O contrário dos direitos humanos (explicitando Zizek)
"... não vivemos nós na era dos direitos humanos universais, que se afirmam até
mesmo contra a soberania estatal? O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN não foi
o primeiro caso de intervenção militar realizada em decorrência de pura
preocupação normativa (ou, pelo menos, apresentando-se como assim realizada),
sem referência a qualquer interesse político-econômico "patológico". Essa nova
normatividade emergente para os `direitos humanos' é, entretanto, a forma em
que aparece seu exato oposto".
Slavoj Zizek
Pré-introdução que não chega a ser prefácio
Por mais que hoje se possa imaginar o contrário, quando o grande pensador
cultda atualidade, Slavoj Zizek, escreveu que a "nova normatividade emergente
para os direitos humanos é a forma em que aparece seu exato oposto", ele não
tinha em mente nada a ver com os ataques que destruíram as torres do World
Trade Center em Nova York e uma ala do Pentágono em Washington, D.C. Tampouco
podia ter ele em mente as ações e disposições legislativas adotadas em seguida
pelos Estados Unidos em sua "guerra contra o terrorismo", muitas das quais
colocam direitos civis preciosos em sursis e em suspense. O livro em que esse
filósofo, psicanalista e crítico cultural esloveno registrou tal frase
contundente, no parágrafo aqui reproduzido parcialmente em epígrafe,1 fora
posto à venda nas livrarias norte-americanas no mesmo ano de 2001, mas vários
meses antes do fatídico (em múltiplos significados) Onze de Setembro.
Não se referindo a tendências relacionadas a esses atentados e levando em
consideração a relevância sem precedentes que o tema dos direitos humanos havia
passado a ter na agenda internacional do pós-Guerra Fria, particularmente por
meio de construções normativas contra a impunidade dos grandes violadores, não
estaria essa afirmação deslocada no tempo? Não seria ela contraditória com os
fatos?
Que quereria dizer Zizek com "o oposto dos direitos humanos"? A conhecida e
desgastada reiteração da inexistência de direitos universais na medida em que
estes são criações históricas, originárias de uma cultura específica? Ou, de
maneira prosaica, menos principista, a habitual violação sistemática ' não
seria melhor dizer "sistêmica"? ' desses direitos fundamentais, que sem dúvida
existem e são de todos?
Tratar-se-ia de frase pour épater do mais novo enfant terrible das ciências
sociais? Seu autor não é, com efeito, pensador irreverente de país um tanto
exótico, que, não contente de unir Lacan, Hegel e Kant em análises anti-
capitalistas, libertárias, supostamente anacrônicas, insiste em não separar a
cultura pop e a filosofia ocidental mais erudita? Ou seria por que, europeu
periférico de nascença, esse pesquisador balcânico, do Instituto de Estudos
Sociais de Ljubljana, teimosamente insiste em ir contra a moda
(multi)culturalista dos grandes centros ocidentais irradiadores do pensamento
pós-moderno, arraigadamente "perspectivistas" e dissimuladamente relativistas
(a serviço voluntário ou involuntário do universalismo "do mercado") para
defender com ardor e consciência crítica os valores universais do próprio
Ocidente iluminista?
Na seqüência da passagem em que essa frase se insere, Zizek a explicita em
contexto filosófico, reinterpretando, com auxílio de Claude Lefort e Jacques
Rancière, a posição cética de Marx a propósito dos direitos humanos e da
igualdade formal: o abismo escondido por seu enunciado adviria do fato de que a
forma não é mera forma. Implica uma dinâmica concreta, contrária à busca de
condições para a igualdade universal efetiva, que deixa marcas profundas na
materialidade social.2 Sem elucubrações desse tipo, mas delas se aproximando
ou distanciando às vezes, conforme o caso, o que se pretende aqui é mais
simples: avaliar a pertinência dessa afirmação atualmente inusitada à luz das
vicissitudes empíricas com que já se vinha defrontando a luta pelos direitos
humanos antes mesmo do Onze de Setembro.
Introdução real: progressos e paradoxos
Quem observava, em meados de 2001, determinados fatos recentes, como a entrega
do ex-Presidente Milosevic da Iugoslávia ao Tribunal da ONU na Haia, as
iniciativas para levar o General Pinochet a julgamento no Chile (após sua quase
extradição da Inglaterra para a Espanha), os processos judiciais externos ou
domésticos contra ex-governantes centro e sul-americanos implicados em
massacres de civis (casos de ex-dirigentes guatemaltecos e do líder da junta
militar argentina Jorge Rafael Videla), assim como o sentenciamento, no Brasil,
a 632 anos de prisão, do comandante das tropas da PM que ocuparam a Casa de
Detenção do Carandiru no episódio de 1992, poderia ter, muito possivelmente, a
sensação de que a situação dos direitos humanos estava se tornando mais
promissora no mundo. Poderia até, com algum otimismo, acreditar que o caminho
para uma verdadeira Justiça Internacional vinha se consolidando, neste início
de século, com as sementes lançadas na última década do século passado. Era
isso que pareciam apontar, entre outras novidades, as crescentes ratificações
do estatuto do Tribunal Penal Internacional aprovado pela Conferência de Roma
de 1998, o julgamento pelo Tribunal ad hoc para a ex-Iugoslávia de indiciados
croatas e bósnios muçulmanos (em demonstração aparente de que não havia
parcialidade anti-sérvia naquele tribunal), os processos da ONU em Arusha ou da
justiça belga em Bruxelas contra indivíduos hutus que participaram do genocídio
de tutsis de Ruanda em 1995.
Com efeito, e malgrado a rejeição pelos Estados Unidos do Tribunal Penal
Internacional,3 esse "otimismo judicial" era tão palpável que levara um grupo
de 30 juristas de várias nacionalidades, inclusive alguns orientais, a
definirem, na Escola Woodrow Wilson de Assuntos Públicos e Internacionais da
Universidade de Princeton, uma série de 14 diretrizes, denominadas "Princípios
de Princeton" (thePrinceton Principles on Universal Jurisdiction), para
servirem de orientação aos julgamentos internacionais de indivíduos, ex-Chefes
de Estado ou não, responsáveis por crimes que extrapolam jurisdições
territoriais.4 E foi esse mesmo otimismo, no que ele tinha de mais ingênuo '
ou teria sido, ao contrário, uma fundada desconfiança nos instrumentos desse
otimismo o estímulo para submetê-los a teste? ', que inspirara um grupo de
advogados ocidentais a apresentarem à promotora do Tribunal Internacional para
a ex-Iugoslávia, em abril de 1999, com apoio da Anistia Internacional, pedido
de indiciamento dos líderes da OTAN pelos sofrimentos infligidos à população
civil da Sérvia durante a guerra do Kossovo (o pedido foi rejeitado com a
alegação de que não havia sido feita ' e não se poderia fazer ' atribuição
individual de responsabilidades).5
Por mais que se possam questionar as premissas em que se baseavam todas essas
novidades judiciais (a seletividade "da ONU" na montagem de tribunais ad hoc, a
entrega praticamente "comprada" do ex-Presidente Milosevic ao tribunal da
Haia,6 a parcialidade na escolha dos ex-dirigentes que se pretende punir nas
iniciativas mais conhecidas, a alegada desatenção com a soberania nacional
chilena no pedido de extradição de Pinochet pela Justiça espanhola ' assim como
o fato de a condenação do responsável pela ação da PM contra os prisioneiros
rebelados na Casa de Detenção de São Paulo, circunscrito à esfera brasileira e
objeto de recurso, não significar ainda o encerramento do caso com punição
exemplar), é difícil contestar a importância intrínseca desses fatos. Eles
constituíam e constituem ainda passos importantes, de grande simbolismo, para o
funcionamento de mecanismos de justiça elaborados pouco a pouco no contexto das
Nações Unidas, ou, no que diz respeito ao caso brasileiro aqui mencionado,
encaminham-se na direção do atendimento de clamores da cidadania acordes com os
direitos humanos e as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de
Prisioneiros (por mais que alguns setores de nossa sociedade tenham, na época
do massacre do Carandiru, defendido a matança dos presos rebelados como forma
legítima de limpeza social).
Se esses e outros fatos, abundantes e significativos, eram ' e são ainda '
inegavelmente positivos para os direitos humanos; se estes direitos se tornaram
uma constante no discurso contemporâneo, além de tema de monitoramento
internacional autorizado por conferência mundial;7 se os direitos humanos, na
década de 1990, foram pela primeira vez erigidos em justificativa ética para
intervenções armadas "desinteressadas" (como afirmavam os líderes da OTAN
durante os bombardeios da Iugoslávia na guerra do Kossovo), então faz todo
sentido indagar por que motivos tais direitos, reputados universais, são ainda
' ou, mais precisamente, são de novo ' desconsiderados ou repudiados sob o
rótulo legalmente anacrônico, mas culturalmente persistente, com força atual
redobrada, de que não passam de manifestação do imperialismo ocidental.8
Por que motivo, ao mesmo tempo em que são citados com tanta freqüência em quase
todo o planeta, os direitos humanos continuam objeto de tamanha descrença (e
tamanho desconhecimento!) de parte daqueles que mais deveriam proteger? Que
razões mais ou menos abrangentes do que a conhecida duplicidade (double-
standards) dos poderosos nessa matéria teriam levado o mesmo Slavoj Zizek, em
outro texto também pré-Onze de Setembro, a identificar nesses direitos uma
"ética perversa" (sic),9 com significado mais amplo do que o de Marx ao
condenar os direitos humanos (do Século XIX) como instrumentos para a
legitimação da exploração do trabalhador? Que fundamento concreto, ademais da
maciça destruição da Sérvia pela OTAN, embasaria a afirmação interpretativa
daquele atual cidadão da República da Eslovênia, um pensador que nunca teve
inclinações pró-Sérvia (ou pró-Tito, e, muito menos, pró-Milosevic), de que "a
nova normatividade emergente para os `direitos humanos' é a forma em que
aparece seu exato oposto" (o grifo é do próprio Zizek)?
Humanitarismo "para inglês ver"?
Quando, nos estertores da Guerra Fria, a França, impulsionada pelos Médecins
sans Frontières,10 submeteu à Assembléia Geral das Nações Unidas, na sessão de
1988, o projeto de resolução sobre assistência humanitária que deu origem à
expressão "direito de ingerência", sua preocupação explicitada era com as
dificuldades interpostas por determinados Governos de países conflagrados, como
o Afeganistão (de regime secular pró-soviético) e o Sudão (muçulmano sunita
fundamentalista, em luta contra os "cristãos" do Sul), à concessão de auxílio
médico e alimentar a vítimas integrantes ' muitas vezes apenas pela etnia ' de
movimentos insurrecionais. A Resolução 45/131, em que se transformou o projeto
francês, após os debates e questionamentos esperados, foi, não obstante,
adotada por consenso.11 Sua rationaleera, afinal, uma extensão
indubitavelmente lógica do direito internacional dos direitos humanos, em sua
vertente humanitária: o direito elementar de todas as pessoas, vitimadas por
cataclisma de origem natural ou humana, de receberem a assistência necessária a
sua sobrevivência. Visto por outro ângulo, não o dos titulares individualizados
desse direito fundamental, mas o das entidades prestadoras de auxílio, tratava-
se do direito das organizações humanitárias, não-governamentais e não-
subordinadas ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha, de terem acesso às
vítimas de qualquer desastre ou conflito, independentemente de sua posição
perante o governo do Estado respectivo, para a prestação de assistência.12
Desde a adoção dessa resolução, muitas outras, na Assembléia Geral e, em
especial, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, estenderam enormemente o
direito de acesso às vítimas. As do Conselho de Segurança, raramente
consensuais, conferiram a esse novo direito, antes não previsto em qualquer
ramo disciplinar do Direito Internacional, feições sobretudo militares.
Fizeram-no ao avalizar a posteriori ou ao promover ab initio a intervenção de
forças armadas estatais em conflitos alheios, com objetivos humanitários ' sem
definir em termos genéricos, universais e regulamentadores, como é da essência
do Direito, as características desse informalmente chamado "direito de
ingerência".
O primeiro exemplo da nova ingerência militar humanitária configurou-se na ação
de auxílio e proteção aos kurdos do Iraque, na seqüela da Guerra do Golfo de
1991, envolvendo não somente a contenção bélica das forças de Bagdá para o
lançamento de comida e medicamentos por pára-quedas às populações em fuga, como
também a proibição, até hoje vigente, de vôos por aeronaves iraquianas em
grande parte do espaço aéreo do país. Outras experiências ilustrativas dessa
nova modalidade de ingerência autorizada logo se seguiram: na Somália (para o
fornecimento de alimentos à população submetida à anomia de uma guerra de clãs
devastadora), em países da América Central (para a manutenção da paz e do
respeito aos direitos humanos entre forças do Governo e movimentos
insurgentes); nas guerras inter-étnicas do território da antiga Iugoslávia (em
operações de peace-enforcement, terrivelmente tardias, entre forças militares e
paramilitares de diferentes facções micronacionalistas).
Todos esses episódios de intervenção armada contavam com o respaldo da
"comunidade internacional", representada pela ONU, à atuação de Estados e
organizações específicas (os Estados Unidos na Somália, a OEA/Estados Unidos no
Haiti, a ECOWAS africana na África Ocidental), ou se concretizavam no
posicionamento de forças multinacionais diretamente sob a égide das próprias
Nações Unidas ' os famosos "capacetes azuis" ' nas áreas de conflito. Exitosas,
como na Namíbia e em El Salvador, ou fragorosamente mal-sucedidas, como na
Somália, na Croácia e na Bósnia-Herzegovina, essas iniciativas se regiam por
"normas" tão legítimas quanto possível nas condições existentes, porquanto
consubstanciadas em resoluções da única instância "constitucional" multilateral
' por menos eqüitativa que seja a composição do conselho que trata das questões
atinentes às ameças à paz e à segurança internacionais. E, embora na Bósnia, a
partir do malogro dos chamados "espaços protegidos" (safe havens) como o de
Srebenica, as forças de paz da ONU tenham sido autorizadas a usar da força,
inclusive aérea, para impor essa malograda "proteção" às populações civis
perseguidas, nenhuma dessas operações contemplou a exclusividade de bombardeios
aéreos como solução para os problemas de direitos humanos ou direito
humanitário.
O primeiro caso recente em que o "humanitarismo" foi decidido
"unilateralmente"13 (por aliança militar de que não era membro o Estado-alvo),
sem ser levado à consideração das Nações Unidas (fosse porque a OTAN
considerasse a Europa sua chasse gardée, fosse porque certamente não haveria
apoio de todos os membros permanentes do Conselho de Segurança), foi o da
Guerra do Kossovo ' na verdade, a guerra da OTAN contra o que sobrara da antiga
Iugoslávia (Sérvia e Montenegro), especialmente a Sérvia. Sua justificativa
eram as violações de direitos humanos dos kossovares, cidadãos iugoslavos de
etnia albanesa, residentes (e crescentemente insurretos) na província sérvia do
Kossovo, perpetradas pelos sérvios lá residentes ou para lá transferidos por
Belgrado, na condição de refugiados expulsos da Krajina (região do território
croata tradicionalmente povoada por sérvios), depois da guerra de secessão da
República da Croácia.
Não cabe aqui questionar a veracidade dos informes sobre as atrocidades
praticadas pelas partes em conflito no território da ex-Iugoslávia, nem
tampouco o nacionalismo agressivo oportunisticamente instigado nas respectivas
populações, com efeitos aterradores, por líderes do gênero de um Slobodan
Milosevic.14 Cabe sim, indagar, como foi possível conceber um combate legítimo
em defesa de direitos humanos por meio de bombardeios acionados a milhares de
metros de altitude, que sequer visavam claramente instalações, militares ou
não, dos responsáveis pelas violações. Cabe, sim, refletir se é possível
fundamentar com o Direito e com a Ética uma guerra supostamente "justa"
realizada contra alvos quase sempre civis (além de pontes, estradas e usinas, o
próprio edifício da emissora de televisão local, numa repetição anacrônica do
que haviam feito os soviéticos na Primavera de Praga, com seu notório pavor da
liberdade de expressão). Caberia, ainda, perguntar se é aceitável, em nome dos
direitos humanos, proteger coletividades por meio de ataques que, ao longo de
setenta e oito dias, além de vitimarem cidadãos totalmente desvinculados da
prática de massacres, arrasaram, em efeito não-colateral, as condições de
viabilidade do país que os sustentava.15
Foi exatamente com os qualificativos de "guerra justa e necessária", em defesa
de "nossos valores", na proteção de "nossos interesses" e "para avançar a causa
da paz", que o Presidente Bill Clinton explicou aos norte-americanos o início
dos ataques aéreos contra a Iugoslávia, acrescentando que "(S)e tivéssemos
hesitado, o resultado teria sido um desastre moral e estratégico. Os kossovares
albaneses ter-se-iam tornado um povo sem pátria, vivendo em condições difíceis
em um dos países mais pobres da Europa" (ao que se poderia indagar, depois da
rendição iugoslava, se a situação moral e estratégica dos Estados Unidos e da
Europa, assim como as condições e perspectivas dos kossovares se tornaram
diferentes para melhor). Com discurso parecido e justificativas iguais
pronunciaram-se os demais líderes da OTAN.
De todas as declarações sobre o assunto feitas em março de 1999, a que se
tornou mais famosa foi do Primeiro Ministro britânico, Tony Blair, que definiu
elegantemente a emergência de "um novo internacionalismo", de conteúdo
estritamente humanitário:
"Estamos lutando por um mundo onde os ditadores não possam mais infligir
sofrimentos horrendos a seu próprio povo com o objetivo de continuarem no
poder. Entramos num novo milênio em que os ditadores saberão que não podem
realizar limpezas étnicas ou reprimir seus povos com impunidade".16
Seria muito bom se a certeza expressada nessa afirmação viesse a confirmar-se
de forma tão convincente que o "novo internacionalismo" pudesse servir de
dissuasão efetiva a ditadores mal-intencionados. Seria ainda muito bom se os
bombardeios da OTAN tivessem logrado, pelo menos, convencer os próprios
albaneses, kossovares ou não, de que o caminho mais adequado para a consecução
da não-discriminação étnica, a que todos fazem jus dentro de qualquer
território, e da autonomia efetiva alegadamente colimadas na Iugoslávia atual
não deveria ser o de retaliações assassinas anti-sérvias no Kossovo
"libertado", ou o de novas ações armadas contra alvos na Macedônia ' que,
evidentemente, nada têm a ver com a figura de Slobodan Milosevic. Seria, ainda,
extraordinário se o "novo internacionalismo" fosse capaz de dissuadir o
terrorismo fundamentalista, particularmente aquele de caráter suicida, que
algum tempo depois iria manifestar-se nos atentados em Nova York e Washington,
instrumentalizados por aviões de passageiros, e que, de per si ou agravados
pela "guerra contra o terrorismo", nos termos em que foi declarada em reação a
eles, inauguraria a nova era de pavor em que todos passamos a viver.
Qualquer que tenha sido o valor real dos bombardeios da OTAN contra a reduzida
Iugoslávia, não é necessário duvidar das convicções humanitárias expressadas na
época pelos líderes da aliança atlântica. É verdade inconteste que o Governo
Milosevic já havia apoiado, estimulado e praticado muitos horrores na Croácia e
na Bósnia (embora a recíproca dos adversários também fosse verdadeira), não
faltando indicações de que eles se repetiriam na província irrequieta do
Kossovo, de maioria albanesa. Tampouco é necessário dar razão a um analista
como Michael Parenti, que enxerga na Guerra do Kossovo apenas a ambição
capitalista de eliminar a todo custo os últimos resquícios de economias
estatais no mundo "globalizado".17 Ou endossar o entendimento do "subversivo"
norte-americano Noam Chomsky, com interpretação parecida à de seu compatriota
Parenti, menos voltada para o imperialismo econômico do que para o exercício do
poder esmagador do Ocidente, orquestrado pela única Grande Potência, contra
qualquer resistência a sua dominação.18 Nem é necessário levar em conta a
massa de escritos críticos à ação aliada amplamente divulgados nos Estados
Unidos, inclusive pela grande imprensa, mas somente após os ataques da OTAN e o
fim da Guerra do Kossovo, para compreender que o "novo internacionalismo" (na
expressão de Tony Blair), ou "novo humanismo militar" (na expressão do alemão
Ulrich Beck, apropriada por Chomsky19.), é, no mínimo, controverso.20
Independentemente de outros fatores possivelmente influentes, a Guerra do
Kossovo, nos termos em que se desenrolou, ocorreu porque havia no Ocidente o
sentimento de que "alguma coisa precisava ser feita"; de que os Estados Unidos
e a Europa Atlântica não poderiam continuar apáticos ante a previsivel
repetição do "fenômeno bósnio", com tudo o que ele acarretara de violência e
barbárie em pleno território europeu; de que a Europa altaneira, como berço do
Ocidente, e seu filho mais poderoso não poderiam deixar para a ONU a tarefa de
impor pela força a arrumação da própria casa ' e, com ela, na medida do
possível, o respeito aos direitos humanos, de origem histórica reconhecida na
cultura euro-norte-americana. Ou, ainda no dizer do Primeiro Ministro Tony
Blair, porque "(N)o seu qüinquagésimo aniversário, a OTAN precisa(va)
prevalecer".21
À luz, porém, dos resultados obtidos pelos bombardeios maciços para os
iugoslavos inocentes, muitos dos quais previamente vítimas de "limpezas
étnicas" em outras regiões iugoslavas onde sempre haviam vivido, habitantes de
um país destroçado, com o PIB reduzido a menos da metade e desemprego de 50 %,
onde as pessoas morriam ' e, talvez, ainda morram, neste início de século, em
conseqüência da guerra ' de simples pneumonia, por falta de medicamentos e
assistência sanitária;22 à luz também da incapacidade que os ocupantes da
aliança atlântica e os representantes da ONU vêm demonstrando para transformar
o Kossovo numa província administrável; diante, finalmente, das ações armadas
que os insurretos albaneses logo passaram a praticar na República da Macedônia
e nas vizinhanças sérvias do Kossovo ocupado pela OTAN, não resta a menor
dúvida de que essa faceta da "normatividade emergente sobre os direitos
humanos", a que se refere Slavoj Zizek, parece, com efeito, produzir seu
contrário.
Cabe agora verificar se essa afirmação do filósofo esloveno não se aplicaria
igualmente a outras situações, menos bélicas e mais comuns, atinentes aos
direitos humanos de todos.
Os violadores democráticos
Quando, em abril de 2001, pela enésima vez, a Comissão dos Direitos Humanos das
Nações Unidas, em Genebra, aprovou, com apoio de quatro países latino-
americanos membros da Comissão (mas não da Venezuela de Hugo Chávez, que votou
contra, nem do Brasil, da Colômbia, do Equador e do México, que se abstiveram),
sua resolução (quase) anual condenatória da situação dos direitos humanos em
Cuba, tradicionalmente impulsionada pelos Estados Unidos, Fidel Castro, mais
uma vez, extravazou sua indignação. Chamou desta feita os latino-americanos que
condenaram seu regime de "lacaios de seu General-em-Chefe" (no caso, o General
da reserva e Secretário de Estado norte-americano Colin Powell, que, segundo
noticiado, teria feitolobbying para que a região votasse a favor da resolução '
aprovada em votação por 22 a 20). Até aí nada de novo e nada de especial.
Tampouco foi minimamente original a afirmação cubana, reproduzida pela
Associated Press, de que a ilha socialista do Caribe respeita os direitos
humanos de seus cidadãos assegurando-lhes sobretudo saúde e outros serviços
sociais gratuitos. Mais interessante, embora não propriamente nova, e digna de
avaliação aprofundada, foi a insistência também cubana de que Cuba estaria
livre das violações mais grosseiras de direitos humanos, inclusive as torturas,
"desaparecimentos" e execuções extrajudiciais, que infestam os demais países
latino-americanos.23
Evidentemente, essas violações mais repulsivas de direitos humanos antes
perpetradas pelos regimes autoritários da América Latina ao abrigo da famosa
doutrina da segurança nacional, quando não endossadas pelo Estado, são mais
facilmente evitadas num país insular e controlador com as dimensões de Cuba do
que em territórios continentais extensos, com grande população e fraca
capacidade de controle. Não causa, portanto, surpresa, que Cuba, pelo menos por
esse aspecto, alegue e, talvez, possa ter registro melhor do que muitos dos
demais países latino-americanos, de regime político democrático e sistema
eleitoral pluripartidário. Até porque, em se tratando de país estreitamente
monitorado de dentro e do exterior por uma infinidade de ONGs e indivíduos,
além de um Relator Especial das Nações Unidas para sua situação, seria absurdo
e expletivo que o Governo cubano, com mecanismos de controle estrito sobre seus
agentes e a sociedade como um todo, ainda que hipotética e improvavelmente o
quisesse, coonestasse esse tipo de brutalidades chocantes.
É fato que quase todos os demais países do hemisfério (e não apenas latino-
americanos e caribenhos), em gradações diferentes, ainda registram episódios
freqüentes de tortura e execuções sumárias por agentes estatais, por mais que
os "desaparecimentos", salvo um ou outro caso, geralmente em situações de
insurgência (como a da Colômbia atual ou do Peru de Fujimori), tenham-se
transformado, do fenômeno repressivo original, de responsabilidade do Estado,
em delitos ' igualmente brutais ' da criminalidade comum, na forma tão
difundida de seqüestros para extorsão. No que diz respeito às duas outras
formas de violações mais grosseiras persistentes ' torturas e execuções
sumárias ' ou demais atos de arbitrariedade praticados pelos agentes do Poder,
o que visivelmente mudou face ao "anos de chumbo" foram, sobretudo, a
motivação, geralmente não mais política, assim como o tipo de vítima, não mais
propriamente o opositor ideológico, plenamente legitimado nos sistemas
democráticos, mas sim, quase sempre, o praticante ou suspeito da prática de
crime comum. E nisso vão influir toda a gama de preconceitos vigentes nas
respectivas sociedades e, conseqüentemente, presentes na cabeça dos que
praticam tais violações.
Não se quer aqui dizer que antes não havia agressões contra criminosos ou
cidadãos inocentes suspeitos de crimes comuns, muitas vezes, como sempre, em
função de meros estereótipos sociais. Nem se pretende elidir o aspecto político
de que se reveste na atualidade, por exemplo, o excesso de força, algumas vezes
mortal, aplicado na evicção de sem-terras de áreas sob ocupação. Sabe-se, sim,
que as vítimas de arbitrariedades estatais decorrentes de ações e convicções
políticas tinham, nas ditaduras, maior visibilidade e apoio internacional do
que as vítimas enquadradas na criminalidade comum. De qualquer forma, mudanças
houve, para melhor, com a redemocratização. Havendo deixado de configurar
políticas de Estado, ou práticas investigatórias/punitivas legalmente
toleradas, as agressões de agentes estatais contra a integridade física (às
vezes também patrimonial) das pessoas atualmente decorrem, sobretudo, da
incapacidade dos Governos centrais para fazer valer suas determinações, seja na
sociedade como um todo, seja entre os responsáveis pela execução das leis
vigentes (agentes do policiamento ostensivo, delegados, investigadores,
comandantes de operações de captura, agentes carcerários etc.). Afinal, quando
democraticamente estabelecidas, as normas são supostamente igualitárias e
idealmente obedientes aos padrões internacionais.
Pareceria, assim, que, na época presente, as violações "tradicionais"24 mais
grosseiras de direitos civis, "de primeira geração" (à não-discriminação, à
segurança pessoal, de não ser submetido a tortura ou a detenção arbitrária, à
presunção de inocência, à liberdade de locomoção e, até, à propriedade,25 para
as camadas mais pobres), antes típicas das ditaduras, de direita e de esquerda,
tendem a ocorrer com maior freqüência justamente em países de regime
democrático e sistema representativo. Com os governos autoritários
permaneceriam particularmente as violações de direitos políticos e liberdades
fundamentais (de expressão, de associação, de religião), a que se associam,
quase sempre, brutalidades físicas não enquadradas propriamente nas definições
jurídicas internacionais de tortura (estabelecida no Artigo 1º da Convenção
Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, de 1984), desaparecimento (constante do terceiro parágrafo
preambular da Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra
Desaparecimentos Forçados, de 1992), ou execuções extrajudiciais (fixadas nas
regras de trabalho do Relator das Nações Unidas para Execuções Extrajudiciais,
Sumárias ou Arbitrárias).26
A democracia como violadora?
É claro que as maiores violações de direitos humanos de todos os tipos,
perpetradas pelo Estado, continuam a ocorrer em ditaduras ou países de regime
autoritário, secular ou religioso. Conforme estabelecia a Declaração e Programa
de Ação de Viena de 1993, a democracia é elemento fundamental para se obter a
observância dos direitos humanos, inclusive os "de segunda geração". Até
porque, conforme ensinava Marshall desde a década de 40, os direitos civis e
políticos sempre foram instrumentos importantes para a consecução dos direitos
econômicos e sociais pelo proletariado dos países que se modernizaram nos dois
últimos séculos.27 Mas, para quem acompanha apenas superficialmente a questão
dos direitos fundamentais nestes tempos pós-Guerra Fria, dada a acentuada
assertividade dos movimentos da sociedade civil, a total liberdade dos partidos
de oposição e a extraordinária ' e salutar ' exposição autocrítica das mazelas
nacionais a que se dedicam os mais importantes órgãos da imprensa livre (quando
não-submetida pelo sistema econômico dominante a verdadeira lavagem cerebral,
como se vê em alguns dos países ocidentais desenvolvidos), tem-se a impressão
de que países como o Brasil, o Chile, a Argentina, a Venezuela e outros
congêneres, plenamente redemocratizados neste início de século, são mais
violadores dos direitos de sua população do que governos autoritários ignorados
dos noticiários.
Diante dessas observações e tomada em seu sentido literal mais primário, a
frase de Slavoj Zizek "a normatividade emergente para os direitos humanos é a
forma em que aparece seu exato oposto" tenderia a adequar-se também, e
sobretudo, às violações persistentes de direitos fundamentais em tempos de paz,
denunciadas nas democracias. Pretenderia Zizek, nessas circunstâncias, afirmar
que a democracia é mais propensa a violar direitos humanos do que os regimes
autoritários? É evidente que não. Pensador profundo e abrangente, por mais
descrente do consenso neo-liberal e das deturpações por ele provocadas na
percepção contemporânea do sentido da democracia, o filósofo-psicanalista de
Ljubljana jamais pretenderia afirmar com sua frase de impacto algo tão
incorreto. Até porque o sentiu na própria pele de ex-cidadão iugoslavo sob o
regime de Tito, ele sabe (e diz em diversas passagens do mesmo livro) que o
autoritaritarismo é mais eficiente apenas no controle policial e demagógico da
sociedade.28
Deixando novamente Zizek de lado, o que não parece facilmente evidente é, em
certos casos específicos, a escassez de meios de que dispõem os países
democráticos em desenvolvimento para fazer valer a igualdade e a justiça
previstas na legislação doméstica. O que não se torna imediatamente evidente é
como, na falta de políticas distributivas adequadas, capazes de minorar a
exclusão crescente e os desníveis sociais mais acentuados em tempos de
neoliberalismo, os Estados democráticos de qualquer nível de desenvolvimento
tendem a recorrer, em todos os continentes, a práticas e normas anti-criminais
de "tolerância zero". É, por outro lado, evidente e comprovado ' além de
claramente associado ao significado mais profundo da frase de Zizek ' que, ao
adotarem as normas penais da "tolerância zero" na esfera criminal (em que se
inclui a experiência fluminense da "gratificação faroeste", com seu
"stakhanovismo" aplicado à eliminação de marginais), sem resolverem os
problemas sociais mais profundos das respectivas sociedades, os Estados
democráticos desenvolvidos e subdesenvolvidos propiciam o incremento de abusos
de direitos humanos por parte de agentes da polícia e de membros do judiciário
contra setores populacionais vítimas de discriminação e estereótipos.
Viena foi bastante clara ao estabelecer, pela primeira vez, o nexo entre a
democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. Fê-lo no artigo 8º, nos
seguintes termos, canhestros mas inquestionáveis:
"A democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos direitos humanos
e liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se
reforçam mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente
expressa pelo povo de determinar seus próprios sistemas políticos,
econômicos, sociais e culturais e em sua plena participação em todos
os aspectos de sua vida. Nesse contexto, a promoção e proteção dos
direitos humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e
internacional, devem ser universais e incondicionais. A comunidade
internacional deve apoiar o fortalecimento e a promoção da democracia
e o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades
fundamentais no mundo inteiro."
O que, sem dúvida, não foi corretamente assimilado na prática internacional,
assim como nas normas de muitos Estados que se dispõem a aplicar na jurisdição
doméstica as disposições da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos
Pactos e Convenções internacionais vigentes sobre a matéria, é que todos os
direitos humanos, definidos pela ONU desde de 1948 e reafirmados em sua
validade universal pela Conferência de Viena de 1993, são "... indivisíveis,
interdependentes e inter-relacionados" (artigo 5º da Declaração de Viena). Dada
essa característica intrínseca, única capaz de conferir-lhes legitimidade
consensual (acima das divergências entre os ensinamentos de Locke e Marx),
transversalidade política (ou seja, adaptabilidade às posturas não-radicais da
Direita e da Esquerda) e validade multicultural (acima das diferenças de
religiões e tradições), por mais
que esses direitos "inalienáveis" existam no papel e na intenção de regimes
democráticos, não há dúvida de que tais direitos civis e políticos se
relativizam. Além de os primeiros serem facilmente deturpáveis, os segundos
perdem substancialmente a capacidade de promover transformações efetivas, onde
as disparidades de sempre e o neoliberalismo atual não permitem a realização
dos direitos econômicos e sociais.
A indivisibilidade dos direitos humanos e a parcialidade das normas aplicadas
Em 1968, quando a herança keynesiana do "New Deal" nos Estados Unidos e a
social-democracia dos "trinta anos gloriosos" na Europa enfrentavam a
competição do comunismo, o radicalismo da Nova Esquerda e as postulações
econômicas ultra-liberais de pensadores como Hayek e Milton Friedman, mas, no
âmbito planetário, a democracia sucumbia ante golpes militares e movimentos
guerrilheiros, a primeira Conferência Internacional sobre Direitos Humanos,
realizada em Teerã (a Teerã do Xá Rheza Pahlevi), afirmava, sem ambigüidades,
no artigo 13 de sua Proclamação:
"Como os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis,
a plena realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos
direitos econômicos, sociais e culturais é impossível. O alcance de
progresso duradouro na implementação dos direitos humanos depende de
políticas nacionais e internacionais saudáveis e eficazes de
desenvolvimento econômico e social."
De significado inquestionável para qualquer leitor bem-intencionado, o artigo
13 da Proclamação de Teerã, mais do que uma asserção socialista contra o
liberalismo capitalista, ou a definição da social-democracia como meta
programática de todos, refletia, em especial, a reinvidicação de uma Nova Ordem
Econômica Internacional pelos países do Terceiro Mundo, com respaldo do
Segundo, então dada como válida. Foi, aliás, essa rationale estritamente
internacional que, com boa dose de hipocrisia, justificou ' e ainda justifica,
de maneira menos convincente ' a defesa calorosa dos direitos econômicos,
sociais e culturais no discurso de governos que nada faziam, nem pretendiam
fazer, para a redistribuição da riqueza nacional, ou para promover a elevação
preferencial do nível de vida dos segmentos mais pobres de sua população.
Além dessa distorção de origem, o artigo 13 revelou-se, logo após sua
aprovação, não somente uma afirmação inconsistente com as políticas internas da
maioria dos países que o citavam, mas também, e sobretudo, uma escusa
lamentável, utilizada por toda e qualquer ditadura ' e os regimes ditatoriais
eram particularmente abundantes no período ' para a denegação dos direitos
civis e políticos à respectiva população. Na medida em que a melhor
distribuição internacional da riqueza não se realizava e a maioria dos países
não tinha condições para atender os direitos econômicos e sociais de seu povo,
os governos autoritários e regimes totalitários entendiam não precisarem
observar os direitos civis e políticos. Afirmavam, ao contrário, que a
supressão destes era condição necessária à implementação das políticas
desenvolvimentistas que assegurariam os direitos econômicos, sociais e
culturais de todos os cidadãos. Somente depois do atendimento desses direitos
"de segunda geração", que exigem prestações positivas de parte do Estado e por
isso são considerados direitos de realização progressiva, caber-lhes-ia
reconhecer os direitos "capitalistas e burgueses", segundo Marx, ou "de
primeira geração" (conforme a doutrina corrente inspirada nas etapas históricas
do estabelecimento das diferentes categorias dos direitos fundamentais).
Foi em razão desse abuso interpretativo do artigo 13 e de seu mal-uso obsessivo
por governos ditatoriais que a Proclamação de Teerã tornou-se voluntariamente
"esquecida" por todos os militantes mais sérios dos direitos e liberdades
fundamentais, governamentais e não-governamentais. Permaneceu, assim, no
ostracismo, omitida das relações de documentos internacionais considerados
importantes na matéria até a década de 90, e ainda é geralmente desconhecida.
Por essa mesma razão, a segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos,
realizada em Viena, em 1993, foi muito mais sutil ao tratar do assunto.
A questão da indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos é
abordada em diversos dispositivos da Declaração e Programa de Ação de Viena. O
primeiro que a isso se refere ostensivamente é o artigo 5º, já mencionado
acima, que reza:
"Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis e inter-
relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos
humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e
com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais devem
ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos
históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos Estados promover
e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e
culturais".
Aparentemente contraditório e por isso criticado pelas organizações não-
governamentais e alguns governos do Ocidente, assim como por observadores
acadêmicos que não haviam participado das negociações, o artigo 5º foi a
fórmula, inegavelmente confusa, encontrada para fazer face ao relativismo das
posições arraigadamente culturalistas, típicas da década de 90, a que se
aferravam com obstinação e agressividade muitos países do Oriente '
intelectualmente justificados pelas teorias ocidentais pós-modernas,
crescentemente absorvidas por instituições acadêmicas, nem sempre libertárias,
de todo mundo. A fórmula se torna mais clara, ou, pelo menos, menos ambígua,
quando lida em conjunção com o artigo 1º da mesma Declaração, que diz:
"A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso
solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a
observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais de todos, em conformidade com a Carta das Nações Unidas,
outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e o direito
internacional. A natureza universal desses direitos não admite
dúvidas.
Nesse contexto, o fortalecimento da cooperação internacional na área
dos direitos humanos é essencial para a plena realização dos
propósitos das Nações Unidas.
Os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos
originais de todos os seres humanos; sua proteção e promoção são
responsabilidades primordiais dos Estados."
Numa fase histórica em que a idéia-meta de uma Nova Ordem Econômica
Internacional já se encontrava sepultada, mas o neoliberalismo ainda não
ostentava tão visivelmente como agora a figura emblemática dos excluídos (do
mercado e da sociedade), nem havia provocado as grandes crises econômico-
financeiras iniciadas no México, em 1994, a idéia da "cooperação internacional
na área dos direitos humanos para a plena realização dos propósitos das Nações
Unidas" soava razoavelmente plausível. Mas Viena foi muito além. No artigo 10
da Declaração de 1993, cuja redação tornou consensual ' conquanto efemeramente
' o direito ao desenvolvimento, ela estabeleceu clara resposta revogatória,
idealmente superadora, ao artigo 13 da Proclamação de Teerã, ao dizer:
"A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o direito ao
desenvolvimento, conforme estabelecido na Declaração sobre o Direito
ao Desenvolvimento, como um direito universal e inalienável e parte
integrante dos direitos humanos fundamentais.
Como afirma a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, a pessoa
humana é o sujeito central do desenvolvimento.
Embora o desenvolvimento facilite a realização de todos os direitos
humanos, a falta de desenvolvimento não poderá ser invocada como
justificativa para se limitarem direitos humanos internacionalmente
reconhecidos.
Os Estados devem cooperar uns com os outros para garantir o
desenvolvimento e eliminar obstáculos ao mesmo. A comunidade
internacional deve promover uma cooperação internacional eficaz
visando à realização do direito ao desenvolvimento e à eliminação de
obstáculos ao desenvolvimento.
O progresso duradouro necessário à realização do direito ao
desenvolvimento exige políticas eficazes de desenvolvimento em nível
nacional, bem como relações econômicas eqüitativas e um ambiente
econômico favorável em nível internacional."
A solução encontrada por Viena para as distorções propiciadas por Teerã parecia
apropriada às melhores tendências do momento. Recorria à linguagem eticamente
cogente dos direitos humanos (particularmente forte no pós-Guerra Fria até
meados dos anos 90), para afirmar, sem o chavão desgastado da Nova Ordem
Econômica Internacional, a necessidade de desenvolvimento como um direito
fundamental. Rejeitava a manipulação da indivisibilidade dos direitos feita por
governos ditatoriais, objetando a invocação da falta de desenvolvimento como
escusa para a supressão de quaisquer direitos (subentendendo-se em especial os
direitos civis e políticos, de realização supostamente mais fácil). Utilizava-
se da atmosfera ainda otimista do fim da bipolaridade estratégica para propor a
cooperação entre os Estados na superação de obstáculos ao desenvolvimento.
Aproveitava a emergência das organizações não-governamentais como atores
internacionais relevantes, assim como o clima anti-estatista facilitado pelo
fim do "socialismo real" (sem falar no impulso dado pelo individualismo
crescente e pelo neoliberalismo espraiante), para declarar, com razão, que o
desenvolvimento tem por sujeito não o Estado, mas a pessoa humana.
O que o humanismo otimista de Viena não levava em conta ' não o poderia fazer
até porque iria contra a idéia de direitos fundamentais garantidos
primordialmente pelo Estado nacional ' era a aceleração do processo planetário
de globalização econômica, com a liberdade de mercado colocada acima das
fronteiras e, conseqüentemente, das possíveis considerações sociais dos
diferentes governos, em suas jurisdições territoriais. E que nas condições
ideológicas do neoliberalismo mundializado, onde até mesmo os países
"socialistas" remanescentes, ademais da sociais-democracias
institucionalizadas, defendem o "risco" como elemento salutar à sociedade
contemporânea,29 o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (assim como os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos a
eles referentes) acaba perdendo o sentido.
Tendo sido sempre encarado em nível inferior a seu homólogo regulamentador dos
direitos civis e políticos (e os dispositivos da Declaração que os estabelecem)
pelo Ocidente desenvolvido, pelos militantes de direitos humanos de todos os
quadrantes e, como conseqüência disso, pelas próprias Nações Unidas,30 o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na qualidade de
instrumento normativo, caiu, de certa forma, em ostracismo ainda maior do que a
Proclamação de Teerã. Esta demonstrou-se recentemente útil pelo menos na luta
das mulheres pelo reconhecimento internacional de seus direitos reprodutivos, a
serem protegidos pelos Estados por meio da educação e do atendimento às
necessidades básicas da saúde sexual feminina. Voltou, por isso, a ser citada
como documento referencial importante.31
Diferentemente do ocorrido com a Proclamação de Teerã até a década de 90, o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não se
encontra exatamente esquecido, nem é regularmente omitido da relação dos
instrumentos reputados mais importantes na área dos direitos humanos. Seu órgão
de monitoramento, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reúne-
se com regularidade para examinar os relatórios que lhe são submetidos pelos
Estados-partes periodicamente. O Pacto se encontra, na verdade, mais
apropriadamente "mumificado". Na qualidade de instrumento jurídico vigente,
teoricamente cogente para os Estados-partes, não formalmente ab-rogado,
funciona como um cadáver antigo, reminiscente de outros tempos mais idealistas
(ainda que concretamente cruéis), preservado e observável a título de
curiosidade acadêmica, sem valor normativo. Com raríssimas exceções, de países
socialmente muito equilibrados (como os nórdicos, até algum tempo atrás), ou
para alguns dispositivos limitados, que ainda se busca atender (como na área da
educação primária e de algumas esferas da saúde, mais especificamente na
campanha contra a AIDS, em que o caso brasileiro tem sido apontado como
exemplo), ele não tem, na prática, condições de ser minimamente implementado.
Neoliberalismo versus direitos humanos
É fato conhecido e dissecado que o neoliberalismo "racionalizante" ora vigente
na escala planetária, ademais de produzir desemprego estrutural e de induzir ao
desmantelamento das instituições da previdência social ' construídas pouco a
pouco, com diferentes graus de eficiência, nos mais diversos Estados ' encara o
mercado como único elemento organizador das sociedades.
No mundo globalizado atual, organizado com base na liberdade econômica
absoluta, onde a legitimidade das políticas é dada pelo FMI, bancos e bolsas de
valores, o Estado pouco mais pode fazer do que tentar administrar o
funcionamento da sociedade para o sucesso das empresas, nacionais e
transnacionais. Destituído até mesmo de meios fiscais para operar políticas
públicas adequadas, vêem-se os governos cada dia menos capazes de zelar pelo
bem-estar geral. Daí recorrerem crescentemente, conforme o modelo norte-
americano, à filantropia privada e ao chamado "terceiro setor", das
organizações não-governamentais, de direito privado mas com objetivos públicos,
para o atendimento paliativo aos indivíduos e comunidades mais carentes.
Geralmente o êxito é limitado, já que os demais países não têm a formação
histórica eminentemente comunitária dos Estados Unidos, evidenciada até hoje na
massa gigantesca de instituições, associações e práticas de vizinhança norte-
americanas, dedicadas aos fins mais variados. Isso sem falar na "filantropia"
dos abatimentos no imposto de renda, que podem ou não ser muito úteis para
setores específicos, mas reduzem ainda mais a arrecadação de fundos para a
aplicação em políticas universalistas, voltadas para toda a população.
Com o Estado nacional inerme, inelutavelmente enfraquecido, o recurso às
entidades não-governamentais é, evidentemente, válido e necessário ' para não
dizer imprescindível ' até porque, em princípio, não parece haver alternativa.
Mas, tendo em conta que o Direito sempre foi um atributo do Estado territorial
' que dele se servia inclusive para criar o Direito Internacional ', cabendo a
esse mesmo Estado a responsabilidade pela definição normativa interna, a
observância das normas pertinentes e a implementação das prestações necessárias
aos direitos humanos, a realização dos direitos individuais e coletivos apenas
pela ação não-estatal, ainda que bem-sucedida, abandona a esfera do jurídico
para entrar no domínio da ética e da filantropia. Os direitos deixam, pois, de
ser direitos.
Isso não quer dizer ainda que a normatividade dos direitos humanos os
transforma em seu contrário: a ausência de direitos. Tal transformação só
ocorre quando, no dizer de Jürgen Habermas, o Estado (idealmente) "social-
democrata" ' ou seja, o Estado com compromisso de organização da sociedade, que
não precisa necessariamente ostentar o rótulo formal da social-democracia '
opta por ser tão somente um Estado economicamente "liberal", cuja preocupação
única consiste em fazer as condições de seu território atraentes para
investimentos, propícias à expansão econômica.32 Nessas circunstâncias, a
insistência normativa da Conferência de Viena na democracia como condição
essencial para os direitos humanos, pareceria hipostasiar a forma da democracia
como um disfarce legitimador para o arbítrio do capital, com produção e
abandono de excluídos em número sempre crescentes, sem direitos no sentido real
do termo. Ou, pior, como recorda ainda Habermas, usando formulação de Anatole
France, ao descartar a indivisibilidade dos direitos econômico-sociais, essa
democracia "pós-política" (a expressão é de Zizek, significando a democracia
que, ao invés de administrar antagonismos, busca obsessivamente um consenso
alienante) reduziria a igualdade de direitos ao "direito de cada um de dormir
embaixo de pontes".33
Num sistema em que as normas da economia derrubam o direito ao trabalho e o
Direito do Trabalho; em que a eficiência econômica impõe o desmanche da
segurança social; em que as leis do mercado são as únicas existentes para
regular a sociedade, cabendo aos pobres a responsabilidade pela própria
pobreza, aos marginalizados a miséria absoluta, ou o crime e a penitenciária;
em que o ideal da social-democracia dá lugar por completo à aceitação do
"risco" e à competitividade, a afirmação de Zizek na epígrafe deste ensaio
tende a adquirir ampla validade. A nova normatividade emergente, mas ainda não
estabelecida, para os direitos humanos, com ênfase numa democracia sem
prestações positivas, sabidamente necessárias para a realização dos próprios
"direitos negativos",34 é a forma em que se apresenta seu contrário: a
inexistência real de direitos, inclusive os civis e políticos. Faz-se,
portanto, necessário lutar para que essa normatividade emergente não se
convalide, tonando-se definitiva.
Conclusão: recapitulação e saídas
Se, conforme já visto neste texto, o otimismo plausível até o Onze de Setembro
era todo baseado na vertente exclusivamente punitiva do Direito Internacional
recente ' vertente necessária, mas não única ' na área dos direitos humanos; se
a ingerência internacional humanitária tem sido decidida por normas seletivas,
agora estabelecidas unilateralmente numa aliança militar; se esse auto-
outorgado direito de ingerência com motivações humanitárias (legitimado muitas
vezes a posteriori e a contragosto pela única instância universal existente '
as Nações Unidas) é capaz de destruir as condições de sobrevivência de quem
nada tem a ver com as atrocidades perpetradas; se os países democráticos se
tornam o locus das violações de direitos humanos mais denunciadas; se a
"tolerância zero" se transforma em panacéia distorcida para a contenção de
marginalizados sociais; se a democracia "pós-política" (sem divergências de
classe) das sociedades "pós-modernas" (multiculturalistas, mas anti-
universalistas porque hipervalorativas do microcomunitarismo identitário) se
auto-satisfaz com a realização de eleições (cujas opções são em geral
inexpressivas); se, em resumo, os Estados democráticos aceitam, sem buscarem
alternativas, deixar ao mercado a regulação do social, e à filantropia a
atenuação da falta de direitos econômicos, a frase impactante de Zizek soa mais
do que pertinente: ela se torna factual e descritiva.
Isso não quer dizer que Zizek recomende a aceitação do status quo. Todo o livro
do qual se extraiu o trecho inspirador destas linhas é uma apologia do "retorno
à Política", da necessidade de superação do identitarismo pós-moderno no
resgate das grandes causas iluministas da emancipação e da democracia, com os
direitos humanos, na direção do progresso societário, não necessariamente
tecnológico ou econômico. O totalitarismo a que ele se refere inclusive no
título ' Alguém falou em totalitaritarismo?Cinco interpretações do (mau) uso de
uma noção ' é uma denúncia veemente à passividade dos tempos "pós-políticos",
uma condenação radical à idéia de consensos, evidentemente artificiais ante
desequilíbrios gritantes, uma rejeição indignada à doxa neoliberal, que se
utiliza da noção de totalitarismo divulgada por Hannah Arendt como um
espantalho para afugentar tentativas de mudança contrárias às regras do
mercado.35
Enquanto Zizek, com recurso a Lacan, propugna por uma atualização do Marx
libertário, não liberticida, sem repressões de qualquer tipo, na denúncia dos
malefícios disfarçados do capitalismo contemporâneo, e Habermas, também citado
acima, mais otimisticamente espera que o mundo intercomunicativo consiga algum
dia transformar a política internacional numa política interna social-democrata
de abrangência universal, todos os analistas da atualidade, por essas ou por
outras vias, reconhecem que o Estado nacional não tem condições de voltar a ser
o que era. A solução necessária aos impasses em que nos encontramos precisa ser
inventada em formas supranacionais de convivência e solidariedade,
possivelmente inspiradas no que a Europa já fez e pode vir a fazer no caminho
de uma união federalista, desde que não abandone, no sentido habermasiano da
expressão, a social-democracia, antes inseparável do Estado nacional.
Como o fazer, num mundo de tecnologia avançada onde os fundamentalismos
religiosos readquirem feições medievais, micronacionalismos assumem táticas
sangrentas, a "esquerda" limita seus objetivos ao progresso de grupos
específicos e o capitalismo neoliberal provoca disparidades ainda mais
absurdas, entre as nações e dentro delas, ninguém sabe indicar com clareza.
Intuitivamente, porém, algo começa a ser esboçado. É, afinal, isso que
demonstram as manifestações populares, praticamente espontâneas, iniciadas em
Seattle em 1999, e que no ano 2000 tiveram, em Gênova, sua pior repressão '
assim como o primeiro mártir, com a morte registrada por toda a imprensa. E é
por serem contra "isso que aí está" que os manifestantes têm sido
virulentamente criticados por defensores do status quo.
As manifestações são, sem dúvida, ainda muito confusas. São também muito
difusas nos objetivos dos participantes, freqüentemente contraditórios entre si
e, às vezes, paradoxais face aos objetivos alegados. Afinal, elas são, por
enquanto, essencialmente sintomas: tais como as febres, incômodas, que abatem
como doenças, as manifestações reagem a causas muito mais profundas. Têm tido,
porém, o mérito de, pelo menos, acabar com a idéia de consenso ' neoliberal ou
"de Washington", significando a mesma coisa ' até há pouco martelado, com
insistência obsessiva, na linguagem economicista, jornalística e até acadêmica,
repetida por quase todos. É por elas que, talvez, algum dia, sejam encontradas
as saídas para os impasses atuais. Por elas e, com certeza, com os direitos
humanos, quase nunca contestados, desde que seu conteúdo venha a readquirir,
como conceito e como norma, a indivisibilidade intrínseca.
Pós-conclusão que não chega a ser epílogo, para completar a pré-introdução, que
não chegava a ser prefácio
Em crítica bastante acerba, não à extrema direita, impermeável por definição,
mas à esquerda acomodatícia que renunciou a projetos universalistas de mudança
social, ao optar pelo identitário e aceitar o capitalismo de mercado como
"único jogo existente" (the only game in town), Zizek, na passagem que antecede
a epígrafe deste ensaio, dizia:
"Desta perspectiva, até mesmo a defesa neoconservadora de valores
tradicionais aparece sob nova luz: como uma reação contrária ao
desaparecimento de uma normatividade legal e ética, gradualmente
substituída por regulações pragmáticas que coordenam os interesses
particulares de grupos diferentes. Esta tese pode parecer paradoxal:
não vivemos nós na era dos direitos humanos universais ...?"36
Os fundamentalismos terroristas da atualidade são, evidentemente, manifestações
paroxísticas desse neoconservadorismo. Estejam seus alvos em Nova York,
Washington ou Riade, em Nairóbi, Jerusalém ou Oklahoma City, os atentados são
sempre, em sua negatividade monstruosa, afirmações valorativas. Destróem, matam
e aleijam porque se propõem defender, com ética de barbárie, aquilo que está
sendo negado pelo sistema vigente, protegido pelo poder.
Ao explicar o neoconservadorismo atual com percepção profunda, chamando atenção
para os engodos da nova normatividade emergente, Zizek, ademais de descritivo,
acabou sendo, também, involuntariamente profético. Afinal, conforme hoje é
sabido, os conservadores no poder optaram por combater o neoconservadorismo
terrorista com ações, instrumentos e meios, alguns dos quais normativos, que
violam ainda mais a universalidade dos direitos humanos.
Os bárbaros incidentes que atingiram os Estados Unidos no trágico Onze de
Setembro, horrorizaram o mundo e disseminaram o medo entre todas as pessoas.
Produziram, assim, de imediato, solidariedade espontânea sem precedentes, em
escala planetária, com o país líder do sistema atual. A solidariedade foi
verbalizada inclusive pelos opositores mais ferrenhos da potência norte-
americana, independentemente dos respectivos credos políticos, culturais e
religiosos (entre os quais, nos primeiros momentos, os talibãs afegãos). As
poucas manifestações de júbilo foram, além de destoantes, totalmente
expletivas: meros impulsos mecânicos provocados por infortúnios estruturados em
grande parte pela até então inexpugnável "Fortaleza América". Ninguém em sã
consciência, no uso daquilo que se entende como razão (no Oriente como no
Ocidente), pode ter-se rejubilado com massacre de inocentes de tamanhas
proporções. Ninguém pode ter deixado de sentir empatia com aqueles indivíduos
comuns, das mais diversas origens, que calharam de estar presentes nas torres e
imediações do World Trade Center na hora da destruição. Todos terão sentido
que, a partir dessas agressões, não haveria localidades seguras em qualquer
área do planeta.
É uma lástima que a solidariedade universal desse momento de dor generalizada
não tenha sido aproveitada para o encaminhamento de mudanças sistêmicas,
capazes de corrigir o curso distorcido da normatividade imperante. Como tem
assinalado, com eloqüência simbólica, Adolfo Perez Esquivel, Prêmio Nobel da
Paz pela causa dos direitos humanos, em pregações incômodas feitas nos Estados
Unidos, segundo relatório da FAO, no mesmo dia 11 de setembro de 2001, em que
morreram mais de 4.000 pessoas nas duas torres de Manhattan, destruídas por
ações que todos, com voz unânime, qualificam como atos de terror, morreram
também, de fome, 30.615 crianças.37
Ao discurso de grandes potências a linguagem de operações bélicas parece sempre
agradar. No passado, o Presidente Lyndon Johnson declarou, no âmbito interno
norte-americano, uma "guerra contra a pobreza" que não chegou a vingar. A
"guerra contra as drogas", inspiração aparente da "guerra contra o terrorismo",
já dura mais de duas décadas e não tem previsão de acabar.
A "guerra contra o terrorismo" é válida como metáfora forte, se significar
determinação efetiva de atuar em todos os fronts necessários: políticos,
econômicos, militares e sociais. Nos termos exclusivos em que está posta no
final de 2001 ' bombardeios aéreos e outras ações de combate no exterior,
operações policiais e investigação indiscriminada de estrangeiros (árabes) na
órbita doméstica ' ela pode, sem sombra de dúvida, apreender ou eliminar,
juntamente com inocentes, elementos integrantes e até muitos dirigentes de
organizações terroristas (assim como sua precursora contra as drogas logra às
vezes eliminar traficantes de maior ou menor expressão). Mas a "guerra contra o
terrorismo" conforme vem sendo conduzida jamais erradicará de per si as
sementes do fenômeno, que podem voltar a germinar, em qualquer hora e lugar.
Longe de produzir as condições sociais imprescindíveis ao florescimento dos
direitos humanos, essa guerra tende a reproduzir na Ásia e em outras partes do
mundo, uma multiplicidade infinita de Kossovos.
Notas
1 Did somebody say totalitarianism?Five interpretations in the (mis)use of a
notion, Londres e Nova York, Verso, 2001, p. 244-5, minha tradução. O original
em inglês diz:
"...do we not live in the era of universal human rights which assert
themselves even against state sovereignty,? Was the NATO bombing of
Yugoslavia not the first case of military intervention accomplished
(or, at least,presenting itself as accomplished) out of pure
normative concern, without reference to any `pathological' politico-
economic interest? This newly emerging normativity of `human rights'
is nevertheless the form of appearance of its very opposite."
2 Id., ibid., p. 245.
3 O Governo democrata do Presidente Clinton, já quase certo da derrota
eleitoral de seu candidato Al Gore, assinou o estatuto do tribunal de Roma em
31 de dezembro de 2000, em gesto meramente simbólico, ciente de que o
Presidente Bush não o encaminharia ao Congresso para aprovação e subseqüente
ratificação, dada a conhecida oposição do Partido República e do estamento
militar.
4 Barbara Crossette, "Guide proposed for trials of rogue leaders", The New York
Times, 23 jul. 2001, p. A2. Para exame de um caso
exemplificativo de delito objeto de jurisdição internacional, v. J. A. Lindgren
Alves, A arquitetura internacional dos direitos humanos,São Paulo, FTD, 1997,
p. 140-1 (a propó sito dos Artigos 5º a 8º da Convenção Contra
a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes).
5 V. sobre o assunto, com apreciações radicalmente opostas, Michael Parenti,To
kill a nation'the attack on Yugoslavia, Londres e N. York, Verso, 2000, p 127-
8 (Parenti conta que, numa segunda investida judicial, em
novembro de 1999, dois advogados canadenses chegaram a indiciar nominalmente 67
personalidades da aliança atlântica, sem qualquer resultado prático), e Henry
Kissinger, "The pitfalls of international jurisdiction", Foreign Affairs Vol.
80 nº 4, jul./ago. 2001, p. 93.
6 A entrega foi feita por decisão do Presidente da Sérvia, Zoran Djindjic,
contra a vontade do novo Presidente da Iugoslávia, Vojislav Kostunica (eleito
como candidato de oposição a Milosevic, nas eleições do final do ano 2000),
ante exigência dos Estados Unidos nesse sentido, afirmada muitas vezes antes e
reiterada em julho, em conferência internacional de assistência à Iugoslávia
redemocratizada, como condição para a liberação da ajuda econômica de que o
país necessitava desesperadamente após os bombardeios da OTAN.
7 A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993 (v.
sobre o assunto J.A. Lindgren Alves, Os direitos humanos como tema global, São
Paulo e Brasília, Ed. Perspectiva e FUNAG, 1994, p. 28-9).
8 Sobre o anacronismo desse rótulo v. id., ibid., p. .
9 Slavoj Kizek, "Direitos humanos e ética perversa", Caderno MAIS!, p. 13-14,
Folha de S. Paulo, 1º/jul./2001. Esse artigo foi motivado
sobretudo pela entrega de Milosevic ao Tribunal da Haia e no momento em que
Zizek terminava a leitura de livro, lançado algum tempo antes nos Estados
Unidos, sobre Henry Kissinger (Christopher Hitchens, The trial of Henry
Kissinger, Nova York, Verso), no qual este é qualificado como criminoso de
guerra, facilmente imputável, mas na prática intocável pelas cortes
internacionais recentemente criadas.
10 Mais conhecida organização não-governamental prestadora de assistência
humanitária em áreas de conflito bélico no final do Século XX, ganhadora do
Prêmio Nobel da Paz de 1999.
11 Para uma descrição do assunto feita por quem o acompanhou como interessado
direto, pela ótica dos prestadores de assistência, v. Bernard Kouchner (ex-
diretor dos Médecins sans Frontières), Le malheur des autres, Paris, Editions
Odile Jacob, 1991, p. 257-308.
12 A atuação dos Estados perante a ação do Comitê Internacional da Cruz
Vermelha, organização de nacionalidade suíça caracterizada pela obrigação de
neutralidade absoluta, é regulada pelas Convenções de Genebra de 1949 e seus
protocolos adicionais de 1977, que conformam o atual Direito na guerra, ou seja
o conjunto de regras jurídicas, formalmente adotadas por quase todos os países,
a serem seguidas pelos beligerantes com relação a prisioneiros, náufragos,
feridos e populações civis. Em conjunto com a legislação internacional sobre
refugiados, esse ramo do Direito adotado em Genebra logo após a Segunda Guerra
Mundial, compõe o hoje clássico Direito Internacional Humanitário.
13 Insisto na idéia de caso recente porque muitas das intervenções armadas
unilaterais em território alheio se deram com a escusa de proteger populações
perseguidas (vide, por exemplo, o caso da Alemanha nazista nos Sudetos
tchecos).
14 Ainda que a exacerbação belicosa do micronacionalismo, que existira latente
nas seis antigas repúblicas socialistas iugoslavas sem impedir a convivência e
a miscigenação, tenha sido praticada com igual virulência por todos os líderes
separatistas da região, até mesmo com recurso à revalorização de um passado
nazista "independente" (no caso da Croácia). A quem tiver interesse em conhecer
exemplos dessas práticas de exaltação fascistóide ultranacionalista dos
diversos líderes iugoslavos, em crítica perspicaz, às vezes até saborosa, feita
por quem as viu de perto, sentindo-as na própria pele de cidadã croata,
recomendo as crônicas jornalísticas de Slavenka Drakulic em Café Europa 'Life
after communism, N. York, Penguin Books, 1999 (original em inglê s, primeira edição em Londres, pela Abacus, 1996).
15 Para que não se confunda minha opinião sobre os fatos ocorridos com uma
manifestação de parcialidade pró-Sérvia ou anti-OTAN, registro ter acompanhado
com grande desgosto e indignação as denúncias de atrocidades contra os
albaneses do Kossovo amplamente divulgadas antes do início dos bombardeios, em
24 de março de 1999. Sei também que, no Kossovo, cerca de 12.000 albaneses
morreram e 800.000 partiram em busca de refúgio alhures, sobretudo nas vizinhas
Repúblicas da Albânia e da Macedônia (a maioria já retornou). A dúvida que se
me colocou desde o início é se os bombardeios aéreos serviriam de dissuasão
preemptiva ou de motivação adicional para o agravamento das violações de
direitos humanos dos kossovares pelas forças sérvias, quase sempre
paramilitares. Segundo a literatura mais séria hoje abundante sobre o assunto,
a segunda hipótese configurou-se real.
16 Apud Noam Chomsky, The new military humanism' Lessons from Kosovo, Monroe,
Common Courage Press, 1999, p. 3-4, reproduzindo citações em
matérias da Newsweek de 19 abr. 1999 e do New York Timesde 16 mai. 1999. Minha
tradução.
17 Michael Parenti, To kill a nation' The attack on Yugoslavia, Nova York,
Verso, 2000. Volitiva ou involuntariamente, a Iugoslávia de
Milosevic ainda não se tinha inserido na ética do mercado.
18 Noam Chomsky, op. cit. e "Crisis in the Balkans", inRogue states, Cambridge
(Massachussetts), V.supra nota 15, p. 4.
20 É aparentemente por isso, e não apenas porque os novos "terroristas", logo
após a Guerra do Kossovo, passaram a ser as antigas vítimas por ela protegidas
contra os sérvios, que a OTAN demonstrou-se tão mais cautelosa ' e construtiva
' na Macedônia.
21Apud Noam Chomsky, op. cit. nota 15 supra, p. 51. Recorde-se que os 50 anos
da OTAN foram celebrados em Washington, em abril de 1999, enquanto ocorria a
"limpeza étnica" do Kossovo. Foi nessa ocasião que a aliança atlântica enunciou
ostensivamente sua nova "doutrina", de intervenção humanitária, dentro ou fora
da Europa.
22 As cifras aqui reproduzidas, amplamente divulgadas pela imprensa
internacional, foram retiradas da matéria "Quanto Mais Ajuda, Pior Fica", da
VEJA, edição 1.708, ano 34, nº 27, 11/jul./2001, p. 54-5. A
informação sobre a situação sanitária iugoslava no pós-guerra do Kossovo me foi
passada no final de 2000 por amigos norte-americanos de origem sérvia, que
haviam acabado de visitar parentes no país.
23 Associated Press, "Castro calls Latin countries `lackeys' for anti-Cuban
vote", San Francisco Chronicle, 27 abr. 2001, p. D3.
24 Na medida em que, para os militantes atuais de movimentos em defesa dos
direitos humanos, conforme visão prevalecente na ONU, os desaparecimentos
forçados ou involuntários teriam sido uma criação do Cone Sul da América Latina
sob os regimes militares dos anos 60 e 70, que se espalhou pelo mundo e se
ampliou sobretudo na América Central, reconheço a incongruência de chamá-los de
violação tradicional. De qualquer forma, a par de minha descrença na
originalidade latino-americana nessa matéria (os tristemente célebres
julgamentos de correligionários de Partido e ex-autoridades dos regimes
stalinistas sempre se iniciavam com o "desaparecimento" do suposto traidor; o
mesmo ocorria nas "batidas" nazi-fascistas contra judeus e opositores do
regime), é fato inconteste que os "desaparecimentos" aqui referidos quase
sempre se seguiam de outras violações mais "clássicas", geralmente envolvendo
torturas, muitas vezes terminando por execuções.
25 Refiro-me aqui à destruição de barracos e outros bens "patrimoniais" de
favelados e sem-terras nas ações policiais, inclusive as mais bem-intencionadas
(sem falar, obviamente, das extorsões criminosas feitas pela polícia).
26 A título ilustrativo, v. Bacre Waly Ndiaye, Report of the Special Rapporteur
Submitted Pursuant to Commission on Human Rights Resolution 1995/73,documento
das Nações Unidas E/CN.4/1996/4, 25 jan. 1996, em que o Relator Especial
relacionava dez tipos de situações de ameaça ou morte diante das quais
procurava intervir para tentar salvar a pessoa ou evitar a repetição da
prática.
27 T.H.Marshall, "Citizenship and social class" (1949), in Gerson Shafir, The
citizenship debates' a reader, Minneapolis, University of Minnesota Press,
1998, p. 93-111.
28 Embora ' e sou eu quem o digo, não Zizek ' na maioria daqueles países em que
se verificou a "transição" do comunismo totalitário para a democracia
capitalista ' ou, mais corretamente, de um socialismo torto para o absolutismo
neoliberal do mercado -, as novas "máfias" onipresentes e os mendigos ubíquos,
antes inexistentes ou simplesmente invisíveis na Europa Oriental, tendam a
comprovar que o regime não-democrático anterior era mais eficaz não apenas na
esfera da repressão, mas também na área da segurança social da população.
29 V. por exemplo Anthony Giddens,Runaway world' how globalization is reshaping
our lives, Nova York, Routledge, 2000, p. 38-53.
30 Basta lembrar, nesse sentido, que o órgão de monitoramento do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é o único que tem o nome de
Comitê dos Direitos Humanos.
31 A Proclamação de Teerã foi exumada e recordada, pela primeira vez depois de
muitos anos, pelo movimento feminista, por ter sido o primeiro documento a
falar no direito dos pais de controlar volitivamente o número e o espaçamento
dos filhos. Foi, assim, mencionada como referência para as questões atinentes à
saúde sexual da mulher no parágrafo 41 do Programa de Ação de Viena e voltaria
a ser referida como precedente importante nas Conferências do Cairo, em 1994,
sobre população e desenvolvimento, e de Beijing (Pequim), em 1995, sobre a
situação da mulher.
32 Jürgen Habermas, Après l'État-nation' une nouvelle constellation politique,
trad. Rainer Rochlitz, Paris, Paris, Fayard, 2000, passim.
33 Id., ibid., p. 128
34 "Direitos negativos" são, doutrinariamente, aqueles que se realizariam pela
simples inação ' ou "prestação negativa" do Estado ' como o direito de não ser
torturado, a uma justiça imparcial, etc. Como já tive a oportunidade de
explicar alhures, também esses direitos requerem "prestações positivas", por
sinal vultosas (v. J. A. Lindgren Alves,Os direitos humanos como tema global,
São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 103-116).
35 Slavoj Zizek, op. cit., p. 2-5.
36 Id., ibid. p. 244, minha tradução. O original diz:
"From this perspective, even the neoconservative defense of
traditional values appears in a new light: as a reaction against the
disappearance of ethical and legal normativity, which is gradually
replaced by pragmatic regulations that co-ordinate the particular
interests of different groups. This thesis may appear paradoxical: do
we not live in the era of universal human rights ... ?"
37 Além de me ter passado essa informação pessoalmente, em jantar na
Universidade de S.Francisco, Esquivel a tem repetido em conferências feitas nos
Estados Unidos em outubro de 2001, algumas das quais televisionadas.