A crise do multilateralismo econômico e o Brasil
Introdução
O correto funcionamento e a estabilidade de qualquer sistema internacional
dependem do efetivo apoio que ele receba dos países que o integram '
especialmente daqueles de maior peso específico ' e de que a distribuição dos
benefícios dele derivados seja geralmente percebida como razoavelmente
eqüitativa. No caso do sistema econômico multilateral estabelecido ao fim da
Segunda Guerra Mundial, as duas condições, embora de maneiras diferentes, foram
' gradual, mas rapidamente ' deixando de ser preenchidas de forma satisfatória.
Por um lado, a liderança dos países economicamente mais avançados,
particularmente dos Estados Unidos, em favor da efetiva liberalização do
comércio internacional foi crescentemente qualificada, em função das mudanças
na sua competitividade relativa. Por outro, ganhou força entre os países em
desenvolvimento a noção de que, dada a sua menor competitividade global, um
sistema formalmente igualitário levava a um desvio distributivo em favor das
economias mais avançadas. Em princípios da década de 1960, a pressão por uma
reforma do sistema levou à convocação da I Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento (mais conhecida por sua sigla inglesa Unctad). Em
termos concretos, os resultados diretos da conferência foram modestos, mas a
iniciativa marcou uma visão mais clara da divergência de interesses entre
países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Em 1983, Fred Bergsten já assinalava que o enorme progresso feito no sentido da
liberalização do comércio internacional vinha claudicando desde meados da
década de 1970. Observava ele que, apesar dos importantes compromissos
assumidos na Rodada Tóquio de negociações comerciais, no Gatt, medidas
protecionistas novas ou mais severas tinham surgido em setores importantes como
os de têxteis e confecções, aço e automóveis, além da continuada proteção e dos
subsídios à agricultura. Por sua vez, William Cline afirmava que "o sistema
internacional de comércio está sob grande pressão e parece provável que
permaneça sob grande ' ou maior ' pressão no futuro previsível".1 A previsão
tem-se realizado. Em 1991, Jagdish Bhagwati, de forma mais incisiva, constatava
estar o sistema mundial de comércio "em perigo", ameaçado pelos defensores do
"comércio administrado, do unilateralismo agressivo e do regionalismo."2 Em um
trabalho mais recente e de enfoque mais amplo, Robert Gilpin conclui que
o regionalismo econômico, a instabilidade financeira e o
protecionismo comercial ameaçam seriamente a estabilidade e a
integração da economia global, cujo futuro dependerá das políticas
externas, das políticas econômicas internas e das relações políticas
das grandes potências econômicas. Se os Estados Unidos não
reassumirem seu papel de liderança, é provável que a Segunda Grande
Era do capitalismo venha a desaparecer, como a primeira.3
O presente artigo é uma breve reflexão sobre como se chegou a tal estado de
coisas e sobre alguns dos desafios internacionais que ele nos coloca.
O multilateralismo tutelado
Ao término da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional, sob a
liderança dos Estados Unidos, pôs-se de acordo sobre o estabelecimento de uma
estrutura jurídico-institucional de âmbito mundial, com o objetivo de
disciplinar as relações econômicas entre os Estados. Em tese, tratava-se de
assegurar que as inevitáveis rivalidades internacionais não tomassem rumos
nocivos ao bem comum. Mais concretamente, visava-se a coibir práticas que,
sobretudo no período entre os dois grandes conflitos bélicos do século passado,
haviam contribuído para agravar os problemas econômicos e políticos
internacionais, culminando na Grande Depressão e na guerra de 1939-1945. Na
prática, chegou-se, como seria de esperar em uma negociação de tal envergadura
entre parceiros extremamente desiguais, a um conjunto de normas que, embora
formalmente igualitárias, deveriam, particularmente nas circunstâncias do mundo
de então: favorecer a potência hegemônica e seus principais aliados.
Na área comercial, chegou-se ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (mais
conhecido pela sua sigla inglesa, Gatt), pela qual se deveria promover a
crescente liberalização do comércio internacional. Para tanto, seus integrantes
comprometiam-se com a pronta eliminação das barreiras não-tarifárias, a gradual
redução de tarifas aduaneiras por meio de concessões recíprocas em sucessivas
rodadas de negociações e a extensão de tais reduções a todas as partes
contratantes, pela aplicação da cláusula de nação mais favorecida. Dava-se,
assim, um primeiro e importante passo no caminho da redução dos obstáculos ao
comércio internacional e criava-se um quadro normativo-institucional tendente a
manter a dinâmica do processo liberalizador. Num primeiro momento, o grande
beneficiário do novo estado de coisas foi a economia americana, com uma
capacidade competitiva ímpar na época. Em uma segunda etapa, à medida que
avançava o processo de reconstrução, dele passariam a beneficiar-se também as
demais potências industriais, vencedoras e vencidas, cujas economias tinham
sido arruinadas pela guerra. Buscava-se, dessa maneira, coibir a tendência a
exportar as próprias dificuldades econômicas por meio de medidas
protecionistas, como ocorrera com vários países no entreguerras.
O processo de liberalização econômica multilateralmente administrado não seria,
porém, eficaz se não cobrisse, também, a conduta internacional dos Estados na
área financeira. Criou-se, portanto, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e,
complementarmente, o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
(Bird). Com o primeiro, estabeleceu-se um sistema de paridades fixas entre as
diferentes moedas, de modo a evitar o recurso das desvalorizações competitivas
antes praticadas. Ao mesmo tempo, para evitar que países com dificuldades
conjunturais de balanço de pagamentos sucumbissem à tentação das velhas
práticas, o FMI se prontificava a prestar-lhes ajuda, desde que respeitassem as
disciplinas do sistema. Eram as famosas condicionalidades do Fundo. Assim, para
um país a braços com dificuldades conjunturais em suas contas externas,
tornava-se menos penoso aceitar a disciplina do sistema do que arcar com os
ônus econômicos e políticos de romper com ele, recorrendo a medidas
protecionistas. Já as dificuldades de caráter estrutural, fossem de
reconstrução ou de desenvolvimento, deveriam, em tese, ser atendidas pelo Bird.
De maneira muito simplificada, este foi o esquema geral ao qual, segundo se
acordou, deveria ficar submetida a economia mundial. Sua grande vantagem era
que o comportamento dos Estados nacionais, antes casuísta e arbitrário,
deveria, a partir de então, pautar-se por regras fixadas pela comunidade
internacional e aplicadas por organismos multilaterais, segundo procedimentos
aceitos por todos. Tal fato representou, por si só, um considerável avanço,
ainda que, em vários pontos, a excelência das regras substantivas então
acordadas pudesse ser discutida. Como esquema normativo de âmbito mundial, o
novo sistema padecia, entretanto, de uma falha essencial. Negociado, em última
análise, entre os Estados Unidos e seus grandes aliados, ele era
particularmente adequado para regular as relações entre as grandes economias
capitalistas ' inclusive as potências vencidas, que por motivos políticos
Washington, desejara cooptar ' e destas com as menos avançadas. Adaptava-se
mal, porém, às economias centralmente planificadas e à defesa de objetivos
econômicos fundamentais dos países em desenvolvimento. Era, em última análise,
um sistema multilateral tutelado pelas grandes economias capitalistas,
especialmente os Estados Unidos, de cuja liderança dependia o seu
funcionamento.
A gradual deformação do sistema
Em meados da década de 1940, as condições internacionais eram particularmente
favoráveis à implantação e ao funcionamento de uma estrutura normativo-
institucional com as características acima resumidas. Entre os países
industrializados do Ocidente, os Estados Unidos ' então campeão do liberalismo
econômico ' gozavam de condições singulares de liderança. Por um lado, sua
economia respondia por mais de um terço do produto mundial, sua assistência
material e política era indispensável à reconstrução dos países arruinados pela
guerra, tanto vencidos como vencedores, e o dólar tornara-se a moeda-chave do
sistema financeiro acordado em Bretton Woods, que estabelecia, efetivamente, um
padrão ouro-dólar. Assim, a hegemonia econômica americana era, nas
circunstâncias da época, incontestável. A superioridade na área econômica era
ainda reforçada pela conjuntura política e militar, que fazia dos EUA o
protetor indispensável dos países de economia de mercado contra a ameaça
representada pelo poderio soviético. Por outro, os países em desenvolvimento,
em sua maioria, ainda não tinham conquistado a própria independência. Recorde-
se, a título exemplificativo, que a Índia só se tornou independente em 1947.
Além disso, mesmo aqueles que já haviam alcançado a situação de Estados
soberanos, como os latino-americanos, tinham escasso poder de negociação e uma
noção nem sempre muito clara da incidência das relações internacionais sobre o
processo de desenvolvimento econômico. Tudo isso dava a Washington condições
excepcionais de ascendência sobre todos os países, desenvolvidos ou em
desenvolvimento, do mundo capitalista. Conseqüentemente, dava-lhe também o
poder não só de estabelecer um sistema liberal e multilateral de comércio
internacional, mas também de fazê-lo prosperar ou definhar, uma vez
estabelecido.
Ao longo da segunda metade do século XX, as circunstâncias que tinham levado
Washington a promover a implantação do sistema econômico internacional acima
resumido foram-se, porém, modificando. Em particular, uma relativa difusão do
poder econômico entre um número maior de países e, já no final da década de
1980, o afrouxamento da liderança americana entre os seus próprios aliados,
como decorrência do fim da Guerra Fria, teriam ampla repercussão sobre o
conjunto da vida internacional.
Ainda em fins da década de 1940, a reconstrução econômica daqueles países cujas
economias tinham sido devastadas pela guerra, mas que, vencedores ou vencidos
no grande conflito bélico, tinham-se tornado aliados importantes na Guerra
Fria, passou a ser elemento fundamental do esforço, liderado pelos Estados
Unidos, de contenção da União Soviética. O êxito do trabalho conjunto de
recuperação de economias arrasadas pelo conflito foi um dos pontos altos da
política externa americana no pós-Guerra, mas transformou aliados políticos em
poderosos competidores econômicos. O Japão sobretudo, pela sua enorme
competitividade internacional em áreas de atividade consideradas sensíveis,
passou a ser visto como uma ameaça a certos setores produtivos dos Estados
Unidos e, logo também, da Europa Ocidental. Ao mesmo tempo, uns quantos países
em desenvolvimento ' sobretudo asiáticos e, em menor grau, alguns latino-
americanos, entre os quais o Brasil ' desenvolveram uma forte capacidade
competitiva setorial em relação às economias industrializadas tradicionais.
Tornou-se, assim, difícil às velhas potências industriais manterem-se fiéis ao
liberalismo econômico que, sob a liderança dos EUA, tinham defendido e
estabelecido como norma internacional. Por outro lado, apesar dos percalços
competitivos que afetavam alguns setores de suas indústrias, ainda interessava
aos vanguardeiros da economia mundial manter as grandes linhas do sistema
estabelecido em meados da década de 1940, desde que a ele só qualificadamente
tivessem de obedecer.
O dilema com que se defrontavam era, pois, o de manter um conjunto de normas
que assegurasse um regime geralmente liberal de comércio internacional, que
tendia a favorecer as economias mais avançadas, porém, ao mesmo tempo,
encontrar meios de proteger setores mais vulneráveis do seu aparelho produtivo.
Em outras palavras, tratava-se de induzir países mais fracos, porém
incomodamente competitivos em algumas áreas, a aceitarem uma espécie de
liberalismo econômico à la carte, que promovesse uma liberalização do comércio
internacional que favorecia os grandes, mas que, ao mesmo tempo, não impedisse
estes últimos de defender setores das suas economias considerados vulneráveis à
competição dos pequenos. Tal situação levou, já num primeiro estágio, a
praticamente eximir o comércio de produtos agrícolas das normas disciplinadoras
do Gatt. Passou-se em seguida a conseguir a aceitação multilateral para uma
série de práticas espúrias, tendentes a proteger os setores menos competitivos
das economias industrializadas tradicionais, sem rejeitar, entretanto, pelo
menos formalmente, as linhas básicas do sistema econômico internacional
vigente. Assim, por exemplo, países economicamente fortes passaram a negociar
bilateralmente com outros mais débeis, porém setorialmente competitivos,
restrições "voluntárias" às suas exportações de determinados bens. Por elas, o
exportador mais competitivo comprometia-se a limitar, a um certo nível, suas
exportações de determinados produtos para o outro. Formalmente, não se tratava
de uma barreira à importação, já que era o país exportador que
"voluntariamente" se comprometia a manter dentro de um certo limite, mutuamente
acordado, suas vendas de determinado produto. Na prática, o país importador
transferia dessa maneira ao exportador boa parte dos ônus de suas próprias
restrições à importação. Dentro do mesmo espírito, criaram-se regimes especiais
para o intercâmbio internacional de determinadas categorias de bens, como os
têxteis, que passou a ser regido inicialmente pelo Acordo sobre Têxteis de
Algodão e, posteriormente, pelo Arranjo Multifibras. Buscava-se, assim,
legitimar o contingenciamento das exportações naqueles setores em que a
dinâmica das vantagens comparativas criara, sobretudo entre os países em
desenvolvimento, alguns novos competidores particularmente incômodos para as
potências industriais tradicionais.
Paralelamente, os países pobres iam, entretanto, tomando consciência de quanto,
sob a capa da igualdade de oportunidades e da defesa da eqüidade, o sistema
estabelecido, mesmo sem as práticas espúrias posteriormente adotadas, podia
congelar as vantagens comparativas e, conseqüentemente, contribuir para a
perpetuação do hiato entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Passaram,
pois, a questionar as próprias bases de um sistema que, entretanto, não tinham
a força econômica e política necessária para modificar.
Dados o peso econômico crescente dos países em desenvolvimento em seu conjunto
e, sobretudo, o clima político da Guerra Fria, que aconselhava não alienar a
simpatia do então chamado Terceiro Mundo, os países mais ricos foram,
entretanto, levados a, pragmaticamente, fazer algumas concessões às aspirações
das nações mais pobres, ainda que da forma menos onerosa possível. Chegou-se
assim à criação do Sistema Geral de Preferências e, de forma mais abrangente, à
aceitação formal da idéia de se conceder um tratamento "especial e mais
favorável" aos países em desenvolvimento nas negociações comerciais. Não cabe
fazer aqui o exame de cada uma dessas medidas e de seus benefícios efetivos,
mas o fato é que, apesar delas, o funcionamento geral do sistema não tem
evitado um claro desvio distributivo em favor das economias mais avançadas.
Como assinala The Economist, ainda hoje "as tarifas aplicadas pelos países
ricos às categorias de bens que as nações pobres produzem são, em média, quatro
ou cinco vezes mais altas do que as incidentes sobre bens usualmente importados
de outros países ricos".4
O que se viu, portanto, desde as primeiras décadas de vigência do sistema de
comércio internacional consubstanciado no Gatt, foi a aplicação de normas que,
na prática, iam-se afastando crescentemente do ideal declarado de um comércio
internacional igualmente livre para todos.
Paralelamente a esses desenvolvimentos na área comercial, o sistema financeiro
estabelecido em Bretton Woods ia também sendo erodido. Da forma como então
acordado, aquele sistema estabelecia um padrão ouro-dólar, baseado na livre
conversibilidade da moeda americana em ouro e na paridade fixa entre as moedas
dos países que o integravam. É verdade que se tinha defendido inicialmente a
idéia de que só aquele metal deveria funcionar como unidade de reserva
internacional. Tal sugestão esbarrava, porém, na evidente escassez de ouro para
viabilizar o funcionamento de uma economia e de um comércio mundial que
pretendia crescerem rapidamente. Chegou-se, assim, ao entendimento de que
moedas nacionais também poderiam ser instrumentos de reserva, desde que
livremente conversíveis em ouro a uma taxa determinada. Na prática, só o dólar
americano podia, na época, satisfazer tal condição. Estabeleceu-se assim,
efetivamente, um padrão ouro-dólar. Tratava-se, porém, de um esquema
dificilmente sustentável a mais longo prazo.
Com as pesadas responsabilidades econômicas e militares assumidas por
Washington como líder do bloco ocidental e as necessidades de meios de
pagamento de uma economia mundial em expansão, os Estados Unidos passaram a
acumular crescentes déficits em contas correntes. Para corrigir tal
desequilíbrio externo, as autoridades monetárias americanas teriam de tomar
medidas que não apenas seriam incompatíveis com a manutenção de sua liderança
político-militar, mas levariam a economia mundial à recessão. Havia, pois, no
Ocidente, um interesse comum na preservação do statu quo. Para os Estados
Unidos, ele permitia manter a sua hegemonia; para seus aliados ocidentais,
tornava-se possível repousar sobre o poderio bélico americano para garantir a
própria segurança, dedicando a objetivos econômicos os recursos que, de outra
forma, teriam de ser utilizados para fins militares. Em última análise, era
menos oneroso financiar os déficits americanos do que criar e manter um
dispositivo bélico próprio que fosse consistente com as necessidades da Guerra
Fria. Criara-se, assim, um paradoxo. A expansão econômica do Ocidente passou a
depender de um continuado desequilíbrio nas contas externas da potência líder
do bloco, o que implicava o debilitamento crescente da moeda-chave do sistema.
Chegou-se, finalmente, ao inevitável quando, em agosto de 1971, Washington
suspendeu a garantia de conversibilidade do dólar em ouro.
O que se seguiu foram os passos necessários à retirada, com o mínimo de
turbulência, da pedra angular do sistema financeiro criado em Bretton Woods.
Num primeiro momento, as consultas internacionais subseqüentes à decisão de
Washington levaram ao acordo do Smithsonian, com a desvalorização da moeda
americana. A magnitude do problema exigia, porém, mudanças mais amplas. Os
entendimentos que se seguiram conduziriam, dois anos mais tarde, ao abandono
formal do sistema de paridades fixas.
Assim, no espaço de, aproximadamente, um quarto de século, vários fatores
conduziram a consideráveis transformações ' ou deformações ' no sistema
econômico internacional estabelecido em fins da Segunda Guerra Mundial. A
reconstrução das economias devastadas pelo conflito levou a uma relativa
diluição do poder econômico, antes avassaladoramente concentrado nos Estados
Unidos. Tal evolução não chegava, entretanto, a comprometer a capacidade de
liderança dos Estados Unidos, em razão não só do peso da sua economia, ainda de
longe a maior do planeta, mas, sobretudo, da sua posição de baluarte da
segurança político-militar do Ocidente. Paralelamente, o Japão e, em menor
grau, alguns países em desenvolvimento mais avançados tornaram-se, do ponto de
vista dos Estados Unidos e dos países da Europa Ocidental, perigosamente
competitivos em alguns setores, pondo em risco indústrias consideradas
sensíveis nas duas regiões. No começo da década de 1980, tornara-se patente,
como assinalou William Cline, a pressão sobre um sistema internacional de
comércio que já não satisfazia inteiramente as aspirações de nenhuma categoria
de países. Em última análise, os países ricos mostravam sua pouca disposição de
respeitar as normas que eles mesmos tinham estabelecido, enquanto os pobres
insistiam em que, antes de serem alteradas, elas fossem cumpridas naquilo que
interessava às economias menos avançadas. Em certo sentido, tinha havido uma
inversão de posições, com as grandes potências econômicas procurando modificar
um sistema que percebiam como insuficientemente favorável aos seus interesses,
enquanto os países em desenvolvimento insistiam em obter, primeiro, o
cumprimento de promessas feitas e fraudadas.
Nada disso significa que não se tivessem feito enormes progressos no caminho da
expansão e da liberalização do comércio mundial, como ilustrado pelo número de
países e pelo valor do intercâmbio envolvido nas várias rodadas de negociações
comerciais no Gatt. Da primeira, em Genebra, 1947, participaram 23 países e o
valor do comércio envolvido foi de 10 bilhões de dólares; em 1973, na rodada
Tóquio, houve 99 participantes e o valor do comércio coberto pelas negociações
atingiu 155 bilhões de dólares.5 A divergência, ainda não resolvida, é em torno
da distribuição dos benefícios passados e da fixação de uma agenda e de normas
capazes de assegurar resultados mais eqüitativos para o futuro.
Ponto de inflexão?
Foi contra esse pano de fundo que, na década de 1980, ocorreram dois
desenvolvimentos cujas implicações para o futuro do sistema econômico
multilateral ainda não estão totalmente claras ' a difusão do regionalismo
econômico em uma escala até então desconhecida e a inclusão dos chamados "novos
temas" na agenda do comércio internacional.
Em tese, existe um conflito entre o enfoque adotado pelo Gatt com vistas à
liberalização do comércio internacional e a formação de blocos ou arranjos
regionais de comércio. O primeiro prevê a negociação de reduções simultâneas de
barreiras tarifárias e a sua extensão "imediata e incondicional" a todas as
partes contratantes. O objetivo geral é, pois, universal e não discriminatório,
enquanto os arranjos regionais ' zonas de livre comércio, uniões aduaneiras ou
mercados comuns ' são, por definição, geograficamente seletivos e não têm como
objetivo precípuo a liberalização do comércio mundial, mas sim a do intercâmbio
entre os países que os integram. Daí, embora permitidos pelo Gatt, serem
tratados como uma exceção à cláusula de nação mais favorecida, tal como
estabelecida no artigo I do Acordo Geral. É verdade que o estabelecimento de um
bloco regional de comércio tem dois efeitos antagônicos: a criação de comércio
' sobretudo entre os países que o integram ' e o desvio de comércio '
principalmente de fora para dentro do bloco. Assim, o impacto de um esquema de
integração econômica regional sobre o volume do comércio mundial vai depender
do incremento de intercâmbio, positivo ou negativo, que, em cada caso, resulte
da interação daqueles dois efeitos antagônicos. Em sentido semelhante, tem-se
argumentado que o regionalismo econômico poderá ser uma contribuição, e não um
óbice à liberalização do comércio internacional em bases multilaterais, na
medida em que os blocos econômicos adotem uma política comercial de cunho
liberal e se mantenham abertos ao ingresso de novos membros.
Nas décadas de 1950 e 1960, foram criados vários blocos regionais de comércio,
na maioria entre países em desenvolvimento, que tiveram, de modo geral, escasso
impacto sobre a estrutura do comércio mundial. A grande exceção foi a
assinatura do Tratado de Roma, em 1957, que estabeleceu a Comunidade Econômica
Européia (CEE), a qual levaria, quase quatro décadas mais tarde, à constituição
da União Européia (UE).
No conjunto, porém, apesar dos entorces já assinalados, o sistema internacional
de comércio vigente manteve, até a década de 1970, o formato geral estabelecido
ao término da Segunda Guerra Mundial: um esquema multilateral destinado a
liberalizar e ampliar o comércio mundial de bens. Isto se deveu principalmente
à posição dos Estados Unidos, que, durante cerca de quatro décadas, preferiram
burlar os objetivos declarados do sistema recorrendo a formas seletivas de
protecionismo, às vezes por meio do exercício de um "unilateralismo agressivo",
a aderirem abertamente ao regionalismo discriminatório. Tal situação se
modificaria a partir de meados dos anos 80, quando Washington assumiu,
formalmente, a percepção de que as normas vigentes não vinham servindo
adequadamente os seus interesses.
Conseqüentemente, os Estados Unidos, que tradicionalmente tinham sido o grande
defensor de um sistema multilateral de comércio mundial, passaram a buscar as
vantagens econômicas e políticas do regionalismo econômico. Assim, em 1985,
assinaram um acordo de livre comércio com Israel. O impacto comercial foi
quantitativamente pequeno, mas o Estado judeu conseguiu dar um caráter mais
permanente ao acesso privilegiado de que já gozava por meio do sistema
generalizado de preferências americano, enquanto os Estados Unidos passaram a
competir em igualdade de condições com os integrantes da CEE, que já tinham
acesso preferencial ao mercado israelense, com base num acordo de 1975. No ano
seguinte ' por iniciativa dos canadenses, receosos de que Washington, sujeito a
fortes pressões internas em momento de crescente déficit comercial, adotasse
medidas protecionistas ' iniciaram-se negociações com vistas à criação de uma
Área de Livre Comércio Estados Unidos-Canadá. O acordo respectivo foi assinado
em outubro de 1987. Pouco menos de três anos mais tarde, em março de 1990, foi
a vez de o México propor ao seu principal parceiro comercial a conclusão de um
acordo de livre comércio. Como o Canadá, os mexicanos aparentemente se
preocupavam com a possível imposição de barreiras às suas exportações para os
EUA. A essa motivação negativa ' de evitar um possível dano ' somavam-se
considerações positivas, como o desejo de atrair investimentos estrangeiros e
de reforçar o apoio às reformas econômicas do governo Salinas, que incluíam a
adesão do México ao Gatt e a liberalização unilateral do seu comércio exterior.
No ano seguinte, decidiu-se incluir o Canadá nas negociações, com vistas à
constituição de uma área de livre comércio que abrangesse toda a América do
Norte. O acordo final ' com a inclusão dos instrumentos complementares
relativos ao meio ambiente e às condições de trabalho, para cobrir as
preocupações de Washington com um alegado "dumping social" ' só foi aprovado
pelo Congresso americano já no governo Clinton.
A Área de Livre Comércio da América do Norte (mais conhecida pela sigla inglesa
Nafta), até agora, o exemplo mais marcante da conversão de Washington ao
regionalismo econômico, reflete também as novas preocupações dos países
desenvolvidos em matéria de comércio internacional, indo muito além do
intercâmbio de mercadorias. O acordo respectivo inclui, além das, já
mencionadas, disposições sobre normas trabalhistas e proteção do meio ambiente,
outras relativas a serviços e investimentos. Por outro lado, estabeleceu regras
de origem particularmente rígidas para determinados setores, como têxteis,
automóveis e computadores, de modo a evitar que a proteção então em vigor
nessas áreas, pudesse ser contornada por produtores de fora da área.
A idéia de um regionalismo americano capitaneado por Washington não se
limitaria, entretanto, à parte setentrional do continente. Em 1990, o
presidente Bush (pai) lançou a Iniciativa para as Américas, cujo ponto mais
importante foi a proposta de uma vasta área hemisférica de livre comércio, "do
Alasca à Terra do Fogo". A idéia teve seguimento no governo do presidente
Clinton, que promoveu, em dezembro de 1994, em Miami, a realização de uma
Cúpula das Américas, na qual os chefes de Governo dos países do continente
(exceto Cuba) se comprometeram com a negociação de uma Área de Livre Comércio
das Américas.
Ao mesmo tempo, na América Latina, proliferavam propostas e esquemas formais de
integração econômica ou iniciativas tendentes ao aprofundamento de blocos já
existentes. Não cabe fazer aqui uma lista exaustiva de tais iniciativas. Alguns
exemplos bastam para ilustrar a onda integracionista que parece ter-se apossado
da região. Em abril de 1992, os integrantes da Comunidade Econômica do Caribe
anunciaram sua intenção de estabelecer um mercado comum; em novembro do ano
seguinte, os membros do Mercado Comum Centro-Americano firmaram um acordo para
a remoção das barreiras que ainda obstaculizavam o comércio intrazonal; em
março de 1994, México e Costa Rica também firmaram um instrumento visando à
liberalização do seu comércio bilateral; no mesmo mês, o Brasil propôs a
criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa); três meses depois,
Colômbia, México e Venezuela concluíram o acordo do chamado Grupo dos Três, com
vistas à criação de uma área de livre comércio entre eles. Mais importante para
nós e para o comércio intracontinental, foi firmado, em março de 1991, o Acordo
de Assunção, que criou o Mercosul. Para o objeto desta reflexão, pouco importa
que os objetivos dessas várias iniciativas possam ter sido distintos ou mesmo
antagônicos. A proposta de estabelecimento da Alcsa, por exemplo, responderia à
preocupação brasileira com as possíveis conseqüências econômicas e políticas da
integração hemisférica proposta por Washington, enquanto o Grupo dos Três
refletiria o desejo da Colômbia e da Venezuela de acesso à Nafta. No contexto
da presente análise, o importante é que todos viram no regionalismo econômico '
e não no multilateralismo universalista ' a melhor forma de alcançar seus
respectivos fins econômicos e políticos.
Enquanto isso, na Europa, o processo de integração, que naquele continente já
avançara consideravelmente, foi aprofundado com a assinatura, em julho de 1987,
do Ato Europeu Único, cujo objetivo era o estabelecimento, entre os membros da
Comunidade Européia (CE), a partir do fim de 1992, de um mercado comum, com
plena liberdade de movimento para bens, serviços, pessoas e capital. A esse
novo passo, no sentido do aprofundamento da integração, seguiu-se uma nova
expansão geográfica do processo, que passaria, a partir de 1991, a incluir no
Espaço Econômico Europeu os países da Área Européia de Livre Comércio (Aelc),
com exceção da Suíça. Este impulso dado ao regionalismo europeu culminaria com
a assinatura do Tratado de Maastricht, em fins de 1991, que criou a União
Européia. E o processo continua em andamento, com a conclusão de um tratado
constitucional (cuja entrada em vigor ainda depende de sua aprovação final,
inclusive por referendo popular, pelos Estados-membro) e as novas e projetadas
adesões, que ampliarão ainda mais a União Européia para o Leste e o Sul. A
importância deste enorme bloco comercial, que por si só já responde por cerca
de 40% do intercâmbio mundial de bens, é ainda reforçada pela sua rede de
tratados de comércio com os signatários das Convenções de Lomé (cerca de
setenta ao todo) e mais de uma dezena de países mediterrâneos.
E a tendência geral no sentido da formação de blocos econômicos mais ou menos
coesos estende-se também à Ásia. Além do aprofundamento do processo de
integração entre Austrália e Nova Zelândia, os seis integrantes da Asean
(Brunei, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Malásia e Tailândia) lançaram, em
janeiro de 1993, um programa de integração com vistas ao estabelecimento, num
prazo de 15 anos, de uma área de livre comércio entre eles. Em agosto de 1994,
o relatório de um Grupo de Pessoas Eminentes criado pela Apec6 recomendou que
os países que integravam aquele esquema de cooperação iniciassem um processo de
integração econômica com o objetivo de chegar a uma área de livre comércio até
2020. A proposta foi aprovada, em novembro do mesmo ano, por uma reunião de
cúpula da Apec, apesar das objeções e reservas da Malásia, e um programa de
ação foi definido, um ano depois, numa reunião ministerial realizada em Osaka.
Em suma, as duas últimas décadas do século passado viram o surgimento de um
número considerável de blocos econômicos e o aprofundamento de outros já
existentes. Seria prematuro afirmar que tal desenvolvimento já se esteja
traduzindo numa regionalização do comércio mundial, no sentido de o intercâmbio
dentro das várias regiões estar-se tornando relativamente mais importante do
que o praticado multilateralmente, fora de esquemas preferenciais. Seria também
precipitado dizer que os blocos regionais já constituem uma ameaça direta ao
sistema multilateral. Muito vai depender das políticas mais ou menos
protecionistas que tais blocos adotem em relação ao comércio com países de fora
da área e no tocante à aceitação de novos membros. O certo, porém, é que um
grande número de países, talvez a maioria, passou a considerar que seus
interesses econômicos, políticos ou ambos aconselhavam o estabelecimento de
vínculos preferenciais com alguns outros. Os agrupamentos daí decorrentes podem
ter objetivos dominantemente defensivos, como conseguir melhor posição
negociadora frente a países mais poderosos, ou refletir os desejos de
influência regional de algum país de maior peso específico na área. Em qualquer
hipótese, é difícil escapar à percepção de que tal tendência à criação de
blocos regionais poderá contribuir para o debilitamento do sistema multilateral
de comércio ou, em todo caso, para consideráveis mudanças no jogo de forças que
condiciona o seu funcionamento.
Paralelamente à expansão do regionalismo econômico, houve uma considerável
ampliação da agenda multilateral do comércio mundial, fundamentalmente para
atender aos interesses dos países desenvolvidos, especialmente os Estados
Unidos. Para eles, era preciso ampliar a competência do Gatt, de modo que a
organização que se ocupava do comércio mundial de bens passasse a tratar também
de outros temas que, num mundo globalizado, tinham-se tornado importantes para
as economias mais avançadas. Assim, quando, em 1986, foi lançada, formalmente,
a Rodada Uruguai, no Gatt, a inclusão de três "novos temas" na agenda de
negociações ' "direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio"
(mais freqüentemente conhecidos pela sigla inglesa Trips), "medidas de
investimento relacionadas com o comércio" (ou Trims) e o comércio internacional
de serviços ' era ponto fundamental para os países desenvolvidos.
Para os países em desenvolvimento, a situação apresentava-se de forma
diferente. Muitos deles, inclusive o Brasil, haviam-se convertido ou estavam-se
convertendo ao credo econômico liberal por tanto tempo pregado pelos países
industrializados. Dentro de tal enfoque, já não se tratava, pois, de batalhar
pela mudança dos princípios mesmos que formalmente norteavam o sistema vigente,
mas, sobretudo, de conseguir que o discurso teórico valesse também na prática '
e para todos. Afinal, se o liberalismo era desejável, por que deveriam os
agricultores dos países ricos ser sustentados por subsídios internos e à
exportação e protegidos por barreiras alfandegárias, enquanto os exportadores
os das nações mais pobres eram penalizados por esses e outros mecanismos
protecionistas? Mais genericamente, como considerar satisfatório o
funcionamento de um sistema internacional de comércio que, como já assinalado,
levava ' mesmo quando formalmente respeitado ' a uma liberalização muito maior
do intercâmbio de bens entre países industrializados do que das compras
provenientes das economias em desenvolvimento? Do ponto de vista dos países
pobres, antes de falar em "novos temas", de interesse das economias mais
avançadas, cabia, pois, eliminar tais anomalias, de modo a estabelecer o level
playing field tão presente no discurso político, mas tão ausente na prática
comercial dos países ricos. Em certo sentido, houvera, assim, uma inversão de
posições, com os países pobres defendendo velhas noções de livre acesso aos
mercados, especialmente os dos países ricos, enquanto estes se entregavam ao
chamado "novo protecionismo", essencialmente seletivo.
O século atual iniciou-se, pois, com uma ordem econômica internacional
significativamente distinta daquela que se tratara de estabelecer ao término da
Segunda Guerra Mundial. Essa nova situação coloca o Brasil ' e mais
genericamente, os países em desenvolvimento de renda média ' frente a desafios
distintos daqueles com que se defrontara durante quase toda a segunda metade do
século passado.
Nova distribuição de forças, novos desafios
Tornou-se corriqueiro assinalar que o período entre os fins das décadas de 1940
e de 1980 foi marcado pelo bipolarismo político e pela trilateralização do
poder econômico. De acordo com tal percepção, a ordem política internacional
teria refletido, durante aquelas quatro décadas, o acordado em Yalta, onde se
dividira o mundo em uma grande área de influência americana e outra soviética,
com a linha divisória entre ambas, definida pela posição ocupada na época pelas
forças ocidentais e pelas de Moscou. Tal situação impediu que a efetiva
redistribuição do poder econômico entre os Estados Unidos, a Europa Ocidental e
o Japão, ocorrida a partir da reconstrução das economias destruídas pela
guerra, se refletisse numa redistribuição correspondente do poder político-
militar. Manteve-se destarte a coesão do mundo ocidental, ou seja, da área sob
a hegemonia americana, apesar de, no plano estritamente econômico, esta ter-se
tornado discutível.
Menos enfatizado é o fato de que, paralelamente a essa difusão do poder
econômico entre os países desenvolvidos do Ocidente, houve também um aumento do
peso econômico relativo de um certo número de países em desenvolvimento de
renda média. Assim, no fim do século passado, seis das 15 maiores economias do
mundo ' China, Índia, Brasil, México, Indonésia e Coréia do Sul ' eram países
em desenvolvimento.7 Confirmando ' e de forma talvez mais marcante ' essa
tendência à redistribuição internacional do poder econômico, um estudo recente
do banco suíço UBS conclui que, com base na paridade do poder aquisitivo das
moedas, "o poder de compra dos consumidores chineses e indianos será cinco
vezes mais importante do que o poder de compra atual dos EUA".8 Os autores do
estudo consideram que suas projeções se basearam em hipóteses de crescimento
"prudentes". Nada disso significa que as assimetrias de renda e de poder
econômico internacional entre países pobres e ricos tendam, no conjunto, a
diminuir num futuro previsível. A esmagadora maioria dos países em
desenvolvimento continua imensamente pobre e achacada pelas mazelas do
subdesenvolvimento. Mesmo aqueles que aumentaram significativamente o próprio
espaço na economia internacional, como os acima citados, continuam
individualmente débeis frente a seus parceiros desenvolvidos.
Paralelamente a essa dupla redistribuição do poder econômico, o brusco
desaparecimento do bipolarismo político veio transformar o quadro que, durante
quatro décadas, condicionara a atuação internacional dos países em
desenvolvimento, inclusive na área econômica.
O grande desafio com que se defronta aquele grupo de países pobres que
ascendera na escala internacional do poder econômico é, pois, o de, nas novas
circunstâncias, traduzir em maior poder de negociação os importantes progressos
realizados. Trata-se de um problema agudamente sentido pelo Brasil, cuja
situação política e econômica, tanto nacional como internacional, mudou
consideravelmente desde a metade do século passado.
Brasil: nova realidade, novos desafios
Em 1950, a economia brasileira tinha dimensões relativamente modestas no âmbito
mundial. O total do nosso comércio exterior (exportações mais importações) era
da ordem de 2,3 bilhões de dólares, e nele, o café respondia por mais de 50% do
valor das exportações. Ao encerrar-se o século, o Brasil, com base na mesma
escala comparativa usada acima, era a nona economia do mundo, e nosso
intercâmbio com o exterior já se elevava a cerca de 100 bilhões de dólares, com
uma significativa participação de produtos manufaturados e semimanufaturados em
nossa pauta de exportações. Este ano espera-se que nossas vendas ao estrangeiro
excedam os 80 bilhões ' e as disputas comerciais com outros países envolvem
questões ligadas à exportação de bens como aviões a jato e produtos
siderúrgicos. Tanto as dimensões da economia brasileira, como a inserção
internacional do Brasil passaram, pois, na segunda metade do século XX, por
enormes mudanças quantitativas e qualitativas.
Por outro lado, ocorreram, sobretudo a partir de 1990, significativas
alterações na nossa política econômica, bem como mudanças de ênfase e de
percepção em nossa política externa. Até 1980, a economia brasileira crescera a
uma das taxas mais altas do mundo e nossa política econômica era claramente
protecionista. Vivíamos o período da chamada "substituição de importações".
Paralelamente, nossa política externa, no mesmo período, era marcada, com
variações de ênfase relativa por duas constantes ' o desenvolvimento econômico
e, no contexto da Guerra Fria, a fidelidade de última instância ao bloco
ocidental. Em 1990, já terminada a Guerra Fria e esgotado o modelo de
substituição de importações, houve uma mudança de percepções.
A questão do desenvolvimento passou a ser vista dentro de um enfoque econômico
liberal, o que, sem varrê-lo das preocupações da nossa diplomacia, reduziu
consideravelmente seu papel de elemento condicionante da nossa política
externa. Como bem sintetizou Amado Cervo, "o desenvolvimento não desapareceu no
horizonte da política exterior brasileira desde 1990. [...] Deixou apenas de
ser o elemento da sua racionalidade".9 Paralelamente, a fidelidade de última
instância ao bloco ocidental e à liderança americana ' que objetivamente
perdera sua razão de ser com o fim da Guerra Fria ' foi, em alguma medida,
substituído pela absorção acrítica do pensamento econômico emanado de
Washington.
Ao assumir o poder comprometido com o progresso econômico e social do país e ao
declarar que uma das condições para a construção de um "novo modelo econômico
seria garantir a presença soberana do Brasil no mundo", o atual governo
assumiu, até certo ponto, ênfases e conflitos tradicionais da nossa diplomacia.
Não foi à toa que as relações com Washington, sobretudo na área econômica,
passaram a ser uma das grandes indagações dos meios de comunicação sobre a
política externa do governo Lula. Tratava-se, entretanto, de um contexto
nacional e internacional substancialmente distinto do prevalecente antes da
década de 1990. O problema passou a ser, pois, como atender a preocupações
antigas com objetivos específicos e instrumentos de ação diplomática distintos.
Assim, o discurso de defesa dos interesses dos países em desenvolvimento não
perdeu, como tal, sua validade básica, mas suas implicações operacionais de
política externa são diferentes daquelas pelas quais optamos no passado. Hoje,
não se trata tanto, pelo menos do ponto de vista brasileiro, de modificar os
fundamentos do sistema internacional de comércio, por exemplo, mas antes de
avançar em áreas mais limitadas, por meio de fórmulas operativas que
dificilmente terão o apoio de todo o universo dos países em desenvolvimento. Em
outras palavras, o importante hoje é obter benefícios sustentáveis, não a mera
aceitação de princípios gerais, que facilmente poderiam ser desrespeitados em
sua aplicação prática. Torna-se, portanto, mais relevante atuar em conjunto com
uns quantos países selecionados, que efetivamente aumentem nosso poder de
negociação, do que ter o apoio nominal de um vasto número de atores
teoricamente afins, mas que, numa negociação concreta, trarão mais dificuldades
do que ajuda. A diferença entre o relativo principismo inevitável de antes e o
pragmatismo necessário de hoje é ilustrada por dois episódios concretos. A
idéia de um sistema geral de preferências dos países desenvolvidos em favor dos
países em desenvolvimento foi aprovada inicialmente na II Unctad, em 1968,
graças à pressão do Grupo dos 77 ' que na verdade, já reunia um número muito
maior de países em desenvolvimento. A aprovação da resolução respectiva só foi
conseguida, porém, graças ao recurso à votação nominal de vários parágrafos, de
modo a inibir a defecção de muitos países em desenvolvimento, que nela viam
poucos ganhos potenciais próprios ou que já gozavam das vantagens de esquemas
preferenciais seletivos, que seriam erodidas pela generalização do benefício. A
aplicação prática da idéia, entretanto, só poderia dar-se, entretanto, mediante
um waiver, a ser obtido individualmente no Gatt pelos países que se dispusessem
a outorgar tais preferências. A impossibilidade de o conjunto dos países em
desenvolvimento exercerem uma pressão adequada no âmbito do Acordo Geral e o
próprio processo decisório, neste foro, permitiram que, na prática, a proposta
global inicialmente aprovada fosse convertida em uma série de esquemas
nacionais, que cada país outorgante tratou de fazer o menos oneroso possível.
Essa diluição do poder de pressão de um grupo numeroso, mas heterogêneo,
contrasta com o exemplo recente da atuação do G-20, no âmbito das negociações
da Rodada de Doha, na Organização Mundial de Comércio, quando este grupo
relativamente pequeno se revelou uma força negociadora com peso suficiente para
que suas posições tivessem de ser levadas em conta pelas potências econômicas
tradicionais. Tratava-se, porém, de uma coalizão de países em desenvolvimento
que reunia algumas das grandes economias do planeta e Estados de considerável
projeção regional (China, Índia, Brasil, África do Sul são bons exemplos) e que
soube superar ou contornar divergências tópicas intragrupo para atuar com
coesão operacional, profissionalismo e eficiência.
As implicações dessa mudança de estratégia, decorrente da redistribuição
internacional do poder econômico e de mudanças de enfoque em nossa política
econômica, não se limitam, porém, a nossa atuação em organismos multilaterais.
Elas se fazem sentir também nas relações regionais e bilaterais do Brasil,
particularmente num momento em que o regionalismo econômico tende a ganhar
força frente ao multilateralismo. Isso fica bem claro no âmbito continental.
A conversão dos Estados Unidos ao regionalismo e o conseqüente lançamento das
negociações da Alca colocaram o Brasil diante de opções extremamente difíceis.
Aceitar a iniciativa americana na forma proposta por Washington hipotecaria
nosso desenvolvimento e autonomia futuros. Alternativamente, ficar de fora do
processo negociador, provavelmente, nos deixaria isolados e em desvantagem
competitiva em nossa própria região, já que nossos vizinhos ' coletivamente ou
em arranjos bilaterais com Washington ' tendem a estabelecer laços
preferenciais com os EUA. A alternativa percebida como mais razoável foi tentar
negociar uma Alca mais favorável aos interesses brasileiros e, mais
genericamente, aos latino-americanos. Isso é, porém, praticamente inviável sem
o apoio de, pelo menos, um número significativo de outros países sul-
americanos. Mas aqui nos chocamos com sérias dificuldades.
Uma tentativa de reviver, frente às duas grandes economias desenvolvidas do
norte do continente, um latino-americanismo baseado no subdesenvolvimento comum
dos países ao sul do rio Grande já não teria sentido prático, se é que chegou a
tê-lo no passado. Ainda no governo anterior, a percepção de tais dificuldades
ficou muito clara quando na convocação da Cúpula Sul-Americana de Brasília, em
2000. Na época, o então ministro das Relações Exteriores, embaixador Luís
Felipe Lampreia, referindo-se à iniciativa brasileira, salientou "a
especificidade da América do Sul, particularmente no âmbito econômico-
comercial, pelo que teriam sido deixados de fora do projeto a América Central e
o Caribe, 'vinculados de forma mais próxima e direta à América do Norte, em
particular aos Estados Unidos'".10 A iniciativa não visava, pois, a reunir os
países pobres do continente, mas, sim, aqueles pobres menos próxima e
diretamente vinculados aos Estados Unidos. Embora não declaradamente, dava-se
um passo no sentido do sul-americanismo, um regionalismo continental mais
pragmático, que ' embora sem rejeitá-los abertamente ' afastava-se tanto do
velho pan-americanismo de inspiração monroísta quanto da noção mais recente de
um latino-americanismo desenvolvimentista, alicerçado na presumida afinidade do
subdesenvolvimento. Ampliava-se, pois, a percepção política regional que
inspirara a Alcsa, de modo a ensejar uma reflexão abrangente sobre "um projeto
pragmático de organização do espaço sul-americano".11
O governo atual tem seguido a mesma trilha de congregação dos países da América
do Sul, porém com menos ênfase em esquemas declaradamente abrangentes ' como a
Área de Livre Comércio Sul-Americana ou a reunião de cúpula de Brasília ' e
maior disposição de assumir atitudes protagônicas no âmbito regional. Já não se
trata agora de lançar grandes esquemas de âmbito subcontinental, que
dificilmente chegam a dar frutos, mas de fazer avançar projetos regionais já
existentes, de estimular a vinculação entre eles ' como a ligação Mercosul-
Comunidade Andina ' e de tomar iniciativas bilaterais ambiciosas, como no caso
da Venezuela, assumindo, ainda que apenas implicitamente, uma atitude de
liderança dentro da América do Sul.
Tudo isso revela maior desenvoltura em nossa atual política regional, e uma
mudança em relação à atitude anterior, que se preocupava em negar qualquer
noção de que o Brasil pretendesse tomar uma posição de líder sub-regional. Ela
não elimina, entretanto, as dificuldades decorrentes das peculiaridades da
posição do Brasil no continente.
Com uma população da ordem de 180 milhões de habitantes, a maior e mais
desenvolvida economia da América do Sul, sem disputas territoriais pendentes
com qualquer dos seus vizinhos, nosso país constitui, inevitavelmente, um pólo
de atração econômica e política no subcontinente. Em tese teria, pois,
condições para exercer um papel de liderança tranqüila na região. Todos esses
fatores tendem a ser, porém, parcialmente ofuscados por considerações
objetivamente menos evidentes, mas nem por isso menos relevantes. Séculos de
relações centro-periferia condicionaram as nações sul-americanas ' e a própria
opinião brasileira não é alheia a tal condicionamento ' a buscarem na América
do Norte e na Europa (mais recentemente também na Ásia) os mercados desejáveis
e a liderança internacional aceitável. Nesse contexto, é ilustrativo que os
países da região tendam a perceber as ligações viárias transcontinentais mais
como "uma saída para o Atlântico" (ou para o Pacífico, em sentido inverso), do
que vínculos econômicos intra-regionais. Esta é a maneira como, nos países
andinos, freqüentemente se vê o tão desejado acesso ao rio Amazonas ou como boa
parte da opinião brasileira percebe estradas para o Chile ou o Peru, por
exemplo. Só lentamente a popularização da idéia de integração econômica
regional foi levando os governos a se preocuparem mais efetivamente com a
indispensável "integração física" da área. Paralelamente, as próprias
assimetrias de dimensões e de peso econômico tendem a exacerbar rivalidades e
temores históricos, complicando não só o exercício de uma possível liderança
brasileira, mas a própria integração sub-regional.
O Mercosul ilustra bem tal situação. Firmado em março de 1991, o Tratado de
Assunção comprometia seus quatro signatários com a constituição de um mercado
comum, que deveria "estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994" e que
implicaria, entre outras coisas, "a livre circulação de bens, serviços e
fatores produtivos entre os países".12 Assim definido, tratava-se de um
objetivo pouco realista, dadas a complexidade da tarefa e a exigüidade do
prazo. Mais importante para o objeto da presente reflexão, implicava também uma
visão estratégica comum da posição dos quatro em suas relações recíprocas.
Igualmente no tocante a países de fora da área, já que também se comprometiam,
no mesmo artigo, a estabelecer uma tarifa externa comum e à "adoção de uma
política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de
Estados". Na realidade, apesar de afirmativas em contrário, tal visão
estratégica comum parece inexistir. Isso ficou flagrante entre o Brasil e a
Argentina durante a década de 1990, no governo Menem, adepto do chamado
"realismo periférico" e interessado em fazer de suas "relações carnais" com os
EUA um instrumento de preeminência política no Cone Sul. Tal quadro modificou-
se com a assunção dos governos Lula e Kirchner. Do lado brasileiro, há uma nova
disposição de promover o aperfeiçoamento institucional do Mercosul, chegando-se
mesmo a mencionar o objetivo de uma política externa comum. Do lado argentino,
também parece haver a disposição de um melhor entendimento frente a terceiros,
mas, por outro lado, há claras indicações de preocupação com uma possível
preeminência do Brasil no âmbito do próprio processo de integração do Cone Sul.
Isso se traduz em medidas protecionistas como as da chamada "guerra das
geladeiras" e, de modo geral, na declarada disposição de travar o livre
comércio com o Brasil e mesmo certas migrações de investimentos entre países-
memb até que seja possível "reindustrializar a Argentina". Se juntarmos isso à
aparente reticência em relação a uma possível escolha do Brasil como membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU, teremos um quadro bem mais amplo e
profundo de rivalidade geopolítica, e não apenas econômica, pouco compatível
com o ambicioso projeto de integração proclamado. Em todo caso, uma visão
peculiar do que tal integração deve significar. A experiência de mais de treze
anos de Mercosul autoriza certo ceticismo quanto à probabilidade de que tais
diferenças de percepção e de objetivos venham a ser superadas.
Em síntese, o grande desafio para a nossa política externa no continente ' com
implicações mais amplas para nossa política internacional ' decorre de estarmos
colocados entre duas percepções regionais de poder que afetam conflitantemente
nossos interesses. De um lado, um projeto patrocinado pelos Estados Unidos, que
' por meio da Alca ou de uma rede de acordos preferenciais bilaterais com
países latino-americanos ' criaria uma vinculação econômica assimétrica desses
últimos em relação a Washington, com inescapáveis implicações políticas. De
outro, um esquema de integração sub-regional sul-americano, que em tese poderia
reforçar consideravelmente a posição negociadora das nações da área frente aos
EUA, mas que se vê ameaçado por velhas rivalidades no seu próprio âmbito. Nele
teríamos uma preeminência natural, mas nosso principal aliado potencial prefere
pôr em risco todo o projeto a permitir que, nele ou por meio dele, o Brasil
venha a ter uma posição no continente e uma projeção no mundo consentâneas com
seu peso econômico e demográfico.
Até agora, temos feito sucessivas concessões, na aparente convicção de que
assim conseguiremos manter vivo o Mercosul. Isto seria visto como um objetivo
desejável em si mesmo ' e de fato o é. Seria também importante para uma
negociação frutífera com os Estados Unidos, com vistas a fazer da Alca um
projeto palatável. Frente à atitude dúbia de nosso principal parceiro, cabe
perguntar, entretanto, se o Mercosul que poderíamos salvar mereceria realmente
ser salvo. Na hipótese negativa, deveríamos considerar seriamente alternativas
a um projeto de integração desejável em tese, mas que crescentemente se revela
utópico. Em seu lugar, poderíamos pensar, por exemplo, na negociação de acordos
preferenciais bilaterais com países ou grupos de países vizinhos efetivamente
dispostos a cooperar conosco. Tratar-se-ia, em última análise, de usar
seletivamente o trunfo que representa o acesso preferencial ao nosso mercado,
de modo a criar uma rede de acordos que nos livrasse do isolamento decorrente
de um provável êxito do projeto de Washington e fortalecesse nossa posição no
subcontinente. Deixaríamos, assim, de insistir num projeto de integração sub-
regional que poderia ser vantajoso para os quatro países que hoje o integram,
desde que todos estivessem convencidos de que não se trata de um jogo de soma
zero, onde o ganho de um sempre representa prejuízo para algum dos outros. Tal
convicção parece, entretanto, inexistir em Buenos Aires. Melhor será, portanto,
que continuemos a tratar a Argentina com a importância que ela sempre terá no
contexto geral de nossa política regional, mas sem muito otimismo quanto à sua
disposição de arcar com as responsabilidades inerentes à participação
construtiva em um projeto de integração.
Em parte, o raciocínio subjacente ao que foi dito em relação a nossa atuação no
âmbito continental aplica-se também a nossa política internacional. O
multilateralismo econômico limita-se hoje a reger as relações entre países que
não integram um mesmo arranjo regional ou aqueles aspectos das relações
econômicas intra-regionais não adequadamente regulados pelos instrumentos
respectivos. Não tem, pois, a universalidade que um dia pretendeu alcançar. Por
outro lado, os esquemas regionais, surgidos nas últimas três décadas, são
freqüentemente marcados pela participação de países desenvolvidos, que assim
tendem a tornar-se os pólos de zonas econômicas de influência. Esse é o caso,
por exemplo, da União Européia em relação aos países associados da África, do
Caribe e do Pacífico (ACP), como será o dos Estados Unidos em relação à América
Latina, caso a Alca venha a ser estabelecida na forma proposta por Washington.
Isso coloca diante de sérios desafios um país como o Brasil, que não deseja ser
apenas parte de uma zona de influência econômica, mas que já não encontra no
multilateralismo de âmbito mundial uma adequada alternativa ao regionalismo.
Freqüentemente, descrevemos o Brasil como um global trader, em razão da
diversificação geográfica das nossas exportações. Dada a modesta participação
do país no conjunto do comércio mundial, tal caracterização pode parecer algo
pretensioso, mas ressalta a determinação brasileira de manter vínculos
comerciais com o maior número possível de países, evitando assim uma
dependência exagerada em relação a qualquer mercado individual. Isso nos
obriga, por um lado, a participar ativamente dos organismos econômicos
multilaterais, especialmente a Organização Mundial de Comércio (OMC). Para ser
efetiva, tal participação exige, porém, um constante esforço de coordenação com
países afins, de modo a aumentarmos nossa capacidade de influir efetivamente
nas decisões tomadas naqueles foros, a exemplo da já citada iniciativa que
levou à formação do G-20. Por outro, em um mundo onde proliferam os arranjos
preferenciais, temos de ampliar o leque de países com os quais devemos manter
relações particularmente estreitas. Isso inclui negociar acordos bilaterais ou
plurilaterais que não apenas nos assegurem condições competitivas de acesso a
determinados mercados, mas também favoreçam outras formas de cooperação com
países selecionados. É o que temos procurado fazer no tocante à China e à
Índia, por exemplo.
Conclusões
O sistema econômico multilateral foi sendo erodido de várias maneiras ao longo
da segunda metade do século XX. Em particular, a partir da década de 1980,
multiplicaram-se os acordos econômicos regionais, com forte participação de
países desenvolvidos, para o que muito contribuíu a conversão dos Estados
Unidos ao credo regionalista que até então rejeitava. Tal evolução teve sérias
implicações para o Brasil, sobretudo desde que Washington propôs o
estabelecimento de uma área hemisférica de livre comércio.
Nosso país tem hoje um peso econômico internacional e, sobretudo, regional que
lhe dá a possibilidade ' e em certo sentido lhe cria o dever ' de ser mais do
que outro participante incaracterístico da área de influência de uma grande
potência ou do mundo em desenvolvimento em seu conjunto. Alcançar tal
desiderato esbarra, porém, em obstáculos vários.
Regionalmente, falta-nos poder de negociação suficiente para estabelecer um
bloco coeso sul-americano, ou sequer do Cone Sul, que pudesse contribuir para
dar ao projeto original de Washington formato mais palatável. O poder de
atração da Alca sobre outros países sul-americanos e rivalidades político-
econômicas regionais dificultam a concretização de tal desígnio. Falta-nos,
também, a força necessária para, sozinhos, opor-nos eficazmente ao projeto
liderado por uma potência como os EUA ou formarmos, em termos adequados, uma
aliança competitiva com outra, como a União Européia.
Tampouco faria sentido, nas atuais circunstâncias do Brasil e do mundo, tentar
reviver e dar conteúdo operacional à suposta solidariedade entre países em
desenvolvimento. A união dos países pobres foi uma idéia válida quando se
tratava de obter a aceitação de princípios gerais favoráveis àqueles países e
quando a rivalidade política da Guerra Fria levava os grandes a cortejarem o
então chamado Terceiro Mundo. Já não o é, porém, quando se trata, como agora,
de alcançar objetivos mais limitados e concretos, que nos tragam vantagens
palpáveis e sustentáveis.
Tudo isso deve levar-nos, pois, a uma atitude mais seletiva e pragmática de
busca, tanto no âmbito mundial como no regional, de aliados selecionados em
função de sua confiabilidade e capacidade de contribuir efetivamente para a
consecução de objetivos concretos comuns. Será uma pena se esse pragmatismo nos
forçar a sacrificar algumas "vacas sagradas "' ou mesmo, objetivos que em tese
são desejáveis.
1 CLINE, William R. (ed), Trade Policy in the 1980's. Washington: Institute for
International Economics 1983, 1 p.
2 BHAGWATI, Jagdish, The World Trading System at Risk. New Jersey: Princeton
University Press, 1991.
3 GILPIN, Robert, O desafio do Capitalismo Global ' a economia mundial no
século XXI. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, 472 p.
4 The Economist. 6 de setembro de 2003, 61 p.
5 Citado em Bhagwati, Jagdish, op. cit., p. 8.
6 Cabe assinalar que a Apec (Ásia Pacific Economic Cooperation) tinha sido
criada em 1989, por iniciativa dos Estados Unidos e da Austrália, como um foro
de cooperação econômica intra-regional, não se prevendo inicialmente um
processo de liberalização comercial entre os participantes.
7 As comparações entre diferentes economias aqui citadas baseiam-se na paridade
do poder aquisitivo das moedas e em dados do Banco Mundial. Foram publicadas em
The Economist, 8 de maio de 1999, 110 p.
8 Valor, 24.8.2004, p. A9.
9 CERVO, Amado Luiz. Relações Internacionais do Brasil: um balanço da era
Cardoso, Revista Brasileira de Política Internacional, ano 45, nº 1, p. 7.
Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2002.
10 SOUTO MAIOR, Luiz A. P. O Brasil em um mundo em transição. Brasília: Editora
UnB/IBRI, 2003, 148p.
11 LAMPREIA, Luís Felipe. Cúpula da América do Sul. Carta Internacional. nº 87,
ano VIII. São Paulo: USP, maio de 2000.
12 Tratado de Assunção, artigo 1.