Uma nova 'arquitetura' diplomática? - Interpretações divergentes sobre a
política externa do governo Lula (2003-2006)
Objetivos e metodologia deste ensaio de revisão bibliográfica
A política externa do governo Luís Inácio Lula da Silva, que começou em 1º de
janeiro de 2003, tem chamado a atenção dos observadores externos e dos
estudiosos internos, em vista de vários aspectos inovadores em sua formulação e
execução, assim como em função de reações e impactos no entorno regional e no
plano internacional, o que a colocou sob o foco desses estudiosos e
comentaristas desde os primeiros momentos de sua implementação. Iniciada sob
promessas de mudanças na forma e no estilo, assim como em sua própria
substância, por seus propositores e executores, a política externa do governo
Lula - que guarda inúmeras conexões "genéticas" com o grupo dominante no
cenário político do governo federal, o Partido dos Trabalhadores - vem sendo,
desde então, calorosamente defendida por muitos de seus simpatizantes na
academia e na imprensa, tanto quanto ela vem sendo atacada, com o mesmo ardor e
veemência, por analistas independentes, nos mesmos meios intelectuais e
jornalísticos.
Trata-se de configuração relativamente nova no panorama político-institucional
brasileiro, uma vez que, até recentemente, a política externa ou era
praticamente ignorada no cenário político e nos meios de comunicação, ou
dispunha, nesses meios, assim como na opinião pública de forma geral, de
relativo consenso positivo entre as diversas tendências político-ideológicas em
que se divide a sociedade. Essa avaliação não mais parece válida atualmente,
quando a política externa torna-se elemento importante nos debates sobre o
governo Lula, assim como ela pode assumir papel central na campanha eleitoral
presidencial de 2006, em vista, justamente, do relativo dissenso que ela chegou
a despertar nesses meios. Recebida com certo entusiasmo na imprensa e no
público no início do governo, em função da trajetória peculiar do presidente,
assim como em virtude de uma postura mais incisiva e afirmativa no entorno
regional e no cenário internacional - algo relativamente inédito para os
padrões habitualmente discretos da diplomacia brasileira - , a política externa
de Lula passou a receber, a partir do terceiro ano do governo, críticas mais
acerbas ou consistentes por parte de seus opositores mais conhecidos, mas
também de simpatizantes dessa diplomacia, o que poderia ser explicado tanto por
reveses acumulados no período recente quanto por problemas conceituais e de
definição das bases mesmas dessa política, que nunca foram suficientemente
discutidas de modo sistemático nos meios especializados.
Nesse contexto, o presente estudo, sem esgotar a temática da discussão
conceitual e da avaliação operacional dessa diplomacia, objetiva realizar um
levantamento e uma avaliação da produção "acadêmico-jornalística" em torno da
diplomacia do governo Lula, em seus primeiros três anos de prática efetiva,
agrupando-a em função do posicionamento adotado pelos autores selecionados. A
seleção de textos operada incide sobre ensaios interpretativos ou artigos
jornalísticos (de cunho mais conceitual do que o mero comentário da atualidade
corrente) que possam configurar uma avaliação qualitativa sobre a diplomacia do
governo atual, Luís Inácio Lula da Silva, nos primeiros três anos e meio de
mandato.
A classificação tentativa das "obras" obedeceu a um simples critério de
economia de meios, qual seja, o de inserir os autores selecionados e seus
títulos, ainda que sob risco de simplificação, em três categorias sintéticas:
(a) vozes autorizadas, isto é, os produtores originais de posições e discursos
para a diplomacia em questão;
(b) apoiadores externos, isto é, membros da academia e profissionais dos meios
de comunicação que concordam, no essencial, com as grandes linhas do discurso e
da prática diplomática;
(c)independentes ou críticos, ou seja, aqueles que se dedicam ao registro de
posições e à análise de suas implicações políticas e econômicas para as
relações internacionais do Brasil, mantendo um olhar crítico sobre os
fundamentos e as tomadas de posição da atual diplomacia.
A primeira categoria, vozes autorizadas, constitui, por assim dizer, um numerus
clausus de porta-vozes oficiais do establishment diplomático, e não deveria
comportar questionamentos quanto a sua composição ou representatividade: eles
são os que "produzem", apresentam e defendem a política externa oficial. No
segundo grupo figuram aqueles explicitamente simpáticos às posições e ao
discurso da atual diplomacia, tal como se depreende de posições e declarações
dos autores assim identificados em artigos, entrevistas (não recolhidas na
bibliografia) e em outras matérias que tratam das questões mais relevantes que
têm freqüentado a agenda diplomática do Brasil. Também existem acadêmicos que,
sem pretender cair na bajulação, encaram com simpatia a política externa,
naquilo que ela alegadamente representa de defesa dos interesses nacionais, em
face, por exemplo, de pressões dos EUA para, de um lado, favorecer a criação da
Alca ou, de outro, no sentido da adoção de uma posição mais dura do Brasil em
relação aos regimes "desviantes" da América Latina (como Cuba ou mesmo a
Venezuela).
A terceira categoria, independentes ou críticos, finalmente, abriga alguns dos
que se mantêm em postura independente ou que têm assumido uma atitude crítica
em relação a essa política, ademais dos que poderiam ser classificados como
"oposicionistas declarados". Cabe, de fato, reconhecer que existem analistas do
meio acadêmico que se opõem à política externa atual, não por qualquer
predisposição oposicionista, mas por julgá-la em seus próprios méritos, e daí
concluírem que ela rompe tradições diplomáticas consagradas, assim como existem
os críticos radicais, que julgam que a política externa atual não logra
alcançar os objetivos pretendidos, ao contrário do que vem sendo proclamado,
sacrificando posições de princípio ou metas concretas relativas à "economia
política" do Brasil.
A bibliografia sobre a diplomacia do governo Lula, coletada in fine, pretende
ser a mais abrangente possível em termos de autores e títulos, tendo sido
organizada segundo as três categorias referidas, ainda que os argumentos
desenvolvidos neste ensaio apenas abordem, por razões basicamente de espaço,
uma pequena parte da literatura selecionada para análise. A intenção é, com
base numa bibliografia suficientemente representativa, a de cobrir os
diferentes setores de opinião que se tem manifestado sobre essa diplomacia.
Os representantes autorizados
O primeiro grupo, obviamente restrito, é integrado pelos principais
formuladores e executores da política externa governamental, a saber, em
primeiro lugar, o presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, seguido
do chanceler, embaixador Celso Luis Nunes Amorim, do secretário-geral das
Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e do assessor
especial para assuntos internacionais da presidência, professor Marco Aurélio
Garcia.
A rigor, as duas últimas figuras não costumavam freqüentar, em administrações
passadas, o rol dos formuladores ou executores da política externa, no sentido
comum da palavra. Tradicionalmente, a figura do secretário geral do Itamaraty,
ainda que envolvida nas definições substantivas e na implementação prática da
política externa, encontrava-se normalmente afeta à administração rotineira (e
interna) do Itamaraty, limitando-se, no mais das vezes, a um papel de
coadjuvante no processo diplomático. Não é, obviamente o caso, do atual
ocupante da Secretaria-Geral das Relações Exteriores, que tem sido descrito, em
certos meios da imprensa, como uma espécie de "ideólogo" das novas linhas da
política externa, escrevendo intensa e extensamente sobre assuntos que, em
muitos casos, ultrapassam inclusive os limites da diplomacia estrito senso.
Quanto ao assessor presidencial, a tradição pretenderia que ele se limitasse a
uma consultoria direta, e geralmente discreta, do presidente em temas de
política externa, quase que numa função de note-taker ou de "introdutor
diplomático" da presidência. Nos últimos governos, a função foi, aliás,
exercida, quase que em "monopólio de fato", por diplomatas de carreira, que
sempre fizeram uma ponte natural com o Itamaraty. Não é, tampouco, o caso na
situação política atual, quando por peculiaridades inerentes ao PT, tanto
quanto por características pessoais ao ocupante do cargo um - longevo
secretário de relações internacionais do partido -, esse assessor assumiu papel
relevante na definição e até mesmo na execução de certas linhas da política
externa do governo Lula, em geral (mas não exclusivamente) relativas ao cenário
regional latino-americano.
De um modo até sancionado pelo próprio presidente, o assessor presidencial em
questão tem sido não apenas "espectador engajado", mas um ativo participante de
vários dossiês correntes da diplomacia oficial, extravasando dos meios
governamentais para uma atuação no seio da chamada sociedade civil e em direção
de "partidos amigos". Tais características, inéditas na história da diplomacia
brasileira, podem ser explicadas em vista das inúmeras conexões do partido
atualmente no poder com partidos e grupos politicamente afins, quais sejam, os
da esquerda latino-americana e os movimentos ditos progressistas do exterior.
No mais, o PT sempre teve uma "política internacional" (e regional), com uma
ativa secretaria de relações internacionais para auxiliar nos contatos externos
e na chamada solidariedade com movimentos voltados para as mesmas causas.
Outros assessores podem, em caráter ad hoc ou aleatório, ter opinado sobre
temas de política externa, mas tal ocorreu apenas em casos especiais - pode ter
sido o caso do Haiti, por exemplo -, sem o sentido de elaboração sistemática e
formal que ostenta o núcleo institucionalmente vinculado à política externa
oficial.
Registre-se que a política externa conduzida pelas "vozes autorizadas" contou,
em função das posições adotadas publicamente pelo presidente, dos discursos
efetuados em inúmeros eventos e encontros promovidos por uma diplomacia
especialmente ativa, seja ainda por causa das ações empreendidas no contexto da
chamada diplomacia "Sul-Sul", com uma rara unanimidade nas bases sociais de
apoio do governo, o que obviamente não ocorre com a política econômica, nem com
outras políticas setoriais. A diplomacia do governo Lula chegou inclusive a
contar, durante boa parte do período, com largo apoio na sociedade organizada e
em meios acadêmicos, postura apenas revertida em função de reveses recentes na
frente sul-americana.
Tendo essas características em mente, de que é feita, afinal de contas, a
política externa do governo Lula? Pronunciamentos não faltam para situar,
avaliar ou julgar os diferentes aspectos de uma diplomacia que já foi
caracterizada pelo chanceler como sendo "ativa e altiva", a começar pelo
discurso inaugural do presidente Lula em 1º de janeiro de 2003, que resume em
poucas linhas o sentido de uma política externa que afirma claramente sua
vontade de modificar certas ênfases da postura internacional do Brasil.1 Um
texto, porém, resume como poucos as bases conceituais e as orientações
políticas dessa diplomacia que já foi descrita como engajada.2 Trata-se do
artigo do ministro de Estado Celso Amorim no número inaugural da revista
Diplomacia, Estratégia, Política, concebida justamente para recolher os
materiais mais representativos da diplomacia regional do governo Lula.3
O artigo em questão começa, justamente, por enfatizar o aspecto inédito da
eleição do presidente Lula do ponto de vista das opções nacionais e regionais
em termos de modelos de desenvolvimento, ao condenar o "fracasso" que o neo-
liberalismo teria imposto à América Latina, ressaltando então o caráter
inovador e diferente das políticas que seriam colocadas em prática a partir de
então. O elemento central da política externa do governo é descrito como tendo
um papel de "instrumento de apoio ao projeto de desenvolvimento social e
econômico do País". Uma outra noção relevante é a de "interdependência" entre
os destinos do Brasil e dos vizinhos sul-americanos, aparecendo a integração
como um "imperativo" da diplomacia brasileira. O projeto da Comunidade Sul-
Americana de Nações já estava colocado explicitamente desde o início, assim
como a vocação do Brasil em contribuir para uma mudança no ordenamento mundial,
que se pretende seja multipolar. Para atender a esses objetivos, mesmo as
dimensões do Brasil não seriam suficientes, daí a necessidade de se fortalecer
a "coesão regional" e de lograr parcerias com "sócios estratégicos
privilegiados", o primeiro dos quais é a Argentina. Essa categoria abriga
também outros grandes países em desenvolvimento como a Índia, a África do Sul e
a China, com uma menção menos enfática à Rússia.
Existe também, nesse texto "fundacional", a noção de que o objetivo brasileiro
de uma atuação incisiva no cenário internacional seria potencializado se o
Brasil se unisse a outros países em desenvolvimento, com vistas a constituir
alianças mais seguras para fins instrumentais, como as negociações comerciais
multilaterais, no contexto das quais o G-20 é descrito como a "vanguarda de um
movimento internacional pela redução de barreiras protecionistas e a eliminação
de subsídios milionários". Associada a essa idéia encontra-se a noção de que o
comércio internacional possui uma geografia determinada, obviamente não
favorável ao Brasil e aos demais países em desenvolvimento, e que é necessário
mudá-la para favorecer os seus interesses.
Dessa mesma opção fundamental decorrem as iniciativas para alianças com outros
países, com blocos e regiões do mundo em desenvolvimento, como o IBAS - ou G-3,
Índia, Brasil e África do Sul -, as reuniões com líderes e visitas a países da
América Latina, do Oriente Médio, da África e da Ásia, sem excluir a vocação de
constituir uma espécie de ponte entre estes e os países ricos, como simbolizado
por visitas simultâneas, e discursos similares, nos foros de Davos (Fórum
Econômico Mundial) e de Porto Alegre (Fórum Social Mundial). Como ressaltado
ainda no texto, o traço de união entre esses dois mundos seria dado pela
iniciativa de combate à fome no mundo, da mesma forma como empreendido no
contexto nacional, no quadro do "Fome Zero".
A "multipolaridade" no contexto político mundial - que comanda um forte apoio
ao processo de reforma da Carta das Nações Unidas e a candidatura explícita do
Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança - pode ser também
encontrada no plano das relações comerciais, onde se buscou uma "Alca
equilibrada", ao mesmo tempo em que um acordo entre o Mercosul e a União
Européia. Estes são, em suma, os grandes temas da diplomacia do governo Lula,
conduzidos pessoalmente pelo chefe de Estado em uma sucessão infindável de
viagens e visitas raramente vista nos anais da política exterior brasileira,
tanto pela diversidade de contatos, como pela multiplicação de iniciativas nas
diversas frentes abertas por uma diplomacia em expansão - inclusive do ponto de
vista geográfico e funcional.
O ministro de Estado se expressa, obviamente, pelos discursos oficiais e pelas
entrevistas concedidas, mas, consoante uma vocação docente e didática já
afirmada desde largo tempo no âmbito universitário, ele também costuma assinar
ensaios analíticos em importantes revistas especializadas e artigos de opinião
nos principais jornais brasileiros (e mesmo internacionais), focando os
problemas mais relevantes da agenda diplomática, como podem ser os da Alca ou
da reforma do CSNU.4 O secretário-geral, em contrapartida, não ostenta,
praticamente, discursos oficiais ou entrevistas no site do ministério,
preferindo assinar expressivo número de artigos de opinião, prefácios ou
capítulos de livros que encontram abrigo em veículos eletrônicos, geralmente
identificados com grupos de esquerda, em especial, como seria óbvio, com o PT.5
Com efeito, como indicado anteriormente, em nenhum outro campo da atividade
governamental é possível detectar tal unidade de propósitos e identificação
"filosófica" entre, de um lado, o que sempre pensou e postulou o PT, em seus
posicionamentos passados e presentes sobre o Brasil e suas relações
internacionais, e, de outro lado, como se comporta, fala e age o governo Lula
em sua política externa, a começar pelo SG-RE. Mas, também neste aspecto, o
governo Lula é diferente de outros governos de esquerda, na região ou alhures.
Se os militantes apoiadores da política externa oficial conservam os conhecidos
postulados de esquerda da maior parte dos movimentos dessa linha - o
nacionalismo de cunho estatizante, o anti-hegemonismo, a desconfiança em
relação ao capital estrangeiro, a oposição de princípio ao livre-comércio e à
globalização, ademais de, para muitos ainda, uma continuada adesão ao
socialismo -, o núcleo dirigente prefere inserir o Brasil na globalização, se
não no discurso pelo menos na prática.6
Os companheiros de viagem
O segundo grupo, apoiadores externos, é composto por acadêmicos de esquerda,
por jornalistas e por "formadores de opinião" que sempre emprestaram
solidariedade às causas do PT, quando não integraram seus quadros como
militantes ou simpatizantes ativos. Uma vez inaugurado o governo, eles passaram
a emprestar sua pluma em defesa das posições de política externa identificadas
com suas causas tradicionais.
Eles poderiam ser chamados, segundo a terminologia conhecida, de fellow
travellers (ou compagnons de route), isto é, "simpatizantes benevolentes",
muitos dos quais posam de "intelectuais orgânicos", ou seja, universitários que
emprestam seus discursos "gramscianos" à elaboração de documentos do partido.
Eles consideram a atual política externa adequada e necessária a um país em
desenvolvimento como o Brasil, capaz de afirmar-se de forma soberana nos
contextos regional e internacional e animado por um projeto nacional de
desenvolvimento e dotado de uma missão suscetível de reduzir o grau de arbítrio
e de unilateralismo ainda presentes no cenário internacional (o que
corresponde, aliás, quase que inteiramente às propostas do atual secretário-
geral das Relações Exteriores).
Trata-se de um grupo naturalmente expressivo, tendo em vista a conhecida e
tradicional dominação da academia pelo chamado pensamento de esquerda, pelo
menos nas áreas de ciências humanas e sociais, que são também aquelas que
produzem materiais relevantes para a análise das relações internacionais do
Brasil. Os mais conhecidos, nesse grupo, inclusive desempenhando funções de
"assessores informais" do Itamaraty - ou, em todo caso, de seu secretário-geral
-, são os professores Moniz Bandeira, Amado Luiz Cervo, Paulo Nogueira Batista
Jr., Paulo Vizentini e Ricardo Seitenfus, ostentando, cada um, uma vasta
produção de livros, ensaios acadêmicos e artigos nos meios da imprensa,
defendendo as principais posições da política externa oficial e avançando em
terrenos nos quais a prudência diplomática impõe certo comedimento ao discurso
oficial (como podem ser as relações com os Estados Unidos ou as posições em
relação à Alca).7 Vários outros autores acadêmicos poderiam ser alinhados com
essa posição, referência aos quais será feita na bibliografia final, que
registra a divisão em categorias observada no presente ensaio de revisão
bibliográfica.
O traço comum a todas as análises desse grupo de "apoiadores semi-oficiais" é,
antes de tudo, a condenação in limine da diplomacia do governo anterior, tanto
em suas posições de princípio - alegadamente submissas ao "consenso de
Washington" e à "globalização assimétrica" - como nas suas manifestações
práticas em foros e instâncias negociadoras das relações econômicas
internacionais, como, por exemplo, em relação ao projeto dos EUA de formação de
uma Alca no hemisfério. De fato, o grupo dos "aliados benevolentes" ocupou-se,
durante a primeira fase do governo Lula, da crítica contundente à "velha"
diplomacia, condenando o suposto "neo-liberalismo" dos antigos responsáveis
pela política econômica, a alegada adesão do grupo diplomático anterior aos
cânones da nova Roma imperial, unilateralista e arrogante, o que teria
facilitado, segundo esses críticos, uma aceitação "sem barganha" das regras do
consenso de Washington e o aprofundamento conseqüente da "vulnerabilidade
financeira" do Brasil.
A crítica foi tanto genérica e principista, quanto focada em episódios ou
opções da diplomacia anterior. O professor da UnB José Flávio Sombra Saraiva,
por exemplo, denunciou a antiga diplomacia por perseguir um "modelo obsoleto de
política exterior", numa avaliação global e setorial que resume de maneira
clara o conjunto de acusações formuladas pelos "aliados benevolentes" à
política externa dos governos "neoliberais" anteriores. Escrevendo entre a
vitória nas eleições de outubro de 2002 e a posse do novo governo do presidente
Lula, em janeiro de 2003, ele atribui o afastamento do Brasil [PRA: isto é, dos
governos até então] em relação à África (a) um certo ziguezague na política
externa brasileira, movida por parâmetros oscilantes, em uma espécie de 'dança
de paradigmas'. O país parece ter transitado entre parâmetros confusos, em
política externa, nos anos 1990. Desde os equívocos de substância - como o da
apresentação da abertura econômica, da estabilidade monetária e da democracia
como vetores da política externa, mesmo sabendo que tais vetores nunca serviram
a Estados maduros como vetores externos, passando pela aplicação acrítica de
políticas importadas de rigidez fiscal, a retirar o Estado dos investimentos
produtivos, a contrair salários, a privatizar empresas públicas, vendendo-as às
companhias estrangeiras para arrecadar dólares e pagar a dívida externa - até
os equívocos de meios - como a crença kantiana e idealista da diplomacia de
Cardoso nos foros multilaterais - todos esses equívocos foram pagos com uma
conta elevada no campo da ação do Estado brasileiro na África, embora não
apenas naquele continente.8
O professor Amado Luiz Cervo, em artigo de balanço, também mencionou a "ilusão
kantiana" de que teria padecido a política externa de FHC.9
Na outra metade do tempo, se defendeu e se defende a opção pela diplomacia do
Sul, a ênfase na aliança com os "parceiros estratégicos" previamente
selecionados, o reforço na construção do Mercosul, no contexto do novo espaço
sul-americano de nações, bem como a concentração de esforços no objetivo maior
que é o da conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das
Nações Unidas. Nem sempre se reconhece, nesses escritos, que a ênfase na
vertente sul-americana, por exemplo, já estava presente pelo menos dez anos
antes na agenda diplomática brasileira, ou, ainda, que a opção preferencial
pelo multilateralismo econômico sempre fez parte das posições do Brasil em
matéria de política comercial.
Esse grupo exibiu uma boa vontade de princípio, de certa forma unilateral,
quanto à disposição de alguns dos "aliados estratégicos" designados no que se
refere ao apoio às pretensões brasileiras nos foros multilaterais - seria o
caso, aparentemente, da China, na questão da cadeira permanente no CSNU - ou,
ainda, quanto ao atendimento de nossas reivindicações nos plano bilateral e
regional, de que seriam exemplos a caracterização da essencialidade da relação
com a Argentina e o caráter estratégico da união dos países da América do Sul,
inclusive num sentido de certo modo ofensivo em relação a supostos desígnios
imperialistas por parte do "grande irmão" do hemisfério norte. Como lembra
Ricardo Seitenfus, um dos apoiadores críticos da atual política externa,
"Inspirador de uma diplomacia voltada ao Sul, o presidente Lula concede à
América do Sul uma atenção especial. Trata-se, segundo o Chanceler Celso
Amorim, da 'prioridade entre as prioridades' do Presidente Lula".10
Mencionou-se, também, nesse grupo, o surgimento de um novo "paradigma"
diplomático - expressão explicitamente presente em ensaios do professor Amado
Cervo - condição que estaria apoiada em determinadas "reversões inovadoras" da
política externa brasileira. A despeito de acusações dos adversários da atual
política externa de que ela, na verdade, opera uma volta a um passado
"terceiro-mundista", os partidários do atual "paradigma" pretendem que ela
representa um "resgate histórico" de tradicionais posições nacionalistas que
teriam sido abandonadas na era neoliberal, que ocupou toda a década de 1990 e o
início da seguinte. Mesmo quando não se pretende afirmar a criação de um novo
paradigma diplomático, a condenação da política externa precedente pode ser
bastante dura, como se lê nesta passagem do pesquisador Moniz Bandeira:
As atitudes [do chanceler] Celso Lafer concorreram, fortemente, para
consolidar a percepção de que a política exterior de Fernando
Henrique Cardoso, assim como a política econômica, de maneira geral,
constituiu simples acessório dos interesses hegemônicos dos Estados
Unidos, no mundo e, em especial, na América Latina. E contribuíram
para desgastar ainda mais o prestígio do governo, ao projetar a
imagem de subserviência aos desígnios dos Estados Unidos, em meio de
uma gestão turbulenta, como nunca houve, a pior na história do
Itamaraty.11
Em relação, justamente, à política econômica do governo, mesmo o grupo de
apoiadores benevolentes não deixa de sublinhar as contradições entre, de um
lado, uma política externa invariavelmente catalogada como progressista e
identificada com os interesses dos países do Sul e, de outro, o alinhamento com
as posições de Washington e de Wall Street na maior parte dos temas econômicos.
Mesmo o SG-RE subscreve a esse tipo de crítica à política econômica e adota uma
linha que em geral é seguida pelo grupo, no sentido de "desculpar" esse tipo de
"desvio" em função das ameaças presentes no início do governo de uma crise
cambial ou risco de fuga de capitais. Essa perspectiva está presente, por
exemplo, em texto do atual secretário executivo do MCT, Luis Fernandes, para
quem as tensões existentes entre a nova orientação da política externa e o
perfil ortodoxo da estabilização macroeconômica adotada pelo governo, se devem
a essas ameaças.12
Independentes e críticos
Este último grupo, independentes ou críticos, comporta acadêmicos supostamente
neutros, engajados na tarefa de analisar criticamente as grandes linhas da
política externa governamental, como aqueles que poderiam ser chamados de
"opositores declarados" da diplomacia de Lula, tanto por razões de princípio
como em função do tratamento dado pelo Palácio do Planalto e pela Casa de Rio
Branco a alguns dossiês específicos, em geral, a integração regional e as
negociações comerciais. No mesmo grupo poderiam ser acomodados alguns
diplomatas aposentados que escrevem regularmente sobre política externa, a
exemplo dos embaixadores Luiz Augusto Souto Maior e Rubens Antônio Barbosa, o
primeiro num estilo bem mais acadêmico, o segundo com comentários críticos de
atualidade, numa feitura mais jornalística.
Os acadêmicos profissionais que estudam os meandros e os pressupostos da
diplomacia oficial, assim como as características mais amplas das relações
internacionais do Brasil, constituem um grupo relativamente reduzido, que atua,
aliás, de modo algo disperso, com metodologias distintas e objetivos não
coordenados. É possível que, com a criação da Associação Brasileira de Relações
Internacionais (em setembro de 2005) e com a densificação dos grupos
especialmente voltados para essa área, em entidades como a Associação
Brasileira de Ciência Política ou no âmbito da Anpocs, a literatura da área
venha a crescer, assim como os estudos de atualidade.
À diferença dos "benevolentes" e dos "opositores declarados", os acadêmicos
"neutros" não pretendem provar teses já acolhidas a priori, razão pela qual
seus trabalhos são caracterizados pela ausência de teses comuns ou posições
unificadoras, formal ou substantivamente, assim como por certo formalismo
analítico. O mesmo não ocorre com os opositores declarados, que consideram a
atual política externa uma emanação tardia do terceiro-mundismo dos anos 60-80,
para eles, exacerbada ainda pela adesão equivocada a regimes autoritários, no
continente ou no mundo, e marcada por um antiimperialismo infantil e outras
pechas do gênero. O tom das críticas é acerbo, quando não virulento e os
exemplos mais representativos dos ataques de representantes desse grupo são
obviamente encontrados na imprensa de opinião e nos editoriais de alguns
grandes jornais. A maior parte dos opositores é formada por jornalistas
profissionais - entre eles editorialistas do influente jornal O Estado de São
Paulo - , mas um ou outro acadêmico pode também praticar esse tipo de exercício
crítico em relação à política externa governamental, como, por exemplo, os
professores Marcelo de Paiva Abreu, do Departamento de Economia da PUC-Rio, e
Eduardo Viola, do IREL-UnB.
Os acadêmicos costumam ressaltar as dificuldades colocadas pelo mundo real ao
exercício da retórica mudancista no plano externo. Mesmo reconhecendo o
ativismo dos atuais responsáveis diplomáticos e o engajamento, no mais alto
nível, do Brasil em contribuir, no limite de sua capacidade, com mudanças
positivas no cenário internacional, eles mantêm perfeita consciência dos meios
e recursos limitados de que dispõe o país para influenciar decisivamente uma
mudança na agenda diplomática mundial ou mesmo regional. Como lembrou um
experiente diplomata, "os obstáculos ao objetivo brasileiro [de unidade da
América do Sul] não se limitam à oposição de Washington - situam-se também na
América Latina e no próprio Brasil". De fato, como ele também lembrou, "O
governo Lula vem adotando um discurso político de potência regional, que se
afasta de algumas atitudes tradicionais da nossa diplomacia na América Latina.
Em vez de negar a intenção de exercer qualquer forma de liderança na região, o
atual governo parece considerá-la algo natural", o que obviamente desperta
reações contrárias nos próprios países visados.13 Esse tipo de advertência
quanto aos limites da capacidade de influência ou de liderança brasileira,
geralmente a propósito da política externa regional e das negociações
comerciais multilaterais e regionais, tem sido feita por praticamente todos os
observadores isentos, que nisso se diferenciam dos "aliados benevolentes",
estes aderindo conscientemente ou não à retórica oficial.
Quanto ao subgrupo dos "opositores", eles não ignoram o fato de que o Brasil é,
a despeito de sua capacitação tecnológica e industrial, um país em
desenvolvimento. Mas eles se opõem frontalmente à retórica dita "terceiro-
mundista" do governo e à atitude geral de "mudança a 180º graus" que se
anunciou na política externa, contrariamente à uma atitude mais pró-ativa em
favor da globalização, como eles crêem que vêm fazendo, aliás, a China e a
Índia. Esse tipo de contradição é registrado por um crítico da academia, o
professor Eduardo Viola:
A modernização incompleta do Brasil nas áreas econômica e política
teve seus reflexos na política externa que, mesmo tendo mudado
significativamente com relação ao período anterior, não evolui tudo o
que seria necessário no sentido de adaptar-se com sucesso e pró-
ativamente às realidades da sociedade do conhecimento globalizada com
hegemonia das democracias de mercado. As limitações para a plena
modernização da política externa são derivadas da mentalidade
dominante nas elites e na opinião pública sobre a natureza do sistema
internacional.14
Para o professor Eduardo Viola,
as limitações para a plena modernização da política externa são
derivadas da mentalidade dominante nas elites e na opinião pública
sobre a natureza do sistema internacional. Quatro obstáculos
epistemológicos e culturais se destacam nessa percepção: 1. paradigma
que superdimensiona o papel do Estado e subdimensiona o papel dos
mercados na construção da prosperidade das sociedades que hoje são
centrais no sistema internacional; 2. o predomínio de uma visão de
soma-zero do funcionamento do sistema internacional derivado da
teoria marxista do imperialismo e da teoria da dependência; 3. a
persistência do anti-americanismo derivado historicamente do
catolicismo, do ideal francês de democracia, do marxismo e do
estatismo populista; e, 4. a tendência a definir de modo normativo,
antes que realista, o interesse nacional.15
A diplomacia do governo Lula vem sendo criticada nesses meios não apenas no que
se refere ao conjunto de iniciativas "mudancistas", que para eles seriam
ilusões de alteração nas "relações de força" das relações internacionais ou da
"geografia comercial" do mundo, mas também quanto ao seu próprio estilo de
atuação, chamado de "ativismo inconseqüente" por um acadêmico.16 Outros pontos
freqüentemente abordados pelos opositores "funcionais" são os fracassos
acumulados nas negociações comerciais, área na qual se destacam os muitos
artigos de Marcelo de Paiva Abreu nas páginas do jornal O Estado de São Paulo,
criticando, por exemplo, o "panglossianismo" da diplomacia de Lula. O ex-
chanceler Celso Lafer e o jornalista Carlos Alberto Sardenberg comparecem
freqüentemente nas páginas do mesmo jornal para reiteradas críticas ao estilo e
ao próprio conteúdo da política externa do governo Lula.17
Alguns órgãos da imprensa, como o semanário Veja, por exemplo, mantêm uma
linguagem agressiva, de tonalidades tão militantes quanto a dos aliados, o que
pode diminuir a eficácia das críticas à atual política externa, inclusive
porque a maioria da população parece apoiar, instintivamente, o progressismo
antiimperialista do governo em vigor. Registre-se, também, que não existe ainda
uma "interpretação tory" (isto é, conservadora, ou de direita) da política
externa brasileira, cujos fundamentos conceituais continuam solidamente
ancorados no desenvolvimentismo e no nacionalismo. Esse fator analítico-
interpretativo não permite construir os fundamentos políticos de uma eventual
crítica de "direita" (ou "liberal") à atual política externa, que continuará
gozando, aparentemente, de amplo apoio em diferentes segmentos da sociedade.
Uma nova arquitetura diplomática ou um novo discurso externo?
Em conclusão, pode-se dizer que o governo Lula investiu muitos recursos humanos
e materiais na elaboração do novo discurso diplomático e que essa elaboração
envolveu também a multiplicação de iniciativas diplomáticas nas mais diversas
frentes de atuação. Daí a caracterização de "ativa e altiva" dada pelo
chanceler à nova diplomacia, o que traduz essas duas atitudes, complementares
entre si. Essa postura foi muito bem acolhida nas bases de apoio do governo
atual - o que não foi o caso com a sua política econômica - e recolheu total
apoio nas hostes dos aliados da causa, ainda que a esquerda preferisse uma
inflexão ainda mais notável do estilo e da substância dessa diplomacia.
O pensamento acadêmico preferiu registrar os elementos de continuidade nas
grandes ênfases da atual política externa - como a reafirmação do caráter
estratégico do processo de integração sub-regional e a opção preferencial pela
América do Sul -, ao passo que os analistas críticos preconizam o abandono dos
mitos que eles acreditam estarem solidamente ancorados na antiga e na atual
política externa. À medida que alguns reveses foram sendo registrados em
algumas dessas frentes de atuação, definidas como prioritárias, como o
relacionamento com os vizinhos "progressistas", a condescendência anterior com
as "novas roupas" da diplomacia foi dando lugar a críticas cada vez mais
acerbas quanto a seus resultados efetivos.
Na verdade, os elementos verdadeiramente inovadores da política externa do
governo Lula não deveriam, talvez, ser buscados no discurso e na atuação
diplomática do governo, mas sim no próprio fato de que, pela primeira vez na
história da diplomacia brasileira, a palavra e a ação governamental nesse campo
já não recolhem o consenso da sociedade e da própria diplomacia profissional,
tal como representada, pelo menos, por vozes já não mais ativas na sua
implementação prática. A polêmica criada em torno de determinadas opções
diplomáticas - e que justificou, inclusive, a repartição da literatura
disponível nas três categorias aqui identificadas - pode constituir um dos
motivos de debate político na campanha presidencial de 2006, o que seria de
certo modo inédito não só para a história eleitoral, mas também para os padrões
da diplomacia brasileira.
A questão tem algo a ver, obviamente, com fatores objetivos como os recursos
materiais e estratégicos de que o Brasil dispõe para sustentar (ou não) o que
poderia ser uma diplomacia mais ousada e mais empreendedora nos planos regional
e internacional, - como parece pretender o governo Lula -, mas ela também se
insere no quadro do próprio debate sobre os fundamentos conceituais e políticos
- fatores relativamente subjetivos, portanto - da política externa brasileira.
Essas questões não foram ainda suficientemente debatidas por nenhum dos grupos
de interesse vinculados por motivos profissionais ou acadêmicos a essa área.
Eventualmente emergirá, em algum momento do futuro, algum consenso entre os
analistas e comentaristas habituais do jogo diplomático no que se refere ao
papel do Brasil nos cenário regional e mundial, e esse consenso tem também algo
a ver com o trabalho dos especialistas acadêmicos se dedicando a essa área das
políticas públicas. A identificação da literatura até aqui acumulada sobre a
diplomacia do governo Lula, tal como oferecida neste ensaio, pode contribuir
para a identificação das principais questões polêmicas envolvidas no presente
exercício diplomático e para a eventual construção de um novo consenso
conceitual e operacional em torno da diplomacia brasileira.