Brasil, Mercosul e a segurança regional
Introdução
O impacto do regionalismo comercial nos processos de conformação de arranjos
regionais e globais na área de segurança é um tema que, pela relevância para as
relações internacionais, tanto em termos teóricos quanto conjunturais, merece
ser melhor aprofundado. O objetivo deste artigo é analisar a evolução de um
regime hemisférico de segurança tendo em vista duas questões fundamentais. A
primeira diz respeito ao impacto do Mercosul no equilíbrio geopolítico
continental. A segunda, derivada desta primeira, diz respeito ao papel do
Brasil como ator-chave na conformação deste arranjo hemisférico de segurança. O
pressuposto básico do trabalho é que, em função da sua posição relativa no
sistema hemisférico, como liderança inconteste do Mercosul e em menor medida
mas ainda assim significativa da América do Sul, a conformação de um arranjo
continental de segurança depende da atuação do Brasil na região.
Se levarmos em conta o peso que o regionalismo adquiriu no reordenamento do
poder mundial e as mudanças qualitativas no conceito de segurança internacional
no pós-Guerra Fria, os países com recursos de poder para liderança regional
ganham novo destaque. Com a despolarização hegemônica, tanto os conflitos
passaram a ocorrer, de forma prevalecente, no âmbito regional, quanto as
perspectivas de cooperação ampliaram-se a partir do avanço dos processos de
integração sub-regional. É como se fosse consubstanciado o cenário de
"multipolaridade com integração cooperativa ou seletiva", conforme definido
pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (do Brasil)1: "cenário [que] se funda
na prevalência do livre mercado, bem como de regimes democráticos, pelo menos
entre a maioria dos 'países-pivôs' de uma ordem poliárquica. (...), o ator
hegemônico militar unipolar se retrai gradualmente, restringindo-se a compor um
sistema internacional protagonizado por grandes blocos regionais ou temáticos
de países que atuam de forma eclusionária, ou como aspirantes à globalização"
(p. 23). Neste contexto, a atuação internacional de países com o mesmo perfil
do Brasil, sem excedente de poder para influenciar ou determinar a ordem
internacional, mas com capacidade de "organizar" o espaço sub-regional, ganha
relevância.
Segundo Andrew Hurrell (1998), o cenário pós-Guerra Fria impôs ainda um novo
conteúdo para o conceito de segurança regional que passou a incluir questões
como narcotráfico, criminalidade, migração e meio ambiente (e democracia). Como
conseqüência, segundo o autor, segurança regional passou a ser definida em
termos distintos daqueles consagrados durante a polarização do sistema
internacional. De um lado, passa a prevalecer a noção de segurança como "defesa
coletiva da democracia", constituindo-se como mecanismo de garantia da
estabilidade e da segurança regional. De outro lado, passa-se a identificar a
promoção de reformas econômicas e a integração regional como fatores
catalisadores de uma ordem regional mais estável. O pressuposto é de que um dos
resultados do processo de integração seria fazer com que os vizinhos mais
vulneráveis e mais instáveis fossem sendo "envolvidos" pelas políticas
integracionistas, através da elevação dos níveis de interdependência.
Neste sentido, há que se destacar o papel da integração como fator de
estabilidade regional. Ainda de acordo com Hurrel, a institucionalização do
regionalismo é importante não apenas porque os custos para dar início a um
conflito tornam-se altos, mas também porque a integração é capaz de promover
processos de sociabilização que incluem "a redefinição de interesses e
identidades, e altera os valores dos membros, construindo uma nova ação
racional para a interpretação de custos e benefícios". Um segundo caminho para
interpretar a função do regionalismo sobre a questão da segurança é verificar
as possibilidades de extensão dos benefícios a áreas potencialmente instáveis e
a restrição ao ingresso de países ao bloco.
Em uma linha semelhante de argumentação, Whitehead (1993) analisa a segurança
regional a partir do ângulo da expansão da democracia por meio de três
mecanismos básicos. O mecanismo de contágio ' afirmação do princípio
democrático por países líderes regionais ' exigiria que outros países (próximos
geograficamente) ainda instáveis, caminhassem no mesmo sentido. Haveria, então,
um "efeito democracia". O mecanismo de controle, que aparece sobretudo na
atuação de forças norte-americanas, principalmente na América Central, e que
age no sentido de "inocular princípios democráticos e controlados". O mecanismo
de consenso, decorrente da necessidade de se incorporar à atuação externa as
ações de grupos domésticos pelas quais interagem processos internos e
internacionais, denominados linkage politics. De acordo com o mesmo autor, a
"democracia via integração pode se constituir na dimensão internacional mais
decisiva na democratização".
As transformações ocorridas em dois outros níveis reforçam a relevância deste
trabalho. Primeiro, no que se refere ao papel dos Estados Unidos nas relações
hemisféricas pós-Guerra Fria. Vários autores procuram mostrar que, com o fim da
polarização do sistema internacional, as bases do relacionamento entre Estados
Unidos e América Latina foram modificadas. Lake e Morgan (1997), por exemplo,
argumentam que o interesse norte-americano em dar suporte local e regular os
conflitos regionais declina substantivamente no pós-Guerra Fria. Com isso,
abre-se espaço para que os países passem a criar seus próprios esquemas de
segurança regional. Em segundo lugar, como mostra Diamint (1996), no que se
refere ao nível dos processos de promoção de segurança regional, a promoção da
segurança convencional perde terreno para esquemas de segurança preventiva e
cooperativa. Nesse sentido, é necessário dar maior ênfase tanto ao papel das
nações não-hegemônicas (co-responsabilidade), quanto aos regimes e instituições
regionais no processo de promoção da segurança regional.
Nossa hipótese é de que, em ambas as dimensões (regional e global), o Brasil
tem atuado no sentido de contrabalançar a hegemonia norte-americana, reforçando
a correlação entre o status de potência regional e o cálculo de opções
internacionais. A percepção de que haveria um benefício em contestar a ordem
internacional no âmbito multilateral pelo não-engajamento arrefeceu-se,
induzindo o Brasil a reorientar sua estratégia em duas direções, ambas
destinadas a ampliar as credenciais internacionais do país: forte adesão a
regimes internacionais na área de segurança e prioridade à dimensão sub-
regional de sua política externa (Mercosul e América do Sul). Para checarmos
esta hipótese, vamos analisar a política externa do Brasil nos planos sub-
regional (sul-americano), hemisférico e global, em relação a arranjos
institucionais na área de segurança, nos últimos dez anos.
Política externa brasileira: segurança regional e global
Brasil, Mercosul e a segurança sub-regional
A evolução das opções estratégicas internacionais do Brasil após o fim da
Guerra Fria deve ser entendida no contexto das transformações, tanto no plano
doméstico, quanto em seu entorno regional imediato. Em última instância, todas
as condições convergem em favor de uma inserção internacional desmilitarizada.
De um lado, o entorno imediato sul-americano é uma área livre de conflitos
internacionais convencionais, de modo a não haver justificativa para uma
corrida armamentista. De outro, o guarda-chuva nuclear hemisférico norte-
americano torna ainda menos provável uma ameaça externa que mereça preocupação
do Brasil. Por fim, registra-se o fato de que, do ponto de vista doméstico, os
formuladores de política externa e de defesa não encontram, na população e nas
elites, uma vez instaurado o regime democrático, apoio a uma política externa
belicosa.
É neste contexto que o Brasil define sua inserção estratégica internacional,
que se torna mais nítida durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, baseada
em dois pilares fundamentais: 1) demarcação da região sul-americana como área
de influência (via integração regional), 2) multilateralismo, tanto na área de
segurança, quanto na econômico-comercial, que se contrabalança à hegemonia
hemisférica norte-americana. Na realidade, regionalismo e multilateralismo não
são antagônicos no cálculo da inserção internacional do país, ao contrário,
complementam-se no sentido de definir uma política externa "universalista" e
que rejeita o alinhamento automático com os Estados Unidos da América ' E.U.A.
A partir dessa perspectiva, o Brasil define sua estratégia de atuação pós-
Guerra Fria no contexto sul-americano em duas frentes: na frente platina e na
frente andina. A frente platina significou, historicamente, a área de maior
potencial de conflito para o Brasil, advindo de sua relação conflituosa com a
Argentina. Na segunda metade da década de 1980, Brasil e Argentina dedicaram-se
a implementar medidas de construção de confiança (confidence building
measures), com acordos inclusive na área nuclear, de forma que o obstáculo
maior à integração sub-regional no início da década de 1990 já havia sido
superado. Isso possibilitou que a política externa brasileira no plano regional
fosse fundamentalmente apoiada no processo de integração regional, consolidada
em dezembro de 1994 com a criação da união aduaneira e a instituição da Tarifa
Externa Comum (TEC) pelo Protocolo de Ouro Preto.
Dado o histórico conflituoso da relação entre os dois principais parceiros do
Mercosul (Brasil e Argentina), fica claro que a eliminação deste foco de
instabilidade é um dos principais fatores que vai permitir a articulação também
dos outros países em torno do projeto de integração nos anos noventa.
Entretanto, o marco inicial da aproximação Brasil-Argentina foi a assinatura,
juntamente com o Paraguai, do Acordo Tripartite de Cooperação Técnico-Operativa
entre Itaipu e Corpus, em 19 de outubro de 1979, que, segundo o Embaixador
Francisco Thompson Flores Neto, permitiu a "substituição gradual da lógica da
contradição de interesses pela percepção favorável à cooperação política e à
integração econômica"2. Em 1996, mais uma vez, o Presidente Fernando Henrique
reforça a percepção que se implantava no final dos anos setenta, de que a
principal preocupação em termos de segurança do Brasil não é a Argentina, e sim
a região amazônica.
A partir deste ponto, e com a retomada dos regimes democráticos na Argentina e
no Brasil, respectivamente em 1983 e 1985, os novos governos demonstram uma
vontade política de dar continuidade ao processo de integração e a cooperação
na área nuclear é a que melhor espelha o salto qualitativo das relações. A
investida em iniciativas na área de segurança tem continuidade nos anos noventa
e representa, da perspectiva da formulação da política externa brasileira, a
primeira orientação para buscar maior estabilidade da região e, assim,
conquistar credibilidade internacional, chamando a atenção para a ausência de
conflitos e reforçando a caracterização de um subcontinente pacífico dentro de
um mundo em que a instabilidade passa a ser um elemento recorrente.
Dentro desse contexto, o Brasil adota diversas iniciativas que fazem parte da
nova estratégia de atuação regional (porque dá estabilidade à região e cria
laços de confiança entre os países vizinhos) e global (porque inclui a adesão a
vários tratados internacionais na área de segurança e porque muda a imagem
externa do País), ou seja, primeiro a cooperação com os países vizinhos e,
posteriormente, no plano da segurança hemisférica e global, podem ser
considerados partes da estratégia de atuação condizentes com um país que
pretende se estabelecer como potência regional, de acordo com a definição
adotada anteriormente.
É nesse sentido que, em 28 de novembro de 1990, Brasil e Argentina assinam a
Declaração de Foz do Iguaçu sobre Políticas de Salvaguardas Nucleares, que dá
origem à assinatura, em 13 de dezembro de 1991, do Acordo com a Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA) para a aplicação de salvaguardas a
todos os materiais nucleares e à criação da Agência Brasileira de Contabilidade
e Controle de Materiais Nucleares (ABACC). A estratégia do Brasil é então
dividida em duas etapas: primeiro estabilizar a situação com a Argentina e
criar laços de confiança e, em seguida, como destaca em entrevista o Embaixador
Luiz Felipe de Seixas Corrêa, "o acordo de cooperação nuclear com a Argentina
permitiu que o Brasil, pouco a pouco, fosse também tomando todas as
providências de salvaguardas e adesões aos instrumentos de não-proliferação"3 .
Na tentativa de reforçar seu papel de potência regional, o Brasil utiliza os
acordos assinados com a Argentina no campo nuclear para se "apresentar" ao
mundo como uma região efetivamente pacífica e, dessa forma, contribuir com o
objetivo de não-proliferação. Como pode-se destacar no discurso do Ministro das
Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, por ocasião da assinatura de adesão
ao Tratado de Não-Proliferação (TNP) em Washington, em 18 de setembro de 1998:
"Junto com a Argentina, o Brasil tomou a iniciativa de oferecer sua experiência
bilateral no campo nuclear como exemplo de como é possível cooperar
exitosamente na nãoproliferação nuclear em clima de transparência e confiança
e, ao assim fazer, fortalecer o regime internacional da nãoproliferação".
Iniciativas como estas não ficaram obviamente restritas ao campo da segurança,
mas se ampliaram com acordos de caráter político e econômico. Essas
transformações convergem no sentido de ampliar a importância de países cujo
perfil de potência regional4, como o caso do Brasil na América do Sul, permite
atuar no sentido de promotores da estabilização de áreas conflituosas. A
atuação regional do Brasil fornece indicativos nesse sentido. É bem verdade
que, desde o final da década de 1970, o Brasil tem tido uma atuação de destaque
na segurança regional, haja visto seu papel na criação do Tratado de Cooperação
Amazônica5 (TCA), em 1979, que envolve todos os países amazônicos da região
andina e figura como um regime internacional marco nos esforços de
estabilização da região. Porém, como veremos adiante mais detalhadamente, é a
partir da década de 1990 que o Brasil passa, de fato, a ter uma postura sub-
regional mais assertiva.
Nesse sentido, vale citar as iniciativas em diferentes esferas. No âmbito da
integração regional, a criação do Mercosul (1991), envolvendo inicialmente
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, e que, em 1996, incorpora como membros
associados Chile e Bolívia; as negociações entre o Mercosul e o Pacto Andino
para a formação de uma área de livre-comércio; a proposta de formação de uma
Área de Livre Comércio da América do Sul (Alcsa); ou ainda o papel de liderança
do Brasil desempenhado junto aos membros do Mercosul, nas negociações da Área
de Livre Comércio das Américas (Alca) a partir de 1994.
No âmbito da solução de conflitos na região andina, vale destacar o caso do
conflito Peru-Equador, em que o Brasil atuou como mediador e integrou, em
novembro de 1997, o "grupo de países garantes", junto com Argentina, Chile e
Estados Unidos, cujo compromisso de paz foi consubstanciado pela "Declaração de
Paz do Itamaraty" entre Peru e Equador, em 17 de fevereiro de 1995, em
Brasília. Apenas para acrescentar um exemplo que caracteriza, explicitamente, o
objetivo do Brasil em liderar a resolução dos conflitos ainda pendentes na
região andina, através da via diplomática, e com isso aumentar a credibilidade
internacional, podemos citar o discurso oficial do Presidente Fernando Henrique
Cardoso por ocasião da assinatura do Acordo de Paz: "Peru e Equador demonstram
a todo o mundo que o que distingue a América do Sul é o fato de ser uma região
de paz".
Todavia, é através do Mercosul que o Brasil consegue instrumentalizar da melhor
maneira esse papel de liderança e de potência regional. O significado político
e geoestratégico do Mercosul para o Brasil supera, em larga medida, seu sentido
econômico-comercial. Muito embora a integração tenha catalisado o comércio
intra-bloco e funcionado como escala de mercado e chamariz de investimentos
diretos internacionais6, o Brasil experimentou, até o início de 1999 (quando
ocorreu a desvalorização do real), importantes déficits comerciais em relação à
Argentina, sem que isso colocasse em cheque o projeto como um todo.
Apesar desses avanços, inexiste no âmbito do bloco, no plano estritamente
estratégico-militar, um arranjo de defesa comum entre os países participantes.
Houve avanços significativos, contudo, no que concerne aos defense related-
issues (democracia, narcotráfico, imigração, controle de armas). Por exemplo, o
expediente da cláusula democrática7 representou um instrumento político eficaz
na tentativa de golpe militar no Paraguai em 22 de abril de 1996, quando o
General Lino César Oviedo acusou o Presidente Juan Carlos Wasmosy de corrupção
e ameaçou destituí-lo do poder, numa ação totalmente anti-democrática. A
manutenção da democracia no Paraguai naquele momento foi apoiada pelos países
do Mercosul, baseados na cláusula democrática, e pelos Estados Unidos.
Embora o Tratado de Assunção não faça nenhuma menção especial à coordenação na
área de segurança, não há duvida de que o Mercosul facilitou a mudança no
ambiente de segurança regional. A eliminação do potencial de conflito ' mais do
que a própria coordenação de políticas de defesa ' tem sido o principal
objetivo alcançado8. Registra-se ainda duas iniciativas importantes no campo
das defense related-issues: a) a elaboração, em 28 de março de 1998, de um
plano geral de segurança para a fronteira tríplice (Brasil, Paraguai e
Uruguai), em que foi instaurado um sistema único de controle de lavagem de
dinheiro, terrorismo, imigração, comércio de carros, narcotráfico e contrabando
e b) criação de um sistema comum de controle e rastreamento de armas
apreendidas em atividade ilícitas, como tráfico de drogas.
O significado político do Mercosul evidencia-se pelo modo como o Brasil
instrumentaliza o bloco nas negociações internacionais. Sub-regionalmente, a
integração no Cone Sul tem operado como o principal ativo que o Brasil possui
para estender sua área de influência a todo o continente sul-americano. Em
termos de negociações internacionais, por indução brasileira, as negociações
com os demais pólos internacionais têm sido feitas a partir de uma posição
conjunta intra-bloco.
Esta harmonização teve o efeito mais significativo nas negociações no âmbito da
Alca. Subjacente à proposta brasileira de negociação por meio de building
blocks estava a idéia de que o Mercosul, caso negociasse conjuntamente, teria
maior poder de barganha do que se os países agissem isoladamente. Até mesmo a
Argentina que inicialmente alimentava esperanças de ingressar na North American
Free Trade Área ' NAFTA, reorientou suas prioridades no sentido de apoiar uma
harmonização de posições do Mercosul em relação às negociações hemisféricas. O
mesmo aconteceu em relação ao Chile que, a partir de 1996, passou a fazer parte
como associado do Mercosul e, já na Cúpula das Américas, realizada em Santiago,
em abril de 1998, declarou que negociaria a Alca em conjunto com o Mercosul.
Para aumentar o seu poder de barganha internacional, como forma de contrapeso à
hegemonia norte-americana, o Mercosul deveria harmonizar suas posições nas
negociações da Alca e negociar de forma conjunta. Guardadas as devidas
proporções, a mesma dinâmica esteve presente nas negociações entre Mercosul e
União Européia, além de uma tentativa do governo brasileiro de que as
negociações multilaterais envolvendo os países do Cone Sul se dessem a partir
da mesma dinâmica. Nesse modelo de negociações, o Brasil exercia papel
fundamental, pois, não apenas tinha uma posição propositiva dentro dos
diferentes fóruns multilaterais, o que aumentava o poder de barganha dos países
do bloco já que a negociação era conduzida em conjunto, mas também aumentava a
posição de liderança do Brasil na região. Portanto, foi através do Mercosul que
o Brasil conseguiu firmar seu papel de liderança regional.
Com isso, até mesmo a percepção da União Européia de ampliar o acordo com o
Brasil ganhou destaque e isso representava para o Brasil um claro contraponto à
aceitação da hegemonia da política norte-americana. Um dos principais esforços
europeus em se aproximar da América Latina, através do Mercosul, foi durante o
Encontro do Rio em Junho de 1999, no qual ambos os subcontinentes decidiram
investir numa alliance building9. É dessa forma que o Brasil tem investido em
várias frentes para fortalecer sua posição diante dos Estados Unidos e a
aproximação da Europa, ampliada para o nível da segurança, é um bom exemplo
disso.
Nesse sentido, o Mercosul torna-se um instrumento eficaz, do ponto de vista da
afirmação da política externa brasileira, no que se refere ao estabelecimento
de uma postura de contraposição à influência regional dos Estados Unidos e de
estabilidade da região andina. Vale uma vez mais recorrer a Hurrell (1998): "a
institucionalização do regionalismo é importante para a segurança não apenas
porque os custos para dar início a um conflito tornam-se altos, mas porque
promove processos de socialização, construindo uma nova ação racional para a
interpretação dos custos e benefícios"10.
Além disso, em relação à questão da segurança, o regionalismo teria também a
função de identificar as possibilidades de extensão dos benefícios a áreas
potencialmente instáveis e a restrição ao ingresso de países instáveis no bloco
(como a já mencionada importância da cláusula democrática). Os casos da
Colômbia, Venezuela, Peru e Equador reforçam essa tese, de que os estados
domesticamente instáveis em ambientes vizinhos também instáveis são
potencialmente problemáticos para a segurança regional.
Historicamente, a América do Sul tem sido considerada uma "ilha de paz" no
interior do sistema internacional. Dados da ACDA (Arms Control and Disarmament
Agency, do Governo dos E.U.A) mostram que a América do Sul representava, em
1986, 0,7% do market share de exportações de armas e 1,9% das importações do
mercado mundial de armas. Em 1996 (dez anos depois), a agência americana
mostrava que a América do Sul deixou de exportar armas e que, embora o
percentual de exportações tenha se elevado, a região respondia por apenas 2,7%
da importação mundial de armas.
A posição do Brasil em relação aos gastos militares reafirma a percepção de que
o país busca, a partir do fim da Guerra Fria, ter uma postura mais assertiva
internacional e sub-regionalmente. Se levássemos em conta unicamente a retórica
diplomática, não haveria evidências de mudanças na postura brasileira em termos
de gastos com defesa. Conforme se pode destacar no discurso do Ministro Luiz
Felipe Lampreia11: "não nos preocupa a possibilidade de uma corrida
armamentista na nossa região. A América Latina tem um reduzido potencial de
conflito, é plenamente democrática, (...) e as compras de armamentos militares
na região, mesmo potencialmente, são plenamente compatíveis com as legítimas
necessidades de defesa dos países latino-americanos".
Os dados mostram, no entanto, um aumento sistemático dos gastos com defesa.
Como mostra a tabela_1, dentre os países da América do Sul, apenas dois
registram aumento em defesa em termos de percentual de PIB: Brasil e Colômbia.
Em 1986, o Brasil gastava 1,8% do PIB com defesa, passando para 3,2% em 1996.
Neste mesmo período apenas a Colômbia teve uma variação mais acentuada: de 1,6
para 3,2% do PIB com gastos de defesa. Em relação aos gastos com defesa em
termos de renda per capita, o aumento percentual do Brasil (263,4%) é
igualmente superado apenas por Colômbia (323,3%).
A comparação com a Colômbia em termos de gastos militares merece algumas
qualificações. As diferenças substantivas entre os dois países, em termos de
PIB, faz com que o peso absoluto do Brasil em termos de gastos com defesa seja
também substantivamente maior que o da Colômbia. Além disso, os gastos com
defesa no caso colombiano estão relacionados mais com as questões de
instabilidades internas (como o narcotráfico, por exemplo) do que com a
proteção contra riscos externos ou com a busca de uma posição internacional
mais assertiva. Outro dado que marca a diferença do Brasil em relação à
Colômbia diz respeito à posição brasileira no ranking mundial de importadores
de armas. O Brasil ocupa a posição de 26º maior importador de armas neste
ranking, enquanto a Colômbia ocupa a 59ª posição.
A comparação da série histórica de gastos militares entre Brasil e México
talvez ilustre ' ainda melhor do que com a Colômbia, uma vez que o México é
sempre posicionado junto com o Brasil, como potências médias do hemisfério ' a
percepção de que o Brasil busca uma postura mais assertiva em termos
internacionais. Como mostra o gráfico abaixo, os gastos militares de Brasil e
México eram bastante próximos. Entre o período de 1987 e 1992, fica marcada a
superação do Brasil em termos de gastos militares, abrindo-se um gap importante
em relação ao parceiro latino-americano. O ápice desta diferença acontece em
1990 quando os gastos do Brasil em defesa superam US$ 9 milhões e do México
giram em torno de US$ 1,5 milhões.
![](/img/revistas/rbpi/v43n2/a05grf01.jpg)
Nesse sentido, a percepção dos Estados Unidos em relação à posição do Brasil
tem sido clara ao identificar que o país ainda mantém uma postura reticente no
que diz respeito ao estabelecimento de mecanismos explícitos de segurança no
nível sub-regional e no processo de reforma de instituições de segurança
hemisférica. Além disso, identifica-se o uso das forças armadas em missões
multilaterais de paz restrito a áreas de interesse do Brasil como, por exemplo,
países de língua portuguesa da África. Embora não exista nenhum tipo de
contencioso com Washington, o Brasil ainda mantém uma posição cautelosa em
relação à ampliação da influência norte-americana. Dentro desse contexto, é
possível compreender a reação negativa do Brasil quando da aceitação da
Argentina como aliada extra-Otan dos E.U.A em agosto de 199812.
No que se refere à afirmação dos objetivos do Brasil quanto à política de
segurança, o Ministro das Relações Exteriores, Luis Felipe Lampreia, afirma:
"Nossa preocupação deve voltar-se para combater o tráfico de armas e a
diplomacia brasileira tem trabalhado para esse fim na OEA e no diálogo com
outros países da região. Somos um país que desfruta de credibilidade e
confiabilidade, produtos de alto valor nas relações internacionais. E temos
dado passos concretos para consolidar essa posição", como a recente assinatura
do TNP.
Por outro lado, a frente andina representa o maior desafio para o Brasil no que
diz respeito à sua política externa regional. Basicamente porque a região
andina tornou-se, nos anos noventa, o maior foco de instabilidade
continental13, sendo que esta instabilidade se apresenta em fatores de origem e
forma de expressão, justamente os novos temas de segurança regional: rupturas
da ordem constitucional (como nos casos do auto-golpe do presidente Fujimori no
Peru, da queda constitucional do presidente Pérez na Venezuela e, mais
recentemente, a atuação do presidente Chávez no mesmo país); violação grave dos
direitos humanos (caso da Colômbia); intensificação do narcotráfico em vários
países da região (Colômbia, Venezuela, Peru, Brasil); degradação ambiental;
instabilidade econômica e política (Equador) e agravamento dos níveis de
corrupção.
O papel do Brasil nesse contexto regional, na busca de maior estabilidade, na
resolução dos conflitos através da via diplomática e do incentivo à integração
regional, tem sido uma constante. Em agosto de 1999, o Brasil e os países da
Comunidade Andina de Nações (CAN) formalizaram um acordo de complementação
econômica, chamado "Acordo de Alcance Parcial de Complementação Econômica", com
validade de dois anos. Esse acordo representou o primeiro passo para a formação
de uma área de livre comércio.
Duas questões podem ser suscitadas a partir dessa iniciativa: (i) em que medida
esse acordo, ao aumentar a interdependência entre o Brasil e os países andinos,
aumenta simultaneamente o grau de influência do Brasil na região e a
possibilidade do país ter um papel mais assertivo no sentido da estabilização
sub-regional? (ii) o aumento da influência brasileira na região, a partir da
introdução da "cláusula democrática" no relacionamento dos países hoje em
situação de instabilidade política, contribuirá para aumentar a estabilidade
regional?
É claro também o papel de protagonista que o Brasil exerceu, nas negociações da
Alca por exemplo, e a forma como instrumentalizou o Mercosul e a influência
sobre os países vizinhos, sobretudo da região andina. Tanto que em 30 de julho
de 1999, o Brasil liderou a reunião entre os países andinos e Mercosul para
fechamento de acordo para a Alca. Na mesma data, reportagem publicada no jornal
O Estado de S. Paulo, dizia que o Brasil, "agindo isoladamente, sem esperar por
seus sócios no Mercosul para fazer o acordo comercial com a Comunidade Andina,
reafirmou sua política continental e ganhou tempo e oportunidades para
conquistar mercados (...) Devese esperar, portanto, que Venezuela, Colômbia,
Peru e Equador se alinhem com as posições que o Brasil encabeça, no Mercosul,
nas discussões setoriais sobre a Alca".
Além do impacto econômico evidente nesse tipo de acordo liderado pelo Brasil,
"o segundo impacto político é regional. Os únicos pontos de instabilidade ao
longo das fronteiras brasileiras estão justamente na Venezuela, Colômbia, Peru
e Equador ' embora este último país não tenha fronteira com o Brasil ', países
que passam por profundas crises políticas e econômicas. Relações comerciais
mais profundas com aqueles países certamente criarão uma rede de interesses que
ultrapassará os aspectos meramente econômicos. O aumento da influência
brasileira na região e a introdução da chamada 'cláusula democrática' no
relacionamento com os vizinhos hoje sujeitos a abalos políticos seguramente
contribuirão para aumentar a estabilidade regional".
O Brasil e a segurança hemisférica
No nível hemisférico, a política externa brasileira tem sido marcada por um
esforço, claramente defensivo, de tentar impingir resistência à hegemonia
norte-americana. Isso determina a postura de não-engajamento do país em
arranjos institucionais hemisféricos na área da segurança. Na realidade,
durante o período da Guerra Fria, o questionamento sobre a eficácia do
multilateralismo hemisférico na área de segurança não foi uma exclusividade do
Brasil. Os demais países da América Latina também puseram em dúvida a
possibilidade de que, num ambiente de polarização hegemônica e riscos reais de
contaminação comunista, os Estados Unidos estivessem de fato dispostos a abrir
mão da eficácia de ações unilaterais em prol de um maior equilíbrio
institucional.
Durante a década de 80, a crise de relacionamento entre a América Latina e os
E.U.A (crises da dívida externa e intervencionismo norte-americano na América
Central) aprofundou o desalento quanto à possibilidade de cooperação na área de
segurança via instituições hemisféricas. De acordo com Hirst (1995), durante
esta década também os Estados Unidos reverteram suas expectativas em relação à
OEA, vista à época apenas como um locus para acusações anti-Estados Unidos.
Segundo a autora, o declínio do interesse dos Estados Unidos pelo
multilateralismo "havia se tornado um traço comum na política externa norte-
americana durante a última fase da Guerra Fria, na qual ações unilaterais dos
superpoderes alcançaram seu zênite" (p. 104).
Com o fim da Guerra Fria e a percepção norte-americana compartilhada por parte
dos países latino-americanos sobre a necessidade de que o relacionamento
hemisférico se desse em novas bases, alterou-se o ambiente adverso em torno do
multilateralismo hemisférico. Assiste-se, desde então, a um conjunto de
iniciativas que converge no sentido de revitalizar o sistema interamericano. Os
esforços passam a ser no sentido de reorientar o conceito de segurança
regional, ampliando seu espectro, a partir da incorporação dos novos temas da
agenda (democracia, narcotráfico, migração, direitos humanos etc.) e da adoção
do conceito de segurança cooperativa em que os países se dispõem a cooperar na
área da segurança, com medidas de caráter preventivo. Ou seja, a segurança
cooperativa visa a organizar uma estrutura de defesa entre países democráticos
que não tenham um sistema de defesa próprio, como é o caso dos países da
América do Sul, inclusive o Brasil. Neste caso, a idéia de segurança inclui
formar uma estrutura que permita a atuação conjunta em temas específicos
envolvendo os países da região e não se limita à conotação desenvolvida durante
o período da Guerra Fria.
A importância deste novo conceito encontra-se sobretudo no fato de que, como
coloca Hurrell (1998), o mais difícil é definir um complexo de segurança na
América Latina ignorando os Estados Unidos e não é possível estabelecer um
único sistema de segurança na região dada a grande heterogeneidade dos países,
tanto em termos econômicos, quanto sociais. Iniciativas nesse sentido são
consubstanciadas no interior das duas propostas de integração hemisférica na
década de 1990 (Enterprise for the Americas Initiative e Área de Livre Comércio
das Américas) e de iniciativas paralelas, a começar pelo "Compromisso de
Santiago com a Democracia e Renovação do Sistema Interamericano" (1991). Além
disso, outro avanço significativo foi o estabelecimento, a partir de 1990, de
um calendário de reuniões periódicas de Ministros da Defesa que revela uma
forma embrionária de agenda-setting regional na área de segurança14.
O ápice desse movimento dá-se na reunião dos Ministros de Defesa do Hemisfério,
durante a Conferência de Williamsburg em 1995, quando os Estados Unidos
propuseram o envolvimento das Forças Armadas do continente no combate ao
narcotráfico e a disposição de armar a OEA de condições para torná-la um
instrumento institucional de defesa coletiva. Entretanto, como se acordou que
essas medidas não teriam caráter deliberativo, deu-se continuidade à discussão
de temas que são sensíveis, sobretudo aos países da América do Sul que não tem
sistema de defesa próprio, mas também não estão dispostos a se submeter,
indiscriminadamente, à hegemonia norte-americana.
Embora tenha aumentado substantivamente a disposição do Brasil em colaborar nos
esforços de cooperação hemisférica, o país ainda demonstra resistências à
institucionalização hemisférica na área de segurança, via OEA, sob a égide
norte-americana. Comentário feito por uma autoridade brasileira15 explicita a
percepção acima: "indentifícase en el abordaje de los EE.UU en relación a
América Latina, una continuada visión de superpotencia. Washington busca
ajustar la seguridad hemiférica a los nuevos moldes de control multilaterales,
como la 'verticalización' de la OEA, buscando convertir a la Junta
Interamericana en el brazo armado de la organización. Essa modificación de la
OEA atendería sólo al potencial intervencionismo de los EE.UU en la región
creando una vunerabilidad unilateral para los países mas débiles".
O Brasil e a segurança global
No plano global, diferentemente do conservadorismo na política hemisférica de
segurança, o Brasil optou pela mudança estratégica, que começa na segunda
metade da década de 1980, no sentido de uma crescente adesão aos regimes
internacionais de não-proliferação. O auge desta nova postura no início dá-se
na segunda metade da década de 1990 com a adesão ao Regime de Controle de
Tecnologia de Mísseis (MTCR, 1995), ao Grupo de Supridores Nucleares (NSG,
1996), à Organização para a Proibição das Armas Nucleares (OPAQ, 1996), ao
Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBC, 1996) e ao Tratado de
Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP, 1998). A mudança na postura no
Conselho de Segurança da ONU, no período de 1980 a 1995, no sentido de
abandonar uma "oposição implícita" e adotar a "cooperação ativa" (Sennes: 1998,
p.22), reitera o multilateralismo como nova opção estratégica na área de
segurança.
Segundo Lafer (1999: 132), a adesão do Brasil ao TNP faz parte do encerramento
de um ciclo, com início na segunda metade dos anos oitenta, de progressiva
adesão por parte de países que até então optaram por manter-se à margem. De
acordo com este autor, entre estes outsiders, além de potências já
nuclearizadas (China e França), incluíam-se países cujo nível de tecnologia
não-sujeita à disciplina do TNP permitia-lhes manter aberta opção militar.
Entre eles distinguiam-se países que apenas resguardavam essa opção (Brasil,
Argentina, Argélia, Chile, entre outros) e aqueles cujos contextos regionais
tensos e conflituosos (Índia, Paquistão, Israel e África do Sul) os levara de
fato a desenvolver ou a adquirir capacidade nuclear para fins explosivos.
Índia, Paquistão e Israel foram os únicos a não participar deste ciclo de
adesão.
No caso específico do Brasil, a resistência ao TNP fundava-se na avaliação de
que o tratado tinha um caráter discriminatório e, na linha do pensamento de um
influente embaixador brasileiro, Araújo de Castro, promovia o "congelamento" do
poder mundial. A adesão do Brasil ao TNP não significou um abandono completo da
retórica contestatória sobre o status quo do poder mundial, cristalizados nos
regimes e instituições internacionais, mas uma reavaliação quanto aos
benefícios da adesão e aos custos da não-adesão. Os custos de não-adesão
recaíam sobre a imagem internacional de free rider, à medida em que o TNP, pela
presença de mais de 180 membros, acabou por constituir-se como um "paradigma"
internacional em termos de não-proliferação. Os benefícios diretos, por outro
lado, formam-se em termos de credibilidade internacional, instrumentalizados
tanto no sentido de ampliar a legitimidade nos fóruns internacionais como
demandante de não-proliferação, quanto no que poderia representar para
possíveis reivindicações em outras áreas das relações internacionais (inter-
issue).
A assinatura do TNP em 1998 representa um ponto de inflexão na política externa
brasileira, desde 1965 (ano de sua criação), o Brasil vinha recusando-se a
assinar, argumentando que por ser "concebido como um mecanismo de emergência
para conter o número de potências nucleares, que ameaçava multiplicarse de
forma incontrolável"16, a adesão ao Tratado representava uma forma de
conformismo com a corrida armamentista. Esta mudança de postura demonstra "a
disposição de prestar a contribuição que se espera de um país do porte do
Brasil"17. Por outro lado, além da perspectiva de afirmar a sua posição de
liderança regional, o Brasil espera "colaborar" com os Estados Unidos no que se
refere a questão da segurança regional. Neste sentido, pode-se destacar o
discurso do Ministro Lampreia: "Nossa decisão de aderir ao Tratado de Não-
Proliferação emana precisamente da determinação de perseguir um papel cada vez
maior na área da paz e da segurança internacional. (...) Como membro do TNP,
trabalharemos mais ativa e criticamente para assegurar que as atividades
nucleares pacíficas em Estados não-nuclearmente armados e a cooperação
internacional nesse campo não sejam restringidas. Espero que o Brasil e os
E.U.A possam trabalhar juntos em prol de um mundo livre de armas nucleares, mas
pacífico e mais seguro"18.
Na realidade, a mudança se faz mais no nível tático do que na mudança de uma
alteração efetiva de interesses e objetivos. Quando se observa o comportamento
internacional da Índia, por exemplo, podemos verificar que sua luta pelo
direito de voz no sistema internacional faz-se pelo anúncio de sua capacidade
militar, enquanto que o Brasil busca angariar sua voice of opportunity por meio
da legitimidade de ser um país pacífico e árduo defensor do desarmamento,
constata-se que ambos têm objetivos comuns, mas táticas diferentes. Afirmação
do Embaixador Gelson Fonseca Jr.19 reitera a idéia de que a mudança operada é
mais no nível tático, argumentando que o Brasil deixou de buscar a "autonomia
pela distância" e passou a defender a "autonomia pela participação".
A aposta no multilateralismo também marcou alteração da estratégia do Brasil
frente ao Conselho de Segurança das Nações Unidas ' CSONU. O Brasil encontra no
CSONU, após a despolarização do sistema internacional, um fórum oportuno para
ampliar sua influência global. Em trabalho original e amplamente respaldado por
dados empíricos, Ricardo Sennes (1999: pp. 10 a 22) mostra o crescente
engajamento do Brasil no processo decisório do Conselho. Exemplo disto foi o
fato de que, após 20 anos de ausência como membro do Conselho (de 1968 a 1988),
o Brasil volta sistematicamente a ocupar um assento neste Conselho. Vale notar
que o maior engajamento do Brasil no CSONU foi acompanhado, também, por
gradativo aumento de coincidências de votos entre o Brasil e os E.U.A, conforme
mostra a tabela_3. Isso não significa contudo uma renúncia à busca do Brasil em
aumentar a sua influência e velar para que o fórum fosse visto como útil no
sentido de contraposição ao unilateralismo norte-americano.
Ao contrário, se se observa os pontos da agenda bilateral, verifica-se que a
divergência Brasil-E.U.A se mantém precisamente na área de proliferação e armas
nucleares. No biênio de 1997/1998 o Brasil vota enquanto que os E.U.A se abstêm
ou votam contra em temas como "Conclusão de um Acordo Internacional contra o
uso ou ameaça de uso de armas nucleares"; "Prevenção da Corrida Armamentista no
espaço Orbital"; "Redução do Perigo Nuclear"; "Desarmamento Regional;
Observação de Normas Ambientais na implementação de acordo de desarmamento e
controle de armas; Promulgação do Hemisfério Sul como Zona Livre de Armas
Nucleares; etc. Somando-se isso ao fato de que (conforme mostra Sennes, 1999,
op.cit.) as intervenções do Brasil como parte de coalizões, em detrimento de
ações individuais, fica clara a disposição do país em manter autonomia na área
de segurança e em colocar-se como contrapeso à hegemonia norte-americana.
A título de contraste, vale comparar o padrão de coincidência de votos do
Brasil ' em relação aos países de porte intermediário do hemisfério (Argentina,
Canadá e México) ' no Conselho de Segurança da ONU. Os percentuais de votos
brasileiros coincidentes com os E.U.A são sistematicamente menores do que
Argentina e Canadá. No caso do México, a diferença se acentua sobretudo em
1994, ano em que entra em vigor o NAFTA. Neste ano, o percentual de votos
coincidentes com os E.U.A no Conselho de Segurança da ONU chega a 58,3%, contra
39,6% do ano anterior. De 1993 a 1994 o Brasil mantém o mesmo percentual de 39%
de coincidência de votos com os norte-americanos.
Conclusão
A análise da evolução do posicionamento do Brasil em relação ao tema da
segurança, em nível regional e global, permite algumas conclusões acerca do
debate sobre potências regionais no período pós-Guerra Fria. A hipótese
norteadora do trabalho atentava para o fato de que, nos cálculos de engajamento
em processos institucionalizados na área de segurança, estava presente a
preocupação com a autonomia e a possibilidade de contrabalança à hegemonia
norte americana. Observou-se que, o nível de engajamento do país em arranjos de
segurança varia de forma substantiva nos três níveis analisados (sul-americano,
hemisférico e global).
No nível sub-regional, não houve por parte do Brasil esforços no sentido da
promoção de arranjos específicos na área de segurança, quer seja no âmbito do
Mercosul/Cone Sul, quer seja no âmbito da América do Sul. Parece claro, no
entanto, a preocupação do Brasil em expandir sua influência para o continente
sul-americano por meios diplomáticos e usando, como ativo principal, a
integração regional. A ausência de uma política armamentista como forma de se
credenciar a grande potência regional parece, no caso latino-americano,
impertinente. Como mostra a avaliação prévia, os conflitos sul-americanos pós-
Guerra Fria não se constituem de conflitos convencionais e sim relacionados aos
novos temas de segurança (lavagem de dinheiro, narcotráfico, contrabando etc).
As respostas a estes conflitos não podem ser, portanto, por meio de
intervenções militares convencionais. O Brasil nesse nível procura usar,
adequadamente, soft power para ampliar a sua influência regional.
No plano hemisférico, em que pese não haver uma negação explícita do papel dos
E.U.A como garante da segurança, a estratégia brasileira tem sido refratária ao
processo de institucionalização da segurança, particularmente por meio da OEA,
justamente em função da preocupação com a assimetria de poder em relação aos
E.U.A. Essa preocupação faz com que, após o fim da Guerra Fria, o Brasil passe
a investir no multilateralismo na área de segurança, daí o engajamento nos
fóruns como TNP e Conselho de Segurança da ONU. Nos três níveis, o fato do
Brasil não possuir poderio militar serve, em última instância, como fator de
legitimidade para o discurso da não-proliferação. É desta forma que o Brasil
tenta ampliar sua influência no nível global.
Notas
1 Secretaria de Assuntos Estratégicos. Cenários Exploratórios do Brasil 2020.
Texto para Discussão. Brasília, setembro de 1997.
2 FLORES NETO, Francisco Thompson. "Integração e cooperação Brasil-Argentina".
Em: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon (org.). O desafio geoestratégico.
Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990). Volume III, São
Paulo: Nupri/USP, em vias de publicação.
3 Entrevista concedida a Janina Onuki em 12.04.99, para o projeto "Fontes Vivas
da Política Externa Brasileira", coordenado pelo Núcleo de Pesquisa em Relações
Internacionais da USP, com apoio da Fapesp.
4 A definição de Pivotal States converge com a definição de potências
regionais, conforme colocada por Iver Neumann (Op. Cit.), na medida em que
supõe a capacidade de "determinar de fato não apenas a estabilidade de sua
região mas também de afetar a estabilidade internacional". Qualquer um dos
conceitos serve como parâmetro analítico para compreender a atuação
internacional do Brasil.
5 Manuel Montenegro em "Política Externa e Cooperação Amazônica: a negociação
do Tratado de Cooperação Amazônica" enfatiza a idéia de que, em função de suas
características, o TCA pode ser considerado um regime internacional de
cooperação. Em: ALBUQUERQUE, J.A. Guilhon. O desafio geoestratégico. Sessenta
Anos de Política Externa Brasileira (1960-1990). Volume III, São Paulo: Nupri/
USP, em vias de publicação.
6 De acordo com as informações de intercâmbio comercial publicadas na Balança
Comercial Brasileira ' Mercosul, da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do
Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, os quatro países membros do
Mercosul alcançaram notável êxito na elevação do comércio entre si após seis
anos de existência. No que diz respeito ao Brasil, a corrente de comércio
(exportações mais importações) com os nossos parceiros do Mercosul atingiu US$
18.306 bilhões (valor F.O.B.) em 1998, sendo que, em 1991, quando foi assinado
o Tratado de Assunção, a corrente de comércio era de US$ 4.578 bilhões, o que
significa um aumento de mais de 400%. Dados do BACEN mostram que os
investimentos externos diretos para o Mercosul cresceram de US$ 1,972 milhões
em 1992 para US$ 29,996 milhões em 1999.
7 Desde sua criação, em 26 de março de 1991, o Mercosul tem como objetivo
central consolidar a democracia como uma modalidade de vida e sistema de
governo. O Tratado de Assunção inclui, nos seus artigos iniciais, como
requisito básico para participação e integração de terceiros países, a condição
de terem governos democráticos.
8 FAURIOL, Georges & PERRY, William. Thinking strategically about 2005. The
United States and South America. Washington, D.C.: CSIS. December 1999, 46 p.
9 The Rio Summit: towards a strategic partnership? Madrid: Institute for
European-Latin American Relations, July 30, 1999.
10 HURRELL, Andrew (1998). "Security in Latin America". International Affairs,
June, pp.529-546.
11 Exposição do Embaixador Luiz Felipe Lampreia na Comissão de Relações
Exteriores da Câmara dos Deputados, em 28 de agosto de 1997.
12 FAURIOL, Georges. Op. Cit., p.31.
13 Ver a respeito: TOKATLIAN, Juan Gabriel (1997). "As relações entre a
Colômbia e os Estados Unidos: à beira do abismo ou com possibilidades?".
Política Externa, 6(3), São Paulo: Paz e Terra, pp. 66-72.
14 A primeira reunião ocorreu nos Estados Unidos em 1995, a segunda em 1996 na
Argentina, e a terceira na Colômbia em 1998. Ver FAURIOL, Georges. Op. Cit., p.
11.
15 Este comentário foi feito em um seminário realizado no Centro de Estudos
Estratégicos da Presidência da República do Brasil, publicado (junho/1993),
posteriormente, como Documento de Trabalho deste centro. Não há identificação
da autoria do comentário.
16 Lampreia, Luiz Felipe. "O Brasil e o TNP". O Estado de S. Paulo, 1º de julho
de 1997.
17 Idem, ibidem.
18 Discurso do Ministro Luiz Felipe Lampreia, por ocasião da assinatura de
adesão ao TNP, em 18 de setembro de 1998.
19 Citado por Lafer (1999), idem.