ascendente
economicamente possuir um número grande de pessoas mais velhas, em comparação
ao número de jovens em idade ativa. Para alguns, isso poderia levar à
necessidade de importação de mão de obra, como, aliás, vem ocorrendo nos
setores qualificados da economia. São diversos os cenários potenciais quanto a
mutações etárias, ao lado de outras, que impactam a sociedade brasileira, mas
que neste artigo são tratados apenas como uma das variáveis importantes da
macrodinâmica social brasileira, não sendo, portanto, objeto aprofundado de
análise. Como dissemos, importa-nos o caleidoscópio dos fatores componentes da
macrodinâmica, e não o inventário analítico de variável por variável.
O Gráfico_17 indica a longevidade e o grande salto representado pela
expectativa de vida ao nascer. Em quase 30 anos, a expectativa saltou de 62,6
para 73 anos e permanece subindo. Este envelhecimento tradicionalmente impacta
duas áreas-chaves em seguridade: Previdência e Saúde. A Saúde representa um dos
principais gastos incrementais com o fator idade, e demanda investimentos
contínuos na ponta – máquinas, equipamentos, medicamentos, atendimento
hospitalar, entre outros – e a necessidade de universalização da saúde
preventiva. A conta “Saúde” é a segunda no orçamento da União, atrás apenas da
Previdência, e não se reduzirá, pois, devido ao seu caráter universal, a
tendência é crescente.
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Gráfico 17 Esperança de Vida ao Nascer (Br a sil , 1980-2009)
A outra conta, que é a principal despesa da União, é a Previdência (Instituto
Nacional do Seguro Social – INSS). Esta é impactada diretamente pelo
envelhecimento e absolutamente sensível ao mercado de trabalho formal17. Na
situação atual,a tendência de alta do número de aposentados dá-se pela evolução
natural e vegetativa, ainda que o aumento entre 1995 e 2009 tenha atingido dois
pontos. Mas, como o aumento dos contribuintes, estimulado pelo nível crescente
de formalização, cresceu no mesmo período de 22,8% para 28,54%, há espaço para
ajustes. Além disso, a população em idade ativa deve ainda crescer por cerca de
20 anos, até 2030, quando então a pressão sobre o caixa tornar-se-á maior.
Assim, após esse período, como aludimos, a questão dos percentuais entre
população em idade ativa e idosos aposentados pode produzir impactos
significativos no caixa do Estado.
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Gráfico 18 Aposentados e Contribuintes da Previdência (Brasil, 1995-2009)
Se persistirem instabilidades na Previdência, a necessidade de desoneração na
folha e um futuro e impopular aumento ligeiro na idade mínima para se aposentar
poderão se tornar imperativos, mas também é verdade que não existe
possibilidade de forte desequilíbrio nas suas contas. A imagem de uma “bomba”
armada para detonar no médio prazo, como setores conservadores/liberais não se
cansam de alardear, faz parte da luta políticae ideológica em curso, em que os
números são interpretados a bel-prazer.
Nesse sentido, observe-se que a curva de arrecadação está apontada para cima,
resultado também da recuperação econômica do país.
Ainda assim, as contas da Previdência, pelo resultado do fluxo de caixa,
permanecem no vermelho. Por este valor, a conta previdenciária por meio do INSS
apresenta saldo negativo de R$ 45 bi em 2009, ainda que um saldo operacional
positivo de R$ 474 milhões.
Como pode ser observado, o desafio da Previdência brasileira quanto ao INSS tem
origem nas opções adotadas no pagamento de benefícios, algumas desde o fim da
Assembleia Constituinte em 1987 e 1988. Mas, para além de qualquer outra
consideração, a Previdência apresenta déficitno saldo previdenciário e um
superávitno saldo operacional18.O primeiro é calculado considerando as
contribuições de empregados, empregadores e autônomos ao INSS, retirando daí os
benefícios pagos. Para efeito da arrecadação exclusivamente previdenciária, são
consideradas somente as contribuições de autônomos, empregados e de
empregadores sobre a folha de salários. Pela Constituição de 1988, Previdência
Social, Saúde e Assistência Social formam um único sistema, o da Seguridade
Social. Seu financiamento, além das contribuições citadas sobre a folha,
considera tributos sobre o faturamento e o lucro, como os recursos da
Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), sobre
faturamento; da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), de parte da
receita dos concursos de prognósticos (loterias); e de taxas sobre a importação
de bens e serviços. A totalidade da seguridade, vista como um todo, tornaria
esse orçamento específico superavitário. Não é esse o entendimento das
autoridades econômicas e da regulamentação do Orçamento Geral da União,
isolando a conta Previdência das demais da seguridade. Assim, a Previdência,
embora vista como um problema pelos conservadores e liberais, é fundamental aos
trabalhadores e ao país enquanto “comunidade” que compartilha valores e a
riqueza produzida. Trata-se da mais importante ação social operando em âmbito
federal e, além disso, com “responsabilidade fiscal”19. Neste caso, a
Previdência, e suas relações como salário mínimo, é também um instrumento
essencial na redução da pobreza.
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Gráfico 19 Va lo r Arrecadado pelo INSS (R$ Bi) (Brasil, 1995-2008)
Tabela 2 Previdência Social – Fluxo de Caixa (R$ milhões) (Brasil, 2004-2009)
Ano Saldo Operacional Saldo Previdenciário
2004 10.994 -43.390
2005 1.177 -48.431
2006 1.583 -53.283
2007 -6.268 -54.051
2008 1.269 -39.349
2009 474 -45.620
Fonte: Banco Central do Brasil – Indicadores Econômicos Consolidados, vários
anos. Elaboração própria.
À GUISA DE CONCLUSÃO: MOVIMENTO PARA MUDANÇA?
A massa de dados ou o conjunto de “evidências” citadas não tem a finalidade de
impor o “positivismo da empiria”. Procurou-se estabelecer um grande painel da
macrodinâmica social recente do Brasil por meio do mapeamento socioeconômico,
ao lado de variáveis macroeconômicas e do cenário internacional; nesse sentido,
enfatize-se a percepção de movimento. As oscilações recentes quase falam por
si. O objetivo central foi estabelecer certa “radiografia” das mudanças,
entremeadas por contradições e permanências, aliada, reitere-se, à noção de
movimentoda macrodinâmica recente do Brasil.
É plausível dizer que ações governamentais mais efetivas e com grau de impacto
considerável recuperaram o debate sobre a participação estatal na sociedadee no
mercado, sobretudo naquilo que se referea políticas sociais com impactos no
mercado interno e na diminuição da desigualdade.
Voltando à questão do movimento, a trajetória brasileira apresenta vários
momentos de ruptura, mesmo que permeada de continuidade. Vejamos alguns
exemplos:
O significativo deslocamento social operado a partir de 1930, a modernização
autoritária promovida entre 1937 e 1945 e depois, pelos militares; a
industrialização e a ordem burguesa como partes de uma nação modelada e
remodelada pelo alto, com rasgos de intervenção popular; a redemocratização a
partir de 1985 e a Constituinte de 1987/1988 (sinal inequívoco de que as
políticas sociais e a seguridade como um todo precisavam ser incorporadas à
“civilização brasileira”) permitem conceber uma trajetória peculiar, em que o
presente não se faz refém, porém também não se dá independente deste legado. Em
paralelo à redemocratização, a sucessão de crises econômicas dos anos 1980 fez
crer na dependência da “ação pelo alto”, a despeito de que essa “modernização”
agora ocorria numa ordem burguesa democrática e contrária à herança histórica
dos regimes autoritários de um passado “profundo”20.
Fernando Collor de Mello nada mais foi do que a expressão desse mundo
contraditório. Já o governo Cardoso entendeu perfeitamente a “nova”
modernização, agora nos quadros da chamada “globalização” da era Clinton: os
exuberantes anos 1990, segundo Stiglitz_(2003). A inserção do Brasil nesse
cenário guarda caráter de complementaridade e “vantagem comparativa”, e um
porto de estabilidade da grande mobilidade do capital. Lula da Silva, de certa
forma, representa a mesma vontade de mudança de nosso passado, mas sob outro
signo.
Navegar pela história é arriscado, ainda mais no curto espaço de um artigo e,
mais ainda, no intervalo de pouco mais de uma década. A estabilização econômica
do período Cardoso – tendo como contexto as reformas introduzidas por Collor de
Mello –, com seu ambiente de confiabilidade ao investimento, restrição
monetária e fiscal, redução da capacidade estatal e privatização trouxe elevado
custo ao país em seus resultados macrossociais e econômicos. Já Lula da Silva,
surgido do mesmo universo modernizador antitradicional, em nome da
governabilidade e da estabilidade manteve o mesmo cenário nos primeiros três
anos e, de certa forma, nunca se livrou dele. Mas agiu em outro sentido da
modernização e do reforço do Estado pela ampliação de suas capacidades, no
sentido que Peter Evans nomeia como “autonomia inserida”: mais dirigido à
inserção social, com maior capacidade regulatória e legitimação de suas ações
(1995).
Como dissemos, o período que se segue a partir de 2005 representa retomada da
agenda social e do crescimento econômico em bases combinadas entre o
fortalecimento do mercado interno, a ampliação do crédito, o aumento e o
estímulo à taxa de investimento, a maior representatividade no comércio mundial
(com a aludida ressalva do declínio dos produtos industrializados) e
diversificação de parceiros e um Estado ativo no cenário internacional. Em
outras palavras, a agenda de uma nova modernização mudou de patamar: tratou-se
da recusa do passado por um projeto de integração à civilização burguesa nos
marcos do que se entendeu ser “possível”. Essa integração representa um salto
qualitativo de grande relevância no combate à iniquidade, mesmo que com a
ressalva de que “poderia ser mais ousada”. Nesse sentido, basta observar, de
forma combinada, como procuramos demonstrar nas seções precedentes as ações em
torno das políticas sociais de transferência e criação de renda, da valorização
do salário mínimo, da estabilização, da taxa de emprego, do fortalecimento do
mercado internoe do crescimento (a despeito da polêmica acerca do papel jogado
pela economia internacional, notadamente quanto à participação das
commodities), entre outras.
Permanecemos nos marcos revoltos e polissêmicos da “modernização”, mas com
outro rosto e outra forma. Mais uma vez, a diferença maior é dada pela ação
política.
Entretanto, quando o debate desloca-se para a sociologia, há perguntas
inevitáveis. Modernização para onde? Quais mecanismos estão operando
silenciosamente, no tempo, e em que direção? Em suma, qual a natureza da
mudança? E, mais ainda, existe mudança? Uma resposta definitiva ainda não pode
ser dada, sobretudo a partir das grandes e contínuas manifestações de rua que
eclodiram a partir de junho de 2013. Contudo, nos marcos dos indicadores e
dados estatísticos, há alterações que não podem passar despercebidas. Nesse
sentido, não é possível imaginar tamanha mobilidade de pessoas e de recursos,
acelerada no pós-2002, sem efeitos significativos sobre a ordem política,
social e simbólica: uma vez mais, as manifestações de junho de 2013 expressaram
um novo patamar de problemas, tendo em vista inserções e incorporações no
sistema social, em sentido lato. Assim, muda-se em direção a um futuro ainda
indefinido. Os setores médios, ampliando seu espaço econômico e político,
tendem a produzir efeitos até agora desconhecidos. Aparentemente dá-se a
progressiva “conservadorização” das “novas” classes médias, capazes de
contestar o avanço das políticas de corte estatal que paradoxalmente as
beneficiaram. Será possível reduzir de forma continuada a pobreza promovendo
crescentes avanços na redução da desigualdade? Cabe recordar ainda que efeitos
de desigualdade operam por uma gramática também diferenciada da renda, como,
por exemplo, pelo gênero ou etnia.
O conhecimento sobre as mudanças recentes ainda não foi amadurecido pelo tempo,
nem pode superar a aguda observação feita por Wanderley Guilherme dos Santos
sobre a população pobre brasileira: para ele, sem disponibilidade para os
custos da ação coletiva e para absorver fracassos, mal informada e com baixa
noção de direitos, arremessando para baixo a confiança institucional, ainda que
isso não possa ser confundido com tendência ao imobilismo ou alienação, há uma
situação estruturalmente grave. Em suas palavras, “há evidente descompasso
entre a magnitude das carências sociais e o empenho da sociedade em resolvê-
las. Não sobra tempo para isso, visto a alocacão prioritária de tempo e
recursos dos indivíduos na solução de urgentes problemas pessoais e familiares”
(Santos,_2006:176). Se isso for verdade, pode ser que o movimento recente no
Brasil tenha sido de maior reconhecimento dos direitos, mas ainda num cenário
de acumulação pouco contestada e sem redistribuição intensiva no longo prazo,
dado que nos marcos de um sistema internacional de produção “flexível” e pró-
capital (embora a criação de emprego no Brasil conteste parcialmente os
pressupostos desse modelo, como vimos). Isso ainda está em curso, e alguns anos
são claramente insuficientes para superar os problemas especificamente sociais
e econômicos daí decorrentes, ainda mais, como aludimos, tendo o legado de
séculos de iniquidade. Há, contudo, mudanças a caminho capazes de rever e
reverter o histórico legado de desigualdade e exclusão, além da permanente
contradição entre modelo de acumulação e ação política nacional.
O governo Lula da Silva introduziu a agenda da mudança pela via da ação estatal
e da redução do déficit social– com um sem-número de contradições e assimetrias
–, alavancado também por uma visão de desenvolvimento e de políticas setoriais,
inserindo o país, política e comercialmente, de forma mais incisiva no cenário
internacional.
Embora seja necessária a análise de séries longas para conclusões mais
peremptórias, os dados expressam a construção de um vetor mais inclusivo e
igualitário. Não se sabe ainda, portanto, o sentido mais definitivo do
movimento e da intensidade e estabilidade da mudança, apesar de haver um vetor.
Afinal, uma vez colocadas em ação, as forças da sociedade produzem efeitos
conjugados que podem produzir novo perfil para a política e sociedade
brasileiras – daí sua macrodinâmica. Mas, para desdobrar esses argumentos, são
necessárias mais pesquisas, sobretudo no que tange, também como aludimos, à
interpretação entre mercado formal e informal (suas possibilidades e limites
mediante a lógica do capitalismo contemporâneo). Daí os desafios que se colocam
ao Estado e à sociedade.
Por fim, o próprio sentido de mobilidade social no Brasil no período recente,
notadamente nos governos Cardoso (por meio da estabilização da moeda) e Lula da
Silva (pela via da inclusão social), parece indicar a coexistência de elementos
novos e antigos, numa dialética ainda pouco compreendida. Seja como for, a
inclusão social, mesmo que lenta e, de certa forma, marginal – tendo em vista
os hercúleos desafios sociais do país –, é por si só novidade em razão de seu
intuito universalista; é, além do mais, mudança de rota que necessita de
entendimento aprofundado sobre suas características, lógica, dinâmica e
destino.
Este artigo procurou por meio do cruzamento de inúmeros dados e da tentiva de
interpretá-los segundo uma lógica, um vetor, simultaneamente ao diálogo com a
literatura, demonstrar o sentido da macrodinâmica social brasileira na última
década e meia: suas mudanças, continuidades, contradições e desafios.
Para tanto, mobilizou diversas variáveis, tais como a ampliação de vagas de
trabalho formal e ocupação informal; a renda, tanto do trabalho como a
referente às transferências governamentais distintas, como bolsas e o próprio
crédito; o papel da valorização do salário mínimo e da Previdêncial Social, uma
vez que um dos pilares do tecido social; elementos macroeconômicos impactantes
na vida social, caso do crescimento do PIB, entre outros; e o papel do cenário
internacional, dado que decisões políticas nacionais não estão desconectadas
dos padrões de acumulação internacionais e da teia de relações dos fluxos
mercantis e financeiros e dos Estados nacionais.
Esperamos que outras pesquisas deem sequência à análise e compreensão de nossa
macrodinâmica social, seja pela via do aprofundamento das variáveis aqui
trazidas, seja pela observação de outras, assim como coloque à prova a questão
do possível “movimento” da sociedade brasileira como um vetor voltado à
universalização de direitos e, consequentemente, ao combate à desigualdade por
meio de processos de inclusão (estatais e mercantis). Este artigo pretendeu
contribuir para chamar a atenção para problemas ao mesmo tempo históricos e
contemporâneos de nossa sociedade.