Os Estados Unidos pós 11 de setembro de 2001: implicações para a ordem mundial
e para o Brasil
Que implicações os ataques ao Pentágono e ao World Trade Center (WTC)
apresentam para os Estados Unidos e para as relações internacionais? Quais
seriam suas conseqüências para a ordem mundial deste início do século XXI? Cabe
com efeito a pergunta sobre se os eventos de 11 de setembro teriam, de fato,
transformado a ordem global a ponto de constituir um divisor de águas na
política mundial.
Os eventos de 11 de setembro de 2001 foram e têm sido apresentados como um
momento de ruptura no sistema das relações internacionais, ou pelo menos como
um elemento novo na agenda da política mundial, ponto definidor de uma nova
relação dos Estados Unidos com a ordem global, em grande medida dominada por
esse mesmo país. O Brasil, ainda que situado em área relativamente imune à ação
do terrorismo de base fundamentalista, também passou a sofrer as conseqüências
da situação criada a partir da reação dos EUA a esses ataques, como pretendo
discutir neste ensaio.
Uma análise preliminar e introdutória aos problemas do 11 de setembro e de seu
status na política americana e mundial confirmaria que, como quaisquer outros
fenômenos históricos, estes possuem, ao mesmo tempo, elementos de ruptura e de
continuidade. O mundo pós-11 de setembro não mudou, mas a agenda da política
mundial modificou-se, não tanto pela ação em si dos terroristas como pela
demonstração da vontade de poder da maior potência de nossa época.
O presente texto pretende: (a) colocar os ataques terroristas no contexto da
ordem mundial atual; (b) discutir as reações dos EUA no imediato seguimento dos
eventos, examinando seu impacto específico na economia, na política externa e
na área de segurança; (c) considerar os efeitos dos ataques do ponto de vista
da ordem internacional, em termos de rupturas e continuidades; (d) examinar
mais de perto sua interação com o processo em curso de globalização, fenômeno
claramente associado, para a maior parte dos observadores, à presença e ação
dos EUA no plano mundial; (e) discutir, finalmente, as implicações desses fatos
e processos para o Brasil.
1. O contexto do 11 de setembro: novo "Império", novos "bárbaros"
Os atentados de 11 de setembro ocorrem no momento em que os EUA, superados os
obstáculos da Guerra Fria e somado o crescimento acumulado ao longo dos últimos
10 anos de boomeconômico, atingem a plena maturidade de seu poderio e ocupam um
lugar no panteão das potências mundiais só comparável à Roma imperial.
Michael Hardt e Antonio Negri1 , ao descrever a natureza e o alcance do poder
dos EUA na atualidade, apontam para a natural (e quase automática)
identificação desse país como a autoridade definitiva a reger o processo de
globalização e a própria ordem mundial. Segundo os autores, o exercício de
poder dos EUA se dá no contexto do que denominam o "Império", conceito definido
como a nova forma global de economia, que não deve ser confundido com a
desgastada noção de imperialismo.2 O Império não dispõe de um contorno
territorial definido, na medida em que constitui, ele mesmo, um processo de
"desterritorialização", que incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de
suas fronteiras abertas. O poder exercido pelo Império não tem limites e
representa um regime que, efetivamente, abrange a totalidade do espaço. O
Império governa todo o mundo "civilizado" (conceito que, neste contexto, tende
a confundir-se com "globalizado"), não como um regime histórico nascido da
conquista, mas como uma ordem que, na realidade, suspende a história,
determinando, dessa forma, o estado de coisas existente.3
Os EUA ' "país mais poderoso desde Roma", segundo Joseph Nye4 ', a única
superpotência da atualidade, ocupam posição central nessa nova ordem
capitalista "imperial". Seu espaço territorial, que não se confunde com as
abertas fronteiras do Império capitalista, é o centro nervoso ' dinâmico ' de
onde emanam e para onde convergem os fluxos dessa nova ordem econômica. Atores
privilegiados, os EUA são também os "ordenadores" ou "regentes" do Império,
dele extraindo os maiores dividendos. Natural, nesse contexto, que os EUA,
império dentro do "Império", tenham logrado alçar-se, nos últimos anos, a uma
situação de incontrastável superioridade em todos os campos do poder:
econômico, tecnológico e militar. O poderio político, que nada mais é do que o
exercício dessa superioridade no campo da relação entre os Estados, decorre
direta e naturalmente dessa situação, que os EUA procurarão manter por todos os
meios.5
Do ponto de vista econômico e financeiro, a hegemonia dos EUA revela-se
claramente no diferencial de poder entre os principais atores globais: os EUA
representam cerca de 31% do produto interno bruto mundial (mais do que os
quatro seguintes ' Japão, Alemanha, Inglaterra e França ' juntos), são os
maiores importadores e exportadores do planeta (17% das importações mundiais de
bens e 8% das de serviços; 13% das exportações mundiais de bens e 18% das de
serviços, em dados de 1998), os maiores produtores de bens industriais (cerca
de 25% da produção mundial), os maiores investidores e também os maiores
recipientes de investimentos diretos, de longe o principal produtor e
exportados de filmes e de programas de televisão no mundo.6 Por dez anos
(1991-2000), a economia norte-americana cresceu em média 3% (no mesmo período,
a taxa média de crescimento do PIB japonês foi de cerca de 1,5% e o da União
Européia de menos de 2%).
O mais significativo, no entanto, é que esse impressionante desempenho foi
sustentado, entre outros aspectos, por uma verdadeira (e, até certo ponto,
genuinamente americana) "nova revolução industrial" que, através dos avanços
tecnológicos alcançados nas áreas da comunicação e do conhecimento (Internet,
por exemplo), gerou transformações sem paralelo na operação das empresas
americanas. Esse novo e inventivo modo de produção, aplicado com notável
persistência, coerência e sucesso a toda a atividade produtiva (e, como veremos
a seguir, à própria "arte da guerra") americana, é o principal responsável pela
evolução sem precedentes de seu poderio, que elevou os EUA à condição de única
verdadeira superpotência.7
A superioridade tecnológica e militar dos EUA é igualmente evidente e revela-se
num simples fato: os EUA são o único ator global da história da humanidade que
consegue projetar poder militar simultaneamente em diferentes terrenos
estratégicos em pontos distantes de seu próprio território (o orçamento de
defesa dos EUA é superior à soma dos orçamentos militares dos seguintes 15
aliados ou competidores estratégicos, a começar pela Rússia, China e os
principais países da OTAN).
O contraste entre o know-how superior dos EUA em "levar a guerra" ao resto do
mundo e o poder militar apenas relativo dos demais competidores estratégicos,
deve-se, além do peso específico do primeiro no campo econômico e tecnológico,
à aplicação dos mesmos modelos organizacionais e produtivos que já tinham
determinado a preeminência de seu tipo específico de capitalismo no final do
século XIX e início do século XX. Na origem da defasagem de poder de fogo entre
os EUA e o resto do mundo encontrar-se-ia, portanto, não apenas a simples
capacitação tecnológica ' que poderia ser eventualmente suprida no caso dos
europeus ou mesmo no caso das duas grandes economias em transição para o
capitalismo ' mas uma organização superior de administração militar, que
consegue aproveitar ao máximo os ganhos de produtividade revelados em um longo
ciclo de crescimento econômico baseado nas virtudes inovadoras da "nova
economia" (informação, comunicações, processamento digital de insumos aplicados
a novos tipos de armas).
Tal disparidade ' que pode ser classificada como propriamente "estrutural", ou
seja, não simplesmente quantitativa ' não tem precedentes históricos
provavelmente desde os tempos da Pax Romana. O alegado poder naval absoluto da
Royal Navy, nos tempos áureos da Pax Britannica, não guarda senão uma pálida
relação com a presente situação de domínio incontrastável das forças armadas
dos EUA.
A ação contra o World Trade Center e o Pentágono, centros nevrálgicos (e
simbólicos) do poderio americano, vai buscar suas origens no outro lado do
fenômeno analisado por Hardt e Negri: o território dos excluídos do Império '
os "bárbaros" (ou "novos bárbaros", na opinião de Jean Christophe Ruffin)8 . As
motivações por trás dos ataques remetem, de uma maneira ou de outra, à essência
do fenômeno terrorista e a suas conseqüências: a exclusão de boa parte do mundo
da prosperidade do Império (e a instabilidade política, a privação econômica e
social dela decorrentes); a resistência a integrar-se à globalização (o choque
"civilizacional", as bases do fundamentalismo islâmico que rejeitam aspectos
importantes dessa globalização); a arrogância imperial (o exercício político do
poder americano, a política externa dos EUA para o Oriente Médio, a aliança com
Israel, a "ocupação" da Arábia Saudita).
A reação dos EUA aos ataques foi, ela também, ditada pela situação particular
que ocupa aquele país no centro do Império global e pela natureza especial dos
ataques, que desafiaram essa posição: uma resposta feita ao mesmo tempo de
unilateralismo, de intervencionismo e do eventual e bem medido ("à la carte")9
apelo ao multilateralismo e à cooperação seletiva, sob a forma de alianças e
parcerias.
Contrariamente a conflitos anteriores (Guerra do Golfo, por exemplo), em que os
EUA buscaram legitimar sua ação intervencionista através de alianças
estratégicas com outros países ou entidades multilaterais, o 11 de setembro,
ataque direto à própria essência do "ser" americano, trouxe, na percepção de
que constituía uma luta entre o bem e o mal, elementos que legitimavam uma
reação imediata e unilateral. A rede de apoio e solidariedade que rapidamente
se construiu em torno dos EUA não foi, nesse sentido, propriamente reivindicada
por aquele país, mas sim esperada como fato natural. As declarações do
Presidente Bush a esse respeito ("quem não estiver com os EUA estarão contra")
são a melhor tradução dessa expectativa: em um embate como o que se delineava,
os países que não se encontravam sob o império do bem só poderiam estar do lado
do mal. Nesse sentido, a construção de alianças pelos EUA para responder ao 11
de setembro corresponde mais a um ato de "corroboração" de seu sistema de
valores, do qual esperavam que os demais membros do "Império" comungassem, do
que propriamente à preocupação de legitimar ou apoiar ações contra seus
atacantes (que também existiu, é bem verdade, no caso de países como o
Paquistão ou a Índia, situados à margem do "Império").
2. O 11 de setembro e a reação dos EUA: velhos demônios, novas prioridades
Os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono foram recebidos com surpresa e
revolta pelo Governo e pelo povo norte-americanos. Washington fora atacada pela
última vez em 1812, quando, na guerra anglo-americana, os ingleses incendiaram
a Casa Branca.
O poderio incontestado dos Estados Unidos depois da Guerra Fria tornou
arraigado o sentimento de invulnerabilidade do pais à violência que cresce e se
desenvolve em outras regiões. Tanto maior foi, nesse contexto, o impacto do 11
de setembro sobre a psique americana, ao representar, na "descoberta" da
vulnerabilidade, um choque nunca antes experimentado e a sensação de que o país
nunca mais seria o mesmo. A rapidez e a dimensão da resposta aos ataques,
considerados desde o início como "atos de guerra", dão a dimensão exata da
comoção por eles provocada.
Uma comoção que levou, naturalmente, à comparação do 11 de setembro ao ocorrido
em Pearl Harbor em dezembro de 1941, na medida em que ambos constituiriam um
ataque direto (e inédito) ao território e ao poderio militar dos EUA. Esta
comparação é, a meu ver, discutível, de vez que Pearl Harbor representou uma
operação militar, desfechada por um competidor militar, contra um objetivo
militar, em um contexto de guerra mundial. O 11 de setembro é fato de outra
natureza, que pertence mais à família dos atentados como o de Oklahoma (que foi
também um ataque terrorista "contra o estado americano", golpeando civis
inocentes de maneira errática), com a distinção fundamental de que se apresenta
como uma reação direta a aspectos "profanos" da política externa dos EUA no
Oriente Médio, como a ocupação da "terra sagrada" (Arábia Saudita) ou o apoio
aos inimigos do Islã (Israel), conforme pronunciamento de Bin Laden.
A resposta americana aos ataques comporta traços igualmente ideológicos:
apresentada como uma reação de autodefesa interna e externa, ela é legitimada
pela percepção de que os atentados constituíram um ataque ao bem pelo mal (uma
simplificação quase "fundamentalista"), tendo as causas mais profundas do
fenômeno do terrorismo sido pouco ou nada discutidas (política externa dos EUA
para o Oriente Médio, pobreza e falta de democracia em países islâmicos etc).
Nessa resposta, que afetará a economia e as políticas interna, externa e de
defesa dos EUA, definir-se-ão claramente as novas prioridades do governo
americano e o terrorismo e a segurança passarão a pautar as novas relações do
país com os demais atores do sistema internacional.10 As conseqüências
imediatas dos ataques e dessa reação são analisadas sucintamente a seguir.
Outros efeitos do 11 de setembro, de natureza mais sistêmica (ordem mundial,
globalização), serão considerados em seção à parte.
Economia:
Do ponto de vista econômico, temeu-se que o ciclo recessivo que já vinha
enfrentando a economia americana desde o início de 2001 fosse agravado pela
crise que os atentados provocaram em diversos setores: transportes aéreos,
turismo, seguros, intermediação financeira etc. Na realidade, as conseqüências
econômicas do terror revelaram-se menos graves do que havia sido imaginado, com
escassas repercussões globais, ainda que efeitos setoriais importantes, em
especial nas indústrias ou serviços mais diretamente vinculados ao centro do
capitalismo financeiro nova-iorquino.
Na outra ponta do processo, os atentados podem ter servido para justificar
politicamente uma nova série de gastos militares que representarão uma notável
impulsão em determinadas áreas ligadas ao chamado "complexo industrial-
militar", assim como às indústrias e serviços de segurança e de monitoramento
eletrônico, da mesma forma como o anterior "império do mal" da era Reagan gerou
um conjunto de gastos orçamentários que alguns observadores tinham identificado
à época como "keynesianismo militar".
De fato, haverá uma sensível pressão para o investimento e a inovação em todas
as áreas consideradas como estratégicas, assim como, secundariamente, em
setores como o de saúde pública, posto à prova pelo episódio do antraz. O
próprio programa de capacitação missilística e de prevenção de ataques-
surpresa, patrocinado pelos republicanos sob o nome de "National Missile
Defense" ' reedição mais modesta da "Strategic Defense Initiative" da era
Reagan ', cujos dias pareciam contados nesse novo cenário de luta contra o
terrorismo, deverá ser preservado pela atual Administração.
Ainda na área econômica, tornou-se evidente que os atentados estimularam o
surgimento de um novo ambiente regulatório e normativo no campo das transações
financeiras, com a aceleração dos esforços de cooperação internacional nesse
terreno, algo que era necessário para combater práticas nem sempre
imediatamente associadas ao terrorismo, como a corrupção, a lavagem de
dinheiro, os fluxos utilizados pelas redes de narcotraficantes e outros
ilícitos financeiros de caráter mais político.
Segurança:
No campo da segurança, a defesa interna e a vigilância nas fronteiras e
aeroportos tendem a assumir espaço relevante na agenda americana e, por
extensão, na da cooperação política internacional.
Na frente interna, o grande debate nos EUA refere-se aos conflitos que medidas
de controle de tipo intrusivo podem representar para as chamadas liberdades
civis, algo relevante num país que ostenta orgulho por não possuir nenhum
sistema nacional de identificação pessoal e cujos cidadãos exibem uma natural
desconfiança em relação ao Estado federal (ou qualquer estado, para os muitos
libertários, que são legião em suas várias vertentes, de direita, de esquerda,
de caráter civil ou religioso).
A esse debate, deve-se acrescentar as reações (é bem verdade que mais brandas)
suscitadas pela aprovação, a toque de caixa, de um novo plano nacional de
segurança que, entre outras duras medidas, prevê a criação de organismo
responsável pela defesa civil (Homeland Defense), de um corpo de defesa militar
voltado para a própria América do Norte, o recurso a tribunais militares ' que
reduzem consideravelmente os instrumentos de defesa dos réus ' para julgamentos
de estrangeiros acusados de crimes de terrorismo, bem como a adoção de medidas
"especiais" para encarceramento, pelo INS (serviço nacional de migrações), de
imigrantes em situação suspeita - contam-se às centenas os casos de
estrangeiros residentes detidos durante meses pelo INS, incomunicáveis, com
base em frágeis indícios.
Na frente externa, a pressão americana em matéria de segurança se exerce sobre
os demais países no sentido da coordenação de ações de polícia e inteligência,
o que nem sempre é feito de maneira voluntária ou de modo amplo como gostariam
as autoridades americanas dessas áreas (FBI e CIA). Em todo caso, as bases de
dados de todos os sistemas policiais dos países envolvidos de perto ou de longe
na luta contra o terrorismo serão chamadas a cooperar, voluntária ou
"involuntariamente", com essas mesmas autoridades.
Adicionalmente, tem aumentado de modo significativo, em especial após a
conclusão da chamada "fase um" da guerra contra o terrorismo no Afeganistão
(Operação Anaconda), a pressão dos EUA em relação ao controle de armas de
destruição em massa. O tema vem paulatinamente sendo incorporado à doutrina
Bush em matéria de segurança11 e tem servido de justificativa para as ameaças
e preparativos para uma eventual intervenção no Iraque.
Política Externa:
Os atentados recolocaram na agenda americana a prioridade dos temas de política
externa, no momento em que o debate interno vinha sendo ocupado exclusivamente
por temas como as leis de financiamento político, o reforço do sistema nacional
de educação, a reforma do sistema de seguridade social, a estrutura do
fornecimento energético ou a regulação ambiental. Fiel à percepção maniqueista
de que os EUA (e o mundo civilizado - o Império de Hardt e Negri) ' travam uma
luta do bem contra o mal12 , o Presidente George W. Bush não tardou em dar o
tom da disposição americana, ao eleger um "eixo do mal" (Coréia do Norte, Irã e
Iraque e, posteriormente, a Síria) e proclamar, repetidas vezes, que quem não
estivesse com os EUA estaria contra ele.
O debate interno sobre a política externa que melhor convém aos EUA tem
colocado em campos opostos os defensores de uma auto-suficiência unilateralista
(que tendem a predominar) e os que advogam a integração dos EUA nas regras
multilaterais da comunidade internacional.13
As ações americanas no campo político, militar, econômico e diplomático, que se
seguiram aos ataques, refletem essa ambivalência, deixando transparecer uma
tendência crescentemente unilateral temperada pela busca de entendimentos e
alianças pontuais ("à la carte") com a comunidade internacional em fóruns
específicos, como as Nações Unidas e a OTAN.14
O relacionamento entre os EUA e as instituições multilaterais passa, nesse
contexto, por uma fase de maiores conflitos. O 11 de setembro acentuou uma
tendência que já era visível na relação do governo Bush com vários organismos e
acordos internacionais, marcada pela preocupação com a preeminência do
interesse nacional norte-americano e a aversão em aceitar constrangimentos em
áreas consideradas como sensíveis do ponto de vista de Washington.15
Exemplos marcantes disso são as posições do governo americano em relação ao
Tribunal Penal Internacional, ao Protocolo de Quioto e aos entendimentos sobre
desarmamento (recusa do Protocolo de Verificação da Convenção sobre Proibição
das Armas Biológicas, do Tratado de Proibição de Testes Nucleares-CTBT, do
Tratado sobre Mísseis Balísticos-ABM e do Protocolo de Montreal sobre Minas
Terrestres). Nessa mesma linha, a avassaladora pressão americana para o
afastamento do diretor-geral da Organização para a Proscrição de Armas Químicas
(OPAQ), diplomata brasileiro, do Presidente do Comitê Intergovernamental de
Mudança de Clima (IPCC) assim como a renúncia da Alta Comissária de Direitos
Humanos, Mary Robinson, por alegada interferência dos EUA são exemplos
importantes do conflito de interesses entre os EUA e os organismos
multilaterais.16
Nesse contexto de crescente unilateralismo, temperado com multilateralismo
seletivo, a aceitação da administração americana em encarar tarefas de "nation
building" ' pelo menos no caso do Afeganistão ' assim como de considerar o
incremento real de dotações atribuídas a título de ajuda oficial ao
desenvolvimento, são concessões tópicas que não modificam as ênfases principais
da política externa norte-americana. Essa última decisão, anunciada em
pronunciamento do Presidente Bush em Monterrey (Cúpula sobre Financiamento ao
Desenvolvimento), vem temperar as manifestações mais duras presentes em
discursos anteriores, como o do "State of the Union", em que foi cunhada a
controvertida expressão "eixo do mal", foco da prioridade contra o terrorismo.
A política externa americana para o Oriente Médio, item de fundamental
importância na nova agenda internacional, é, ela também, marcada pela oscilação
entre unilateralismo e multilateralismo. Chama a atenção, por exemplo, a
aprovação, com aval americano, da Resolução 1397 do Conselho de Segurança as
Nações Unidas sobre a questão palestina, depois de anos de ação persistente e
inflexível dos EUA no sentido de bloquear qualquer intervenção efetiva do CSNU
no tratamento dessa questão. Pela primeira vez na história do Conselho, a
menção a um "Estado Palestino" figurou numa resolução desse órgão, ainda que
não se vislumbre que conseqüência prática poderá advir dessa manifestação.
Mesmo porque, fiel à ambivalência de sua posição (a qual, no caso do conflito
israelo-palestino tende a se acentuar pela presença da questão do terrorismo e
pela sensibilidade que desperta nos eleitores americanos), o governo dos EUA,
ao tempo em que aprovava a inédita Resolução, dava apoio tácito à política
israelense de ampliar sua presença militar nos territórios sob controle da
Autoridade Nacional Palestina, posição que compromete ainda mais o processo de
paz na região.
Outro vetor de um possível agravamento da situação no Oriente Médio, a questão
da mudança de regime no Iraque ' na qual a perspectiva de liquidação de uma
"hipoteca" herdada do governo George Bush pai pode levar a uma ruptura na
coalizão de forças ocidentais ' é tema sobre o qual correntes opostas dentro da
própria Administração americana se dividem entre intervencionismo unilateral e
concertação multilateral, com clara vantagem, até o momento, para a primeira
tendência (que tem fundamentado argumentos pró-intervenção na necessidade
urgente de controle sobre uma eventual produção iraquiana de armas de
destruição em massa ' químicas e biológicas).
No campo militar, o desdobramento mais importante dos acontecimentos de
setembro terá sido a intenção (não oficialmente declarada) da administração dos
EUA de introduzir uma nova concepção em sua doutrina estratégica para
utilização da arma nuclear. Passou-se da doutrina da dissuasão retaliatória
(consubstanciada na hipótese MAD, ou seja, a "mutually assured destruction")
para uma de "dissuasão ofensiva", que não excluiria a utilização da arma
atômica em primeira instância mesmo na ausência de uma clara ameaça nuclear por
parte de outro estado ou grupo (mas em presença de uma possível utilização de
outras armas de destruição em massa, como poderiam ser os vetores químicos e
biológicos).17 Observadores já mencionaram o perigo potencial dessa nova
concepção para a própria segurança e estabilidade mundiais, inclusive do ponto
de vista da não-proliferação e do desarmamento, uma vez que ela vem associada à
indicação dos possíveis contendores nesse terreno, um conjunto de sete países
que inclui os chamados "rogue states", mas também grandes potências como Rússia
e China.
Foi, igualmente, ressuscitado o debate em torno do conceito de "armas nucleares
utilizáveis" ("usable nukes") que ganhou mais força após os acontecimentos de
11 de setembro e a ação militar no Afeganistão. O governo Bush afirmou que, em
caso de ataque, nenhuma opção de resposta seria excluída. O Congresso, por seu
lado, incluiu na "Defense Authorization Bill", em 2001, solicitação de que o
Departamento de Energia e o Departamento de Defesa levassem a cabo novos
estudos sobre o uso de armas nucleares subquilotônicas. O debate sobre "usable
nukes" modifica de forma substancial o conceito de dissuasão ao incorporar uma
vertente ofensiva que terá, sem dúvida, impacto importante nos debates sobre
não proliferação.
3. Efeitos do 11 de setembro sobre a ordem internacional: rupturas e
continuidades
De que maneira os eventos de 11 de setembro afetaram a ordem mundial? Os
atentados de 11 de setembro trouxeram o item "terrorismo" para o centro da
agenda internacional18 , onde ele deverá permanecer no futuro previsível. O
tema poderá eventualmente deixar a primeira posição nessa agenda, mas
permanecerá subjacente ao planejamento cooperativo no terreno da segurança, o
que deve ser considerado como dado adquirido na formulação da política externa
de todos os países.
Não parece, no entanto, que o 11 de setembro tenha provocado o surgimento de
uma "nova ordem mundial". A situação internacional tem sido descrita, desde o
fim da Guerra Fria, como "unipolar", "multipolar" 19 e "uni-multipolar". 20
Subsiste a mesma "velha" ordem, ainda que com uma nova agenda e um novo
conjunto de prioridades. Uma eventual e hipotética "nova ordem" dependeria, não
de qualquer mudança introduzida pelo terrorismo ou pela luta contra ele, mas
basicamente de um novo arranjo global entre as principais potências militares,
o que se dá, normalmente, como resultado de mudanças estruturais de longa
duração.
Nada mudou no poder relativo e nas posições ocupadas no cenário internacional
pela União Européia, Japão, China e Rússia. O que se alterou foram as
prioridades, próprias ou relativas, desses atores principais em seus jogos
táticos respectivos de alianças e parcerias. Antes mesmo que os EUA reagissem a
pretexto de autodefesa e iniciassem sua guerra ampliada contra o terrorismo '
incluindo aqui estados e governos ' algumas mudanças se tornaram perceptíveis:
a Rússia de Putin, por exemplo, encontrou neste novo cenário contexto ideal
para uma aproximação dos países da OTAN e de seu decision-making process. Esse
movimento, que não atende necessariamente ao objetivo de coordenação de
políticas anti-terror, poderá oferecer à Rússia ocasião extremamente propícia
para uma redefinição de suas relações globais com o Ocidente. Osama Bin Laden
conseguiu realizar o inimaginável antes de 11 de setembro: trazer a Rússia para
o coração da OTAN (não me refiro aqui, obviamente, a uma aceitação formal na
aliança que, de toda forma, depende mais de sua evolução política interna do
que aspectos militares em si). A Índia, por razões diferentes, está
gradualmente ascendendo a nível equivalente de entendimento.
O que está mudando é a relação dos EUA com o mundo. O 11 de setembro e a
alteração de prioridades da agenda mundial levaram os EUA ampliar o número de
"parcerias" em todo o planeta. O país, que continua contando com o mesmo número
de aliados de antes dos ataques (a Grã-Bretanha, Israel e os países da OTAN,
basicamente), multiplicou a quantidade de parceiros de uma forma que
dificilmente se poderia esperar através do "world politics as usual". A
política mundial "normal" não teria provavelmente nunca levado a Rússia, a
China e outros países, em verdadeira reversão de alianças, a se declararem
dispostos a cooperar com os EUA como atualmente. Vários outros países, da mesma
forma, sentiram que a direção dos ventos mudou significativamente (Síria e Irã,
para mencionar apenas dois, mais próximos do teatro de operações) e passaram a
se comportar em conformidade com os novos tempos.
Em conseqüência disso, os EUA, que elevaram o terrorismo à mais alta prioridade
em sua política externa, vão influenciar, no futuro previsível, os esforços
internacionais em prol da coordenação em matéria de segurança, na medida em que
vão continuar pressionando os demais estados e as Nações Unidas a atuar
decisivamente contra os grupos terroristas e os estados que os abrigam.
Em suma, a nova "agenda terrorista" mudou o jogo das coalizões e trouxe mais
parceiros ao tabuleiro estratégico dos EUA, não tendo mudado, entretanto, a
natureza ou a estrutura das relações internacionais. A "Pax Americana" está
instaurada e deverá permanecer como um referencial para as próximas décadas,
restando saber até que ponto contribuirá para assegurar a manutenção da paz e
da estabilidade internacionais.21
4. O 11 de setembro e a globalização
Ainda parece cedo para chegar a conclusões sobre que efeitos o 11 de setembro
terá sobre a globalização. É fato, no entanto, que os ataques ao WTC e ao
Pentágono, que têm origem em uma clara rejeição a valores e desdobramentos
desse fenômeno (vale frisar que os dois alvos eram, respectivamente, os maiores
símbolos do poderio econômico e militar da maior potência do mundo
globalizado), têm afetado, através das mudanças que provocaram na condução da
política externa americana ' e da reação a essas mudanças ', o seu
desenvolvimento.
O aparente sucesso da globalização nos planos econômico e tecnológico tem
contrastado, ultimamente, com dificuldades encontradas na tentativa de
impulsionar esse mesmo processo no plano jurídico, em grande medida devido à
ação obstrutora dos EUA (uma tendência que tem se tornado mais visível depois
dos atentados do 11 de setembro). A superestrutura política do direito
internacional público vem sendo penosamente construída por atores ' Estados,
organizações, indivíduos ' engajados na tarefa de substituir o direito da força
pela força do Direito e a solução pacífica das controvérsias pela justiça algo
arbitrária dos mais fortes.
Essa lenta construção do multilateralismo contemporâneo vem sendo ameaçada por
atitudes sucessivas dos EUA, especialmente após o 11 de setembro, que confirmam
uma relutância de princípio e uma recusa de fato em assumir novos compromissos
que redundariam, direta ou indiretamente, na diminuição da margem de liberdade
alocada aos EUA como grande potência que aceita o Direito Internacional na
medida em que o seu interesse nacional não é afetado.
Também no terreno comercial, o 11 de setembro tem acentuado frustrações
acumuladas em decorrência de atitudes da administração americana que, na
prática, desmentem fundamentos da globalização, como o livre comércio.
Prejuízos reais para os principais parceiros dos EUA, a começar pelo próprio
Brasil, são o resultado. Bastaria citar, por exemplo, a visível dificuldade
para a aprovação de uma autorização congressual para negociações comerciais
multilaterais ' agora chamada de Trade Promotion Authority ' ou o
contorcionismo legal demonstrado na introdução de salvaguardas para o setor do
aço, para constatar a imensa distância entre a retórica do livre comércio e a
dura realidade do protecionismo americano.
Nos planos regional ou bilateral, ou ainda em escala simplesmente "unilateral",
abundam os exemplos dessa vontade americana de lograr uma espécie de "livre
comércio indolor", no qual apenas os setores nos quais os EUA são mais
competitivos seriam passíveis de discussão e acordos de abertura.
É fato que as práticas abusivas de protecionismo explícito e de subvencionismo
prejudicial aos interesses de países como o Brasil não datam da presente
Administração e devem continuar num futuro ainda indefinido, mas é também
verdade que os eventos de 11 de setembro animaram um Congresso, já normalmente
engajado na defesa dos chamados "interesses especiais", a comprometer-se ainda
mais com a proteção de setores pouco competitivos e historicamente insulados da
oferta estrangeira.
As contradições na área comercial reproduzem-se também na área financeira, sem
que se saiba quais serão as novas prioridades para as organizações de Bretton
Woods em casos de crises agudas, como a experimentada pela Argentina, que
aparentemente foi entregue à sua própria sorte, parcialmente em função do
deslocamento de prioridades na agenda externa americana, que motivou certo
"alheamento" em relação a temas menos centrais.
Esse mesmo deslocamento tem feito com que países considerados prioritários na
luta contra o terrorismo sejam recompensados com esquemas especiais no plano
bilateral, no foro restrito do Clube de Paris ou nos esquemas de crédito
contingencial do FMI ou dos bancos multilaterais, o que não ocorre em casos
colocados numa lista secundária. Mesmo o recente anúncio de aumento nas
alocações oficiais para ajuda ao desenvolvimento e a intenção de transformar o
sistema de empréstimos em doações monitorados segundo o grau de "good
governance" chocam-se com as evidências, repetida e insistentemente avançadas
por economistas, segundo as quais a melhor forma de ajuda ao desenvolvimento é
a liberalização comercial para facilitar o acesso dos países pobres aos
mercados avançados e o desmantelamento da panóplia de medidas protecionistas
mantidas nestes últimos. A ênfase nas doações, por sua vez, atuará em
detrimento de países médios como o Brasil, que não mais se beneficiam de
operações concessionais e que passarão a enfrentar restrições ou custos
adicionais em seus projetos sustentados parcialmente com financiamentos
multilaterais.
5. O Brasil e a nova ordem mundial pós-11 de setembro
O impacto dos ataques terroristas no Brasil e na América do Sul ' regiões que
são, em certa medida, marginais do ponto de vista do teatro de operações das
atuais ações anti-terroristas ' pode ser considerado importante, de vez que a
presença americana (econômica e política) é ainda mais relevante na América do
Sul do que em outra regiões do globo.
A reação inicial do governo brasileiro, nos dias subseqüentes aos atentados,
foi rápida, não apenas na mera manifestação de solidariedade, mas na
significativa invocação do TIAR, o Tratado Interamericano de Assistência
Recíproca, (instrumento que precedeu e inspirou formal e substantivamente o
próprio tratado de Washington, que criou a OTAN) sobre a base dos mecanismos de
defesa coletiva e de solidariedade hemisférica que caracterizam esse acordo
assinado em Petrópolis em 1947. Em vista das circunstâncias, essa decisão foi
apreciada em Washington.
O Brasil também acolheu de imediato as resoluções relevantes do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, como passou a atuar através de mecanismos
informais no esforço anti-terrorista, inclusive no que se refere ao controle
dos fluxos financeiros que poderiam estar servindo a organizações criminosas.
Do ponto de vista dos interesses brasileiros na agenda internacional, o 11 de
setembro provocou um impacto de tipo "diversionista", no sentido em que temas
de tradicional interesse para o país ' comércio e desenvolvimento, entre outros
' tiveram que ceder considerável espaço para a questão da segurança. Essa nova
situação tende a dificultar ainda mais as complexas negociações comerciais em
curso nos âmbitos regional (ALCA, acordos setoriais, etc.) e multilateral (OMC
pós-Doha), de vez que acentua o unilateralismo já presente na política externa
americana (o qual, se mais visível nos temas de terrorismo e segurança, tende a
repercutir sobre outras áreas) e relega para segundo plano qualquer questão que
não possua vínculos, diretos ou indiretos, com as novas prioridades. Não foi
por acaso que a Administração americana, ao procurar angariar apoio do
legislativo para as negociações comerciais mencionadas acima, buscou associá-
las ao programa de combate ao terrorismo.
Nesse mesmo diapasão, o efeito imediato dos ataques no Brasil foi,
provavelmente, de natureza mais econômica e financeira do que propriamente
política. O Brasil, assim como outros países da região, sentiu de forma mais
intensa e direta os efeitos potencialmente recessivos das "conseqüências
econômicas do terror", tendo-se preparado para uma nova reversão de
expectativas em relação aos fluxos globais de comércio e finanças. Passados
vários meses do ocorrido, pode-se hoje especular que tais efeitos recessivos
diretos não foram tão devastadores como esperado, ainda que, indiretamente, o
11 de setembro tenha contribuído para certo alheamento dos EUA em relação aos
destinos econômicos da região (atitude visível no caso da crise da Argentina),
o que não deixa de representar um problema.
É preciso, apesar de tudo, considerar que, se o 11 de setembro pôs em segundo
plano temas prioritários da agenda brasileira, também resgatou, na ênfase que
trouxe para a temática de segurança, aspectos importantes de política externa
que, se não ocupam a pauta diária dos noticiários, são de enorme importância
para o país. O Brasil, país de extensas fronteiras terrestres, que divide com
regiões conturbadas como a Amazônia colombiana, não pode se dar ao luxo de
negligenciar sua segurança interna e externa.
Na agenda interna e externa, o tema da segurança passa a adquirir um peso maior
do que no passado, o que não deve ser entendido como justificativa para que
objetivos prioritários (desenvolvimento econômico e social, estabilidade,
comércio, abertura de mercados etc) sejam preteridos. A questão da segurança
preocupa e mobiliza cada vez mais a sociedade brasileira, atingida em seu
cotidiano por ações violentas e criminosas que possuem uma dimensão
internacional (tráfico de drogas, por exemplo)
O novo cenário criado pelos EUA de "luta do bem contra o mal" não deixará de
representar um desafio político para o Brasil, a começar pela própria concepção
de um arranjo dicotômico e perigoso como o da separação entre "amigos e
inimigos" da grande potência.
O Brasil certamente se alinha entre os primeiros, e está pronto a assumir sua
parte de responsabilidade na adoção de medidas preventivas ao terrorismo. Sabe
reconhecer, no entanto, o caráter não equivalente dos interesses imediatos de
cada um, bem como as diferentes concepções que animam esses países na luta
contra as redes terroristas. Nenhum dos países da América do Sul, entre eles o
Brasil, desempenha ou desempenhará papel preponderante nesse grande jogo de
luta contra o terrorismo mundial. Eles podem, no entanto, ajudar nesse
processo, contribuindo para o reforço de sua própria segurança, assegurando a
estabilidade democrática na região e dando sua contribuição para o que se
poderia chamar de um "programa global" de combate ao terrorismo.
O presidente Fernando Henrique Cardoso já teve a oportunidade de expressar mais
de uma vez seu entendimento do que deve ser esse "programa global", através do
tratamento de suas "fontes naturais": ausência de desenvolvimento, falta de
instituições democráticas, desespero das privações sociais, sentimento de
injustiça. A busca de "motivações sociais" para a ação terrorista pode parecer
irrealista, ademais de um desvio do foco principal de luta contra terroristas
"reais". Não deixa de ser legítimo, no entanto, procurar apaziguar, na obtenção
de uma prosperidade compartilhada, os terroristas "potenciais" existentes nos
muitos subúrbios miseráveis de países instáveis e estagnados .
Construir a prosperidade no mundo não é objetivo utópico. Trata-se de projeto
factível, que pode ter início na adoção de medidas simples e graduais, como a
abertura dos mercados agrícolas e a diminuição das práticas protecionistas, por
exemplo, bem como por um engajamento real em políticas públicas nos países em
desenvolvimento que promovam a educação e a capacitação técnica.
O Brasil dispõe de poucas alavancas de poder ou condições econômicas objetivas
para impulsionar essa agenda de "prosperidade global". Ele tem feito a sua
parte, no entanto, através de um esforço em prol da abertura de mercados e da
aceitação de uma interdependência mais efetiva no que se refere a questões
comerciais ou normas regulatórias vinculadas ao intercâmbio global de bens,
serviços, tecnologia e capitais.
Medidas específicas de combate ao terrorismo, para as quais o Brasil tem
contribuído, incluem a coordenação de agências de segurança e inteligência em
todo o mundo, assim como a adoção de mecanismos inibidores da utilização
transfronteiriça de sistemas bancários para fins criminosos.
A ação direta contra o terrorismo passa também pela discussão de medidas de
caráter preventivo e repressivo em foros mais amplos como podem ser os foros de
coordenação regional e mesmo os de caráter universal como a ONU, o FMI e os
órgãos diretores dos instrumentos de não-proliferação, a exemplo da Agência
Internacional de Energia Atômica e da Organização para Proscrição de Armas
Químicas.
Uma série de outras ações, de caráter "estrutural", apresenta obstáculos
maiores em termos de resultados imediatos. Promover a democracia e a cultura
cívica, inclusive através da igualdade de gênero e da defesa dos direitos da
mulher, que parecem agir como dissuasores "naturais" do comportamento radical,
implica uma complexidade que não permite prejulgar resultados, de vez que não
se pode exportar valores e instituições, e muito menos impor modelos políticos,
ainda que democráticos, sobre outros povos e sociedades.
O Brasil não tem mais, como se sabe, um problema democrático. Ele se apresenta
atualmente como uma democracia consolidada, ainda que fragilizada pela
continuidade de problemas sociais persistentes. Com efeito, o problema do
Brasil se situa hoje inteiramente no terreno do desenvolvimento econômico e
social, o que inclui a construção de um Estado moderno e eficaz, menos propenso
à corrupção de seus agentes e capaz de distribuir justiça de uma forma expedita
e eficiente. O verdadeiro desafio de política interna neste Brasil do início do
século XXI ' o que equivaleria, no caso americano, ao terrorismo ' é a
injustiça social, a educação, a melhoria do sistema de saúde, o combate ao
tráfico de drogas e à violência e o amparo à uma população marginalizada e
entregue ao espectro de uma existência sem futuro e sem esperança.
Reside aqui o contraste maior com os objetivos imediatos dos EUA no contexto
pós-11 de setembro. Uma compatibilização entre essas agendas é necessária, de
maneira a que seja mantida a identidade fundamental de objetivos nos planos
bilateral, regional e multilateral. As lideranças políticas e econômicas de
ambos os países deverão encontrar um terreno comum de entente, que permita
superar os poucos desencontros existentes num relacionamento amplamente
positivo e reforçar ainda mais os laços de coordenação e de cooperação.
Do ponto de vista da política externa brasileira, o grande desafio, nos
próximos anos, será o de identificar e definir (ou redefinir) o interesse
nacional, tendo como meta a inserção do país na ordem mundial, no contexto da
globalização e da era da informação, e levando em conta o unilateralismo da
política externa de Washington e as novas prioridades da agenda internacional.
Na busca desse reposicionamento, o Brasil poderá fortalecer-se na medida em que
assuma o papel que lhe cabe na América do Sul. A partir do momento em que o
Brasil for percebido como um interlocutor interessado e ativo na região,
aumentará seu peso especifico no cenário internacional. A atuação pró-ativa do
Brasil nas áreas político-diplomática, econômico-comercial, financeira e de
defesa deve ter como orientações principais a aproximação dos interesses comuns
dos países da região, a abertura de mercados para os parceiros sul-americanos
em bases preferenciais, a defesa da democracia, da segurança coletiva, do
crescimento econômico e da justiça social.
Os próximos anos serão um período de significativas mudanças no cenário
externo. Finda a Guerra Fria, realinhadas as grandes potências e parecendo
irreversível o processo de globalização, o tema do terrorismo destaca-se como
elemento central na agenda internacional ao levar a maior potência do planeta a
uma importante alteração em seu modo de relacionar-se com o mundo. Nesse novo
cenário, identificado ou (re)definido o interesse nacional, o País terá de se
reposicionar na nova ordem mundial e no contexto da globalização, levando em
conta as novas prioridades da agenda internacional e, como dado chave desse
panorama mais amplo, a conduta externa dos EUA. Não se trata de adotar uma
acomodação passiva ou reativa às transformações em curso, mas sim um movimento
de antecipação a elas, tendo sempre presente o interesse nacional.
A agenda multilateral poderá gerar tensões com os EUA, em vista da diferença
dos interesses e, muitas vezes, de enfoque em temas globais, como o meio
ambiente, os direitos humanos e o próprio terrorismo. Para a política externa
brasileira, o desenvolvimento econômico continuará a ser prioridade absoluta.
Nesse contexto, as negociações comerciais multilaterais, regionais e bilaterais
serão preocupações permanentes e nem sempre as posições do Brasil e dos EUA
serão convergentes. Nesse particular, a co-presidência Brasil-EUA das
negociações da ALCA será um teste importante para o relacionamento bilateral:
poderá tornar-se fator positivo de entendimento ou, ao contrário, um encontro
marcado para maiores diferenças.
Notas
1 Cf. Michael Hardt e Antonio Negri, Império(Rio de Janeiro: Record, 2001). Os autores explicam de maneira original a influência e o
predomínio dos EUA no contexto do processo de globalização e identificam uma
mudança radical nos conceitos que forma a base filosófica da política moderna.
Procuram igualmente ressaltar a clara diferença entre o Império emergente
contemporâneo e as formas hegemônicas anteriores, como a predominância européia
e a expansão capitalista.
2 "O império só pode ser concebido como uma república universal, uma rede de
poderes e contra-poderes estruturada numa arquitetura ilimitada e inclusiva.
Essa expansão imperial nada tem a ver com o imperialismo, mas com esses
organismos estatais projetados para a conquista, a pilhagem, o genocídio, a
colonização e o racismo." Cf. Império, op. cit. p. 185.
3 Idem, p. 183-198.
4 Joseph Nye, "The new Rome meets the new barbarians", The Economist, 23 março
2002.
5 Em artigo publicado na The New Yorker (1º de abril de 2002), intitulado "The
Next World Order", Nicholas Lemann resgata as origens da atual política externa
dos EUA diretrizes formuladas no início dos anos 90 (governo Bush pai) para o
que seria a estratégia internacional americana pós-Guerra Fria. Por trás dessa
nova estratégia, que não chegou a ser adotada em função da vitória de Clinton
em 1992, estavam pessoas que hoje ocupam posições de destaque no atual governo
de George W. Bush: Vice-presidente Dick Cheney, Subsecretário de Defesa Paul
Wolfowitz, Chefe de Gabinete de Cheney Lewis Libby, entre outros. Essas novas
diretrizes de política externa, que chegaram a ser apresentadas por George Bush
em 1990 (sem grande destaque, pois o dia de apresentação coincidiu com a
invasão do Kuwait pelo Iraque), preconizavam a construção de um futuro no qual
os EUA se afirmariam como a única superpotência, através de ações que
impedissem outras nações ou alianças de tornarem-se potências concorrentes. O
atual presidente americano, que durante sua campanha eleitoral e nos primeiros
meses da Casa Branca parecia propenso a adotar uma postura relativamente mais
moderada em matéria de política externa (que tem em Colin Powell seu maior
representante), foi levado, após o 11 de setembro, a aderir à "linha dura"
preconizada por Cheney e Wolfowitz.
6 O "soft power", poder de influir para que os outros passem a admirar e a
procurar seguir o que os EUA desejam e buscam, complementa o "hard power", o
poderio militar. O "soft power" é crucial, mas sozinho não é suficiente: hard
power e soft power serão necessários para o exercício de uma política externa
bem sucedida na era da informação global, observa Joseph S. Nye em The Paradox
of American Power:Why the World's Only Superpower Can't Go It Alone (New York:
Oxford University Press, 2002), p. 141.
7 Em artigo publicado no New York Times de 31 de março de 2002 ("All Roads lead
to D.C."), Emily Eakin faz uma referência a uma série de artigos e livros que
passam a examinar os EUA não como uma simples superpotência ou potência
hegemônica, mas como um império no sentido romano ou britânico. Esse é o
consenso a que chegaram alguns dos mais importantes comentaristas e acadêmicos
norte-americanos por ela citados. Embora o conceito não seja aceito por muitos,
as análises recentes apresentam a idéia com uma conotação positiva,
nacionalista, quase ufanística. Os trabalhos mais importantes desse novo
enfoque são: Why Leadership Demands a Pagan Ethos(Random House, 2001), do
jornalista Robert Kaplan; o ensaio de Paul Kennedy ' que havia aventado a
hipótese do declínio do poderio norte-americana ' "The Eagle has Landed"
(Financial Times, 2-3 de fevereiro de 2002); The Case for American Empire, de
Max Boot (Weekly Standard, outubro de 2001). ) e Reluctant Imperialist,
comentário de Sebastian Mallaby no qual defende a idéia de que os EUA devem
abandonar a relutância em assumir uma atitude hegemônica mais direta e aceitar
a noção da volta da força imperia para enfrentar o desafio de um mundo mais
pobre e mais violento, in Foreign Affairs, março/abril 2002.
8 L'Empire et les Nouveaux Barbares. Paris: Editions Jean-Claude Lattès, 1991)
9 A expressão foi utilizada por Richard Haas, Diretor de Planejamento Político
do Departamento de Estado, in Shanker, "White House says the US is not a loner,
just choosy", mencionado por Joseph Nye, The Paradox of American Power, op.
cit., p. 159.
10 Não é ocioso lembrar que o "national security interest", o interesse da
segurança nacional, é o fundamento da política externa dos EUA. Os ataques de
11 de setembro exacerbaram a aplicação da doutrina, invocada até para a defesa
de posições norte-americanas nas áreas de comércio exterior, energia,
agricultura e alimentos. Durante a campanha eleitoral, Condoleezza Rice e
Robert Zoellick discutiram a validade dessa doutrina no período pós-Guerra Fria
(ver "Promoting the National Interest", Foreign Affairs, janeiro-fevereiro
2002).
11 Condoleezza Rice, em entrevista concebida a Nicholas Lemann, afirma que a
luta contra o terrorismo e a acumulação de armas de destruição em massa por
"estados irresponsáveis" definem atualmente o interesse nacional americano (The
Next World Order, op. cit.). Por outro lado, documento definindo os novos
parâmetros da estratégia de segurança nacional está sendo ultimado. Segundo se
veiculou, seu eixo reside em uma nova interpretação do conceito de soberania '
ou de seus limites. Em sua nova acepção, o conceito de soberania implicaria
obrigações que, não respeitadas, poderiam dar o direito a intervenções
externas. Está em gestação a doutrina Bush, pela qual cada país deve ser
responsável pelo que acontece dentro de suas próprias fronteiras, inclusive no
que se refere a ações terroristas. Essa doutrina reforça e dá base conceitual a
outra, elaborada durante o governo George Bush pai, que previa ações no sentido
de impedir a ascensão de qualquer país à condição de (segunda) superpotência
concorrente (ver nota 5).
12 O combate permanente ao terrorismo pode ser visto como o substituto da luta
contra o inimigo externo do tempo de maniqueísmo da Guerra fria, quando a URSS
era vista como o "Império do Mal".
13 Walter Russell Mead, senior fellow do Council on Foreign Relations de Nova
York, em seu livro Special Providence: American Foreign Policy and How It
Changed the World (New York: Knopf, 2001) aponta quatro visõ es ou escolas domésticas de política externa: a "jeffersoniana",
defensora da posição isolacionista em assuntos internacionais; a "wilsoniana",
defensora do predomínio do Direito Internacional sobre os interesses dos
Estados nacionais, incluindo os EUA, e do respeito aos regimes multilaterais; a
"jacksoniana", defende a ação unilateral dos EUA em defesa de seus interesses
no cenário internacional, com recurso à força se preciso for; por último, a
"hamiltoniana", herdeira dos princípios condutores da política externa
britânica do século XIX, de caráter essencialmente pragmático, podendo adotar
posições unilaterais ou multilaterais de acordo com as circunstâncias de cada
momento e as relações custo e benefício derivadas da adoção de diferentes
cursos de ação.
14 Richard Haas, Diretor do Escritório de Planejamento Político do Departamento
de Estado, que se pronunciou a favor do multilateralismo à la carte, em
palestra no Carnegie Endowment for International Peace, em novembro de 2001, se
referiu publicamente à visão do governo Bush nesse particular: "Nós já
demonstramos que podemos e agiremos sozinhos quando for necessário. Um
compromisso com o multilateralismo não precisa constranger nossas opções".
15 Ver o relatório publicado no início de abril de 2002 pelo Institute for
Energy and Environment Research e pelo Lawyers' Committee on Nuclear Policy,
The Rule of Power or the Rule of Law?: An Assessment of U.S. Policies and
Actions Regarding Security-Related Treaties, que discute a rejeição por parte
dos EUA de uma série de acordos internacionais e as conseqüências disso sobre o
fortalecimento das regras e das leis internacionais (New York Times, 4 de abril
de 2002).
16 Em março de 2002, os EUA tornaram pública sua intenção de afastar o
embaixador brasileiro José Maurício Bustani da direção da Opaq, com sede na
Haia, criando um precedente nos anais do multilateralismo político ao obter
apoio para, através de voto de desconfiança, removê-lo em 22 de abril de 2002.
17 A chamada "Nuclear Posture Review", que consiste num relatório confidencial
de meia centena de páginas produzido no âmbito do Pentágono e entregue ao
Congresso americano em janeiro de 2002, foi revelada pela primeira vez em
matéria do jornal Los Angeles Times, de 9 de março, tendo sido desde então
extensivamente comentado em outros jornais e como tal objeto de crescente
polêmica nos EUA e no exterior. O texto identifica as situações nas quais os
EUA poderiam ser levados a utilizar armas nucleares e lista os países mais
suscetíveis de estarem envolvidos nesse tipo de situação: China, Rússia,
Iraque, Coréia do Norte, Irã, Líbia e Síria. A nova "postura" da administração
Bush contrasta com as diretivas conhecidas da administração Clinton, que se
preocupava em conter a ameaça de um ataque nuclear contra os EUA.
18 Muitas vozes, entre as quais a do Presidente Fernando Henrique Cardoso '
como, por exemplo, no discurso proferido na Assembléia Nacional Francesa (30/
10/01) e na abertura da LVI Assembléia-Geral das Nações Unidas (10/11/01) ',
insistem em observar que essa agenda não pode ser seqüestrada pelo item
"terrorismo", mas deve dar espaço a outros problemas, em parte subjacentes ao
próprio terrorismo, tais como a violência, a pobreza, a injustiça social.
19 O conceito de uni-multipolaridade está desenvolvido por Samuel Huntington,
no ensaio "The Lonely Superpower", Foreign Affairs,Março-Abril de 1999.
20 Nye, op. cit., p. 38-39, observa, por outro lado, que o mundo pós-Guerra
Fria não é nem "unipolar"(conceito que exageraria o grau de hegemonia dos EUA),
nem "multipolar"(conceito que induziria, equivocadamente à crença na existência
de vários países com praticamente o mesmo poderio). Segundo Nye, o poder na era
da informação global está distribuído entre os países de uma maneira que se
assemelha a um complexo tabuleiro tridimensional: o poder militar, como já foi
assinalado, é amplamente unipolar; o poder econômico é multipolar, com os EUA,
a Europa e o Japão representando 2/3 do produto mundial e a China colocando-se
como o quarto ator importante. Do ponto de vista econômico, os EUA não são a
única potência hegemônica e têm que negociar em termos iguais, em muitas áreas,
com a Europa e o Japão; nas relações transnacionais, que extravasam os limites
territoriais dos países e ficam fora do controle governamental (bancos,
companhias, terroristas, traficantes de drogas), o poder é vastamente disperso,
não fazendo sentido falar em unipolaridade, multipolaridade ou hegemonia.
21 Segundo Nye, em The Paradox of American Power, a "Pax Americana"
provavelmente terá longa duração, não somente em virtude do poderio militar
incontrastado norte-americano, mas também na medida em que os EUA são a única
superpotência capaz de exercer contenção estratégica (strategic restraint),
tranqüilizando seus parceiros e facilitando a cooperação; op. cit., p. 17.
Robert Gilpin, citado por Nye, observa que a "Pax Americana", como a "Pax
Romana" e a "Pax Britannica", garante uma relativa paz e segurança ao sistema
internacional; op. cit., p. 15.
Washington, maio de 2002