Encontros Globais e Confrontos Culturais: O Pentecostalismo Brasileiro à
Conquista da Europa
INTRODUÇÃO
O processo histórico de encurtamento das dimensões do espaço e do tempo
promovido pelas novas tecnologias de transporte e comunicação, a que nos
referimos quando falamos genericamente de “globalização”, levou a
desenvolvimentos que requerem dois tipos de atenção intelectiva. O primeiro, de
cunho teórico, envolve a criação de um aparato conceitual que capacite os
analistas a identificar e interpretar movimentos globais. O segundo, de cunho
empírico, consiste em rastrear fluxos de pessoas, informações e recursos que
passam certas vezes ao largo de esferas institucionais do Estado ou de
instituições centralizadoras. As interpretações acerca das relações entre
religião e globalização ganharam, nas últimas décadas, espaço no campo das
ciências sociais, e poderiam se beneficiar do emprego destas duas formas de
atenção. Neste artigo analisamos fluxos de missionários brasileiros de Porto
Alegre em direção à Europa. Seguindo “imagens da ordem global” (Robertson,
1996) construídas especialmente no mundo evangélico pentecostal, podemos
estabelecer a versão dos atores para esse fluxo, que, em grande medida, está
calcada na ideia de “missão invertida”.
A “missão invertida” (Freston,_2004, 2010), “evangelização ao contrário” (Mary,
2008), ou “evangelização de retorno” (Trombetta,_2013) constitui um importante
objeto de interesse das ciências sociais que se ocupam da religião na
atualidade. Isto porque se constata na vasta literatura sobre o tema a
convergência de uma política de recristianização da Europa tanto por parte de
igrejas pentecostais latino-americanas quanto africanas (ver os dossiês
organizados por Capone,_2004; Cingolani_e_Gusman,_2013; Oro_et_al.,_2009; e
também em livros publicados por Trombetta,_2013; Rocha_e_Vásquez,_2013;
Argyriadis_et_al.,_2012; Oro,_Steil_e_Rickli,_2012;Pace_e_Butticci,_2010;
Währish-Oblau,_2008; Spindler_e_Lenoble-Bart,_2000; Bastian,_Champion_e
Rousselet,_2001). A “missão invertida” pode assim ser definida: “aqueles que um
dia foram objeto de missão, catequisados nas colônias, invertem o fluxo
histórico, enviando missionários para as metrópoles, com a consigna de
converter a seus cidadãos” (Carranza_e_Mariz,_2013:29)1.
Paul Freston_(2010:155) chama a atenção para o fato de que a “missão invertida”
não consiste somente numa inversão geográfica, sul-norte. Ela é também social,
no sentido de que provém “de baixo”, invertendo as posições no mapa mundial,
assemelhando-se à expansão do Cristianismo dos primeiros tempos. Seria, como
destacam Ruiz e Michel, “uma forma de revanche histórica do colonizado sobre o
colonizador” (2012:135, tradução livre).
Este artigo versa sobre quatro igrejas pentecostais de Porto Alegre que colocam
em prática a política da “reconquista espiritual da Europa”. São elas: Igreja
Batista Brasa, Igreja Assembleia de Deus, Igreja Maanaim e Igreja/Ministério
Encontros de Fé2. Os países contemplados por estas igrejas são, sobretudo,
Reino Unido, Portugal e Itália. Dois tópicos serão privilegiados na análise: em
primeiro lugar, as estratégias postas em prática pelas igrejas para implementar
a missão na Europa e os sentidos atribuídos a esta iniciativa; em segundo, as
tensões enfrentadas pelos missionários brasileiros em suas experiências
transnacionais na Europa. Ou seja, mostramos que paralelamente ou juntamente à
comprovada e histórica capacidade pentecostal de adaptar-se às culturas locais
ocorrem também tensões e embates que podem provocar desentendimentos e até
mesmo conflitos.
Esclarecemos de saída que as quatro igrejas mencionadas operam na Europa
adotando um modelo de atuação diferente daquele executado pelas grandes igrejas
neopentecostais brasileiras implantadas no exterior, como Deus é Amor, Renascer
em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Internacional da Graça de Deus e,
sobretudo, a Universal do Reino de Deus. Estas se internacionalizam abrindo
“filiais” no exterior com o objetivo de conquistar fiéis no competitivo mercado
religioso local. Para tanto, na medida do possível recorrem às mídias e a
outras estratégias de marketingpara divulgarem os seus serviços e atraírem
novos consumidores religiosos. Atuam como “empresas multinacionais de salvação”
exclusivas, que competem entre si e com as igrejas locais, não mantendo com
elas nenhuma relação ecumênica e obedecendo as orientações e diretrizes que
emanam das “matrizes” que se encontram no Brasil. Já as igrejas sobre as quais
nos ocupamos neste artigo operam transnacionalmente obedecendo a outra lógica:
firmam parcerias com igrejas no exterior, onde predomina o associativismo, uma
espécie de contrato interinstitucional que geralmente se beneficia de alianças
nutridas por afinidades interpessoais3, o que não significa, como veremos, que
as relações entre elas sejam harmônicas e pacíficas. Iniciamos, porém, tecendo
algumas considerações sobre o conceito de transnacionalização, que
privilegiamos neste estudo.
TRANSNACIONALIZAÇÃO E RELIGIÃO: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL
Os fenômenos sociais caracterizados por atravessamentos de pessoas, informações
ou recursos entre países foram reconhecidos, ao longo dos últimos anos, através
de um conjunto de conceitos que demandam ser relacionados de alguma maneira.
Passamos a tecer considerações que visam situar nosso ponto de vista acerca
desse campo conceitual4.
Globalização e transnacionalização não são, a nosso ver, conceitos excludentes.
Possuem, antes, uma relação hierárquica. As características essenciais do
fenômeno (aquilo que Robertson chamava de “compressão do espaço e do tempo”
promovida pelas novas tecnologias de informação) abarcam todos os aspectos,
inclusive o que nominamos como “transnacionais”. A globalização, que entendemos
como um processo civilizatório contemporâneo, oferece um horizonte de sentido,
ou paisagem, dentro do qual os movimentos “internacionais”, “transnacionais”,
“diaspóricos” ou “globais” fazem sentido para os atores. Resulta disso que
“globalização”, como processo, envolve todos os demais conceitos.
“Internacionalização” refere-se a movimentos de organizações societárias que
promovem produções de bens materiais ou imateriais irradiados e replicados a
partir de um centro para os lugares de destino. Assim, as grandes corporações
se internacionalizam baseados em lugares diferentes do globo: eles
reterritorializam uma referência organizacional, produtiva ou cultural,
central. Os movimentos ideais da internacionalização são os das grandes
corporações do Norte ou aqueles dos Estados-nação, quando estabelecem
embaixadas em países estrangeiros. O “supranacionalismo” de organismos como a
Organização das Nações Unidas (ONU) não é nada mais do que uma variação deste
tema.
“Diáspora” concerne, como tipo ideal, movimentos especialmente migratórios ou
culturais nos quais uma comunidade étnica se integra longe de seu lugar de
referência. A diferença da “internacionalização” reside exatamente no aspecto
comunitário.
“Globalização” é tomada por muitos autores não só como processo, mas também
como fato objetivo da realidade. Aqui delimitamos a abordagem sociológica
calcada nas ideias de desenvolvimento, hegemonia e desigualdade. Os autores são
famosos (o mais emblemático seria Samuel Huntington) e o que os caracteriza
ficou conhecido como “nacionalismo metodológico”. Assim como as sociologias
dependem da análise de instituições, as análises calcadas no nacionalismo
metodológico precisam de unidades de análise e comparação, que são países ou
culturas (não raro tomados como sinônimos), ainda que os fluxos guardem
referências de múltiplos lugares. Os fluxos observados, por isso, são sempre de
escala macro, com ênfase nos processos de homogeneização cultural. Aspectos
sutis dos encontros culturais e a cristalização dos imaginários mútuos sobre as
culturas frequentemente são desconsiderados em face das macrotendências dos
alinhamentos de poder em escalas mais amplas. A objetificação do conceito tende
a tornar a “globalização” um processo histórico no qual uma “cultura global”
dissemina-se como uma nova forma de senso comum5.
“Transnacionalização” diz respeito a processos de atravessamento de
organizações societárias com respeito a fins, produções ou culturas
caracterizados pela dispersão e adaptação ao local receptor.
“Transnacionalização” afasta-se da visão objetificada do conceito de
globalização por dois motivos. Um deles se refere ao reconhecimento de fluxos
anti-hegemônicos obliterados pela ênfase nas macrotendências; o outro ao papel
dos sujeitos na análise, muito mais ativo. Devido a esses fatores, os trabalhos
sobre transnacionalização enfatizam menos fluxos norte-sul do que aqueles
centrados no conceito objetificado de “globalização”. Ulf Hannerz_(1996), por
exemplo, propôs o conceito de transnacionalização ao invés de globalização6
para enfatizar o fluxo de indivíduos e de grupos, e não somente de empresas, na
arena mundial. Alejandro Frigerio e outros estudiosos ampliaram o conceito. De
fato, o antropólogo argentino considera a globalização como sendo uma
“transnacionalização pelo alto”, posto que ela “descreve os esforços das
corporações multinacionais, da mídia e de outras elites sociais poderosas para
estabelecer dominação política, econômica e social no mundo” (Frigerio,_2013:
19). Já os fluxos religiosos transnacionais constituem uma “transnacionalização
por baixo”, a qual, no dizer de Smith e Guarnizo, faz referência a “esforços
conscientes e bem-sucedidos da parte de pessoas comuns para escapar da
dominação ‘desde acima’ do capital e do Estado” (1998:5; tradução livre; ênfase
do original). Por isso mesmo, Capone_e_Mary_(2012:30; tradução livre), destacam
a dimensão política da transnacionalização. Ela constitui um “‘espaço político
contra-hegemônico’ que desloca o jogo das discriminações impostas desde cima”,
constituindo um complemento ou o reverso da mundialização econômica e
tecnológica.
Frigerio sublinha que a “transnacionalização por baixo” pode ocorrer de duas
maneiras principais: (a) enquanto “circulação ou fluxo de pessoas e/ou bens
distintos de um país para outro, ou então (b) como o estabelecimento de um
campo social formado por uma variedade de conexões que transcendem as
fronteiras nacionais” (Frigerio,_2013:17).
Em seu estudo sobre a expansão das religiões afro-brasileiras, sobretudo do Rio
Grande do Sul para os países do Prata, Frigerio mostrou como ambas as
perspectivas teóricas se complementam, uma vez que a circulação das crenças e
práticas afro-religiosas entre Brasil, Argentina e Uruguai ocorreu mediante o
fluxo social multidirecional não migratório (primeira perspectiva), formando,
mesmo assim, um campo social transnacional afro-religioso, apoiado, em grande
medida, na noção de linhagens religiosas, baseadas em redes de relacionamento
(segunda perspectiva).
Como veremos neste estudo, semelhante situação que implica na dupla
possibilidade de transnacionalização religiosa parece ser também recorrente no
campo pentecostal que abraça a política da missão invertida para a Europa.
Importa reter, do que precede, que a transnacionalização possui duas
características principais. Em primeiro lugar, como sustenta Alves_(2011:32),
ela se refere a fluxos de pessoas que se juntam em “redes de relações (...) com
níveis de institucionalização variáveis, atravessando espaços societários
diferentes”7; e, em segundo, como defende Hannerz_(1996), ela não está contida
“dentro de um Estado”, não possui uma base fixa nos Estados nacionais. Ou
então, como frisaram Badie_e_Smouts_(1995)8, a transnacionalização mantém fraca
(ou nenhuma) relação com os aparelhos de Estado, embora isto dependa da
situação legal e conjuntural que vigora em cada país.
Essas características, como veremos, também estiveram presentes no
acompanhamento que fizemos das quatro igrejas pentecostais radicadas em Porto
Alegre que efetuam a “missão invertida” para a Europa.
AS IGREJAS E SEUS FLUXOS TRANSNACIONAIS NA EUROPA
As igrejas e pastores que passamos a examinar a seguir possuem um elemento em
comum: alcançam a Europa através de parcerias celebradas com igrejas e agentes
religiosos europeus. É através de “alianças estratégicas” (Castells,_2000) que
eles desencadeiam a transnacionalização religiosa para a Europa. Um dos
precursores deste modelo de parcerias e de construção de redes sociais no
interior do campo evangélico-pentecostal é o renomado evangelista argentino
Carlos Annacondia9, que afirma: “Antes tudo estava centralizado nas
instituições. Agora, a ênfase é posta nas redes. É preciso olhar as redes. A
Igreja do Espírito Santo é composta de indivíduos que se associam em redes”10.
Annacondia, além de protagonizar uma importante transição do pentecostalismo
nos anos 1980 na Argentina (Wynarczk,_1993), foi um dos primeiros, nas redes de
líderes pentecostais que estudamos, a estender sua atuação para além das
fronteiras nacionais de seu país e da América Latina. A forma de construção de
reputação através de convites e parcerias baseadas numa compreensão religiosa
do sentido das redes difundiu-se a partir de sua atuação. Examinemos de agora
em diante exemplos da constituição de redes transnacionais em direção à Europa,
abordando as formas de sustento dos agentes envolvidos, a comunicação com as
sedes e a relação com as agências de controle migratório nacionais.
Convites e Parcerias
O pastor Luiz Bazerque, responsável pela área de missões da Igreja Batista
Brasa11 de Porto Alegre, diz12 que o trabalho voltado para a Europa “veio para
nós no final dos anos 1990 como um convite, um pedido de socorro, de alguns
pastores da Inglaterra e de Portugal”. Foi um período, acrescenta, em que,
especialmente no Reino Unido, as igrejas estavam fechando as portas, pois o
número de fiéis estava encolhendo e os prédios históricos e centenários estavam
sendo ocupados para outras finalidades, como museus, bibliotecas, lojas etc.
Veio também de Portugal “um convite, um pedido de ajuda. Mas eles não tinham
como começar. Então nós fundamos uma igreja em Portugal”, inicialmente em
Espinho e, mais tarde, na cidade do Porto.
Também na Assembleia de Deus a prática missionária na Europa iniciou com um
convite. Segundo o pastor Joel Lucas13, secretário de missões desta igreja em
Porto Alegre, “precisa realmente primeiro vir de lá um convite. Nunca a gente
vai assim pra fazer um trabalho independente; a gente vai pra trabalhar junto
com as igrejas de lá”.
A ida do pastor Josué Dilermando, da Igreja Maanaim14, ao País de Gales, em
2009, também se deveu a um convite recebido de uma pastora brasileira, casada
com um galês. Igualmente o pastor Edilson Avila, da mesma igreja, foi a Roma a
convite do pastor italiano Ugo Sottile, que esteve em Porto Alegre em janeiro
de 201115.
A recente ida do pastor Dilermando para Bucareste se deve a uma parceria
pessoal firmada com o pastor romeno Bolozani Mihai. Dilermando conta que o
conheceu aqui no Brasil e que este “me contou da necessidade do país” e “me
convidou para ir ajudar ele”16. As tratativas ocorreram via internet e em
setembro de 2013 Dilermando partiu para Bucareste, para pregar na Igreja
Dumnezeu si dragoste17. No último dia de sua estada na Romênia, em 22 de
setembro de 2013, postou em seu Facebook o seguinte agradecimento: “Agradecemos
o convite do pastor Bolozani Mihai e pelo acolhimento da sua esposa Irma Milena
Mihai e também a igreja Dumnezeu si dragoste”.
Segundo Dilermando18, esta é a fórmula do seu trabalho missionário na Europa:
encontrar igrejas e pastores parceiros para trabalhar com eles. Formar uma rede
com igrejas e pastores. “Não é chegar lá [Europa] e abrir igrejas; não é fazer
um império, como outras igrejas fazem”. Enfim, Elias Figueiró, do Ministério
Encontros de Fé, também destaca19, referindo-se às suas viagens transnacionais:
“(...) sempre contatos, convites, trocas”.
Portanto, as parcerias firmadas entre igrejas de Porto Alegre e de alguns
países europeus resultam de convites provenientes do Velho Continente. Os
convites conduzem à construção de parcerias, institucionais e/ou pessoais, as
quais se constituem, como assinalou Joanildo Burity_(2006) em seu estudo sobre
as parcerias entre organizações da sociedade civil e agências governamentais,
em “recurso estratégico” para alcançarem seus objetivos, que, no caso das
igrejas brasileiras referidas, como veremos, consiste em “recristianizar a
Europa” (Oro_e_Mottier,_2012).
O Sustento dos Missionários na Europa
Na Igreja Batista Brasa, durante os primeiros anos das parcerias, o sustento
dos missionários brasileiros na Europa ficou a cargo das igrejas europeias.
Porém, como afirma o pastor Bazerque20, nos últimos anos, com a crise econômica
na Europa, “algumas igrejas [no caso, do Reino Unido], que bancavam todo o
salário do pastor, hoje elas não conseguem fazer mais. Hoje nós participamos
disso”. Especialmente as “igrejas menores não conseguem dar todo o salário e
uma casa. Por isso, parte do sustento a gente garante”.
O mesmo ocorreu com os pastores da Assembleia de Deus. No início do seu
trabalho missionário na Europa, foram acolhidos e apoiados, também
financeiramente, pelas igrejas locais. Porém, assim como ocorreu com a Igreja
Batista Brasa, com o passar do tempo o sustento dos missionários tornou-se
praticamente uma tarefa das igrejas brasileiras. Neste sentido, segundo o
pastor Joel Lucas, é comum acontecer um “consórcio de igrejas” brasileiras para
sustentar os pastores em missão, mesmo os que estão atuando na Europa.
Também o pastor Edilson e família foram inicialmente acolhidos e apoiados pela
Igreja Assembleia de Deus de Roma, mas, passados alguns meses, tiveram que
prover o seu próprio sustento. Para tanto, Edilson e sua esposa realizam hoje
diferentes serviços temporários. Além disso, para completar a receita mensal da
família, a Igreja Maanaim de Porto Alegre envia quase que mensalmente dinheiro
para Roma.
A recente viagem do pastor Dilermando para a Romênia e para a Itália foi toda
ela custeada pela sua igreja brasileira. Uma semana antes da sua partida, em 11
de setembro de 2013, o pastor anunciou em sua página do Facebook que iria “para
a Europa em mais uma viagem missionária” e solicitou ajuda financeira, “uma
oferta de amor”. Para tanto, informou os seus números de telefone pessoais e o
número de sua conta no banco Itaú.
O renomado músico evangélico radicado em Porto Alegre Asaph Borba21, que
circula bastante no meio evangélico europeu, frisa22 que hoje em dia, apesar
das parcerias que as igrejas europeias mantêm com as igrejas brasileiras, são
estas últimas que sustentam seus missionários no exterior. Para ele, “quem
envia missionários (mesmo para a Europa) sustenta daqui, com dinheiro
brasileiro”.
Deduz-se que o envio e a manutenção de missionários na Europa implicam em
custos altos por parte das igrejas locais que, mesmo assim, por razões que
veremos mais adiante, tendem a não desistir do projeto de “recristianização da
Europa”. Cabe agora examinar como interagem, se comunicam, os pastores locais
com os seus parceiros europeus, ou com os missionários que se encontram em
cidades europeias.
As Parcerias e a Internet
Em seus estudos sobre a transnacionalização afro-religiosa no Cone Sul,
Frigerio_(2013:47) sublinha que “é um truísmo (dizer) que a internet oferece
uma arena privilegiada para o estabelecimento de redes transnacionais”. O mesmo
poder-se-ia afirmar relativamente ao campo evangélico. Hoje em dia, a maioria
das igrejas evangélicas e pentecostais possui sua própria página na web, com
plataformas bem-feitas, diga-se de passagem, além de explorarem as
possibilidades de relacionamentos via internet como o Facebook, Skype, Twitter
e MSN (até 2009)23. A presença naweb constitui uma importante vitrine de
divulgação dos trabalhos realizados pelas igrejas, permitindo, assim,
transcender o nacional e aceder ao transnacional.
Evidentemente a internet é útil tanto para estabelecer e manter contatos
transnacionais entre as igrejas parceiras quanto para manter a comunicação
transnacional entre os membros das igrejas que se encontram no exterior. De
fato, os depoimentos dão conta de que os líderes das igrejas locais se
comunicam constantemente com membros dirigentes de igrejas europeias e com os
missionários em atuação. Neste sentido, o responsável das missões da Igreja
Batista Brasa informa que mantém contatos diários com os seus pastores no
exterior. Além disso, ao menos uma vez por ano um responsável de missões da
igreja faz uma viagem para verificar in loco o trabalho dos seus missionários.
Também o pastor Dilermando afirma que conversa diariamente, via Skype ou
Facebook, com Edilson Avila, que está em Roma. Dilermando enfatiza que diante
de Deus se sente responsável por Avila e sua família. Por isso, acrescenta: “
(...) a gente tem que estar conectado; eu daqui tenho que estar fortalecendo
com palavras de ânimo, encorajando ele, que está lá no campo de batalha”24.
A internet constitui, portanto, uma importante ferramenta para assegurar as
relações sociais e manter as redes de relacionamento entre os agentes
religiosos e as igrejas transnacionais. Assim, neste contexto de uma
transnacionalização religiosa que ocorre sobretudo mediante intercâmbios e
circulação de atores sociais (agentes religiosos), a internet torna-se uma
importante mediação para a constituição de um “campo social transnacional”
(Capone,_2010). Isto significa, em outras palavras, que se repete no contexto
da transnacionalização evangélico-pentecostal uma certa recorrência da dupla
possibilidade de transnacionalização que Frigerio_(1993) havia constatado no
Mercosul relativamente à transnacionalização afro-religiosa, como foi
assinalado anteriormente, ou seja, uma transnacionalização que envolve
deslocamentos e circulação de atores sociais que se organizam em redes sociais
formando um campo social transnacional.
Vejamos agora que tipo de relações mantêm os atores sociais implicados no
processo de transnacionalização religiosa com os aparelhos de Estado.
A Transnacionalização e os Controles Estatais de Migração
A segunda característica da transnacionalização consiste na relação com as
instâncias estatais de controle migratório que vai da aproximação estratégica à
evitação total. É o que também ocorre com as quatro igrejas referidas, as quais
recorrem às instâncias oficiais somente para satisfazerem as exigências legais
de ingresso e a permanência dos seus missionários nos países em missão:
passaportes e vistos, caso desejem permanecer por mais tempo do que o permitido
para turistas. Assim, a maioria dos pastores desembarcam na Europa como
turistas ou como trabalhadores. “Dificilmente vão para a Europa como
religiosos. Vão com outra finalidade: alguns vão como turistas, vão como
trabalhadores, vão renovando o visto”, esclarece o músico Asaph Borba. A
consequência disto, segundo o mesmo informante, é que nem todos os religiosos
que atuam na Europa estão documentados. Diz ele: “Eu conheço pastor ilegal,
conheço pastor que consegue o documento como religioso e conheço gente que vai
como trabalhador, consegue um visto de trabalho, tem uma profissão”.
A Igreja Batista Brasa, no início da sua atividade na Inglaterra, por
intermédio do pastor Marcelo Guimarães, encontrou no estudo de inglês para os
pastores recém-chegados do Brasil uma alternativa para obter visto de
permanência de um ano. Assim, durante vários anos a própria igreja de Bognor
Regis assegurou a escola de inglês para os missionários brasileiros,
contribuindo, desta forma, para facilitar a sua permanência legalizada. Nos
últimos anos, porém, devido às mudanças na legislação local, esta alternativa
já não existe mais. Por isso mesmo, a situação do visto ficou bastante
complicada.
O ingresso dos missionários brasileiros da Assembleia de Deus na Europa
geralmente se dá como turistas. Procuram, então, ligar-se a uma igreja local, a
partir da qual iniciam um processo de tramitação de documentos visando a
obtenção de um visto de permanência temporária. Também o pastor Dilermando
viaja como turista. Por sua vez, os pastores Edilson Avila e sua esposa Ana,
depois de três anos de permanência em Roma, conseguiram visto de permanência
temporária25. “Foi um milagre de Deus”, afirmou pastor Dilermando26.
Importa assinalar aqui que as distâncias relativas mantidas pelas igrejas
transnacionais em relação às instâncias estatais não significa que as mesmas
desconsiderem as identidades nacionais. Ao contrário, a ideia de nação e a
reivindicação da nacionalidade integram os fluxos transnacionais, fato
verificado não somente na explicitação constante dos vínculos nacionais das
igrejas e dos agentes religiosos, mas também, e sobretudo, na ostentação,
sempre que possível, de bandeiras nacionais enquanto símbolos representativos
das nações nos recintos religiosos. Assim, o recurso às bandeiras por parte das
igrejas pentecostais e neopentecostais brasileiras transnacionais revela não
apenas a articulação entre o “nacional” e o “transnacional”, mas também a
afirmação das nacionalidades (Oro,_2010).
Vamos agora nos ater ao tópico concernente à motivação das quatro igrejas
referidas para fechar parcerias com igrejas e atores religiosos europeus e
implementar o processo de transnacionalização, a saber: o seu desejo de
“recristianizar a Europa” ou “reconquistar espiritualmente a Europa”.
A “RECONQUISTA ESPIRITUAL DA EUROPA”
Predomina nas quatro igrejas referidas, mas não somente nelas, um mesmo
discurso sobre a religião na Europa, sobretudo nos países católicos: a
modernidade27 que ali vigora fez com que eles se desviassem da verdadeira fé em
Jesus, posto que seus habitantes seriam hoje demasiadamente “frios” do ponto de
vista espiritual e apegados ao materialismo e hedonismo, com muita ênfase no
individualismo. Segundo o pastor Josué Dilermando: “O problema da Europa é a
modernidade, o pensamento moderno e a secularização, o racionalismo e o
individualismo. Este pensamento não agrada a Deus”28. Já o pastor Joel Lucas
sustenta que “a chama se apagou na Europa”, e que hoje restam somente as cinzas
dos avivamentos de outrora.
Consideram os líderes religiosos entrevistados que não podem permanecer
passivos diante dessa situação que vigora na Europa. Ao contrário, como
sintetiza o pastor Dilermando, faz-se necessário encetar esforços para
“reconquistar espiritualmente a Europa”. É tão forte esta pretensão que o
pastor chega a afirmar: “minha preocupação hoje não é evangelizar o Brasil;
hoje minha preocupação é evangelizar a Europa. Por isso, estou interessado na
formação de pessoas que tenham amor para a missão, para enviar eles para a
Europa”.
Por seu turno, o pastor Luiz Bazerque, da Igreja Batista Brasa, considera que
os europeus foram os pais que trouxeram o evangelho para os filhos do sul, mas
que agora “está na hora de nós, filhos, voltarmos aos pais, auxiliarmos os
pais, fortalecermos os pais para juntos agora, filhos e pais, completarmos essa
onda”. Trata-se, segundo ele, de uma missão que parte dos “confins do mundo”.
“Tem pastores que dizem que estamos vivendo Atos 1:829, algo reverso hoje. Os
confins do mundo é que estão fazendo essa mesma rota, voltando para a Europa”.
Outro pastor da Assembleia de Deus, Paulo Locatelli, que já esteve pregando em
vários países da Europa, assevera que o Brasil possui uma dívida em relação à
Europa30. Isto porque os europeus trouxeram a mensagem religiosa que aqui foi
guardada e cresceu. Para ele, a missão invertida é a devolução, o retorno do
que “eles nos deram, porque hoje eles vivem o que talvez uma vez a gente viveu
aqui, no passado. Estamos pagando uma dívida”.
Os pastores entrevistados, por outro lado, confessaram que a maior parte dos
fiéis dos pastores brasileiros na Europa não são europeus, e sim brasileiros,
latinos e africanos31. Da mesma forma, nenhum dos entrevistados referiu
convictamente a conversão de europeus como resultado da ação religiosa dos seus
missionários32. Os obstáculos mais importantes para a conversão de europeus, na
avaliação dos agentes religiosos entrevistados, são reconhecidos como de ordem
“cultural”, como veremos logo adiante. Diante desta situação, poder-se-ia supor
a existência de um certo sentimento de frustração, ou ao menos de tensão, entre
a missão invertida que se propõe a reevangelizar a Europa e a que se torna
“diaspórica”, como ocorre, aliás, com as igrejas africanas na Europa33. Ora,
tal não parece ser o caso das igrejas de Porto Alegre. Esta ambiguidade
aparente não as desencoraja de enviar missionários para a Europa, nem os
pastores de pregarem em cidades europeias. Podemos, então, sugerir que a missão
invertida para a Europa possui outras significações para além do discurso
estrito de “reevangelizar a Europa”.
Com efeito, não se pode desprezar, por exemplo, o interesse econômico de certas
igrejas e certos pregadores e missionários em desembarcar na Europa, o que não
é incompatível com o trabalho missionário, inscrito na lógica da fluidez entre
o religioso e o econômico. Veja-se, neste sentido, a declaração do pastor
Valdeci, da Assembleia de Deus de Porto Alegre34: “Elas [as igrejas europeias]
pagam muito bem aos que vão lá e pregam a palavra de Deus. Vale a pena”. Neste
caso, pode-se imaginar que o apoio financeiro dado aos missionários para
chegarem à Europa, como vimos anteriormente, não deixa de constituir um
investimento das igrejas devido ao retorno financeiro que elas podem vir a
auferir com o trabalho efetuado por eles nas cidades europeias.
Um outro sentido ligado à missão invertida na Europa concerne a possibilidade
aberta a sujeitos brasileiros e latino-americanos (pregadores, pastores,
missionários, fiéis que nutrem o sentimento de se tornarem missionários),
muitos deles pertencentes às camadas baixas e média-baixas da sociedade, de
manterem contatos internacionais e se sentirem cidadãos do mundo, ligados a
países tidos de Primeiro Mundo como os europeus. Assim, da mesma forma que
historicamente o pentecostalismo permitiu a muitas pessoas o acesso à leitura,
à política e às mídias, ele abre hoje aos seus membros os horizontes da Europa
e do mundo. O pentecostalismo seria, assim, como sublinham Ruiz e Michel, “um
dos espaços privilegiados de produção do global” (2012:15; tradução livre).
Mas há ainda outro significado inscrito no imaginário da “missão invertida”
para a Europa conduzida pelas igrejas de Porto Alegre, a saber: sua utilização
enquanto recurso simbólico de legitimação num contexto religioso concorrencial
“local”.
De fato, como sabemos, as relações entre as centenas de igrejas evangélicas e
pentecostais, independentemente do seu tamanho, são de concorrência, aberta ou
velada, pela conquista das almas35. Ora, na atual conjuntura de abertura ao
global, o investimento na circulação internacional pelos países europeus
tornou-se um destino preferencial de líderes religiosos, para que eles e as
igrejas adquiram junto à membresia em geral umplus de legitimidade. Isto se
deve à imagem construída sobre a Europa neste e em outros meios religiosos,
tida como moderna, berço do cristianismo e origem de muitos revivalismos
religiosos.
Assim, as igrejas que enviam missionários para a Europa e os pastores que fazem
pregações em cidades europeias nutrem um sentimento de elevação destatus, e não
somente junto aos seus fiéis. Isso se nota pela ênfase local dada aos fluxos
missionários na Europa, que ganham espaço nos cultos e, especialmente, nos
jornais e páginas virtuais das igrejas. Neste contexto, igrejas e pastores
estão persuadidos a ganharem pontos nas disputas simbólicas e disputas de fiéis
que mantêm com outros pastores e igrejas locais que não possuem parcerias
globais. Sendo assim, este significado da missão invertida ajuda a compreender
o não recuo do envio de missionários para a Europa, mesmo quando este exige
altos custos por parte das igrejas locais.
Portanto, as igrejas pentecostais abrem-se para o “global” para se reforçarem
no “local”, para ganharem pontos aqui, diante da concorrência “local”. Além da
articulação entre o “local” e o “global”, pode-se sugerir que exista, neste
caso, uma certa instrumentalização do “global” pelo “local”. Se esta análise
está correta, podemos então traduzir a expressão nativa “conquistar
espiritualmente a Europa” por “conquistar legitimidade local”.
É importante sublinhar que esta mesma lógica que recorre à transnacionalização
religiosa em direção da Europa como recurso simbólico de elevação destatus num
contexto religioso local concorrencial também ocorre com as demais igrejas
pentecostais brasileiras que atuam no exterior, especialmente as megachurches
neopentecostais. Porém, enquanto estas últimas tendem a valorizar e
potencializar a sua condição de igrejas implantadas em “muitos” países de
“todos” os continentes, as primeiras tendem a enfatizar a sua presença na
Europa pelas razões apontadas anteriormente. Ambas, porém, acionam o imaginário
da globalização como estratégia simbólica de reforço da legitimidade, visando,
assim, elevar o seu prestígio e atrair mais fiéis locais.
Fica claro, portanto, que a missão invertida para a Europa realizada pelas
igrejas locais utiliza as parcerias como estratégia para deslanchar a
transnacionalização que, na realidade, cumpre sentidos múltiplos, entre os
quais um anunciado – o de “recristianizar a Europa” – e outros não ditos
(talvez subentendidos), como o interesse econômico, a abertura para o global e
a elevação de prestígio no ambiente concorrencial local. Como em todas as
situações semelhantes, são provavelmente estes últimos que impulsionam e
garantem a energia da transnacionalização para a Europa. Outro aspecto
associado à missão invertida diz respeito às tensões vividas pelos missionários
brasileiros na Europa devido, segundo eles, às diferenças culturais,
especialmente à importância que a emoção assume no pentecostalismo brasileiro e
suas restrições neste meio religioso no continente europeu36.
TENSÕES E CONFLITOS
Os depoimentos dos brasileiros que possuem experiência missionária na Europa
dão conta de que a sua ação pastoral às vezes se obstaculiza, chegando a gerar
tensões e até conflitos em razão de choques resultantes das diferenças
culturais. “As culturas são totalmente diferentes”, afirmou o pastor Dilermando
(Igreja Maanaim). Por isso mesmo, falando de si próprio quando esteve no País
de Gales em 2009, afirma que “o choque cultural foi muito grande”. E quanto à
sua estadia na Romênia, em 2013, disse que “o choque cultural não foi um choque
para mim; foi um susto terrível”. Também o pastor Luiz Bazerque (Igreja Batista
Brasa) destaca que apesar da sua igreja “estar fazendo um bom trabalho [na
Inglaterra], a maior barreira continua sendo a cultura”. Recordemos, com Roy
Wagner_(2010:34), que o choque cultural, ao mesmo tempo que torna visível a
cultura, também mostra a inadequação da ideia do eu “contra o pano de fundo do
seu novo ambiente”.
Os pastores brasileiros estranham, inicialmente, a formalidade e o rigor que
vigoram na Europa também no campo religioso. Assim, pastor Dilermando relata
que no País de Gales, em 2009, em sua primeira pregação ouviu do intérprete a
recomendação de que o culto iria das 19 às 20 horas, devendo finalizar
pontualmente às 20 horas. Conta que estava pregando e às 19h57 ouviu do
intérprete o apelo: “Amém pastor, amém!”. Porém, como não havia ainda
finalizado a sua mensagem, continuou. Disso resultou, continua ele, que “eram
oito e cinco e todo mundo estava indo embora”. Não entende, arremata, como
“aquelas pessoas se sujeitam ao tempo, mas não à palavra de Deus”. O formalismo
é tanto na Europa, continua Dilermando, que “agendam visitas até entre
parentes”. Esta “rudeza” dos europeus, segundo a sua apreciação, torna-os
“menos sociáveis do que os brasileiros” e “repercute também no campo
religioso”.
A formalidade e o autocontrole que vigoram na Inglaterra são apontados por Luiz
Bazerque como um elemento prejudicial à atração de jovens nas igrejas. É por
isso, diz ele, que as igrejas inglesas são frequentadas majoritariamente por
idosos. Porém, acrescenta que os pastores brasileiros, ao esbanjarem alegria,
atraem os jovens “pela música, por esse jeito dos brasileiros serem”.
Mas é a presença da emoção na prática ritual e litúrgica que põe o maior
problema, tornando-se a mais importante fonte de tensões entre os agentes
religiosos brasileiros e europeus. Segundo os missionários brasileiros, a
emoção não é bem aceita pelas igrejas europeias. Assim, para Bazerque, “na
Inglaterra não há pentecostalismo com barulho, como ocorre aqui. Na igreja
inglesa não tem barulho”. Também não há expressão pública da emoção. “Aqui no
Brasil”, continua o pastor, “nas igrejas as pessoas se abraçam, se beijam; os
ingleses firmam o braço pra tu não chegar muito perto, né? Te seguram bem
assim, para que tu não chegue”. Também o pastor Isaias destaca que “lá [na
Europa] a gente não vê pessoas chorando, batendo palmas, se abraçando como aqui
no Brasil. Os europeus são muito frios”, arremata. Por sua vez, o pastor Joel
Lucas, da Assembleia de Deus, também destaca que “a ênfase na questão
pentecostal (emocional, aduzimos nós), que os missionários imprimem na Europa,
não é muito aceito lá, junto às igrejas tradicionais”. Esta é, segundo ele, uma
das razões que impedem a boa relação entre missionários brasileiros
pentecostais e pastores de igrejas evangélicas locais, o que conduz, com o
tempo, os primeiros a “acabarem abrindo um trabalho independente, vinculado
aqui [ao Brasil]”.
Sobre esses tópicos levantados, vejamos agora os argumentos de um pastor
italiano, que fala a partir da perspectiva europeia. Segundo Ugo Sottile37, na
Europa os horários dos cultos precisam ser cumpridos à risca e não podem
exceder a duas horas, diferentemente do Brasil, onde podem durar três horas ou
mais. Isto porque, justifica:
Os italianos são muito organizados. Se precisam acordar cedo, vão
dormir cedo. Isto não acontece com outros povos, entre os quais os
brasileiros. Esta é uma mentalidade própria dos europeus. Então,
durante a semana não se pode fazer cultos muito longos (...). O ritmo
da vida aqui e lá é diferente. Por isso tem que haver uma adaptação.
Ainda segundo o pastor italiano, outro tópico que é motivo de desentendimentos
entre brasileiros e europeus é o pedido de ofertas durante os cultos, algo
recorrente no Brasil, mas que não é bem aceito na Itália. Afirma, neste
sentido: “os italianos não estão assim tão dispostos a dar ofertas. Se diz:
ofertem, ofertem, ofertem, não vai para a frente”. Nota-se aqui um aspecto que
é central no pentecostalismo brasileiro e latino-americano, mas que encontra
resistências na Europa. Trata-se da Teologia da Prosperidade, que aproxima o
religioso e o econômico, sacralizando de certa forma o mercado e os bens
materiais, especialmente o dinheiro. Esta perspectiva não é bem acolhida no
pentecostalismo europeu, no qual prevalece a mentalidade que tende a separar o
religioso do econômico, assim como o religioso do político.
Ainda de acordo com Ugo Sottile, os italianos não concordam sobretudo com a
ênfase posta na emoção, dominante no pentecostalismo brasileiro. Segundo a sua
ótica, pregar a cura e os prodígios num país como a Itália, usando da
emocionalidade, “não dá certo”. “A adoração não agrada muito ao italiano,
porque o cansa”. Em sua perspectiva, haveria uma relação entre pobreza,
emocionalidade e prodígios (curas, milagres), algo observável num país como o
Brasil, mas não na Itália.
Como explicar a resistência europeia em aceitar o pentecostalismo emocional?
Segundo o sociólogo italiano Giuseppe Trombetta_(2013:23, tradução livre), esta
dificuldade resulta, em primeiro lugar, de uma longa hegemonia das igrejas
católica, protestante e ortodoxa, que produziram “umhabitus que respeita em
grande medida o modo pelo qual a religião é definida pelas elites religiosas”,
dotando as pessoas de categorias cognitivas capazes de permiti-las distinguir o
que é religião do que é falsificação. Nesta perspectiva europeia, torna-se
difícil aceitar a mistura entre corpo e espírito, fé e exaltação psíquica,
liturgia e espetáculo, assim como a relação entre religião e trabalho, religião
e saúde, religião e economia, religião e bem-estar psíquico, presentes no modo
de ser religioso do pentecostalismo em geral. Em segundo, prossegue o autor,
falta à Europa o esforço de “’reapropriar-se da própria história’, que é uma
das matrizes do sucesso pentecostal nos países ex-coloniais” (idem), ou seja, o
desejo de recuperar, graças à religião, os traços culturais que os
colonizadores subordinaram ou condenaram. No caso da Europa, ocorreu ao longo
da história uma domesticação daqueles traços por parte das igrejas
estabelecidas, contribuindo, desta forma, para o “preconceito etnocêntrico” que
se observa neste continente em relação à reevangelização proposta pelas igrejas
pentecostais de imigrantes (Carranza,_2013).
Como proceder diante deste quadro marcado pelas diferenças culturais e
religiosas constatadas entre as práticas pentecostais conduzidas pelos
brasileiros e pelos europeus? O pastor italiano é de opinião que os
missionários brasileiros precisam respeitar as culturas locais, e não impor a
sua própria cultura religiosa. Em suas palavras:
eles [os pastores brasileiros] não podem chegar na Itália ou em algum
outro país europeu, que são antiquíssimos, históricos, e dizer ”nós
no Brasil, na América, fazemos desta maneira e vocês devem fazer da
mesma forma”. Isto porque cada um tem a sua própria mentalidade, sua
própria organização, certo?
O pastor Luiz Bazerque (Igreja Batista Brasa) também defende a necessidade de
adaptação dos pastores brasileiros à cultura europeia. Segundo ele, “tem que
entrar no sistema do dono da casa... tem que respeitar as regras deles”. Para
tanto, sua igreja procura preparar os seus missionários, estimulando-os a
frequentar a escola de missiologia, sobretudo a cadeira de missiologia
intercultural, para “conhecerem o povo que se vai trabalhar, porque, por
exemplo, por mais pentecostal e renovado que seja o inglês, a fleuma do inglês
vai continuar e então vai ter problema”.
Diferentemente das posições acima, o missionário gaúcho Locatelli, da
Assembleia de Deus, sublinha a necessidade de haver uma adaptação cultural
mútua, dos brasileiros e dos europeus. Diz ele:
os brasileiros precisam aprender com os europeus a colocar ordem nas
coisas, porque lá tudo é organizado. Na Inglaterra tudo é
cronometrado, tudo é organizado. Se diz que um culto termina às seis,
tem que terminar às seis, entendeu? (...) Os europeus também precisam
aprender com os brasileiros. A gente ensina lá o calor humano, a
receptividade, a se interessar pelo próximo. Isso lá não existe, cada
um é pra si e Deus por todos, entendeu? É uma cultura muito
individualista. A gente ensina muito lá esse calor humano brasileiro,
essa relação, essa amizade, o companheirismo, se interessar pelos
problemas dos outros, entendeu? Eles ficam admirados, ficam admirados
como a gente consegue ser assim, entendeu?.
Nota-se que os agentes religiosos de ambos os lados do Atlântico são detentores
de uma visão essencialista das culturas nacionais. Representam os brasileiros
como sendo portadores de entusiasmo, alegria, emoção, e os europeus como
formais, impessoais, controlados e racionais38. Além disso, os agentes
religiosos sugerem que a transnacionalização religiosa implica em acomodações e
adaptações, em movimentos centrípeto e centrífugo, que desencadeiam uma
retroalimentação mútua, como também destacaram Carranza e Mariz em seu estudo
sobre a expansão da Canção Nova para fora do país, sobretudo para Portugal
(2013:29)39.
CONCLUSÃO
Vimos, por um lado, que a celebração de parcerias com agentes e igrejas
europeias constitui o recurso estratégico utilizado pelas igrejas de Porto
Alegre para dar início à transnacionalização religiosa em direção à Europa,
tendo na recristianização da mesma o principal mote desencadeador do processo.
Porém, a eficácia desta iniciativa é reduzida, o que permite supor que há
outras razões concomitantes para a missão invertida para a Europa, entre as
quais o fator econômico, a abertura para o global e a elevação de prestígio num
contexto sociorreligioso “local”. Neste caso, destaca-se o imaginário do
“global” e, mais particularmente, a grandiosidade da evangelização da Europa
para se fortalecer no “local”. Por outro lado, vimos que as parcerias podem ser
prejudicadas e, às vezes, até mesmo sucumbir diante das tensões atribuídas às
diferenças de códigos culturais, geralmente essencializados, existentes entre a
dita “cultura brasileira” e a “cultura europeia”, com repercussão no campo
religioso.
Enfim, dois aspectos permanecem problemáticos nas relações transnacionais que
envolvem o pentecostalismo rio-grandense – quiçá o brasileiro e o latino-
americano – e o europeu. Em primeiro lugar, a questão dos diferentes campos
sociais, percebidos como relacionados na mentalidade pentecostal do
subcontinente americano e como autônomos no meio pentecostal europeu; e, em
segundo, a questão da emoção, que se torna uma espécie de “nó górdio” ao qual
os pentecostalismos dos dois lados do Atlântico veem-se atados, dada a
importância que ela ocupa no pentecostalismo brasileiro e latino-americano e a
resistência que encontra no europeu.
Os dados apresentados favorecem a compreensão de aspectos tidos por vezes
laterais pelas teorias que consideram a globalização num longo alcance. Os
encontros culturais proporcionados por um pentecostalismo que se deseja
globalizado acabam por lançar organizações de pequena escala e sujeitos em
dilemas provenientes desse encontro, explorados aqui sob a forma de tensões e
conflitos. Neste artigo, nos ocupamos de movimentos tipicamente transnacionais,
entre os quais revela-se crucial a questão da adaptação cultural, sendo a
transnacionalização apenas uma das modalidades de deslocamento. Caberia, ainda,
uma última reflexão sobre a capacidade interpretativa das classificações de
movimentos dentro do processo de globalização aqui expostos.
Como todo movimento e toda emergência só são observáveis em relação a um
referencial no espaço ou no tempo, os fluxos globais deveriam ser vistos sempre
em relação a referenciais e a unidades de análise discerníveis. Uma igreja que
se transnacionaliza por contatos pessoais possui estratégias de difusão da
mensagem religiosa diferentes de uma megachurch que se internacionaliza, pois
há aqui formas de organização social da produção simbólica distintas, embora a
mensagem possa ser considerada semelhante. Isso não quer dizer que uma igreja
internacionalizada não se transnacionalize em algum outro nível, dependendo da
unidade de comparação. Um caso excelente para interpretação é o da Igreja
Universal do Reino de Deus na França (Aubrée,_2003), a qual encontrou seu
público-alvo entre comunidades africanas em diáspora, recrutando pastores
africanos e absorvendo os códigos simbólicos acerca dos malefícios (bruxaria,
feitiçaria). Assim, essa igreja internacional em sua organização se
transnacionaliza em sua prática do sermão e de cura das almas dirigida a uma
comunidade imigrante não brasileira. Há vezes em que o inverso acontece: um
modelo organizacional se transnacionaliza sem que igreja alguma se desloque.
Tome-se, como exemplo, a organização de igreja em células ou modelo celular
originária das Assembleias de Deus da Coreia do Sul, reinterpretada na Colômbia
e difundida na América Latina em tonalidades absolutamente variáveis e locais.
A sistematicidade em nossas formas de interpretação dos fluxos poderá levar,
futuramente, a bases seguras para a comparação desses fenômenos. Além disso,
poderá tornar mais precisas as linhas de força relacionadas à dimensão cultural
e geopolítica das relações internacionais (pensamos aqui na atuação do Brasil
como país hegemônico econômica e culturalmente frente aos países pobres da
América Latina e da África), trazendo um benefício aos intérpretes
contemporâneos que não prescindem do nacionalismo metodológico característico
dos estudos sobre globalização. Por ora, buscamos, através de duas formas de
atenção (teórica e empírica), contribuir com os estudos sobre globalização e
religião na contemporaneidade.