O Mercosul e a Alca: os interesses (irre)conciliáveis da União Européia e dos
EUA
Introdução
A União Européia e o Mercosul assinaram em 1995 o "Acordo-Quadro Inter-Regional
de Cooperação", em vigor desde 1999, que constitui um instrumento de transição
para a criação de um futuro acordo de associação entre os dois agrupamentos. As
negociações conducentes a este acordo têm por objectivo estabelecer uma ampla
parceria política e econômica, e assentam em três pilares fundamentais: diálogo
político, cooperação, e comércio e investimentos. Na sua vertente comercial,
visam a criação de uma zona de comércio livre.1 O interesse da UE em
estabelecer o acordo de associação com o Mercosul deve ser analisado atendendo
ao processo de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e aos
interesses dos EUA na América Latina. Neste artigo argumentamos que a
materialização da Alca e do acordo UE/Mercosul é um cenário provável no que
toca aos entendimentos regionais na América Latina, e que a UE deve concluir as
negociações com o Mercosul antes da criação da Alca. Desta forma poderá
condicionar o processo conducente à formação da Área de Comércio Livre das
Américas e minimizar os constrangimentos que a criação daquele agrupamento traz
às relações da UE com o Mercosul.
O interesse da UE no alargamento do Mercosul
Criado pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai em 1991, com a assinatura do
Tratado de Assunção no seguimento da cooperação econômica que aproximava desde
1986 o Brasil e a Argentina, o Mercosul tinha como objectivo a construção de um
mercado comum. Este agrupamento tem inegável valor econômico e o seu eventual
alargamento a outros países da região é do interesse da UE. Atualmente o
Mercosul já representa 70% do território da América do Sul, 64% da sua
população e mais de 50% do PIB. O espaço físico dos países do Mercosul totaliza
11.9 milhões de quilômetros quadrados, onde habitam 210 milhões de pessoas. Com
um PIB superior a 1 trilhão de dólares, o Mercosul possui a principal reserva
de recursos naturais do planeta e tem um potencial agrícola abundante e
diversificado. É um dos mais importantes pólos de atração de investimento e em
2003 exportou cerca de 120 mil milhões de dólares e importou mais de 88 mil
milhões de dólares (FMI, 2003). A sua quota de participação no comércio mundial
oscilou na década de 1990 entre 2% e 2.9%2.
No início desta década, as exportações do Mercosul (gráfico_I) são destinadas
fundamentalmente à UE (24%) e aos EUA (21%). O mercado europeu e estado-
unidense absorvem, em percentagens muito semelhantes, cerca de 50% das
exportações do Mercosul. Estes valores traduzem o interesse do agrupamento
nestes dois mercados e a importância econômica e política para o Mercosul das
atuais negociações para a criação de uma área de comércio livre com a UE, bem
como para a criação da Alca.
A criação do Mercosul provocou um grande incremento no intercâmbio comercial
entre os seus Estados-membro, que se elevou de US$ 5.1 mil milhões em 1991 para
US$ 20.5 mil milhões em 1997, quadruplicando no período de apenas sete anos.3
Em 2000, o comércio intraMercosul atingia 20% do comércio total do bloco. O
aumento das trocas intra-regionais denota que a integração dos países do
Mercosul potenciou o comércio de proximidade geográfica, fazendo com que este
agrupamento regional se esteja a constituir como o bloco, de entre os formados
por países em desenvolvimento, com maior percentagem de comércio intra-região.
Com a instituição do Mercosul pretendia-se criar um amplo espaço de livre
comércio na América Latina no qual, para além dos países do Cone Sul, pudessem
participar outros países latino-americanos. O Mercosul teve desde o início uma
vocação subcontinental. Em 1996 assinou acordos de associação com o Chile e a
Bolívia, pelos quais foi estabelecida uma área de comércio livre, a adesão
desses dois países na qualidade de membros "associados", constituiu o que se
passou a designar de "Mercosul político". Em 2003, o Peru torna-se também
membro associado do Mercosul e desde dezembro de 2004 a Venezuela, o Equador e
a Colômbia são os novos membros associados do Mercosul. Em 2004 foi firmado um
Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina (CAN).4
Entretanto, em 2000, o Mercosul e o México haviam encetado negociações com
vista à criação de uma área de comércio livre e no início de 2004, Cuba
apresenta um pedido formal de acordo comercial com o Mercosul.
Esta dinâmica de formação de acordos económicos com os países da região pode
ser interpretada como um passo prévio para o alargamento do Mercosul, o qual
passaria a ter um peso econômico e político na região deveras significativo. A
criação do Mercosul e a celebração desses acordos constituem estratégia,
liderada pelas duas maiores economias do subcontinente (Brasil e Argentina),
para fortalecer o agrupamento e conseqüentemente para diminuir a
vulnerabilidade das economias da região à hegemonia político-econômica dos EUA.
Por outro lado, esta estratégia, ao incrementar as relações económicas externas
do bloco, permite aumentar a capacidade negocial do Mercosul com a União
Européia na criação do acordo de associação UE/Mercosul, e com os EUA na
criação da Alca.
Um eventual alargamento do Mercosul serve os interesses da UE. Os fortes laços
históricos e culturais entre os países dos dois lados do Atlântico, que levaram
à existência de grandes colônias de emigrantes europeus, especialmente
portugueses, espanhóis e alemães, são em grande parte responsáveis pela
existência de significativos fluxos comerciais e de investimento da UE para o
Mercosul. Esses fluxos, no entendimento da UE devem não só ser preservados, mas
ampliados, e o alargamento do Mercosul propicia tal objetivo.
Para os EUA, pelo contrário, a ampliação do Mercosul, não serve os seus
interesses na região, pois reforça o poder negocial dos países do Mercosul no
processo de criação da Alca, reduzindo os benefícios económicos e políticos que
os EUA esperam retirar deste agrupamento.
Alca: vantagens dos EUA com a integração assimétrica
Os interesses norte-americanos na América Latina assumem, desde há muito,
particular relevância. Trata-se de uma região que os EUA se habituaram a
considerar de sua influência natural e onde durante várias décadas exerceram a
sua supremacia econômica, política e militar.5
Em 1990, quando os EUA se centravam nas negociações do Nafta, o então
presidente norte-americano George Bush lançou a proposta "Iniciativa para as
Américas", que assinalaria o retomar da doutrina Monroe de 1823, que
estabelecia que a América Latina era uma área de influência dos EUA. Com esta
proposta, os EUA procuravam evitar que outra potência econômica, nomeadamente a
União Européia, adquirisse papel de relevo na América Latina.
No seguimento da "Iniciativa para as Américas", teve lugar a "Cimeira das
Américas" em 1994, na qual os presidentes de 34 países formalizaram a proposta
de criação de uma Área de Comércio Livre das Américas em 2005, com o objetivo
de, entre outros aspectos, eliminar as tarifas para a generalidade do comércio
entre os membros, estabelecer normas para regular o comércio de bens e
serviços, os investimentos, as compras governamentais, a propriedade
intelectual e a agricultura.
Morais (2000), refere que o projecto de integração hemisférica constitui uma
adaptação do estilo de intervencionismo norte-americano na região ao novo
contexto internacional e uma nova forma dos EUA ampliarem a sua influência na
América Latina, numa recriação da aludida doutrina Monroe. Com a aceitação, na
década de 1980, dos processos de regionalismo, os EUA iniciam também uma
política de integração econômica com a América Latina, onde até então a sua
intervenção política havia encontrado resistência. Os EUA recorrem agora a um
novo instrumento ' a integração econômica ' para prosseguir a velha doutrina
Monroe.
Segundo alguns autores, o pedido de concessão de fast track6 do presidente Bill
Clinton para negociar o acordo Nafta, já tinha implícito a sua ampliação a toda
a América Latina. Por outro lado, na negociação do Nafta, a aceitação, com
limitadas exigências por parte dos EUA, das condições pretendidas pelo México,
o país não desenvolvido daquele bloco comercial, indicia a intenção dos EUA de
virem a negociar a expansão do Nafta a outros países com um nível de
desenvolvimento econômico semelhante ao do México. Assim, os EUA pretendem que
o Nafta se torne num modelo de integração a ser expandido a outros países da
América Latina, em particular ao Brasil.
Embora a administração americana sustente que a Alca a liberalização do
comércio e do investimento, para a generalidade dos países latino-americanos a
criação da Alca é uma resposta ao interesse das grandes empresas dos EUA em
acederem a novos mercados. A debilidade econômica e a necessidade de acesso ao
grande mercado norte-americano, constrangem os países latino-americanos, com a
excepção do Brasil, de questionar abertamente os objectivos da Alca. Conforme
assinala Simões (2002), a forte assimetria entre os países é uma das
características mais evidentes do processo Alca e um dos maiores desafios na
construção da sua política de coesão económica e social. Os EUA respondem por
cerca de 77% do PIB dos países que constituiriam a Alca; o PIB dos EUA e Canadá
em conjunto eleva-se a 82%; à América Latina cabem apenas 18%, dos quais 10%
correspondem aos países do Mercosul. Os restantes 25 países apenas representam
8% do PIB. A Alca configura assim um empreendimento de grande complexidade,
dada a disparidade de desenvolvimento das economias envolvidas.
Jaguaribe (2001) refere que nas negociações da Alca a eliminação das barreiras
aduaneiras proposta pelos EUA representa um muito maior esforço de
liberalização para os países do Mercosul do que para os EUA ' no Mercosul essas
barreiras são da ordem dos 13%, enquanto que as tarifas dos EUA são já muito
baixas (cerca de 3%). Por outro lado, os EUA propõem-se salvaguardar o seu
direito de impor barreiras não tarifárias unilateralmente, como sejam os
direitos anti-dumping,protecções fitossanitárias, quotas, para além de outras
restrições à entrada, que poderão prejudicar fortemente os países latino-
americanos, particularmente os do Mercosul.
Prevendo a habitual pressão dos lobbiesnorte-americanos em caso de conflito de
interesses, o acordo tenderá a proporcionar melhores condições de concorrência
às empresas dos EUA. Atente-se no poderoso grupo de pressão agrícola norte-
americano e pode antecipar-se que os produtos agrícolas da América Latina e
designadamente do Mercosul, terão muita dificuldade em penetrar no mercado dos
EUA. Tem pois, de ser sublinhado que a integração na Alca, seja do Mercosul,
seja de cada um dos países latino-americanos isoladamente, envolve uma situação
desigual nas condições de concorrência. Simões (2002) chama a atenção para o
fato de, em termos objetivos, os EUA considerarem que esta negociação comercial
hemisférica lhes é francamente favorável. Em primeiro lugar, porque o peso da
economia norte-americana garante uma enorme vantagem comparativa na negociação
das regras do futuro tratado. Em segundo lugar, a maior competitividade da
economia dos EUA facilita o aumento das exportações norte-americanas para a
América Latina, a área que registou o maior crescimento das exportações dos EUA
durante a década passada (300% entre 1990 e 1997).7
Morais (2000a) assinala que o projecto Alca ao integrar economias de tamanho e
nível de desenvolvimento assimétrico, torna previsível que não seja fácil
conciliar os diferentes interesses nacionais. Assim, muitos países da América
Latina advogam que a liberalização comercial deve ser precedida por estágios
intermédios de abertura, de natureza sub-regional e regional, de forma a
minorar os custos de transição, a assegurar a diversificação de parceiros
comerciais e a garantir o tratamento não discriminatório dos investimentos
extra-hemisféricos no cenário após 2005.
Contrariando os que antecipam vantagens para a América Latina decorrentes do
esperado acréscimo de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) vindo dos EUA,
Jaguaribe (1998) lembra que é improcedente a tese de que a criação da Alca
atrairá grandes investimentos americanos para a região: com o derrube das
barreiras aduaneiras, deixará de existir estímulo para realizar investimentos
na região, pois as empresas americanas podendo vender sem sobre carga
aduaneira, já não necessitam de deslocalizar as produções. A evidência
demonstra que, entre outras motivações, o que atrai o IDE é a existência de
grandes mercados com proteção aduaneira e o tratamento favorável desses
investimentos sob a forma de incentivos fiscais e outros, como acontece
atualmente nos países do Mercosul. Se a Alcaviera se constituir, essas
barreiras aduaneiras serão eliminadas, deixando de ser atrativo para as
empresas norte-americanas investir na região.
A formação da Alca é, pois, um instrumento fundamental para os EUA acentuarem a
sua influência na América Latina e para condicionarem quer o papel do Mercosul
na região, quer o seu alargamento; no limite a Alca poderá mesmo levar à
extinção do Mercosul.
A resistência do Brasil às negociações da Alca
O processo de integração econômica dos EUA e da América Latina tem sido travado
pelo Brasil. O Brasil pretende afirmar-se como uma grande economia regional e
até mundial, e receia a integração num espaço integrado ao qual pertence a
economia americana. Os EUA, sabendo desta pretensão (que tem vindo a ser
expressa pelo anterior e pelo atual presidente do Brasil), e reconhecendo as
potencialidades da economia brasileira, consideram fulcral a participação deste
país na Alca. Estudos do Banco Mundial, bem como projeções do governo
brasileiro (Calderón, 1998), indicam que o Brasil terá no futuro uma
participação no produto mundial que poderá alcançar 2,5% em 2020 (e que era de
1,5% em 1992). Nos próximos dez anos o Brasil vai ser um dos dez países
responsáveis por 40% do comércio mundial, pelo que os EUA têm todo o interesse
em que o mercado brasileiro seja rapidamente aberto às suas empresas. O Brasil
não possui qualquer acordo preferencial com os EUA, razão pela qual a
integração do mercado brasileiro na Alca se torna ainda mais atraente para as
empresas americanas. Acresce que o Brasil tem crescente poder político na
região, por força da sua preponderância no Mercosul e da sua ação com vista ao
alargamento do agrupamento. Os esforços do Brasil na criação e ampliação do
Mercosul constituem prova das suas capacidades e aspirações. Do espaço 4+6
países,8 o Brasil é considerado como o mais independente na sua política
externa e como o país com maiores possibilidades de desempenhar um papel de
relevo no sistema econômico internacional. Esse papel preocupa os EUA. Aos EUA
não convém que o maior país da região ascenda à categoria de potência
econômica, que lidere um agrupamento regional alargado capaz de concorrer com
os EUA e que, como refere Roett (1998), possa vir a influenciar o Mercosul no
sentido de privilegiar um relacionamento com a União Européia em detrimento da
Alca.
Para o Brasil, a adesão a Alca, apesar da plétora de ressalvas não tarifárias,
não é uma opção economicamente atrativa. Como sintetiza Jaguaribe (2001), a
Alca é uma forma de os EUA penetrarem no mercado brasileiro. O Brasil não
necessita da Alca para entrar no mercado americano ' mesmo sem a adesão a Alca,
os produtos de alto valor acrescentado que o Brasil exporta para os EUA
continuarão a sê-lo, porque não são produzidos pelos restantes países sul-
americanos. Ao Brasil convém o fortalecimento do Mercosul, pois tal permite-lhe
ter maior poder nas negociações da Alca. Esse poder negocial poderá também ser
reforçado se o Mercosul estabelecer o acordo de associação com a UE. Saliente-
se que do ponto de vista do Mercosul as negociações com vista à formação da
Alca não excluem uma aproximação à UE, podendo até motivar uma mais forte
aproximação. Ora nenhuma destas situações é do interesse dos EUA.
A UE pode retirar vantagens dos interesses divergentes dos EUA e do Brasil na
negociação da Alca, tendo em vista a afirmação e a salvaguarda dos seus
interesses na região. Para tal deve procurar acelerar o processo de criação do
acordo de associação com o Mercosul.
UE/Mercosul: potencialidades nas relações econômicas e dificuldades negociais
As trocas comerciais entre a UE e a América Latina têm aumentado desde o início
da última década ' totalizavam cerca 29 mil milhões de euros em 1990,
aumentaram para 66 milhões de euros em 1996 e atingiam 104 mil milhões de euros
em 2000.9 Os bens com maior peso nas exportações da UE para a América Latina
são as máquinas e o material de transporte (52%), enquanto que os bens que a UE
mais importa da América Latina são produtos agrícolas (38%), seguidos a grande
distância pelas máquinas (9%).
Das exportações da UE com destino à América Latina, 50% têm como destino o
Mercosul10 e este é também na América Latina o primeiro fornecedor da UE. As
trocas UE/Mercosul aumentaram significativamente nos anos 90, com um
crescimento de mais de 100% entre 1990 e 2001. Este crescimento deveu-se
principalmente às exportações da UE para o Mercosul, as quais aumentaram 302%;
as exportações do Mercosul para a UE cresceram 60%.
O aumento das exportações da União Européia com destino ao Mercosul,deveu-se em
grande medida ao interesse das empresas européias pelos mercados daquela
região, o qual levou em 1998 à criação do Fórum de Negócios Mercosul/UE,
destinado a promover a liberalização do comércio e do investimento. Das vendas
da União Européia para o Mercosul 95% são produtos industriais.
A UE é o principal parceiro comercial do Mercosul e como refere Silva (2002)
"ocupa tradicionalmente um lugar destacado no comércio destes países (...), o
que tem de resto implicações profundas que ultrapassam o mero horizonte
comercial". Com referência a 2001, 24% das exportações do Mercosul tiveram como
destino a UE. Das vendas do Mercosul para UE, 50% são produtos agrícolas (51%
provenientes da Argentina, 25% do Brasil e 42% do Uruguai), sendo a UE o maior
comprador de produtos alimentares do Mercosul. Segundo Grandi (1999) o Mercosul
é a quarta potência alimentar mundial e o terceiro fornecedor de produtos
agrícolas da UE. Esta capacidade de produção e de exportação de bens agrícolas
a preços competitivos constitui preocupação para o setor agrícola francês,
subsidiado pela PAC, e explica os entraves que a França tem colocado ao
aceleramento das negociações entre a UE e o Mercosul para a criação de uma área
de comércio livre. Das importações de produtos industriais provenientes do
Mercosul, 53% são já isentas de direitos aduaneiros e os restantes 47% estão,
desde 2001, a ser gradualmente liberalizados, ao longo de dez anos, sendo que
em 2008 grande parte dessas importações já não estará sujeita a direitos
aduaneiros.
No que respeita ao IDE, a União Européia é o segundo maior investidor na
América Latina, a seguira os EUA e muito à frente do Japão. O volume do
investimento direto europeu nunca teve a expressão que tem hoje. Perante o
êxito dos planos de estabilização econômica dos países da América Latina, as
alterações na conjuntura mundial e os programas nacionais de privatização,
criaram-se condições de confiança para os investimentos europeus na região. A
Comissão Européia (1999) refere ainda que para além das afinidades históricas,
culturais e linguísticas, as principais causas destes tais fluxos financeiros
são a ampla participação de capitais europeus nos processos de privatização de
empresas públicas latino-americanas, e também a forte presença de bancos
europeus nos programas de conversão da dívida. Cerca de 60% do IDE europeu na
América Latina teve como destino o Mercosul, especialmente a Argentina e o
Brasil. Nos últimos anos assistiu-se a uma crescente concentração nestes dois
países, os quais em 1999 foram, juntamente com o Chile, destinatários de cerca
de 90% do investimento direto europeu na América Latina.
A Espanha, cujos investimentos já se evidenciavam desde 1993, voltou a ocupar
no período 1995-2000 a primeira posição, agora mais destacada, com 44% de todo
o IDE da União Européia na América Latina (quadro_2). Seguiam-se os
investimentos do Reino Unido e Portugal, com apenas 13% e 11% respectivamente11
e só depois a Alemanha.
Segundo dados da Cepal (2001) relativos a 1996-1997, os setores de atividade
mais procurados pelos investidores europeus foram a "electricidade, gás e água"
(23%), o "financeiro" (10%) e o "comércio" (7%). Segundo a mesma fonte, das dez
empresas multinacionais com maior volume de vendas na América Latina em 2000,
sete foram empresas européias.12 No que respeita à percentagem das vendas de
empresas comunitárias para aquela região sobressaem duas empresas ibéricas: a
"Portugal Telecom", com 63.5% das suas vendas na América Latina e a "Telefónica
España", com 56.7%,13 Estas percentagens refletem a aposta destas empresas no
mercado latino-americano, e explicam em grande medida o interesse dos países
ibéricos num relacionamento mais estreito e de caráter formal com o Mercosul.
O IDE europeu no Mercosul tem tido um aumento muito significativo: em 1999
totalizaram 29.455 milhões de dólares contra apenas 1.147 em 1992 (quadro_3), o
que representa um aumento de 2.468%.
Segundo o CESE (2001), nos últimos anos esses investimentos têm desempenhado um
papel cada vez mais relevante nas relações econômicas entre a UE e o Mercosul.
A opção dos investidores comunitários pelo Mercosul explica-se em parte pelas
expectativas que têm nas negociações para a criação de uma área de comércio
livre UE/Mercosul, a qual aumentará a segurança e potenciará a rentabilidade
dos seus investimentos nas economias do Mercosul. Entre os países receptores de
tais investimentos sobressaíram, como já se aludiu, o Brasil e a Argentina. No
Brasil, o IDE passou de 89 milhões de dólares em 1991 para 33 mil milhões de
dólares em 2000, embora com tendência para baixar, por terem sido já
privatizadas as suas maiores empresas. A Espanha figura em primeiro lugar de
entre os países da UE que mais investiram no Brasil no período 1992-2000, com
23 mil milhões de dólares, seguida de Portugal com cerca de 9 mil milhões de
dólares. No caso da Argentina, o montante do IDE, foi de 2.5 mil milhões de
dólares em 1991, e elevou-se para mais de 11 mil milhões em 2000. A Espanha foi
também o maior investidor na Argentina no período 1992-2000, sendo responsável
por 49% do total do investimento comunitário naquele país.
Portugal e Espanha, no momento de adesão a então CEE, em 1986, tinham um papel
diminuto nas relações econômicas e de cooperação e desenvolvimento com os
países do atual Mercosul, especialmente pelo fato de outros países já deterem
importantes posições na região, como era o caso da Alemanha (Freres, 2000). A
adesão de Espanha e de Portugal deu um forte impulso às relações econômicas com
o Mercosul. Com efeito, tanto Portugal como Espanha passaram a realizar
investimentos vultosos naquela região, no que foram acompanhados por outros
Estadosmembro. Simultaneamente também as transações comerciais com os países da
região registaram um acréscimo. A partir de então a UE passa a valorizar mais
as relações econômicas com o Mercosul, e estes dois países em particular
procuram assegurar a defesa dos seus interesses na região, nomeadamente
incentivando a criação de uma zona de comércio livre com o Mercosul.
O importante fluxo de investimentos comunitários no Mercosul e a expressividade
das trocas comerciais entre os dois agrupamentos justifica um relacionamento
formal entre os dois parceiros econômicos. Se por um lado, para os países do
Mercosul um acordo de livre comércio pode potenciar ainda mais as relações
econômicas com a União Européia, esta poderá retirar grandes benefícios com o
estabelecimento desse acordo, nomeadamente intensificando os fluxos de
investimento e as trocas comerciais. As relações econômicas da UE com o
Mercosul e os esforços para as enquadrar num acordo formal, denotam que a
Europa comunitária tem um papel a desempenhar naquela região, e que os
interesses da UE e dos EUA estão aí em concorrência, pondo em causa a percepção
dos EUA de que a América Latina constitui uma área de sua influência natural.
As dificuldades negociais
As relações formais entre a Europa Comunitária e os países da América Latina
iniciaram-se pouco tempo após a entrada em vigor do Tratado de Roma em 1958,
tendo-os então seis Estados - membro da CEE entendido promover e desenvolver as
relações comerciais e econômicas com os países daquela região. Nos anos 60 a
CEE apoiou também os processos de integração regional latino-americanos e na
década de 1980 celebrou acordos de cooperação com a generalidade dos
agrupamentos regionais da região, designadamente com o Mercado Comum Centro
Americano, com o Pacto Andino e com a Associação Latino-Americana de
Desenvolvimento e Integração. Nos anos 90 manteve um diálogo permanente com o
Mercosul, tendo os dois agrupamentos, em 1992 (menos de um ano após a criação
do Mercosul), assinado um Acordo de Cooperação Interinstitucional. Sete anos
depois, em 1999, entra em vigor o Acordo-Quadro Inter-Regional de Cooperação,
pensado para fazer a transição para um futuro acordo de associação UE/Mercosul,
que formalizaria uma aliança estratégica de natureza econômica e política entre
regiões com interesses complementares.
No entanto, a UE não tem conseguido imprimir o dinamismo e a celeridade que se
impunha ao processo negocial com o Mercosul,14 o que contrasta com a
importância econômica do Mercosul para UE e com a premência política de
estabelecer um acordo de associação. De fato, as negociações já tiveram início
em novembro de 1999, e já se realizaram 16 ciclos negociais, não tendo ainda
terminado.15 O último ciclo ocorreu em outubro de 2004, tendo os dois blocos
estabelecido que a nova reunião ministerial deveria ocorrer no primeiro
trimestre de 2005. As conclusões de cada um dos ciclos negociais, com especial
incidência nos mais recentes, dão a entender que o acordo está eminente para o
ciclo seguinte; no entanto, uma vez este iniciado, verifica-se reiteradamente
que são retomados temas sobre os quais parecia já ter sido alcançado um
entendimento. No último ciclo negocial, não ficou mesmo estabelecido o prazo
para a conclusão das negociações.
A principal causa para este moroso processo negocial de aprofundamento e
formalização das relações entre a UE e Mercosul reside nas questões relativas
ao setor agrícola. A Política Agrícola Comum (PAC) tem constituído um dos
maiores obstáculos ao estabelecimento de um acordo de associação com o
Mercosul. Já no Fórum Euro-Latino-Americano de 199816, vários intervenientes
alertavam para as implicações da PAC nas negociações e para as suas
consequências em um relacionamento formal com o Mercosul. Mais recentemente e
apesar da celeridade que se tem procurado imprimir ao processo negocial, as
dificuldades relacionadas com a PAC travam esse dinamismo. A PAC para além de
não cumprir as regras do Gatt/OMC, prejudica particularmente os interesses dos
países do Mercosul, cujas vantagens comparativas no mercado europeu se situam
em grande medida nos produtos agrícolas e agropecuários. Com os subsídios que
concede aos agricultores comunitários, a PAC torna os preços dos produtos
agrícolas europeus artificialmente mais baixos no mercado interno, dificultando
a exportação de produtos agrícolas do Mercosul para a UE. Como nota, Martins
(2000), a persistência de uma estratégia proteccionista por parte da UE em
torno da sua "sacrossanta" política agrícola é um dos maiores erros
estratégicos da política européia, tal como comprovam os entraves que cria ao
estreitamento das relações com o Mercosul.17
Segundo Dâmaso (2000), no debate interno da UE sobre as vantagens e as
desvantagens de um acordo UE/Mercosul, de um lado estão os países com fortes
interesses agrícolas, como a França, que têm dificultado este processo, e do
outro, estão países como a Alemanha que percepciona a reforma da PAC como
condição essencial para a efetivação de um acordo com o Mercosul. A divergência
de interesses agrícolas e industriais nas negociações comerciais entre a UE e o
Mercosul não facilitou nem a criação de uma agenda nem a sua negociação, apesar
de ambos os agrupamentos concordarem que um acordo de associação trará
benefícios para ambas as partes. É aceitável que na negociação de um acordo de
comércio livre se reconheçam as sensibilidades especiais de alguns setores
europeus, que não podem expor-se de maneira imediata à concorrência global,
sobretudo o setor agrícola, como recorda Klaveren (2000). O que não é
aceitável, segundo o autor, é a morosidade imposta pelo setor agrícola, que tem
uma política que necessita de ser revista com urgência para evitar
consequências eventualmente irreparáveis nas relações UE/Mercosul.
A abertura gradual do mercado europeu aos produtos agrícolas do Mercosul, além
de poder contribuir para uma maior eficiência na utilização dos recursos
agrícolas comunitários, possibilitaria maior abertura do mercado sul-americano
a um maior número de produtos europeus e a mais investimentos da UE, o que
poderia compensar, em parte, os custos associados à reforma da PAC.
A França, como principal beneficiária dos subsídios da política agrícola, é o
país que coloca mais dificuldades à reforma da PAC e indiretamente trava a
formalização de um acordo UE/Mercosul. É de alguma forma contraditório e até
irônico que a França persista na sua recusa de reformar a PAC e esteja a
inviabilizar o acordo da UE com o Mercosul e a dar espaço negocial aos EUA, seu
concorrente no sistema internacional, para criar a Alca. Ao fazê-lo a França
está a prejudicar os interesses comunitários no subcontinente americano e a
criar condições para um aumento da preponderância dos EUA na região, algo que a
França exatamente não pretende.
A Alca na equação negocial UE/Mercosul
A formalização de um acordo de associação entre a UE e o Mercosul não é um
processo independente da criação da Alca. As negociações para a constituição da
Alca colocam à União Européia a necessidade urgente de acelerar e concluir as
negociações com o Mercosul, de forma a salvaguardar os seus interesses naquela
região e a condicionar os esforços dos EUA para criar a Alca. O Comité
Económico e Social Europeu (2001) alerta para o fato de a Alca constituir um
repto para a União Européia, que vai além do âmbito econômico, pois a formação
de uma zona de comércio livre hemisférica conduzirá a um reforço da influência
política dos EUA na região.
O acordo UE/Mercosul representa a melhor oportunidade de a UE reforçar as
relações econômicas e políticas com a América Latina, pelo que não é de seu
interesse que o Mercosul se dilua na Alca. De acordo com alguns autores, os
maiores benefícios para a UE da relação mais estreita com o Mercosul resultam
da sua dimensão estratégica (Fórum, 1998). Para prosseguir estes objetivos
estratégicos a UE tem que oferecer ao Mercosul condições para potenciar o
comércio e assim criar as bases para uma relação politicamente mais estreita.
O interesse da UE num acordo de associação com o Mercosul e a crescente
interdependência econômica entre os dois agrupamentos, não é do agrado dos EUA,
que receiam ver diminuída a sua influência naquela região; não apenas a
influência política, mas em especial a econômica, o que poderia significar a
perda de quotas de mercado. Se a tal se adicionar o facto de o Mercosul, desde
a sua constituição em 1991 até ao lançamento do projeto Alca em 1994, ter
aumentado o seu comércio intra-região (de cerca de 10 mil milhões de dólares
para aproximadamente 24.5 mil milhões, consolidando-se enquanto espaço
comercial integrado) e ter reforçado o volume das trocas com o exterior,
compreende-se o interesse dos EUA na celeridade da conclusão do processo
negocial conducente à Alca. Segundo o Relatório do Fórum Euro-Latino-Americano
(1998) a criação de tal super-bloco é uma peça da estratégia americana de
afirmação da sua predominância política e comercial global, e uma forma de os
EUA neutralizarem o Mercosul, e limitarem a capacidade do Brasil para
questionar a sua afirmação político-económica na América Latina. Ora estas são
as razões que devem levar a UE a acelerar as negociações para o Acordo de
Associação com o Mercosul. Segundo Valladão (1998), só uma estreita cooperação
entre a Europa e a América Latina pode garantir a diversidade e especificidade
destes dois blocos face ao "rolo compressor norte-americano".
Por outro lado, ao procurar evoluir para um Mercado Comum, o Mercosul
acrescenta um elemento positivo para o reforço da associação com a UE. O bloco
regional para onde a UE canaliza uma parte significativa do seu comércio e
investimento direto estaria mais consolidado, o que estimularia as trocas e os
investimentos entre a União Européia e o Mercosul. Por sua vez, com o Mercosul
já constituído em Mercado Comum, os países da América Latina que tiverem
acordos preferenciais com aquele agrupamento, poderão se beneficiar do acordo
de associação do Mercosul com a UE e verão a sua posição face EUA mais
fortalecida e menos vulnerável. Finalmente, para o Mercosul seria mais benéfico
o estabelecimento de uma zona de comércio livre com a UE do que a pertença à
Alca (CESE, 2001). Sem um acordo UE/Mercosul antes de concluídas as negociações
da Alca, o Mercosul corre o risco de, a prazo, vir a desaparecer, o que não
interessa nem aos países que integram o agrupamento nem à UE, mas conviria aos
EUA.
Cenários possíveis e interesses (irre)conciliáveis da UE e EUA
São quatro os possíveis cenários de evolução dos entendimentos regionais na
América Latina. O quadro_4 esquematiza esses cenários e identifica quer a
possibilidade da sua ocorrência quer o interesse da UE e dos EUA na sua
materialização.
O primeiro cenário, muito pouco provável, supõe a inexistência da Alca e a
efetivação de um acordo de livre comércio UE/Mercosul. Este cenário é o que
mais interessa à União Européia, visto dar boas garantias para os investimentos
comunitários atuais e futuros na região, assim como para o incremento das
trocas entre os dois agrupamentos regionais. Este cenário não interessa aos
EUA, pois significaria que o processo Alca não se teria concretizado, e que
pelo contrário o Acordo UE/Mercosul seria alcançado.
No segundo cenário supõe-se a existência da Alca e a manutenção do Mercosul,
mas não se tendo materializado o acordo UE/Mercosul. A situação é provável, mas
não do interesse da União Européia, nem dos EUA. Nesta hipótese tanto as trocas
como os investimentos comunitários destinados aos países do Mercosul (e também
à restante América Latina) seriam significativamente reduzidos. A constituição
de um superbloco comercial, integrando as principais economias da América
Latina na esfera da economia dos EUA, conduziria ao estabelecimento de um amplo
espaço com regulamentações e práticas comerciais homogéneas, definidas sob
influência dos interesses dos norte-americanos e poderia erigir uma barreira
comercial aos produtos oriundos da União Européia. Para os EUA este é um
cenário com algum interesse, pois a não assinatura do Acordo UE/Mercosul seria
uma vitória relativa dos EUA. No entanto, a manutenção do Mercosul não
permitiria maximizar os interesses dos EUA na região, pois teria dentro da Alca
um bloco regional que poderia condicionar a sua influência econômica, e até
política, na região.
Um terceiro cenário pressupõe o desaparecimento do Mercosul após a constituição
da Alca e conseqüentemente inviabilização do Acordo UE/Mercosul. É um cenário
cuja possibilidade de ocorrência é reduzida e que não é do interesse da União
Européia, mas que seria o que mais vantagens proporcionaria aos EUA ' as
relações preferenciais entre o Mercosul e a UE não se materializariam e a
extinção do Mercosul evitaria os condicionalismos que este bloco poderia impor
sobre o desenvolvimento do processo de integração da Alca. O poder dos EUA na
região sairia reforçado, mas também no sistema internacional e nas instituições
internacionais, nas quais passariam a contar com o apoio de mais 33 países.
O último cenário admite a existência da Alca e do Mercosul e de um Acordo de
Associação UE/Mercosul. Esta hipótese é a que tem mais possibilidade de vir a
ocorrer. É um cenário que interessa à União Européia ' embora não maximize os
seus interesses ' porque salvaguarda os investimentos comunitários naquela
região e possibilita o crescimento do fluxo de trocas entre os dois
agrupamentos. Para os EUA é um cenário que não sendo ótimo, satisfaz em grande
medida os seus interesses ' embora o Mercosul continue a existir e se efetive o
acordo de associação UE/Mercosul, a Alca logra constituir-se.
Face aos interesses económicos da UE no Mercosul e tendo em conta as ambições
econômicas e políticas dos EUA na América Latina, a estratégia reactiva aos
avanços da Alca que a UE tem adaptado, não é favorável à defesa dos seus
interesses na região. É nosso entendimento que uma estratégia proactiva e menos
defensiva face aos progressos na criação da Alca seria mais vantajosa para a
UE. Assim, a União Européia deveria valorizar mais a premência de um acordo de
associação com o Mercosul e apostar na aceleração das negociações a ele
conducentes, antecipando-se à formação da Alca, de forma a salvaguardar os seus
interesses na região e a condicionar o processo negocial da área de comércio
livre do hemisfério americano.