A política exterior do Brasil: 1990-2002
Introdução
O Brasil, por seu peso geoeconômico, a dimensão de seu mercado interno e os
atributos tradicionais de poder, é o ator de maior importância relativa da
América do Sul. Paralelamente a essas condições, sua política exterior teve,
historicamente, algumas características diferenciadoras, com uma dose maior de
continuidade, juntamente com a formulação e presença de paradigmas que
contribuíram para fazê-la mais previsível. Como nós mostramos em um livro
recente, a atração por conceitos e categorias ajudou a fazer a política
exterior mais compreensível, dando conteúdos mais precisos à formulação da
Agenda, à definição de Objetivos e à procura de Instrumentos (Bernal-
Meza,2000).
As mudanças sistêmicas certamente causaram mudanças significativas nas
políticas exteriores de nossos países e o Brasil, historicamente, não foi a
exceção. Isto se refletiu com particular evidência durante as diversas etapas
do longo período da ordem bipolar. Aqueles acontecimentos que se sucederam após
o fim da guerra fria, que se associaram a um complexo processo de globalização
e expansão do capitalismo, despojaram muitos grupos nacionais da decisão de
parâmetros-chave ou de "critérios ordenadores" para a formulação da política
exterior. Associada a isto, a adoção do que foi chamado o "pensamento único" '
ou seja, a aplicação de políticas econômicas neoliberais, baseadas em uma
interpretação conservadora das relações entre capital e Estado e entre este e a
sociedade civil ' teve importantes conseqüências na redefinição das estratégias
nacionais de desenvolvimento que, por sua vez, exigiram perfis novos às
políticas exteriores. Como assinala Amado Luiz Cervo, comparando o processo
sofrido por diversos países da região: "o abandono do paradigma de relações
internacionais do Estado desenvolvimentista para favorecer o paradigma
neoliberal teve seu impulso inicial, em países de menor porte da América Latina
nos meados da década de 1980 e concluiu-se por volta de 1990, com a chegada ao
poder dos presidentes Carlos Salinas de Gortari no México, Carlos Saúl Menem na
Argentina, Carlos Andrés Pérez na Venezuela, Alberto Fujimori no Peru e
Fernando Collor de Melo no Brasil. Desse modo, as experiências neoliberiais
estender-se-iam sobre o subcontinente como um todo durante a última década do
século XX"1 . Tratava-se da transição do "Estado desenvolvimentista" para o
"Estado normal"2 .
Apesar disto, até meados da década de 90, a política exterior brasileira podia
ser interpretada "muito mais como uma continuidade daquela desenvolvida no
período da política externa independente e consolidada na época do pragmatismo
responsável do que como uma nova política, decorrente das alterações mundiais e
mesmo das domésticas"3 .
O fator exógeno para esta continuidade foi o que Lafer chamou de "polaridades
indefinidas" (Lafer,1996; Bernal-Meza,2000), que expressavam incógnitas sobre a
evolução dos enredos econômicos e políticos onde gravitaram os grandes centros
de poder mundial, apesar do desaparecimento da ordem bipolar. Mas isto mudaria
a partir da segunda metade da década. O fortalecimento da "nova" hegemonia
norte-americana e a implementação, pela aliança vencedora da Guerra Fria, da
"Agenda de valores hegemônicos universalmente aceita" (Vigevani et. al., 1999;
Bernal-Meza,2000) abriram novos contextos de vulnerabilidade para o Brasil, que
se caracterizariam pela adoção dos padrões internacionais de normas de proteção
do trabalho, dos direitos humanos, do meio-ambiente, dos inventos, dos
consumidores, entre outros. Estes foram somados a condicionamentos
tradicionais, como os referentes à segurança e à exploração da Amazônia. O mais
importante então foi que o presidente Fernando Henrique Cardoso procurou se
aproximar dos Estados Unidos e ' depois de ter impelido iniciativas em
contrário ' terminaria por ir pragmaticamente à ALCA.
Segundo Roett4 , a política exterior brasileira foi confrontada a uma série de
novos e cambiantes temas de política internacional: a imprevisível dinâmica da
globalização, a participação ativa nas iniciativas multilaterais e os desafios
e oportunidades da integração regional e da cooperação na segurança; três
assuntos que deveriam ser de alta prioridade para a Administração que assumirá
após a corrida presidencial de 2002.
O estudo que se segue procura identificar estes processos de mudança na
política exterior do Brasil, com o propósito de dar uma visão geral do que foi
sua evolução no período em questão. Para isto, depois de uma introdução e de
dar uma visão geral da política exterior no período 1980-2000, é feita uma
interpretação teórico-analítica dos paradigmas, conceitos e categorias que
permitiram fazê-la mais compreensível pela análise do observador.
Posteriormente, ingressa-se no estudo do período específico, tomando como eixo
de preocupação o Mercosul e a construção de parcerias estratégicas, entre elas
com a Argentina.
A análise de sua "diplomacia econômica" nos permite, subseqüentemente, avaliar
a aproximação do Brasil à ALCA, enquanto que a análise sobre as percepções da
"segurança" facilita abordar a questão do poder e sua relação com a política
interna e externa. Finalmente, são analisados a Agenda, os Objetivos e o Estilo
que caracterizaram a política exterior no período, e são apresentadas as
conclusões.
1. A trajetória da política exterior: dos anos 1980 até 2000
Depois de um período de marcado dinamismo em política exterior, caracterizado
pelo "pragmatismo ecumênico responsável" (abertura para a África; participação
ativa nas agendas do mundo em desenvolvimento etc.) que acompanhou a grande
expansão do modelo de industrialização e exportação de manufaturados dos anos
70, com um forte crescimento econômico, mudanças internas e externas levaram a
uma sensação de estagnação e decadência destas estratégias. O Brasil começou a
viver uma fase crítica, onde ambas as estratégias comprovaram seu esgotamento.
Com efeito, o modelo de política exterior da década de 1980, das presidências
Figueiredo e Sarney, associado ao "desenvolvimento nacional" deu lugar a uma
fase de crise e contradições (Cervo & Bueno,1992; Cervo;1994). Como
assinalou outro autor, durante os anos 70 e 80, a diplomacia brasileira teve
pequena margem de iniciativa na maioria das questões internacionalmente
relevantes e foi condenada a reagir a investidas do exterior, as quais não
podia prever nem controlar, fazendo com que no período a política exterior
fosse basicamente reativa e defensiva (Guilhon Albuquerque, 2000; 2001). Apesar
disso, do nosso ponto de vista, o governo Sarney seria o último do século a
identificar a política exterior com o "terceiromundismo".
Da transição democrática da década seguinte para a expansão, símbolo dos novos
tempos, surgiria ' como exemplo de grande renovação ' uma mudança fundamental
nas relações bilaterais com a Argentina e, em geral, com a América do Sul: O
Brasil encontrou seu perfil latino americano, substituindo as políticas e
percepções de conflito e rivalidade pelas de cooperação e acordo (Bernal-Meza,
1989; 2000).
Nesse contexto, a candidatura de Collor de Melo (1989) lança sua plataforma de
política exterior, gerando três tipos de expectativas (Hirst &
Pinheiro;1995): atualizar a agenda internacional do país; construir uma nova
agenda prioritária e não conflitiva com os Estados Unidos e reduzir o perfil
"terceiromundista", haja vista as mudanças acontecidas no cenário político
internacional. Cada uma destas expectativas implicou um tema prioritário, que
foi refletido em iniciativas específicas: recuperação do protagonismo e
organização da ECO 92; negociação e assinatura do tratado do Mercosul e
iniciativas em relação à segurança, definindo posições mais flexíveis nos
tratados de não-proliferação (assinatura do acordo de criação da Agência
Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares e do
Acordo Nuclear Quatripartite de Salvaguardas com a AIEA; proposta de revisão do
Tratado de Tlatelolco, etc.).
Na parte econômica, o governo de Collor se aproxima das tendências
predominantes no Chile, México e Argentina, de políticas neoliberais. Não
obstante, suas medidas só alcançariam parcialmente a anulação de tarifas, a
abertura a novos segmentos de importação e a eliminação de alguns subsídios e
incentivos fiscais para a produção5 .
As expectativas lançadas pela política exterior de Collor mudaram completamente
como conseqüência da crise política interna que levaria à destituição do
presidente e à sua substituição pelo vice-presidente, Itamar Franco. Não
obstante, é necessário mostrar que aquelas já tinham sido debilitadas pelas
próprias contradições da política, como impulsionar o terceiromundismo e, ao
mesmo tempo, dar concessões no tratamento da dívida externa. Franco retomou
alguns temas da agenda Collor e levou adiante o cumprimento de compromissos
internacionais (não proliferação): o Brasil ratificou o Tratado de Tlatelolco e
se aprofundaram as medidas de confiança recíproca com a Argentina. Procurou-se
manter um baixo perfil com os Estados Unidos, afim de se evitar o
aprofundamento das diferenças. Junto a isto foi somada uma nova dimensão na
política exterior: a idéia do Brasil como país continental e global trader,
política que aproximou Brasília a outras "potências médias", como China, Índia
e, depois, Rússia.
Os âmbitos de ação primordiais seriam dois; cada um refletido na proposta de
novos objetivos políticos. O primeiro foram as Nações Unidas, cenário ao qual o
Brasil se aproximou ante seu novo (assumido) papel de "potência média",
propondo sua própria candidatura a membro permanente do Conselho de Segurança
da ONU; o segundo foi a América do Sul, onde teria duas linhas de ação: a
proposta de criação da ALCSA (Acordo de Livre Comércio da América do Sul) e o
relançamento da cooperação econômica e de integração em infra-estrutura com a
Venezuela, Colômbia, Uruguai e Bolívia.
A proposta de criação da ALCSA (realizada em Santiago do Chile em 1994 pelo
próprio Franco) ' na prática, uma extensão do Mercosul ' teria necessária e
imediatamente uma interpretação em relação aos Estados Unidos: foi uma proposta
alternativa à criação da ALCA. Porém, ela também refletiu a sensação de que as
relações com os Estados Unidos se aprofundavam negativamente, em torno de
temas-chave da agenda bilateral: propriedade intelectual, meio ambiente,
direitos humanos, papel dos militares na condução política da agenda de
segurança etc. Esse é o cenário de propostas, iniciativas e percepções que
encontra Cardoso em sua chegada ao governo, embora ele havia conduzido ' na
qualidade de chanceler ' a política exterior de Itamar Franco e, portanto, a
transição da mesma do "terceiromundismo" para o "pró-ocidentalismo" e, em
particular, para uma aproximação política com os Estados Unidos.
Cardoso aprofunda as relações com o Mercosul e, em particular, com a Argentina.
Mas em ambos os objetivos-cenários (Estados Unidos e Argentina), problemas
surgiriam. Em primeiro lugar, ficou cada vez mais difícil para o Brasil
desenvolver um calendário positivo com os Estados Unidos. Os temas ALCA-NAFTA-
ALCSA ' que sintetizam a presença dominante do paradigma de política exterior
de competição com os Estados Unidos e a continuidade do objetivo do
desenvolvimento industrial nacional e autônomo ' e os obstáculos norte-
americanos para as exportações brasileiras (como elemento conjuntural), se
constituem nos eixos centrais da discórdia. Em segundo lugar, as diferenças com
a Argentina se centraram nas políticas de segurança, nas interpretações sobre a
ordem mundial e nas respectivas relações com os Estados Unidos (Bernal-Meza,
1999; 2000; 2000a; 2000b).
Até o presente nota-se que a dimensão comercial tem sido a mais explorada nos
modos de inserção internacional do Brasil, o que faz com que o debate sobre
essa inserção se concentre no aspecto comercial, enquanto que o político se
mantém em baixa. Não obstante, o único modo de aspirar a um reconhecimento como
potência regional e como potência média mundial, a partir de sua condição de
país-continente, fará necessariamente com que o país tenha que assumir posições
a respeito de diversos tópicos da agenda mundial, o que levará a um aumento
significativo do perfil político da inserção internacional. Este é um ponto
particularmente relevante em relação ao destino do Mercosul, na medida que a
decisão sobre a política global deverá passar por uma definição de interesses
(e objetivos) de longo prazo sobre o bloco subregional, e por uma revisão das
relações com a Argentina.
2. Uma interpretação teórico-analítica da política exterior
No discurso e na formulação da política exterior do Brasil, historicamente,
nota-se a apelação a conceitos e categorias que contribuíram para fazer mais
explicativa e mais compreensiva a política exterior seguida pelo país e a
presença nesta dos temas de sua agenda, dos objetivos buscados e dos
instrumentos usados para alcançá-los.
Entre esses conceitos e categorias estão os de "universalidade",
"multilateralismo" e "parcerias estratégicas". Porém, os mesmos não
permaneceram estáveis nem imutáveis através do tempo; pelo contrário, eles
sofreram ajustes e reformulações. Deste modo, embora a política exterior
brasileira se caracterize pelo multilateralismo e pelo universalismo, este
último ' embora seletivo ' será a característica da inserção internacional
durante os anos 90.
A eleição de "parcerias estratégicas", contanto que com sócios preferenciais,
foi resultado da nova formulação e implementação da política exterior, cuja
síntese era o universalismo seletivo, no qual se percebe a necessidade de levar
adiante aproximações específicas (eleitas como opção) que permitem alcançar
objetivos comuns com potências regionais semelhantes, tirar proveito de
oportunidades e enfrentar desafios.
A partir de 1985 o Brasil constrói sua parceria estratégica com a Argentina '
considerada a principal e mais ampla, que serviria de plataforma para redefinir
as relações no plano regional ' dentro do seu universalismo seletivo. Permitiu
proporcionar instrumentalidade ao universalismo dos anos 80 e renová-lo à luz
dos novos cenários, ao mesmo tempo em que mantinha sua vocação mundial.
Esta vocação retornou com força no início do século XXI. A elevação da parceria
com a Rússia ao nível de "associação estratégica de longo prazo"6 incorpora os
elementos de alta política, militar-estratégicos e políticos, necessários para
a reformulação da posição do Brasil no sistema mundial.
Em relação aos países em desenvolvimento, as parcerias estratégicas, desde
meados dos anos 80, se concentraram na China, Índia e, depois, na Argentina e
África do Sul. Tanto no caso da China como no da Índia, esta tendência,
manifestada em meados da década de 80, tinha surgido como conseqüência da
identificação de posições comuns no seio da ONU. Porém, o conflito indo-
paquistanês reativado nos últimos anos da década de 90 e a política de
proliferação nuclear da Índia fizeram surgir uma diferença com o Brasil que
marcou a alienação mútua, na medida em que este país abandonava a opção
militar-estratégica do desenvolvimento nuclear.
A construção de parcerias durante os anos 90 se deu de acordo com a visão de
liberalismo econômico que prevaleceu na condução da política exterior. A
exceção a esta regra foi a política africana e a criação da Comunidade de
Países de Língua portuguêsa7 , que Saraiva definiu como "o espaço privilegiado
para a reafirmação da África como um dos objetivos insubstituíveis da política
exterior brasileira" (Saraiva,2001:46).
Porém, nestas construções estratégicas é possível que tenham surgido ou que
possam se apresentar no futuro algumas contradições, derivadas de objetivos
divergentes nas agendas dos atores. Por exemplo, o objetivo global de aliança
com a China pode ser incompatível com a meta regional de um continente de paz e
prosperidade (Guilhon Albuquerque, 2000). A avaliação supõe o desenvolvimento
eventual de uma agenda de segurança, militar-estratégica, por parte da China,
conforme a sua condição de "potência nuclear", que poderia discordar com
aquelas agendas impelidas pelo Brasil; possivelmente também com as de um
Mercosul político, estas últimas alinhadas com a agenda hoje predominante no
Brasil e na Argentina, de valores hegemônicos universalmente aceitos (Bernal-
Meza, 2000).
Deste modo, a reformulação ou atualização dos marcos conceituais da política
exterior brasileira, em termos de mudanças da visão orgânica do mundo e da
localização do Brasil, foi menos evidente que a vivida por outros países da
região, como a Argentina e o Chile. Do ponto de vista da existência de
articulações conceituais específicas, no eixo ou continuum "autonomia-
desenvolvimento", houve um maior continuum de idéias desenvolvimentistas e
autonomistas. Em termos de continuum "continuidade-ruptura" nas orientações da
política exterior, a brasileira manteve uma maior permanência na tradição de
sensibilidade aos conceitos e visões desenvolvimentistas e ao paradigma norte-
sul. Assim também, a vinculação entre reformas econômicas e mudanças
conceituais (idéias) na política exterior foi menor. A hipótese foi mais pela
preservação de espaços de autonomia, ou seja, a necessidade de negociar os
termos de ingresso nos regimes internacionais, entendendo que essa autonomia
maximizou, a longo prazo, as possibilidades de obter benefícios para o
desenvolvimento e o posicionamento internacional.
Como em outros países da região, a atração pelos interesses nacionais para
justificar a política (interna e externa) do poder foi uma constante no Brasil.
A política exterior foi, até o presente, desenhada a partir da atração a este
tradicional conceito realista do interesse nacional. Nas referências a diversos
autores que nós fazemos nestas páginas isso se torna evidente. Mas, se for
levado em conta que o interesse nacional é um conceito ambivalente,
tautológico, que representa tanto instrumentos como objetivos, é conveniente
lembrar que esta é, definitivamente, a expressão daquilo que os tomadores de
decisão, em nome do Estado, identificam. Em uma sociedade que ainda mantém
traços essencialmente pouco democráticos ' em termos sociais, de distribuição
da riqueza, de participação e acesso à educação e outros mecanismos de ascensão
social por parte dos grupos étnicos subordinados (como negros, mulatos e
índios) ' a apelação ao conceito realista traz o risco de os conteúdos da
política agirem em benefício daqueles setores que têm acesso ou que podem
participar dos processos de formulação e tomada de decisões, sendo grupos de
pressão ou partes das estruturas burocráticas do processo decisório. Essa
situação, explicável no caso brasileiro, é também ' com variações ' aplicável a
vários outros países da região. Dentro do Mercosul, os casos do Chile e da
Argentina ainda mantêm características de apelação ao termo para a
fundamentação de suas políticas.
Embora Cardoso não faça diferente, de acordo com Soares de Lima, seu governo é
o que mais diferencia (desde o fim do ciclo militar) o componente governamental
do componente estadista da política exterior. "Este último, representado pelo
conceito de interesse nacional, se defende na idéia não-democrática de que, por
causa do interesse nacional, a política exterior está acima da política e dos
partidos"8 .
3. A formulação das novas relações com a Argentina
As novas relações com a Argentina, que passaram do conflito à cooperação e que
se sintetizaram na construção de uma aliança estratégica, podem ser
consideradas como o melhor exemplo na revisão da estratégia internacional do
Brasil. Elas se inscreveram no desenvolvimento de parcerias estratégicas,
dentro do universalismo seletivo que caracterizaria a política exterior
brasileira em meados dos anos 80.
A partir de 1985 o Brasil constrói sua parceria estratégica com a Argentina,
considerada a principal e mais ampla, que serviria de plataforma para redefinir
as relações no plano regional. Como mostram alguns autores brasileiros, "do
ponto de vista do Brasil, a parceria estratégica com a Argentina nada tem a ver
com um entrincheiramento no Cone Sul. Na verdade, é o contrário: a parceria, ao
dissolver a tradicional rivalidade platina, funciona como plataforma para a
superação do modelo das duas bacias. Pela primeira vez na história, o Brasil
torna-se capaz de olhar para a América do Sul sem a distorções criadas pelos
óculos bifrontes do passado. Assim, abre-se um horizonte novo, que é o da
integração sul-americana" (Magnoli, César & Yang, 2000:48).
4. O Mercosul na política exterior do Brasil: projeto político e geoeconomia
Existem diversos elementos de análise ' entre eles a própria realidade ' que
apóiam a tese segundo a qual o processo de crescimento do Brasil gerou uma
distribuição desigual da riqueza. Os seguintes estrangulamentos internos (crise
do modelo Industrialização Substitutiva de Importações) e externos (impacto das
diversas crises internacionais, da subida do petróleo dos anos 70 às diversas
crises econômico-financeiras desta década e da seguinte), derivaram da idéia de
que era necessário desenvolver um novo projeto nacional, um de cujos pontos
centrais seria a inserção competitiva na economia internacional, ampliando o
comércio exterior e melhorando a competitividade da indústria, através do
fortalecimento tecnológico, do aumento da qualidade dos recursos humanos e da
infra-estrutura de qualidade.
A associação com a Argentina, primeiramente, e a iniciativa do Mercosul, foram
concebidas como instrumentos importantes, mas não bastantes para a redefinição
dessa nova inserção internacional. O desafio era passar de uma economia fechada
a uma economia competitiva internacionalmente. A conformação de uma ampla área
geoeconômica no Cone Sul serviria como plataforma de negociação frente aos
megablocos.
A preocupação do Brasil em iniciar a aproximação com seus vizinhos foi
motivada, primeiramente, por um interesse político; mas uma vez dada esta
convergência, ela também adquiriu uma motivação econômica, ainda que os
incentivos econômicos associados ao projeto Mercosul sempre fossem vistos como
limitados; segundo autor, principalmente em função da assimetria de tamanho
entre este país e seus sócios (Veiga, 2001). Não obstante, no contexto das
profundas mudanças externas e seus impactos internos, a integração subregional
' e particularmente a associação com a Argentina ' adquiriu uma importância
especial, já que a construção do projeto Mercosul foi percebida como um
instrumento que permitiria enfrentar a nova situação do sistema internacional,
com melhor capacidade política e econômica.
O Mercosul foi, deste modo, uma alternativa intermediária entre a continuidade
de sua política nacionalista e a economia liberal predominante no mercado
mundial. Dentro do bloco, o Brasil exercia pressões protecionistas que seriam
impossíveis de se levar adiante no contexto de um acordo como a ALCA. Isso
também faria do Mercosul uma instância negociadora frente ao eventual
estabelecimento de uma área hemisférica de livre comércio e, a nível político,
o bloco permitiria dotar o Brasil de uma base maior de apoio para sua
estratégia de alcançar reconhecimento como "potência média mundial", em virtude
da liderança que exerceria no interior do bloco e, através deste, no Cone Sul.
O Brasil intentava assim disputar com os Estados Unidos a hegemonia em âmbito
subregional sul-americano.
O enfoque brasileiro se construiu de uma visão de realpolitik. Um dos exemplos
é o fato de que "nas negociações com os sócios brasileiros no MERCOSUL, a
afirmação de promessas de desenvolvimento industrial nacional se expressa
sistematicamente como um processo de competição econômica com os sócios e quase
nunca como cooperação" (Veiga,2001).
Duas conclusões podem ser tiradas como conseqüência da presença dessa visão. A
primeira, que o Mercosul aparece para o Brasil como um cenário internacional
mais próximo, do ponto de vista dos interesses comuns; a segunda, que ante
eventuais problemas internos que afetaram sua coesão nacional, o país
priorizava a resolução dos mesmos sobre a vinculação com seus sócios. Como
veremos mais adiante, esta foi a lógica determinada. Portanto, a política
exterior que o Brasil teria com o Mercosul seria aquela que lhe permitiria
responder aos novos desafios internacionais. A vantagem do Brasil não implicava
vantagem para o resto dos sócios do Mercosul (pela disponibilidade de um enorme
mercado interno). O Itamaraty sempre teve isso claro e usou essa situação em
seus trabalhos, conseqüentemente.
Em suma, a política brasileira para o Mercosul teve três finalidades:
1) permitir abrir gradualmente sua economia à economia mundial, fortalecido
pela amplificação do mercado subregional, e logo regional (ALCSA), graças aos
ganhos de escala; 2) enfrentar os desafios econômicos e políticos das
estratégias hegemônicas norte-americanas na América Latina (ALCA); 3) alcançar
o reconhecimento mundial como potência média, graças à sua liderança política
no bloco e à dimensão de um mercado que o teria como o centro econômico-
industrial fundamental.
4.1. A política exterior do período Mercosul:
Uma síntese da agenda da política exterior brasileira do período Collor-Franco
mostraria a intensificação das medidas de confiança recíproca com a Argentina,
em matéria de segurança, como um importante progresso. Outros elementos que
caracterizariam a agenda foram: a busca de pouco relacionamento com os Estados
Unidos, ou seja, uma agenda não conflitiva; o fortalecimento do
multilateralismo; a incorporação da idéia de Brasil globaltrader e, ao mesmo
tempo, a intensificação do retorno à América Latina (Mercosul-ALCSA). FHC
mantém as linhas políticas de Itamar Franco. Intensifica a procura de
reconhecimento internacional do Brasil como "potência média", mas, ao mesmo
tempo que declara a aspiração à liderança política no âmbito sul-americano9 ,
continua explorando a dimensão comercial como a forma predominante de inserção
internacional10 .
O alicerce da política exterior com o Mercosul deveria ser a relação com a
Argentina, mas, logo após a destituição do presidente Collor, começaram a
evidenciar-se as diferenças nas políticas exteriores de ambos os países, que se
centraram em cinco grandes núcleos: 1 - as interpretações sobre a "ordem
mundial emergente ou em transição" e a sobre a "globalização"; 2 - o papel que
cada um destes países aspirava nesses contextos; 3 - os paradigmas dominantes
em política exterior; 4 - as relações com os Estados Unidos; 5 - as políticas
de segurança11 .
Um fator particularmente irritante para a Argentina foi o retorno da aspiração
brasileira a entrar como sócio permanente no Conselho de Segurança da ONU,
proposta que relançou Cardoso e que desatou uma verdadeira controvérsia com seu
vizinho. A Argentina rejeitou esta iniciativa recorrendo a fundamentos
realistas12 , e o governo brasileiro, com o propósito de evitar confrontações
estéreis ' posto que sem o consentimento argentino esta candidatura parecia
inviável ', arquivou o tema até o início da década seguinte.
Deste modo, na recente visita de Cardoso à Rússia (14 de janeiro de 2002) o
tema da candidatura ao Conselho de Segurança apareceu como um dos temas
políticos chave da agenda do encontro presidencial russo-brasileiro. Putin
apoiou a eventual admissão do Brasil como membro permanente do mesmo13 , o que
deveria gerar novas dificuldades com Buenos Aires no futuro.
4.2. As perspectivas do MERCOSUL e a política exterior:
Para o Brasil ' em tese ' o Mercosul tinha sido (pelo menos até a crise de
1999) um instrumento estratégico de sua política global, fundado nos objetivos
antes assinalados. O Mercosul era, efetivamente, um instrumento de realpolitik.
Porém, na realidade, haveria profundas contradições entre teoria e prática.
Enquanto a percepção sobre o Mercosul mudava ' diminuindo seu perfil de
importância estratégica, como conseqüência dos significativos retrocessos nas
ambições ou interesses mais globais, produto de uma situação ou percepção da
própria fraqueza econômica e financeira ', endurecia-se a posição frente à
Argentina e o objetivo em relação a esta pareceu ser mais a vontade de pôr seu
sócio de joelhos, por meio de pressões e um relativo grau de intransigência,
fazendo pagar, comercialmente, o desprezo à política exterior. Porém, poderia
essa ser considerada uma política de Estado racional?
4.3. O Mercosul em crise (1999)
Os problemas de política exterior entre os dois principais sócios se arrastaram
desde princípios dos anos pós Collor enquanto, paradoxalmente, a
interdependência comercial e econômica aumentava e, durante os primeiros anos
da década de 1990, cresciam as coincidências em torno do neoliberalismo como
modelo de política interna. Estes fatos não puderam ser considerados como o
eixo ou o núcleo endógeno responsável pela debilidade do Mercosul como
instrumento estratégico da inserção internacional destes dois países e dos
sócios restantes, nem tampouco a sucessão de medidas e contramedidas comerciais
unilaterais com que cada país respondeu ao outro. O problema central se situou
na indefinição do Brasil em levar adiante o que a sua própria decisão política
definiu em seu momento como "o mais importante projeto de política exterior"14
.
Autores diversos, entre eles este15 , têm tratado da razão pela qual o Mercosul
não passou de um projeto essencialmente comercial. Muito da responsabilidade
cabe ao Brasil, que até o fim do governo de De la Rua, reivindicou à Argentina
' ou a questionou ' dois tópicos que impediam progressos econômicos e
políticos: o fim da Conversibilidade, considerada como o mais importante fator
desestabilizador para a expansão da integração econômica; a relação preferível
de Buenos Aires por Washington.
Se a atual situação que vive a Argentina, depois da fase transitória de quatro
presidentes em poucas semanas, agora sem a Conversibilidade da moeda e com uma
relação provavelmente menos estreita com os Estados Unidos, não conduz a um
melhoramento das perspectivas políticas para relançar o Mercosul, é porque '
tal como informamos (Bernal-Meza, 1999a; 2000; 2001), o progresso do projeto
passa pelo sucesso dos programas nacionais de crescimento e desenvolvimento
(sabendo que a integração é justamente um instrumento com essa finalidade), por
um compromisso de avançar na institucionalidade e nos progressos nos acordos de
compatibilização e harmonização macroeconômica. Mas o Brasil está preparado e
disposto para este desafio?
Para dar essa resposta, o país precisa resolver a equação inconclusa: combinar
positivamente um projeto de alta motivação política e restritos incentivos
econômicos. O Mercosul continua sendo um dilema para a agenda brasileira16 .
5. A diplomacia econômica do Brasil
Ao longo da década de 90, o Brasil estava abandonando sua tradição de
negociações externas setoriais limitadas, cuja maior expressão foi no âmbito da
ALALC e ALADI, para passar ' dentro de um processo de liberalização comercial
preferencial ' para uma participação mais destacada em âmbito multilateral.
Historicamente o Brasil esteve presente nas negociações do GATT e da OMC
aspirando a participar das garantias de liberalização do comércio com o menor
custo possível. Durante a Rodada Uruguai, para o governo brasileiro, "as
vantagens de evitar concessões na esfera do novos temas pareciam superar em
muito os benefícios relacionados à liberalização nas questões tradicionais"
(Abreu, 2001).
Até o governo Sarney, a percepção era de um relativo temor frente à abertura e
à incorporação dos "novos temas" da agenda (Rodada) Uruguai. A presunção
(realista) era de que o país teria pouca capacidade competitiva industrial e
tecnológica, o que faria com que essa participação ocorresse de uma perspectiva
desfavorável. A posição "terceiromundista" se justificava porque,
compartilhando o discurso do mundo em desenvolvimento, se participava de um
esforço que buscava mudar os comportamentos prejudiciais dos países
desenvolvidos; o país não teria capacidades para ditar regras internacionais.
Os maiores temores se situavam justamente nas negociações do GATT.17
Não obstante, as mudanças acontecidas na economia e na política mundiais em
fins dos anos 80 e o aumento da importância dos temas econômicos na agenda
internacional fizeram aumentar a participação e o interesse do Brasil neste
organismo. Ao mesmo tempo, o compromisso e interesse com as atividades da
UNCTAD se intensificaram, culminando na eleição do embaixador Rúbens Ricúpero
como Secretário Geral.
Desde o início dos anos 90 a abertura e a flexibilidade frente às demandas das
grandes potências capitalistas ' em particular as provenientes dos Estados
Unidos ' começaram a identificar a mudança de posição frente ao
multilateralismo. O Brasil se dissocia da posição do grupo de países em
desenvolvimento, em particular quanto ao questionamento global da ordem
econômica internacional, ainda quando se criticam algumas políticas dos países
industrializados (protecionismo comercial e restrição à difusão de tecnologias
de ponta). "Demonstrações de boa vontade na relação com os Estados Unidos
estavam sendo feitas no início dos anos 90, quando a lei de patentes já
tramitava no Senado Federal desde 1993, havendo, ainda, dois projetos de lei
sobre direitos autorais, enquanto a nova lei brasileira de propriedade
industrial (n° 824/91) tinha sido aprovada pela Câmara dos Deputados em junho
do mesmo ano" (Miyamoto, 2000:128).
Segundo Guilhon Albuquerque, do ponto de vista comercial, a atitude do país se
tornou mais positiva e propositiva. O GATT e, por extensão, a OMC, deixaram de
ser avaliados como instrumentos de abertura forçada de mercados em benefício
dos países industrializados, passando a ser vistos como instrumentos de
convergência entre os interesses distintos de países exportadores e
importadores das mais diversas dimensões e capacidades econômicas (Guilhon
Albuquerque, 2000). O Brasil aceitou as limitações que a Rodada Uruguai impôs,
e participou ativamente da OMC em troca da garantia que um sistema judicial de
solução de controvérsias seria implementado. Os mecanismos de solução de
controvérsias e a agricultura foram as prioridades da diplomacia econômica
brasileira nas negociações da OMC18 . Não obstante, também parece possível que
a posição mais flexível do Brasil frente às exigências de maior liberalização
provenientes das economias mais desenvolvidas foi coincidente com a volta a
políticas neoliberais que caracterizariam a agenda governamental dos anos 90.
Desde o fim da década anterior o país havia embarcado na liberalização
unilateral (Abreu, 2001). Foi dali, desde Montreal, que o Brasil começou a
convergir com a tendência dominante, especialmente no que se referia aos "novos
temas" (TRIPS) e com a posição norte-americana na liberalização agrícola.
Fiel à sua opção predominante pela dimensão comercial da política exterior
(Bernal-Meza, 2000), o Brasil continuou promovendo iniciativas neste campo e
assumiu uma posição intermediária. Nesse sentido, o Itamaraty apresentou à OMC,
no fim de dezembro de 2001, uma proposta para aumentar o número de funcionários
de economias periféricas na organização19 . A proposta procurou aumentar a
participação do Brasil nos foros econômicos internacionais. Contudo, esse maior
ativismo e compromisso internacional do Brasil, expressado no seu
multilateralismo econômico, não trouxe ainda os resultados esperados e este
aspecto se constituiu em um dos pontos chave sobre os quais se sustentaria a
crítica à política exterior de Cardoso.
5.1. A recuperação da parceria estratégico com a Rússia:
No que parece ser a última visita oficial de Cardoso a Moscou, o encontro com
Putin, realizado ao terminar a primeira quinzena de janeiro de 2002, serviu
como relançamento da parceria estratégica com a Rússia, que havia sido
praticamente deixada de lado desde sua primeira formulação, em benefício de
relações mais positivas com os Estados Unidos. Na oportunidade, a agenda se
estabeleceu sobre questões econômico-comerciais, de segurança (que abordamos
separadamente) e de política internacional.
Na primeira das agendas, o acordo buscou duplicar o volume de intercâmbio
comercial bilateral, que foi de 1,567 bilhões de dólares no ano de 2001. Por
sua vez, a agenda de política internacional significou apoio mútuo para as
iniciativas, que para cada país parecem hoje relevantes no contexto da nova
ordem mundial e da economia global. Deste modo, enquanto o Brasil obteve apoio
para o relançamento de sua candidatura como membro permanente do Conselho de
Segurança da ONU, a Rússia recebeu o respaldo brasileiro para sua entrada na
OMC.
As coincidências em matéria de política internacional alcançaram os temas mais
conflitantes desta agenda: o terrorismo, a situação do Oriente Médio, a crise
argentina e a decisão do presidente Bush de abandonar o Tratado ABM de mísseis
antibalísticos. Cardoso apoiou a posição de Putin, que qualificou como "erro" a
decisão do governo norte-americano, havendo ainda visões coincidentes sobre os
temas restantes.
6. A política exterior do Brasil e sua aproximação da ALCA
Foi durante a administração do chanceler de Cardoso, Felipe Lampreia, que a
política exterior brasileira começou a mudar sua posição vis-à-vis a ALCA,
passando da rejeição ' ou, pelo menos a extensão do início ' das negociações,
para um ponto de convergência positivo com os Estados Unidos, ainda quando o
discurso da política tenha continuado impregnado das tradicionais posições
desenvolvimentistas e autônomas20 .
Quem mudaria o discurso, fazendo-o coincidente com a prática, seria Celso
Lafer. Os fundamentos da mudança obedeceram a um conjunto de fatores que
deterioraram as expectativas postas em outros cenários de negociação: o
fracasso das negociações entre a União Européia e a América Latina e o impasse
no tema agrícola; as dificuldades encontradas na OMC para limitar o
protecionismo dos países desenvolvidos, o fracasso da reunião de Seattle e o
estado de estagnação do Mercosul, onde a crise argentina tornara inviável o seu
"relançamento"(Guilhon Albuquerque, 2001). Assim, ante o risco de um eventual
isolamento da sua posição, e na perspectiva que outros países sul-americanos
declarassem seus interesses em chegar a um acordo bilateral com os Estados
Unidos e avançar na agenda de negociações, que incluía países membros e
associados do Mercosul (Argentina, Uruguai e Chile), o Brasil mudou sua
posição, iniciando um caminho cujo objetivo era agora transformar-se no
principal interlocutor dos Estados Unidos nas negociações com a América
Latina21 . Os dois convites para entrevistas que o atual presidente Bush fez ao
seu homólogo brasileiro mostram a relevância deste assunto. O Brasil concordou
em participar da ALCA e mudou o discurso de sua política exterior: A ALCA é uma
oportunidade22 .
Mas outros três elementos também contribuíram para a manutenção desta posição:
em primeiro lugar, a própria adscrição do governo brasileiro ao modelo
neoliberal (Bernal-Meza, 1999; 2000; Cervo, 1999, 2000; Guilhon Albuquerque,
2000; 2001). Em segundo lugar, a mudança que vinha se registrando no comércio
exterior. Com efeito, em 2001 os Estados Unidos passaram a ser o principal
destino das exportações brasileiras (em particular de manufaturados), com mais
que 30% do total, deixando o Mercosul em segundo lugar como destino das mesmas.
Por último, a extrema fragilidade da economia brasileira, logo após as crises
da Tailândia (1997) e da Rússia (1998), quando os riscos de uma corrida contra
o Real levaram Cardoso a fechar um acordo com os organismos multilaterais de
crédito e com o governo norte-americano, para apoiarem a moeda em troca de um
pacote de reformas fiscais, comerciais e financeiras que levariam, entre outros
aspectos, à flutuação do Real (janeiro de 1999). Neste sentido, a aproximação
com os Estados Unidos e as medidas econômicas implementadas, que incluíam a
privatização de setores estratégicos, contribuíram (supostamente, na ótica do
governo) para recuperar a confiança dos investidores internacionais.
Não obstante, o chanceler Celso Lafer, durante o ano de 2001, reafirmou em
diversas oportunidades a prioridade do Mercosul como opção estratégica
principal do Brasil. Mas, frente à dúvida "a ALCA vai conviver bem com o
Mercosul?", o embaixador Rúbens Ricúpero, em entrevista publicada pela RelNet,
afirmou em meados do mesmo ano que era difícil indicar a priori se a ALCA
inviabilizaria o Mercosul e que isso dependeria de como se negociaria o projeto
hemisférico.
Apesar da aproximação com os Estados Unidos, que impeliu a presidência de F.H.
Cardoso durante os anos 90, o Brasil manteve as estratégias regionalistas que
foram definidas no começo da década,23 em um contexto de pós-guerra fria, de
hegemonia ideológica do neoliberalismo e sob o paradigma do regionalismo
aberto, tal como o Mercosul. Mas não havia nenhuma contradição ' apesar de que
uma leitura a grosso modo mostrou que o Brasil resistiu durante grande parte da
década às iniciativas norte-americanas (ALCA) ' porque o padrão Mercosul era
funcional às políticas econômicas neoliberais que aplicaram os governos de
Menem, Collor, Cardoso e De la Rúa, graças a sua adscrição ao paradigma do
regionalismo aberto. O contrário é imaginar que a integração do Cone Sul tinha
evoluído para um modelo de regionalização antes que para a globalização
(Bernal-Meza, 1999b; 2000: 208).
Do ponto de vista do investimento direto estrangeiro, o Brasil se beneficiou
com um fluxo altamente significativo. Graças ao programa econômico de cunho
neoliberal, a partir da reformulação da política cambiária (janeiro de 1999),
da desvalorização da moeda e da abertura da economia, o país passou a ser um
dos principais receptores de IED, recebendo cerca de 30 bilhões de dólares
naquele ano, e uma cifra aproximada de 25 bilhões dessa moeda no ano de 2000.
7. Política exterior e segurança
Embora o governo Cardoso tenha aderido a "valores hegemônicos universalmente
aceitos", onde o cenário da segurança é identificado como "de multipolaridade
com integração cooperativa ou seletiva"24 , com a prevalência do livre mercado
e de regimes democráticos, a visão dominante no Brasil continua sendo a do
realismo (Bernal-Meza,1999), apesar da grande mudança em matéria de segurança,
que significou a adesão do país aos regimes internacionais de não-proliferação,
entre eles o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (1995), a Organização
para a Proibição de Armas Nucleares (1996), o Tratado de Proibição de Testes
Nucleares (1996) e o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (1998).
O abandono da opção militar-estratégica de desenvolvimento de armas de
destruição massiva (nucleares, químicas e biológicas) criou para o Brasil uma
contradição e uma dificuldade. A primeira é que ao impor limites à sua
capacidade de desenvolvimento de um componente militar-estratégico, sua
aspiração a constituir-se em uma grande potência regional (ou em uma "potência
média mundial") removeu do país um instrumento fundamental nos atributos
tradicionais de poder. A segunda é que desenvolver e manter uma capacidade
militar-estratégica convencional acreditável ao nível dessa aspiração de
"potência"25 levaria implícito um grande problema: como enfrentar o custo de
criação e manutenção dessa capacidade, sem sustento tecnológico próprio? Pauta-
se também a importância que adquire a indefinição em fazer da integração
subregional seu efetivo projeto estratégico.
O Brasil define atualmente sua inserção estratégica internacional baseado em
dois pilares fundamentais: 1) demarcação da região sul-americana como área de
influência (via integração regional), 2) multilateralismo, tanto na área de
segurança como na econômico-comercial, que se contrabalança na hegemonia
hemisférica norte-americana (Oliveira & Onuki,2000); dentro de uma política
exterior "universalista" que rejeita o alinhamento automático com os Estados
Unidos.
Essas duas frentes de ação, as regiões do Prata e Andina, apresentam situações
diferentes. A primeira, sobre a base da redefinição das relações com a
Argentina ' que já identificamos anteriormente ' onde se procura atuar via
Mercosul, é percebida como uma área de cooperação, apesar dos desencontros com
o seu principal sócio, enquanto que a segunda aparece como o foco de maior
incerteza do subcontinente, onde são notadas também as diferenças com a
política hemisférica de Washington (narcotráfico; Plano Colômbia).
Apesar dos progressos em matéria de segurança nacional entre a Argentina e o
Brasil, a partir do "Memorando de Entendimento" (1997), ainda não foi definido
o papel da integração econômica regional na configuração da inserção
estratégica global do Mercosul26 . A aproximação da Argentina com os Estados
Unidos, tanto em política exterior como em matéria de segurança, impôs
certamente empecilhos a essa possibilidade. De acordo com diversos autores,27
a percepção norte-americana relativa ao Brasil é que o país mantém uma posição
reservada a respeito do estabelecimento de mecanismos institucionalizados de
segurança a nível subregional, devido justamente a essa hegemonia do pensamento
realista, que o leva a se confrontar com os Estados Unidos.
Em 1996, pela primeira vez na história do país, se estabeleceu uma proposta
nacional única de defesa e segurança comuns para todas as forças armadas,
criando o Ministério de Defesa. O documento "Política de Defesa Nacional"
introduziu a idéia de defesa sustentável na qual continuavam tendo relevância
os conceitos tradicionais segundo os quais "não se pode abrir mão de elementos
como soberania, autodeterminação e identidade nacional. O quadro internacional,
visto como cheio de incertezas, torna necessário pensar a defesa como fator
importante para que os governos nacionais possam garantir a sobrevivência dos
Estados como unidades independentes"28 .
Esta visão realista da segurança se confirma ao se avaliar a despesa militar,
que passou de 1,8% do PIB em 1985 a 3,2% em 1998, sendo o mais importante na
região29 . Mas talvez o elemento político-militar de maior importância é
determinado pelo fortalecimento da parceria estratégica com a Rússia, declarada
por Putin e Cardoso como "associação estratégica a longo prazo"30 , para a qual
Moscou apoiou a admissão eventual do Brasil como membro permanente do Conselho
de Segurança da ONU e ofereceu ao país latino americano a produção conjunta, no
Brasil, das séries mais modernas de aviões de combate Sujoi. Trata-se do caça
Su-35, um dos aviões de combate mais avançados no mundo.
Esta oferta teve um caráter de extraordinária importância pois, se se
concretizasse, permitiria ao Brasil resolver parte do dilema do sustento
tecnológico para desenvolver uma capacidade militar-estratégica convencional
acreditável, ao nível de uma potência que aspira se estabelecer de forma
permanente no Conselho de Segurança. Mas, por outro lado, incorpora um elemento
que altera ' agora de modo radical ' o equilíbrio de forças com o vizinho
argentino, fator que é acrescentado à incorporação de porta-aviões, o
desenvolvimento de uma nova força de submarinos convencionais e a continuidade
do programa de vetores.
8. Poder e política exterior no contexto histórico
Tem existido uma constante na política exterior brasileira desde os anos 70, de
assumir um perfil ou papel (aspiração, também reconhecimento) de "potência
média" ou "potência regional". Associado a este se encontra o de "país
intermediário"(Soares de Lima,1986; Sennes,1999). Segundo os autores, ambas as
condições têm também atraído o país a uma ativa presença nas instâncias
internacionais, questão que ao nosso ver deve ser mediatizada.
Segundo essas categorias de potência, o Brasil dispõe de uma certa margem para
definir e procurar suas próprias estratégias internacionais. Os pressupostos
realistas implícitos nestas categorias de países os fazem identificar o sistema
internacional como hierárquico e oligopolista; eles concebem os regimes e
instituições internacionais, principalmente, como reflexo da distribuição
estrutural do poder (Ikenberry,1998), ajustando seu comportamento dentro deles
através de um cálculo custo-benefício (Soares de Lima,1986;Vigevani,1995).
Então, sua participação nos mesmos é fruto de decisões racionais e não
idealistas (Sennes,1999).
Como país intermediário, o Brasil, durante os anos 80, manteve seu perfil de
política internacional segundo esses padrões. Sua participação nas instâncias
multilaterais foi uma das características da política exterior. Esse tipo de
comportamento aumenta conforme as expectativas que um país tem de desempenhar
um papel de realce no contexto mundial (Miyamoto, 2000), na ocasião em que uma
melhor exposição internacional e a assunção de compromissos multilaterais
favorece a imagem do país como parceiro de negócios internacionais (comércio,
investimentos, transferências de tecnologia, etc.).
Porém, as qualidades intrínsecas relacionadas a esses países intermediários
sofreriam mudanças drásticas, como conseqüência das profundas transformações
ocorridas na economia e na política mundiais. Este fato, no caso do Brasil,
levou a mudanças na política exterior: forte adesão aos principais regimes
internacionais (o que não significa "ativismo"); uma clara regionalização das
principais iniciativas do país e a adoção de estratégias baseadas no
reconhecimento da existência de um conflito Norte-Sul. O ponto de ruptura, a
partir do qual o Brasil começaria progressivamente a ceder às pressões (e
propostas internacionais) dos Estados Unidos, foi a crise da dívida externa,
logo que Sarney, sem êxito, tentou criar novas condições de negociação a partir
de uma moratória.
Como aconteceu com o GATT, houve uma mudança de estratégia frente ao Conselho
de Segurança da ONU, a partir de 1988, que se consolidou em seguida: o aumento
substancial de seu involucramento nas discussões, decisões e operações do
Conselho. O Brasil aumentava seu compromisso com o Conselho de Segurança na
medida que este ganhava importância depois do fim da guerra fria e, como país,
reduzia suas manifestações de autonomia (área nuclear, venda de armas, presença
no Oriente Médio e na África). Este compromisso maior era coerente com suas
aspirações internacionais de país intermediário.
Segundo Guilhon Albuquerque, quanto à dimensão política, as relações
internacionais do Brasil poderiam ser definidas como um tipo de participação
contraditória: membro pleno de um sistema de segurança coletiva e, por outro
lado, ator crítico do sistema de poder nas Nações Unidas; de uma postura rígida
de não-intervencionismo, adotando uma política de avaliação, caso por caso, da
oportunidade de invocar o direito à auto-determinação ou do dever de ingerência
(Guilhon Albuquerque, 2000).
Existem diferentes interpretações para explicar este processo de mudança na
política exterior. Em termos bilaterais com os Estados Unidos, muitas das
barreiras impostas por este às exportações brasileiras foram sanções da
potência hegemônica às políticas brasileiras consideradas ou classificadas como
free rider (informática, siderúrgica, produtos farmacêuticos, subsídios). O
Brasil fez concessões cada vez que os Estados Unidos aplicaram uma sanção,
terminando com a adoção de uma posição de ampla flexibilidade.
Em conclusão, as mudanças ocorridas com o fim da guerra fria aumentaram o custo
de se manter fora e ter posições obstrucionistas. A partir de 1996 "o Brasil
abandona, discreta e gradativamente, as tradicionais veleidades de combate ao
atual estado de coisas nas relações internacionais e passa a remar a favor da
correnteza. Adeus, conflito Norte-Sul. Nós também queremos ser Primeiro Mundo.
A opção da diplomacia de FHC é coerente com sua orientação em política interna.
Arquivada a idéia de uma promessa autônoma de desenvolvimento nacional, resta
ao país inserir-se, passivamente, na economia globalizada. Aceita-se a posição
subordinada como um fato da vida"31 . Há uma convergência entre política
externa e política interna, um de cujos exemplos é a idéia de que a política
exterior representa o programa de governo, algo que é admitido pelos próprios
diplomatas32 . Como no caso argentino, a política exterior brasileira expressa
as orientações programáticas do governo.33
Ambas as situações, o Brasil como um país mais ativo ' "mais visível e atuante
no cenário internacional" ' e a tendência de liberalização comercial que deixou
"vencedores e perdedores", foram reconhecidas pelo ex-chanceler Lampreia como
características que identificaram a continuidade e renovação da política
exterior de Fernando Henrique Cardoso (Lampreia; 1998). Vários pontos nos quais
se sustentava a estratégia brasileira já não existiriam mais, pelos seguintes
fatores: 1) mudança no perfil da pauta de exportações e nos interesses
internacionais da industrialização brasileira; 2) distanciando dos interesses
brasileiros, em vários aspectos, em relação aos tradicionais interesses dos
outros países em desenvolvimento; 3) alteração da posição dos Estados Unidos, a
partir da rodada de Tóquio, de apoio à multilateralidade e ao uso das cláusulas
de favores, passando a exigir reciprocidade, sob a base do princípio de
"graduação"; 4) adoção de uma prática comercial voltada para o regionalismo,
por parte dos Estados Unidos. Por último, a virtual imobilidade externa do
Brasil, dada sua grave crise do endividamento (Sennes;1999).
Não obstante, esse novo perfil do "ativismo" não estava isento de contradições:
há uma declaração de vontade de identificar a importância da ONU como fórum de
governança internacional, mas a opção pelo multilateralismo demonstra uma
inclinação clara e aberta aos fóruns econômicos. "Começa a se consolidar a
percepção de que às Nações Unidas caberia prioritariamente o tratamento de
questões humanitárias e de segurança. Essa tendência vai de encontro aos
princípios que, em 1992, levaram o Brasil a propor uma Agenda para o
Desenvolvimento, a fim de que a organização não se dedicasse apenas aos temas
da paz, dando então uma resposta imediata às tentativas de enfraquecimento
desse fórum de questões prioritárias para os países em desenvolvimento"
(Pinheiro, 1999). Para a autora, "não apenas vem se tornando prioritária a
intenção do Brasil de reforçar sua atuação na OMC, como também a de fazer parte
do G-8". A realidade é que durante os anos 90, o Brasil se dissociou do
terceiromundismo clássico da agenda do mundo em desenvolvimento dos anos 70,
que caracterizou o discurso da política exterior da época.
A hipótese de Cervo para explicar esta mudança é que a ausência de pensamento
teórico crítico ' ou de pensamento sem teoria ' nas relações internacionais do
Brasil se associou à adoção acrítica do "paradigma da globalização" proveniente
do norte (Cervo; 1994; 1999). A influência do primeiro fator impediu que a
política exterior brasileira se dotasse de um instrumento teórico que
permitisse ao país uma compreensão global do que deveria ser política em um
novo contexto mundial. O segundo fator foi uma ideologia que permitiu
substituir as políticas nacional-desenvolvimentistas do período anterior e
proceder a uma "desnacionalização" ou uma "contra-revolução do
desenvolvimento", nas palavras de Cervo. O condutor deste segundo foi Fernando
Henrique Cardoso, primeiramente como chanceler de Itamar Franco, e depois como
presidente, através da política de desnacionalização. Cervo conclui que durante
os anos 90 foi imposta uma filosofia política neoliberal, adotada de forma
quase dogmática pelos governos de Collor e Cardoso, baseada em um diagnóstico
de distorções ocorridas no modelo anterior de desenvolvimento nacional, como
conseqüência das mudanças na ordem internacional, aspecto no qual coincidiriam
Menem e De La Rúa (Bernal-Meza, 2000; 2001).
Diversos autores brasileiros (entre eles Cervo e Costa Vaz) coincidem em que, a
partir dos anos 90, houve predominância do liberalismo econômico na condução da
política exterior, e que a construção de parcerias foi levada a cabo de acordo
com essa visão. Segundo Lafer, havia um sentimento predominantemente econômico
a ser impresso nas parcerias internacionais (Lafer, 1992: 117). O próprio
Tratado de Assunção foi emoldurado no esforço de abertura, já que o mesmo foi
apresentado essencialmente como uma continuidade da liberalização comercial da
economia brasileira (Nogueira Baptista, 1993).
Nessa perspectiva, as características da integração com a Argentina ' e com o
Mercosul ' passaram a se vincular aos novos objetivos; A parceria estratégica
com a União Européia se vincularia com o objetivo de estreitar relações bloco a
bloco entre esta e o Mercosul. Mas este objetivo salientava o papel de
liderança do Brasil nessa parceria, dando a ela um caráter instrumental para um
tema permanente da Agenda: o reconhecimento de sua posição de potência
regional. Uma situação semelhante ocorreria, em termos de liderança, com a
definição da parceria com a África do Sul, dedicada a uma projeção a nível
estratégico no Atlântico Sul, já que o Brasil, além do vínculo bilateral,
buscaria desempenhar um papel essencial na construção do relacionamento entre o
Mercosul e a África meridional - com os países da SADECC e com o Sul da África.
Iniciativas como as ratificações do Acordo Quatripartite de Salvaguardas
Nucleares e do Tratado de Tlatelolco para a proscrição de armas nucleares na
América Latina e a adesão ao Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR)
contribuíram de maneira decisiva para a redução das tensões com os Estados
Unidos. É mais que possível afirmar que estas medidas foram emolduradas no
objetivo de recompor as relações com os Estados Unidos. A Argentina agiria de
um modo semelhante. Porém, a elevação das relações bilaterais russo-brasileiras
ao nível de "associação estratégica de longo prazo", com os elementos de
caráter militar-estratégicos e políticos, analisados anteriormente ' e apesar
do objetivo de se aprofundar nas relações econômicas e comerciais bilaterais '
criará para o Brasil novas frentes de conflitos potenciais, tanto com os
Estados Unidos como com a Argentina, tornando importante um forte retorno da
vinculação entre poder e política exterior na percepção brasileira do sistema
internacional, que historicamente caracterizaram como "hierárquico e
oligopolista", com regimes que são o reflexo de uma distribuição estrutural do
poder, dentro de cuja pirâmide o país aspira agora, com determinação, escalar.
Em termos de negociações comerciais internacionais ' parte da agenda do poder '
a ratificação do texto final da Rodada Uruguai do GATT (1994) mostrou uma maior
flexibilidade do governo de Franco vis-à-vis o sistema internacional de
comércio, que pouco ofereceu ao Brasil, em troca de sua abertura no setor de
serviços. Porém, esta política constituiu uma estratégia de inserção e
participação na regulamentação do comércio internacional. A integração regional
e o Mercosul, além de serem objetivos econômico-comerciais, tornaram-se
objetivos considerados sob a ótica estratégico-política. No contexto de um país
com aspirações de potência média, esta mudança poderia ser vista como uma
resposta defensiva da região (e do país que a impeliu) ao processo de
globalização e de normatização internacional.
Entre os policy makers que contribuíram para a construção da base para a "nova
política exterior" implementada por Cardoso, merecem ser citados, por suas
coincidências (além deste, que foi o iniciador do caminho, quando foi chanceler
de Franco): Celso Lafer, Rúbens Ricúpero e Felipe Lampreia; cada um dos quais,
em seu momento, justificou a nova política em artigos de ampla difusão
acadêmica: Lafer (1996), Ricúpero (1996) e Lampreia (1996; 1997; 1998).
9. Agenda, objetivos e estilo na política exterior
9.1. A evolução da agenda e a definição de objetivos:
O desenvolvimento econômico:
É o tema que mais tem tido permanência no discurso da política exterior
brasileira e sua continuidade é notada na definição das diversas agendas
governamentais. Continua sendo o objetivo fundamental, entendido este como
"interesse nacional", através da ampliação do acesso a mercados, tecnologias,
investimentos, da cooperação internacional e da melhora na participação do país
nos processos de decisão para mudar as regras de funcionamento do sistema
internacional, dos seus mecanismos decisórios e dos principais atores. A
construção de parcerias estratégicas tem sido fundamental para esse "interesse
nacional", já que é um instrumento para o estabelecimento e formulação de
Objetivos.
A agenda e os objetivos em relação ao Conselho de Segurança e ao GATT:
Em ambos os cenários há uma mudança de estratégia a partir de 1988, e que irá
se consolidar logo depois: aumentando substancialmente sua participação nas
discussões, decisões e operações do Conselho. Esta mudança está vinculada às
novas estratégias na busca de reconhecimento da condição de "potência média" ou
potência regional".
A agenda global passa do "universalismo e multilateralismo" a um
"multilateralismo e universalismo seletivo", através da construção de parcerias
estratégicas. Durante os anos 90, a adoção da agenda de "valores hegemônicos
universalmente aceitos" culminou em uma "reformulação" das opções disponíveis
(não proliferação nuclear, abertura à importação de bens e serviços,
privatizações, meio ambiente, direitos humanos) e determinou, também, uma
participação ativa nos organismos e regimes internacionais. Em relação aos
últimos, construir uma agenda positiva e limitar os conflitos (exemplo, com
EUA: limitar o contencioso comercial).
9.2. A evolução dos "objetivos da política exterior" na agenda governamental:
Sob o governo Collor de Mello, a política exterior teve um duplo propósito: 1)
instrumentalizar em âmbito externo o processo de reforma e de abertura
econômica, 2) restabelecer a credibilidade externa do país ante seus principais
interlocutores no mundo industrializado, rompendo a identificação do país com o
mundo subdesenvolvido e imprimindo um perfil renovado e convergente com as
teses e postulados de modernidade dos países desenvolvidos. Segundo Azambuja, a
política exterior de Collor estava voltada ao aumento da competitividade
internacional do país, por meio da abertura econômica e da busca de condições
favoráveis de acesso aos mercados, créditos e tecnologias (Azambuja; 1991).
Lafer concorda com esta visão, mostrando que havia um sentido predominantemente
econômico a ser impresso nas parcerias internacionais (Lafer; 1992:117). Deste
modo, dois objetivos aparecem com evidência: atualizar a agenda internacional
para ajustá-la às mudanças ocorridas no cenário internacional e construir uma
agenda positiva com os Estados Unidos.
Sob o governo Itamar Franco esses objetivos foram condicionados pelos problemas
de credibilidade interna e externa (destituição de Collor). Mas um objetivo
latente nos anos 70 e 80, retornou com força, através da aspiração à liderança:
a busca de reconhecimento internacional como "potência média". Para isso foi
construída outra parceria estratégica, como meio para a expansão de
oportunidades para seus empresários, e por sua dimensão política, através da
criação de uma "Zona de Cooperação do Atlântico Sul": a reaproximação com a
África do Sul.
Objetivos que identificam a agenda de Itamar Franco foram: Reafirmação da não
proliferação nuclear; aprofundamento da integração regional e lançamento do
projeto ALCSA; aproximação a possíveis parceiros (China, Rússia, Índia, África
do Sul); ativismo nos foros multilaterais, tentando coordenar a agenda do
desenvolvimento com a agenda da paz; e melhorar a relação com os Estados
Unidos.
Mas o maior esforço estaria no âmbito dos foros multilaterais: criação da OMC;
retorno do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU e à América Latina, com a
construção do projeto ALCSA (Acordo Sul-Americano de Livre Comércio).
Havia continuidade nos temas da agenda, como a busca de parcerias com outras
potências médias; continuidade dos preceitos de "universalismo", amenizar as
relações com os E.U.A., tentando distender áreas sensíveis como as já referidas
e a propriedade intelectual e as tecnologias sensíveis; mas sua hierarquização
e definição foram modificadas por Cardoso, como presidente.
A política exterior continua voltada à realização de objetivos vinculados ao
desenvolvimento. O objetivo principal é conseguir do intercâmbio externo
elementos úteis à realização dessa meta prioritária, ainda quando este agora se
vincule à agenda de valores hegemônicos universalmente aceitos": direitos
humanos, políticas públicas (estabilidade econômica, condições favoráveis aos
investimentos estrangeiros, aprofundamento do processo de privatizações), meio
ambiente e fortalecimento de parcerias.
Porém, não seria fácil reconstruir uma relação positiva com os Estados Unidos e
levar o país a uma posição de relevância na visão norte-americana da política
mundial. Para distender as relações aceitando negociações sobre propriedade
intelectual e tecnologias sensíveis, o Brasil arquivou o projeto de criação de
uma Área Sul-Americana de Livre Comércio (ALCSA), que era vista como uma
competição com os Estados Unidos e o seu projeto da ALCA.
O Brasil se aproxima dos Estados Unidos; mas as bases da aproximação seriam
muito distintas. Deste modo, enquanto para os críticos esta foi a conseqüência
da adoção acrítica da "globalização", para os analistas como Soares de Lima "as
estreitas relações com os Estados Unidos deixam de ser um meio para aumentar o
poder de negociação do Brasil, e se tornam uma conseqüência da sua própria
amplificação do poder de negociação"34 .
As linhas prioritárias de sua política exterior foram as seguintes:
a - Melhoria nas relações com os Estados Unidos. Este objetivo teve uma atenção
quase exclusiva.
b - Avançar na integração hemisférica a partir da consolidação do Mercosul, mas
arquivando a criação da ALCSA, para não enfrentar os Estados Unidos.
c - Estabelecer uma estratégia de diversificação das parcerias nas relações
internacionais do Brasil.
d - Fortalecer a posição multilateralista do Brasil nas esferas econômica e
política da ordem internacional. O Brasil ambiciona fortalecer sua presença na
OMC e na Rodada do Milênio: seus objetivos mais específicos ali são evitar que
as posições adotadas em relação aos temas de trabalho, meio ambiente e
desenvolvimento, afetem o país; além disso, evitar um retrocesso nas tendências
à liberalização do comércio internacional e obter benefícios na questão
agrícola.
e - Obter um peso corresponde ao seu poder e importância no processo decisório
internacional.
f - Estabelecer relações mais estreitas com a União Européia.
Na questão interna, mas vinculada à gestão internacional, melhoria da
diplomacia comercial.
9.3. Estilo de formulação e aplicação:
Elementos importantes para identificar o estilo de formulação e aplicação da
política exterior surgem das características com as quais se identificam os
países intermediários, dos quais o Brasil faz parte. Ao basear-se em
pressupostos realistas, estes países ajustam suas ações aos regimes e
instituições internacionais através de um cálculo custo-benefício, pelo qual
sua participação nos mesmos é fruto de decisões racionais e não idealistas.
Segundo alguns autores, as elites governantes e os principais agentes
econômicos optaram por uma visão "pragmática" da política exterior, fazendo com
que, deste modo, o estilo da política exterior seja pragmático, com um marcado
"presidencialismo" (ou diplomacia presidencial), durante o período de Cardoso.
Nesse sentido, o uso da "diplomacia presidencial" (ou de "cúpulas") ' uma
prática que na política internacional remonta ao Congresso de Viena e que
aproximou os líderes da América Latina ao exercício político dos estadistas
mundiais ' demonstraria ser um instrumento eficaz. Historicamente o Brasil usou
a "diplomacia presidêncial" somente nas suas relações bilaterais com seus
principais sócios (Argentina, Paraguai, Uruguai e Estados Unidos), fazendo dela
um paradigma de diplomacia35 . Nas relações com a Argentina, por exemplo,
existe uma tradição que remonta a 1900, e que teve importantes expoentes
(Vargas, Kubitschek, Quadros).
Não obstante, a "diplomacia presidencial" que caracterizou, com variações, as
presidências brasileiras desde o retorno à democracia, abarcou diferentes
eixos36 : instância principal do processo decisório da política exterior e, ao
mesmo tempo porta-voz do Estado, muito presente na gestão de Cardoso;
diplomacia de iniciativas (mais propositiva), expressa nas presidências de
Sarney e Franco; diplomacia de encontros e deslocamentos, onde a agenda de
visitas foi a linha mais atraente, que Cardoso também expressou. A construção
do Mercosul foi justamente resultado da "diplomacia presidencial".
Em relação ao continuum passivo/ativo, a política exterior de Collor deve ser
identificada como passiva; com Franco esta é mais ativa e reativa, retornando
Cardoso a uma política mais pragmática e de menor perfil político.
Conclusões
Segundo Cervo (1994), a política exterior apresentou, historicamente, três
objetivos que estavam estreitamente relacionados entre si e com uma busca
gradual de espaços de ação internacional (maior autonomia): 1) consolidação e
expansão do parque industrial, entre 1967 e 1973; 2) desenvolvimento dos
setores estratégicos da economia, entre 1974 e 1979; e 3) conquista de
tecnologias de ponta e exportação de serviços de engenharia nos anos 80.
A prioridade sempre foi o desenvolvimento econômico. Os modelos econômicos
foram para isso adotados pelos sucessivos governos (substituição de
importações, 1950-1985; modelo neoliberal de economia aberta, a partir dos anos
90). Mas o contexto sistêmico mudou e com ele as percepções sobre como mover-se
neles.
Collor tem uma visão unipolar do mundo, com os Estados Unidos exercendo o papel
de potência hegemônica e associando força militar e força econômica. Itamar
Franco percebeu que o mundo caminhava para uma "dissociação hegemônica"
(Guilhon Albuquerque,1999). Procurou uma aproximação que não excluía a busca de
novos parceiros. Esta mesma linha é seguida por Cardoso, ainda quando ele
aprofunda a política neoliberal, a qual concebe como o caminho necessário para
melhorar a posição internacional do Brasil.
A política implementada por Collor, a partir de 1990 ' identificando a agenda e
os objetivos da política exterior ' teve um pressuposto que a diferenciou das
anteriores, e marcaria o rumo das seguintes, que foi a modernização. Porém, ela
foi concebida sob a recuperação do liberalismo brasileiro da época de Castello
Branco, aggiornado às tendências do neoliberalismo que foram impulsionadas
desde Washington. Sua agenda exterior estava marcada por este perfil, incluindo
como um dos objetivos a atualização da agenda internacional do país, a
construção de uma agenda prioritária e não conflitiva com os Estados Unidos e a
redução do perfil "terceiromundista", tendo em vista as mudanças produzidas no
cenário político internacional que, supostamente, levaram a uma atualização das
posições mais comprometidas sustentadas pelo Brasil até então, e que eram
visualizadas como "polêmicas do poder mundial" (Bernal-Meza; 1999b). Neste
sentido, o objetivo era elaborar um discurso cuja interpretação se assentava na
idéia de que o fim da guerra fria representava uma fonte de oportunidades e não
de aprofundamento do clivage Norte-Sul (Hirst & Pinheiro; 1995). Como
mostraram estas autoras, cada um dos objetivos teve um tema central que se
traduziu em uma "agenda específica".
Franco incorporou alguns "novos temas" à agenda, a qual se centrou,
essencialmente, no aprofundamento das diretrizes mostradas por Collor. Deste
modo, algumas iniciativas indicariam o aparecimento de "novos" objetivos:
construção do projeto ALCSA, busca de um assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU e construção de novas parcerias estratégicas. Mas a sua
política exterior se caracterizou pelo ativismo, marcando aqui uma ruptura com
o estilo anterior. Será sob sua gestão que as divergências políticas com a
Argentina começam a surgir com mais evidência, especialmente com respeito às
relações com os Estados Unidos e às políticas de segurança.
O período Franco, marcado pelas iniciativas individuais (no caso do projeto
ALCSA), foi seguido por uma etapa de dinamismo presidencial, dirigido por
Cardoso, mas faltaram iniciativas políticas de grande projeção, desperdiçando
momentos de significativa convocação, como a Cúpula de Presidentes (Brasília,
agosto de 2000). Alguns analistas37 têm atribuído a essa falta de iniciativa
os desligamentos que ocorreram no âmbito do Mercosul (4+2), cujo exemplo mais
evidente foi a decisão do Chile de negociar um acordo de comércio com os
Estados Unidos, mas que também se notou em tendências semelhantes no caso do
Uruguai e, de certa forma, na política de double standing da Argentina38 .
Opiniões mais críticas mostram que a diplomacia presidencial de Cardoso buscou
resolver retoricamente o vazio criado pela crise do projeto nacional na
política exterior (García, 2001). Segundo Saraiva, os objetivos internacionais
definidos previamente no governo de Cardoso (governo Collor), que optaram por
uma inserção internacional limitada para o Brasil, com a qual se pretendeu
substituir o findo modelo nacional-desenvolvista, não foram modificados por
FHC. Foi tirado um modelo de inserção internacional sem que fosse substituído
por outro (Saraiva, 1998).
Por último, a gestão Cardoso aprofundou a agenda das gestões anteriores, com
especial atenção à gestão multilateral, com um marcado ativismo presidencial. O
ativismo multilateral se concentrou nos foros econômicos e políticos. Nos
primeiros, buscando um fortalecimento da posição do país para facilitar suas
exportações, e nos segundos, localizar um perfil de liderança. Porém, é difícil
imaginar um ativismo que esteja de acordo com os "valores hegemônicos
universalmente aceitos".
Paradoxalmente, depois da perda de importância da política africana,
particularmente distintiva entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80 (anos
de ativa cooperação mútua e empreendimentos comuns) e o aparecimento da
Comunidade dos Países de Língua Portuguêsa em 1996, com que o Brasil buscou
retomar seu papel na inserção internacional do continente negro, coincidiu com
este grande ciclo de retração das relações comerciais, diplomáticas e
estratégicas com os países africanos. As relações do Brasil com a África nos
anos 90 foram também um ajuste a um contexto atlântico menos relevante para a
reinserção internacional do Brasil (Saraiva, 2001).
Em síntese, a política exterior brasileira foi se adaptando aos novos
condicionamentos e cedendo a determinadas pressões que implicaram mudanças em
alguns elementos de sua tradição, como é o caso da adscrição ao princípio de
"não intervenção" ou a incorporação de temas da agenda internacional que haviam
sido rejeitados no passado, como os direitos humanos, meio ambiente, a mudança
de posição relativa à abertura de novas rodadas de negociação comercial no GATT
e a estratégia de reforçar o apoio ao Conselho de Segurança da ONU, abandonando
sua tradicional política passiva e opositora, posição que tinha se baseado em
uma interpretação crítica a respeito dos processos decisórios da organização.
Os objetivos se diversificaram em relação aos três pólos da economia mundial
(Estados Unidos, União Européia e Japão), buscando pôr relevância ao peso do
Brasil nos assuntos regionais e internacionais, fazendo desta uma base para o
reconhecimento político e institucional (ONU/OMC/UNCTAD) do Brasil como
"potência média". Porém, como mostra Igor Fuser, "arquivada a idéia de um
projeto autônomo de desenvolvimento nacional, restava ao país inserir-se
passivamente na economia globalizada" (Fuser;1996).
Apesar da maior diversificação ' mas sem iniciativas novas ' o estilo da
política foi marcadamente de caráter passivo, apesar do presidencialismo, na
medida que não houve iniciativas, como conseqüência fundamentalmente dos
problemas econômicos internos, estruturais e conjunturais, em uma situação de
crise econômica, financeira e de infra-estrutura (eletricidade) que se
prolongou até o início do novo milênio. A redução das aspirações globais, a
persistência de dificuldades com os Estados Unidos e o fracasso de diversas
iniciativas econômicas e políticas acentuaram a preocupação do Brasil com um
cenário geográfico e político imediato, surgindo a partir daqui uma fase de
maiores desencontros políticos e comerciais com a Argentina, que marcariam o
fim da década com um momento de incertezas em relação à continuidade do
Mercosul e sobre o sentido profundo da suposta aliança estratégica com seu
vizinho.
Na relação bilateral argentino-brasileira, foi evidente que os dois países
encontraram pontos de divergência cada vez maiores, pois ambos, de perspectivas
e estratégias diferentes, buscaram transformar-se no interlocutor natural e
privilegiado dos Estados Unidos na América do Sul (a Argentina a partir de sua
posição de aliado, o Brasil, de um reconhecimento de sua condição de "potência
média"). As coincidências entre Collor e Menem se deram em termos do
alinhamento com os Estados Unidos, da percepção sobre as alternativas externas
às dificuldades econômicas, da adoção de modelos econômicos neoliberais e das
condições estruturais, que nos âmbitos econômico e político, derivaram para
ambos os países a partir de suas respectivas localizações periféricas,
subordinadas às estruturas da divisão internacional do trabalho e de poder
mundiais. Um mesmo objetivo compartilhado de construir na região uma zona de
paz e segurança, ambos os países fazendo acordos sobre medidas fundamentais,
como a não proliferação de armas nucleares, químicas e bacteriológicas, com
medidas de criação de confiança mútua, e a assinatura de acordos (criação da
Agência argentino-brasileira de Contabilidade e Controle de Materiais
Nucleares, Acordo Tripartite de Salvaguardas com a AIEA, assinatura do Tratado
de Tlatelolco), encontrou na agenda norte-americana de segurança global
(intervencionismo, segurança cooperativa, apoio argentino ao unilateralismo
norte-americano contra as posições multilateralistas do Brasil, etc.) o núcleo
das divergências, que chegariam ao âmbito do Mercosul, como conseqüência do
fato que o Brasil, vendo seu objetivo de "universalismo seletivo" sendo
reduzido, retornou às suas maiores preocupações em matéria de comércio
subregional.
O novo ponto de inflexão no Cone Sul, que aconteceu com a renúncia de De la Rúa
e a chegada ao governo de Eduardo Duhalde, coloca o Mercosul e, em particular,
as relações bilaterais argentino-brasileiras, que constituem o seu eixo
estratégico, num momento de expectativa. A eliminação da Conversibilidade da
moeda argentina e a redução do perfil de prioridade nas relações de Buenos
Aires com os Estados Unidos39 ' que se manifestou no fato de que a primeira
viagem ao exterior do chanceler Carlos Ruckauf foi justamente a Brasília '
supõem o desaparecimento dos "problemas" que o governo brasileiro
permanentemente esboçou como as grandes dificuldades para aprofundar essa
aliança estratégica entre ambos países e fazer avançar o processo de
integração. A própria situação de crise que vive a Argentina também deveria
levá-la a considerar o Mercosul como um ambiente essencial de cooperação
solidária. Deste ponto de vista, o Brasil tem uma ótima possibilidade de
demonstrar seu compromisso político e econômico com a integração.
O Brasil viveu o período dos anos 90 sob o que Ricúpero (1996) denominaria a
"crise de paradigmas". Esta situação, em um contexto de dificuldades econômicas
e financeiras internas, deveria projetar ainda por um longo período a resolução
de um novo consenso em matéria de política exterior. Desta perspectiva, a
adoção de um perfil predominantemente econômico na definição da agenda, fato
que caracterizou preferencialmente a política exterior da década, além de
justificar-se pela importância e permanência do tema do desenvolvimento na
agenda internacional, também se explicaria pelas razões que aqui expomos. O
paradoxo do Brasil foi projetar objetivos de "alta política" e privilegiar,
como modo de inserção a "perda política" (ou econômica). Existe uma dimensão
profunda no perfil econômico que teve o caráter da inserção internacional
histórica brasileira. Para especialistas como Almeida (1998), as relações com
Argentina, da competição à cooperação e integração, são um capítulo relevante
da densa agenda de relações econômicas internacionais do Brasil.
Na minha opinião, existem dois elementos importantes na identificação do estilo
da política exterior brasileira. Trata-se de manter aquilo que dá continuidade,
regularidade e credibilidade externa à política exterior, evitando o
"pendularismo", o "recurso a decisões de impacto", "as flutuações ideológicas"
e o "oportunismo"; mas onde estão os objetivos constantes vinculados com o
reconhecimento internacional à sua condição de potência média: participar
ativamente do ordenamento mundial e se tornar ator central do cenário
internacional40 . O segundo elemento é o resultado do jogo de pragmatismo e
flexibilidade, onde o exercício de cada um destes se associa à necessidade de
realizar os ajustes necessários para manter a opção dos objetivos. Porém,
pragmatismo e flexibilidade são difíceis de se diferenciar quando se aplicam a
condutas de racionalidade custo-benefício (por exemplo, flexibilizar a política
comercial cedendo às pressões norte-americanas) contra aquelas destinadas a
justificar a adoção do que Cervo (1998) e Costa Vaz (1999) concordaram
denominando como "uma filosofia política neoliberal, adotada de forma quase
dogmática pelos governos de Collor e Cardoso".
Da literatura sobre política exterior escrita pelos autores brasileiros, se
depreende que o Brasil não se caracterizou por uma política exterior de grandes
controvérsias internas, com respeito à relação do país com o mundo.
É necessário ir ao fim do século XX, sob o governo de Cardoso, para se notar,
pela primeira vez, o surgimento de uma visão profundamente crítica sobre a
política exterior. Em parte, o questionamento interno sobre a política exterior
foi se aprofundando à medida que a negociação de acordos internacionais, com os
Estados Unidos (via ALCA) e com a União Européia (via Mercosul), se transformou
em um debate interno de política, entre setores ' e lobbies ' favoráveis à
abertura (importadores) e contrários (os import-competing). De categorias
tradicionalmente realistas, alguns autores mostram que o grande problema foi
que o debate sistemático e abarcativo sobre o "interesse nacional brasileiro"
foi virtualmente esquecido nos últimos anos, porque a sociedade foi absorvida
por temas prioritários da agenda doméstica, relegando a segundo plano as
questões cruciais da área externa (Magnoli, César & Yang, 2000:34).
Mas o sintoma mais significativo das profundas diferenças na política exterior
de Cardoso se deu no Itamaraty, situação que culminou com a destituição do
embaixador Samuel Pinheiro Guimarães de seu cargo de Diretor do Instituto de
Pesquisa em Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores, logo
após a difusão de um extenso artigo de sua autoria onde se questionava
abertamente a política seguida pela administração Cardoso frente a Alca e aos
Estados Unidos41 .
Esta nova realidade, evidentemente, complica o panorama futuro não somente da
política bilateral argentino-brasileira, mas também da política de toda região,
já que introduz novos elementos de interferência com o que se supõem as
"políticas de Estado, reconhecidas e aceitas", e agrega novas dúvidas sobre a
previsibilidade da política exterior. Tendo presente as eleições presidenciais
convocadas para o final de 2002, não deveria esperar-se nada novo na política
exterior brasileira até iniciar o ano 2003; no caso de uma nova coalizão
governamental, um novo modelo de desenvolvimento levará consigo um projeto de
política exterior que substitua o modelo de "inserção limitada", predominante
no período aqui analisado.
Notas
1 CERVO, Amado Luiz. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da
América Latina. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília:
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Ano 43, nº 2, 2000. p. 5-27.
2 Estado normal significa: "receptivo e submisso aos comandos das estruturas
hegemônicas do mundo globalizado"; Ibid., p. 5.
3 OLIVEIRA, Henrique Altemani de. Melhorias na imagem do país e política
externa. Carta Internacional, São Paulo: USP-Política Internacional, nº 35, p.
1, janeiro de. 1996.
4 ROETT, Riordan. The Foreign Policy of President Fernando Henrique Cardoso.
Carta Internacional, nº 94/95, p. 28, Dezembro 2000/Janeiro2001.
5 Por exemplo, até o presente, o Brasil manteve subsídios federais, estaduais,
municipais e financeiros em diversos setores; tem mantido o reembolso de cargas
sociais aos exportadores; assegura pré-financiamento ao exportador e ao
comprador externo (ACC e ACE), subsidiando-os com taxas menores e mantendo um
sistema subsidiado de grãos para os avicultores, suinocultores e criadores de
gado. Por sua vez, a Argentina eliminou em 1995 os subsídios à exportação
dentro do Mercosul.
6 Da declaração conjunta russo-brasileira, a conclusão da visita de F.H.Cardoso
a Moscou, em 14 de janeiro de 2002.
7 Cuja "Declaração Constitutiva" foi efetuada em Lisboa em 17 de junho de 1996.
8 LIMA, Maria Regina Soares de. Política doméstica determina atuação
diplomática.Carta Internacional, nº 35, p. 6, janeiro 1996
9 As declarações do presidente F.H. Cardoso sobre isso foram analisadas
sinteticamente; ver PFEIFER, Alberto. O Brasil assume a liderança da América do
Sul. Carta Internacional, São Paulo, USP-NUPRI, ano VI, No. 63, p. 6., maio de
1998.
10 Apesar de não ser totalmente coincidente, uma destacada literatura se refere
a esses aspectos. Ver Bandeira (1996); Barros (1998); Bernal-Meza (1998;1999b);
Cervo (1994;1998); De la Balze (1995); Guilhon Albuquerque (1998); Hirst &
Pinheiro (1995); Lege (1995); Altemani de Oliveira, Fuser, Lampreia, Soares de
Lima, Genoíno, Cervo, Albuquerque Mourão e Guilhon de Albuquerque in Carta
Internacional (1996).
11 Para uma análise comparativa, ver Raúl Bernal-Meza (1999ª).
12 Ver o artigo Argentina-Brasil: Paz y Guerra entre las Naciones, Diario UNO,
Mendoza: Séptimo Día. p. 4-5, 4 de agosto de 1997
13 Ver Brasil y Rusia, más cerca, Diario Clarín, Buenos Aires, 15 janeiro de
2002.
14 O embaixador brasileiro Souto Mayor destacou que "cabe reconhecer que não
nos temos empenhado em dotar o Mercosul de um arcabouço institucional a altura
de nossas aspirações declaradas de fortalecimento do bloco no âmbito
internacional, presumivelmente pela dificuldade de conviver como os elementos
de supranacionalidade inerentes a tal institucionalização. Em suma, pode-se
dizer que há, por parte do Brasil, certa inconsistência entre uma política
econômica desnacionalizante ( ) e uma política continental de orientação
latino-americanista, tendente a criar melhores condições econômicas e
diplomáticas de negociação com os Estados Unidos" (ver SOUTO MAYOR, Luiz A. P.
Brasil, Argentina, MERCOSUL ' A hora da Verdade. Carta Internacional, n° 79, p.
9, setembro de 1999).
15 Considero um dos mais completos aportes o estudo Sistema Mundial y MERCOSUR.
Globalización, Regionalismo y Políticas Exteriores Comparadas (Buenos Aires:
Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano e Universidad Nacional del Centro de la
Provincia de Buenos Aires, 2000. 480 págs.).
16 Tal como assinalou Pedro Motta Veiga in MERCOSUL e ALCA: Dilemas para a
Agenda Brasileira, Carta Internacional, nº 86, p. 3.,abril de 2000.
17 Segundo um especialista, "nas negociações da Rodada Uruguai, o Brasil
adotou, principalmente nas etapas iniciais do processo, uma posição
essencialmente negativa, recusando a ampliação da agenda negociadora e
defendendo que as negociações se limitassem à agenda herdada de rodadas
anteriores. A posição brasileira foi derrotada por uma coalizão de países
desenvolvidos e em desenvolvimento..."; ver: VEIGA, Pedro Da Motta. O Brasil
frente à Rodada do Milênio. Carta Internacional, nº 76, p. 9, junho de 1999.
18 Intervenção do ministro Lampreia, no seminário O BRASIL E O COMÉRCIO
INTERNACIONAL PÓS CINGAPURA, março de 1997, citado por Kjeld Aagaard Jakobsen,
O que Esperar da Política Externa Brasileira? Carta Internacional, nº 94/95, p.
10-12, Dezembro de 2000/Janeiro de 2001;.
19 Ver RelNet, Resenha Econômica, 237/2001.
20 Predominância do multilateralismo; reconhecimento do clivage Norte-Sul;
oposição às hegemonias; apoio "crítico" aos regimes internacionais;
autodeterminação e não ingerência nos assuntos internos dos Estados, etc.
21 O Brasil agora faz o inverso do que fazia desde a Guerra Fria. Assim, quando
falhava a "carta americana", o Brasil procurava a "carta européia". Ocorreu
desta forma com a indústria automotiva e com o desenvolvimento da energia
nuclear; apoio europeu também em aspectos políticos, ajuda financeira e
tecnológica.
22 A mudança no discurso se refletiu de "Não estamos preparados para competir
com a economia norte-americana. Com a Alca nossa indústria será completamente
desmantelada. Portanto, nos fecharemos, evitando algum acordo comercial com os
Estados Unidos", para "Não estamos preparados para competir com a economia
norte-americana. Com a Alca nós teremos que competir mais abertamente.
Portanto, nos prepararemos para aumentar nossa competitividade".
23 De acordo com Flávio de Campos Mello, "ao longo da década de 90, todas as
sinalizações dos Estados Unidos no sentido de avançar na integração hemisférica
resultaram no fortalecimento do compromisso brasileiro com o aprofundamento e/
ou o alargamento da integração sub-regional" (Um Novo Contexto para as
Estratégias Regionalistas da Política Externa Brasileira. Carta Internacional,
nº 96, p. 3-4, fevereiro de 2001). Aqui nós não compartilhamos desse
julgamento, a menos que consideremos a "retórica do discurso" no lugar dos
fatos concretos. O Brasil não demonstrou na prática uma vontade de se
aprofundar no Mercosul, nem em termos institucionais, nem tampouco no sentido
da qualidade intrínseca da integração, ou seja, fazendo dele um instrumento não
comercial, mas industrial, tecnológico, social e político.
24 Secretaria de Assuntos Estratégicos. Cenários Exploratórios fazem Brasil
2020. Texto para Discussão, Brasília, setembro de 1997.
25 Ou seja, com capacidade de dar respostas militares efetivas aos desafios
externos que afetem a consecução dos objetivos e interesses de política
internacional.
26 Como mostrou em seu momento Thomas Guedes da Costa; ver: Falta atenção aos
temas de segurança internacional. Carta Internacional, nº 59, op. cit., p. 13.
27 No caso dos argentinos, em particular aqueles que eram parte da comunidade
epistêmica do período menemista. Ver BERNAL-MEZA, Raúl . Las percepciones de la
actual política exterior argentina sobre la política exterior do Brasil e as
relações Estados Unidos-Brasil. 1999, op. cit.
28 MIYAMOTO, Shiguenoli. O Brasil e a segurança regional. Carta internacional,
nº 89, p. 7-10, julho de 2000 citando o Documento sobre Política de Defesa
Nacional (Brasília, 1996).
29 Fonte: The Military Balance 1999-2000. Londres: Instituto Internacional de
Estudos Estratégicos, 1999, citado por Oliveira e Onuki, op. cit.
30 Ver menção nº 11 precedente.
31 FUSER, Igor. Rumo ao Primeiro Mundo, de pés descalços. Carta Internacional,
nº 35, p. 2, janeiro de 1996.
32 Como descreve Maria Regina Soares de Lima, ver: Política doméstica determina
atuação diplomática, op. Cit.
33 Uma das expressões coincidentemente críticas sobre o modelo econômico de
Cardoso assinala que " desde 1994 o Brasil adotou um modelo econômico de
inspiração externa cujo aspecto principal foi a abertura da economia para o
comércio e investimentos, que teve como principais conseqüências sucessivos
déficits comerciais, crises financeiras, dois anos de crescimento quase nulo do
PIB (1998 e 1999), duplicação da taxa de desemprego, acordos lesivos com
Instituições Financeiras Internacionais, enfim, uma abertura diretamente
relacionada com o retrocesso econômico e social ocorrido nesta década".
(JAKOBSEN, Kjeld Aagaard. O que esperar da política externa brasileira?.
op.cit., p. 10).
34 Citado por J. Castro (1998:94).
35 Embora somente restrita a esses parceiros, tal como assinala DANESE, Sérgio.
A Diplomacia Presidencial da Política Externa Brasileira. Carta Internacional,
nº 72, , p. 8-9, fevereiro de 1999.
36 Os eixos, a partir da identificação do conceito de diplomacia presidencial
ou diplomacia de cúpulas, são citados em DANESE , Sérgio. Diplomacia
presidencial: história e crítica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
37 Ver: GARCÍA, Marco Aurélio. O Melancólico fim de Século da Política Externa.
Carta Internacional, nº 94/95, Ano IX, p. 6-7, dezembro de 2000/janeiro de
2001.
38 Ver: BERNAL-MEZA, Raúl. Os dez anos de Mercosul e a crise argentina.
Política Externa, Vol. 10, nº 4,; p. 7-46, março-abril-maio 2002.
39 Ainda que esta possibilidade devesse ser relativa, pois além das declarações
presidenciais, há dois elementos que agem contra qualquer mudança radical neste
relacionamento; um de caráter estrutural, que se relaciona com a dependência
político-financeira que Buenos Aires tem do governo norte-americano e de seu
apoio às negociações com o FMI em busca de um novo financiamento; outro, de
caráter ideológico-político, que tem a ver com a continuidade das alianças
(setor financeiro, grandes grupos econômicos monopolistas e partidos políticos)
que se caracterizam por suas medidas frente ao novo governo, assim como a visão
neoliberal da manipulação da economia.
40 Baseado na crença e convicção de que o Brasil tem um papel de protagonista a
desempenhar nos processos decisórios e reguladores das relações internacionais
(Mello e Silva,1998; Amorim,1995;1996; Lampreia,1996;1997;1998).
41 Ver: BERNAL-MEZA, Raúl. Os dez anos de Mercosul e a crise argentina.
Política Externa, Vol. 10, nº 4,; p. 7-46, março-abril-maio 2002.