Os estudos estratégicos como base reflexiva da defesa nacional
[T]he purpose of Strategic Studies is not so much to enlarge the debate, but
rather to keep it focused.
Lawrence Freedman, "Indignation and Strategic Studies", 1984
Introdução1
A necessidade da produção de conhecimento científico em temas afins à defesa
nacional e, mais amplamente, à política internacional, passa pela clareza do
que sejam as contribuições emanadas de cada disciplina, ou, para cunhar um
termo, das diversas interdisciplinas que se aproximam de tais temas. O foco
deste artigo é a apresentação da experiência dos Estudos Estratégicos desde sua
origem na década de 1940 através dos trabalhos que buscaram dar resposta aos
diversos aspectos de sua razão de ser, propostas, dificuldades, resultados e
cautelas. Pontua, sucessivamente, o porquê dos Estudos Estratégicos, a forma
cíclica pela qual eles vêm sendo objetos de estudo, ensino e pesquisa, e o
resultado capital sobre o papel da teoria da guerra de Clausewitz como cerne de
seu desenvolvimento. Este percurso sustenta o conjunto de preocupações que se
apresentam a guisa de conclusões.
Porque
Edward Earle escreveu em 1940 sobre "Defesa Nacional e Ciência Política"2,
motivado pelo paradoxo perturbador entre a forte herança histórica militar dos
EUA e os despreparo para guerra e apatia diante da queda da França e do sítio à
Grã-Bretanha. Apesar dos EUA terem participado de diversas guerras, tanto a
prática governamental como a academia eram incipientes em assuntos militares.
Isso era especialmente perturbador nas ciências sociais e políticas, onde a
falta de interesse sobre o "fenômeno bélico nas atividades humanas, "capaz de
comandar nossas vidas, fortunas e destino"3 era incompreensível.
Esta era uma questão democrática fundamental, parte do preâmbulo da
Constituição dos EUA, que listava a "defesa comum", como uma, e talvez a,
função básica de um governo. A necessária subordinação dos militares aos civis
ia além do entendimento de que a guerra era importante demais para ser
abandonada aos generais, que sendo razoáveis nem mesmo desejavam tal mandato. A
separação entre militares e civis não era apenas artificial, ela contrariava os
princípios da democracia.
Da mesma forma, não há porque os civis não devam tomar para si os assuntos
militares, que afetam a nação e cada indivíduo de maneira tão visceral. Afinal
de contas, os problemas militares não pertencem ao reino do ocultismo, do
supra-temporal, ou do recôndito, porque o seu sigilo' diz respeito
principalmente a questões de material. Leigos bem informados podem analisar,
criticar e contribuir de forma prática para a solução de problemas militares.
Os dados objetivos sobre os quais edificar estudos sólidos tanto existem quanto
se encontram amplamente disponíveis. De fato, é imperativo que leigos,
especialmente professores universitários e estudiosos, se envolvam com o
problema da defesa nacional, porque se não o fizerem condena-se ao fracasso
qualquer esforço de rearmamento ou de guerra.4
Earle condenava a omissão da academia, da Universidade, que responde pela
qualidade do conteúdo e pela oportunidade de sua contribuição no debate
público. Esta omissão abria espaço a propagandistas, como Liddel Hart, cujas
obras contribuíram para o colapso da França e arriscavam a sobrevivência da
Grã-Bretanha. Este e outros propalavam equívocos popularescos que dogmatizam
doutrinas, desqualificam a experiência, renegam a razão e desacreditam da
possibilidade de vitória no contexto das guerras totais e insuflando a
submissão diante da agressão. Eram derrotistas, mesmo quando afirmavam o
contrário. Só tinham espaço porque o estudo da guerra na Universidade havia se
tornado marginal, incidental, assistemático, marcado por militares escrevendo
para militares ao invés de ser uma questão de cidadãos escrevendo para
cidadãos.
Essa era a tarefa primeira da academia. O debate político sobre estratégia e o
uso da força não era apenas uma questão de tempos de guerra, mas inerente ao
governo. A possibilidade dos tomadores de decisão terem claras as alternativas
da ação governamental depende da Universidade, única capaz de coligir, sopesar
e criticar fatos e alternativas, através da pesquisa, da educação, e do avanço
conhecimento capazes de situar os assuntos militares como governamentais. A
academia era ainda a fonte de cautelas capazes de contrarrestar perspectivas de
falso senso comum, midiáticas. Por isso o abandono do tratamento dessas
questões na academia havia deixado os EUA reféns de medos, preconceitos e
oportunismos, ao invés de poder se apoiar num acervo maduro e discutido de
conhecimentos. Mas
[e]sse estado salutar de coisas não pode vir a ser produzido, pode-se
afirmar, a menos de uma abordagem inteiramente nova para o problema
da defesa nacional. O oficial profissional é incapaz de lidar com o
problema porque, nos olhos do público e na mente do Congresso, ele
representa seus próprios interesses. Em tempos de apatia ele é visto
com suspeita, em tempos de crise com injusta reverência. Só o
professor universitário, o estudioso, pode manter um estudo
continuado, objetivo e documentado do problema. A experiência mostra
que resultados comparáveis não podem ser esperados nem do público,
nem do político, nem do governo e nem mesmo das forças armadas. Mais
ainda, só o estudioso pode criar um vasto acervo de competência no
campo. As pessoas a quem ele ensina e escreve hoje serão os
eleitores, professores, oficiais da reserva e estadistas de amanhã.5
Ciclos
Bernard Brodie inaugurou o debate em "Estratégia como uma Ciência"6,
enquadrnado o relacionamento necessário entre Estudos Estratégicos e as
trajetórias formativas militares. O contexto particular de sua preocupação era
o fato de que, nos EUA, a saída de militares de cargos importantes no pós-
guerra aquietava um juízo a seu ver inapropriado, de que a instituição militar
extrapolava suas funções. A seu ver o verdadeiro problema, cujo enfrentamento
era urgente, era que os militares não estivessem adequadamente preparados para
atuar em estratégia. A evidência mais marcante disso era que a história militar
e os pensadores considerados "clássicos", como Clausewitz, eram um arcabouço
estranho aos militares e mesmo aos acadêmicos ditos especialistas.
Brodie entendia isto como decorrência da falta de formação acadêmica entre os
militares. O que existia era uma educação militar baseada em princípios e
máximas. Essas não formavam um aparato conceitual suficiente e se esgotavam em
recomendações cujo conteúdo era apenas o do uso do bom senso ao redor de
algumas questões relevantes (por exemplo, a economia de esforços), mas não eram
capazes de descrever, orientar ou aferir a ação. Pior, a questão era a difusão
de uma adesão acrítica a esta forma de saber, que acabava por ignorar as
recomendações dos próprios autores de tais princípios, como a recomendação de
Bonaparte sobre o estudo de campanhas concretas dos grandes comandantes.
Isto acabava contaminando o próprio entendimento do ofício militar,
prejudicando tanto a dinâmica da evolução tática embutida na tecnologia quanto
o aperfeiçoamento da "arte da guerra". Prendia-se ao credo do caráter
insubstituível da experiência, e na falta de percepção a seus três limites
intrínsecos: os limites do passado para o presente enquanto emulação; o sucesso
ou fracasso como critério da verdade ou falsidade; e a ausência da capacidade
de síntese analítica. Numa profissão que valorizava a ação, a decisão e a
audácia, o problema da ausência de um critério de mérito cedia lugar, como
falsa solução, ao dogma de qualquer decisão é melhor que nenhuma. Impunha a
noção da padronização a entendimentos mais importante que os seus conteúdos.
Deixava de lado que a questão não era de incerteza, mas de ignorância.
A passagem pelos colégios de Estado-Maior havia se tornado uma oportunidade
perdida. Ao invés de uma transição educacional, passava a ser um interlúdio
expositivo e superficial, intensos em atividades mas sem tempo nem motivação
para a reflexão. O rumo de uma solução era evidente: os colégios de estado-
maior tinham que migrar em direção a uma pós-graduação no sentido estrito.
Mesmo os militares não sendo acadêmicos, eles não tinham como atuar em
estratégia sem apreciar o que a academia lhes poderia dar. Que mais esta tarefa
se somasse às suas responsabilidades era apenas mais uma instância que
demonstrava como a carreira das armas não é fácil, exemplificando o tipo de
demanda que um oficial superior e general têm que atender e superar. Brodie
finalizava que a questão não era simplesmente de aproveitamento de talentos
individuais; a questão era precisamente que só esta migração poderia edificar
um entendimento disseminado que prometesse resultados.
Em "Através da Divisória Nuclear, Estudos Estratégicos Passado e Presente"7,
Colin S. Gray revelou a crise que estava oculta na perspectiva de Brodie: o
postulado da irrelevância do pensamento estratégico pré-nuclear para as
questões presentes. Gray observou como as continuidades pré e pós 1945 eram
mais relevantes que as descontinuidades, e que as categorias de problemas
permaneceram: a utilidade da força, as alianças, as corridas de armamentos, as
guerras limitadas, o controle de armamentos e a acomodação a novas tecnologias.
Uma adesão puramente cosmética à questão histórica era insuficiente e enganosa.
Um novo olhar à questão da guerra nuclear reconhecia sua descontinuidade na
letalidade de armamentos, mas desautorizava o início de uma "nova era" em que
nada anterior tinha valor. E simplesmente negava que se pudesse reificar a
guerra nuclear com um beco sem saída para a estratégia, como era o caso quando
se afirmava que a dissuasão não era uma estratégia, por exemplo. Contestava a
percepção da irrelevância do passado diante de uma Revolução nos Assuntos
Militares', propondo um exercício contrafactual, o de descrever um mundo sem a
arma nuclear. Este mundo teria os EUA e a URSS num enfrentamento
transcontinental, marcado pela separação transcontinental de seus territórios e
pelo papel dos EUA como única possibilidade de equilíbrio na Europa. Daí se
teria a proliferação inicial de armamentos de longo alcance, como os
bombardeios intercontinentais, e, na medida em que os custos destes fossem se
revelando proibitivos, a aposta em alternativas econômicas de dissuasão: o gás
dos nervos, por exemplo. Isto demonstrava que as superpotências não eram
"super" por serem nucleares, eram nucleares por serem "super", removendo o
determinismo tecnológico da situação internacional.
Gray remeteu o problema da constituição dos Estudos Estratégicos. Os Estudos
Estratégicos seriam um desdobramento natural e necessário do empreendimento da
cientificização da guerra durante a Segunda Guerra Mundial, em particular das
diversas formas de otimização combatente e estratégica que associadas à
Pesquisa Operacional. Esta vivência abriu os olhos das forças armadas para a
existência de competências civis relevantes para seus propósitos e atividades,
determinando um convívio e acesso crescente com as competências da sociedade.
Tomando cada dez anos como uma geração nos Estudos Estratégicos, explicou como
as primeiras duas gerações 1945-1956 e 1956-1965 ainda puderam tratar a arma
nuclear como uma novidade. Em função da adesão à falsa idéia de que a arma
nuclear era um divisor de águas, cada geração teve que admitir a falência dos
resultados diretos da anterior, retornando a textos como os de Tucídides, Sun
Tzu e Clausewitz para o reinício de sua própria construção intelectual.
Tratava-se mesmo de uma falência, que levava à autonomização das perspectivas
de cada força singular e a um descaso para com um aparato conceitual íntegro. A
falência ra a única explicação possível porque
[a] unidade essencial dos problemas estratégicos, que negam qualquer
validade a estratégias terrestres, navais ou aéreas, foi claro
reconhecida na prática de operações combinadas da Segunda Guerra
Mundial8.
Gray explicou como esta lição foi afogada pelo tratamento nostálgico da Segunda
Guerra Mundial, levando a uma afirmação da autarquia do presente. Mesmo
contradita em diversas instâncias pela revelação de continuidades das
perspectivas e iniciativas das décadas de 30 e 40 até adentro do mundo nuclear,
sustentou-se a assertiva que o presente seria imune ao passado. Isto criou
paradoxos com o qual o Ocidente aprendeu a conviver, adiando a consciência da
inadequação de seu aparato conceitual. Como resultado, enraizou-se uma
resistência real e afirmativa fosse à continuidade, fosse ao da teoria.
Gray resgatou o papel ambíguo que foi dado à coletânea de Earle de 19439,
mostrando como sua intenção de resgate dos últimos 450 anos de construção de
estratégia como prova de sua continuidade e valor fora traída e utilizada
contra o caminho que Earle apontara. Num arrastão arbitrário no uso da obra,
Earle foi equivocadamente tratado como a lápide do pensamento estratégico pré-
nuclear, e não como trampolim para o futuro da análise estratégica.
Esta recusa se afirmou ainda na fragmentação da própria estratégia, com perda
de sua qualidade sinótica ' passou-se a ter tantas estratégias quanto
especialistas, do militar em diante, passando pelo analista estratégico, o
historiador militar, o cientista social. Qualquer perspectiva de progresso em
Estudos Estratégicos exigia uma (re)integração que conforontasse explicitamente
esta situação.
Era útil recuperar Bernard Brodie que, mesmo partilhando o ponto de
partida equivocado de que o pós-nuclear seria distintivo, fizera com
clareza o diagnóstico da pobreza do trabalho teórico e suas
conseqüências diretas e pragmáticas: a quantificação desenraizada, a
indigência intelectual estratégica e a má pratica militar.
Uma educação mais profunda e sistemática de uma nova geração de estrategistas e
controladores de armamentos em história pré-nuclear de relevância pode ser
justificado de diversas maneiras. Tal preparo deveria permitir aos estudantes
distinguirem melhor o que é transiente do que é permanente; facilitar sua
compreensão da estrutura dos problemas de política pública (com muitos casos
mais passíveis de estudo), e deveria ajudá-los a reconhecer analogias e
ilustrações históricas inapropriadas quando estas lhes fossem apresentadas.
(...) Entre as virtudes do inquérito histórico está o fato de que seus
resultados forçam políticos e analistas a confrontarem evidências que
transcendem as fronteiras de suas experiências vividas ' ainda que não se possa
negar que cada geração irá interpretar a história de acordo com a suaprópria
experiência.10
Williamson Murray evidenciou como o processo complexo e, em alguma medida,
enigmático, pelo qual passaram as escolas superiores das forças armadas dos EUA
nos últimos 70 anos. "Sai Clausewitz, entra computador: cultura militar e
hubris tecnológica"11 dá testemunho do que lhe parecia ser ' e de fato foi ' o
próximo movimento no ir e vir entre a afirmação do espaço da escola e da
educação como posto e passagem associados a trajetórias exitosas de carreira e
o seu uso como cemitério de carreiras esperando a aposentadoria. Isto
corresponde à percepção lúcida de que
Um dos aspectos importantes, mas pouco estudados, da história militar
diz respeito às culturas institucionais pelas quais os corpos de
oficiais apreendem os problemas dinâmicos e ambíguos da guerra e da
paz. Tal cultura institucional molda a compreensão de alternativas
estratégicas, operacionais e táticas que confrontam o soldado
profissional, e implantam ainda as hipóteses mais amplas relativas à
referência histórica que empresta sentido a estas alternativas. É um
processo que depende de educação formal, aculturamento informacional
e experiência prática.
Os eventos concretos no campo de batalha tem sido, tradicionalmente,
o principal elemento de aferição da realidade sobre os entendimentos
e hipóteses de qualquer cultura institucional militar, a despeito da
ampla evidência de que as instituições militares, ocasionalmente, se
revelam extraordinariamente relutantes em aprender com suas próprias
experiências. E sendo difíceis de aprender no combate, quanto mais
difícil ainda deve ser aprender as lições da guerra na paz, na
ausência do mundo real, bruto, imprevisível e implacável da morte e
destruição. Em conseqüência, é sem dúvida importante que, em tempo de
paz, os profissionais militares trabalhem duro para formular o tipo
correto de perguntas, gerando hipóteses realistas.
Em sua maior parte, porém, a história sugere que, em tempo de paz, as
instituições militares formulem mais respostas que perguntas,
esposando hipóteses que dizem mais respeito às suas próprias regiões
de conforto intelectual do que da realidade12.
A geração de oficiais das décadas de trinta e quarenta, que lutou a Segunda
Guerra Mundial, tinham uma formação acadêmica sólida, e entendiam a presença
como alunos e docentes nas escolas superiores como uma etapa obrigatória e
necessária. A direção de seus estudos pode ser apreendida pela afirmação do
General George C. Marshall, de que seria impossível entender estratégia sem ter
lido Tulcídides. O ponto a destacar é o quanto isso era algo compreensível e
mesmo familiar para os oficiais de sua geração, e como se tornou
incompreensível para algumas das gerações que os sucederam.
Essa situação mudaria nas próximas duas décadas, quando a gestão MacNamara
promoveu uma adesão acrítica à quantificação como forma de entendimento e
conduta da guerra e da defesa nacional. Neste processo, as escolas foram
relegadas a postos de segunda, e o primado da ação e da experiência fez com que
fosse uma moda abrir mão da passagem escolar quando ela era oferecida.
Conseqüentemente, o desastre militar do Vietnã na década de 1970 permitiu que a
nova tradução do Da Guerra de Clausewitz por Michael Howard e Peter Paret
viesse a ser tomada como a pedra fundamental do processo educacional militar
dos EUA, instituindo um adensamento acadêmico em suas escolas pela incorporação
de professores civis e práticas acadêmicas. Isto levou a um breve período em
que os cursos militares tinham elevados padrões de seleção e incluíam a
possibilidade de programas doutorais afinados com os critérios universitários.
Para Murray, o impacto dessa passagem é eloqüente, e se estende desde a
reconfiguração dos termos pelos quais se ganhou a Guerra Fria até a qualidade
dos resultados, propriamente estratégicos, da Guerra do Golfo de 1990-1991.
É de alguma forma misteriosa como, em menos de uma década, se pudesse relatar
uma falência quase completa destes espaços. Para Murray, o centro deste
processo era a percepção equivocada de que a digitalização teria invalidado
formas de guerra anteriores, tornando Clausewitz obsoleto. Isso correspondia à
perspectiva de que a solução tecnológica era capaz de eliminar a necessidade de
um entendimento mais amplo ou aprofundado da guerra.
O perigo da crença de que a tecnologia nos oferecerá dominância total
no espaço de batalha (battlespace) e na política externa pelo próximo
século não está na tecnologia ela mesma. A tecnologia pode, de fato,
oferecer grande vantagem contra futuros oponentes. O que é perigoso
sobre esta nova visão tecnocrática é a mesma coisa que era perigosa
em sua versão anterior: é totalmente alienada do que os outros
pensam, querem, e podem fazer. É precisamente porque nós Americanos
temos uma longa história de superestimar nossa superioridade
tecnológica e de subestimar a habilidade de nossos oponentes de por
nossas vantagens em curto-circuito, que não podemos nos permitir esta
hubris uma vez mais. É ainda por isso a causa do desespero diante dos
sobretons que se podem ouvir sobre a iminente "revolução nos assuntos
militares".
(...)
Uma parte inerente da [atual] abordagem anti-Clausewitiziana é a
crença de que o que a organização militar precisa é de mais dados
quantificáveis, mais "informação". Uma vasta rede de sensores e
computadores interligados seria capaz de reduzir a fricção inerente à
equação militar a níveis toleráveis e controláveis. Mas o
processamento de cada vez mais informação pode facilmente entupir as
organizações militares com uma maré de dados indigeríveis. Pior
ainda, as afirmativas presentes sobre dominância informacional perdem
de vista a diferença essencial entre informação e conhecimento. Não
precisávamos de mais informação em Pearl Harbor, e é duvidoso que
precisemos de mais informação no futuro. O que necessitaremos no
próximo século é um entendimento mais profundo do contexto político
da guerra e o do conjunto muito diferente das hipóteses que podem
pautar a ação de nossos oponentes. Necessitaremos de mais
conhecimento sobre línguas estrangeiras, culturas, crenças
religiosas, e acima de tudo história ' que são precisamente os
conhecimentos que os tecnocratas ignoram porque eles não podem ser
quantificados. O que é mais importante na guerra é o que se passa na
mente do nosso oponente. Essa é uma verdade bem ilustrada por uma
cena da Guerra do Golfo. Quando um número de generais do Corpo de
Fuzileiros Navais visitou um bunker [iraquiano] relativamente intacto
e amplamente suprido, capturado pelas forças da Coalizão com um
mínimo de baixas e um grande número de prisioneiros, um deles
comentou num suspiro: "Graças a Deus os Norte-vietnamitas não estavam
aqui"13.
Betts evidenciou como as Universidades que possuíam departamentos ou linhas de
pesquisa de estudo da guerra apresentariam os mesmos elementos cíclicos das
academias militares. Em "Os Estudos Estratégicos devem sobreviver?"14, pergunta
se o termo "Estudos Estratégicos" teria se tornado um equivalente acadêmico ao
termo "União Soviética", devendo ser abandonado.
Sem dúvida, o próprio artigo é uma volta em algum ciclo, pois Betts recuperava
as preocupações de Earle e de Brodie sobre a utilidade do campo acadêmico para
o estudo da estratégia e da dificuldade de sua preservação. Com o benefício
destes, Betts contestava a escolha de se abrir mão de especialistas civis em
questões de defesa pós-Guerra Fria e, ainda, a inconseqüência da dinâmica
corporativa acadêmica de restrição dos espaços acadêmicos para os Estudos
Estratégicos diante do apetite e promessas dos assim chamados Estudos de
Segurança. Um e outro emulavam, em termos civis, os equívocos militares de
abandono de fundamentos no afã da novidade ou em prol de uma esperança. No caso
acadêmico, isso se traduzia ainda na repulsa moralista quanto ao conhecimento
relacionado à própria gramática dos meios da guerra, passando a tratá-la como
uma "caixa preta", como se os aspectos políticos da guerra se resolvessem em si
mesmos.
A primeira conseqüência disso era a própria perda de capacidade das disciplinas
contemporâneas em compreender a guerra. Desprezar os meios por preconceitos de
foco era abrir mão de alcançar o seu papel determinante nos resultados da
política internacional. O resultado era uma tolerância à simples recusa de
consideração dos aspectos materiais do uso de força, reificando de forma
autárquica os panoramas políticos internacionais ou domésticos dos países. Isso
correspondia ao abandono, puro e simples, do:
( ) problema Clausewitziano: como fazer da força um instrumento
racional da política, ao invés de assassinato sem propósito ' como
integrar política e guerra. E isso exige a junção interdisciplinar da
gramática militar e da lógica política, nos termos próprios de
Clausewitz, um matrimônio que é freqüentemente pervertido na prática
pelos que se identificam mais com uma metade da união do que a outra.
Muitas vezes, soldados tem objeção a que a política permeie a guerra
porque isso dá aos civis o direito de meter o bedelho em suas
operações. Muitos intelectuais recusam a que se dignifique a guerra
como um instrumento político ou como uma prioridade acadêmica. Por
todos esses motivos, a ciência política acabou se tornando o
principal espaço acadêmico para o campo, e seu lugar nos assuntos
militares é periodicamente questionado. Num campo eivado de debates
sectários sobre estruturas amplas como o realismo, o liberalismo e
suas variantes neo' como são as Relações Internacionais, as
fronteiras enlameadas da estratégia acendem controvérsias.
( )
A maioria dos estudiosos de relações internacionais reconhece que a
guerra é um problema importante, mas só estão interessados em seus
antes e depois, não na guerra ela mesma ' as causas e conseqüências
da guerra, mas não a sua conduta, que é relegada ao status de um
epifenômeno ou como algo intelectual infantil. Os Estudos
Estratégicos se interessam por todas as três fases porque elas são
interdependentes; conduta torna-se causa quando os mecanismos da
violência moldam as decisões sobre o seu uso político. Fica
impossível compreender os impulsos e escolha da dimensão política da
guerra ou da paz sem compreender as restrições e oportunidades da
dimensão militar. São as opções de como fazer a guerra que afetam se
fazer-se a guerra, quem ganha e quem deveria ganhar, e que desta
maneira conformam o mundo do pós-guerra.15
Betts afirmava que o compromisso gerado pelo reconhecimento de que a guerra é
um assunto importante de mais para ser deixado aos generais, que ecoa desde
Lloyd George e Clemenceau, tem sido negligenciado pelos próprios especialistas
civis. Acabou produzindo a situação em decisões são postas diante de civis
ignorantes da guerra, desprovidos de aparato capaz de lidar com o conteúdo
militar, ou são empurradas a militares que têm que decidir sozinhos, sem maior
capacidade de avaliar as conseqüências políticas.
Se a estratégia deve integrar política e operações, tem que ser
concebida não apenas por militares politicamente alertas, mas por
civis militarmente alertas. Quaisquer destes deixam terceiros na
política ou na academia desconfortáveis. Ironicamente, muitos
estudiosos que respaldam um forte controle civil sobre os militares
acabam relutantes quando se trata de dar substância a este controle
pela promoção de estudos estratégicos civis.
Amadores não deveriam controlar o que não compreendem, especialmente
em assuntos em que há legiões de vidas em jogo. E ainda assim
críticos acadêmicos compartilham do ceticismo militar quanto à
atenção intelectual aos detalhes de operações militares (ainda que
por motivos diferentes).16
Betts concede que este é um fenômeno cíclico, observando que estaríamos num
terceiro movimento nesta direção desde a Segunda Guerra Mundial. Aponta que o
problema essencial da relação civil-militar e das Universidades pode ser
fundamentalmente generacional, talvez em razão da juventude das instituições
civis em sociedades democráticas que lidam com a guerra. Mas é preciso uma
medida de cautela diante de militantismos que aspiram a conformar o
entendimento em função de desejos piedosos quanto ao futuro.
A guerra sempre foi um fenômeno essencial na política mundial. Não há
nada errado em se afirmar que ela está minguando, contanto que estas
proposições (que já foram popularizadas e em seguida desacreditadas
três vezes no último século) não se arvorem em remover o assunto da
lista dos temas de maior prioridade da agenda. Se a guerra ficar
obsoleta, o esforço intelectual perdido em se continuar estudando o
tema terá sido um custo pequeno. Se isto não vier a ocorrer, e se
estas pesquisas tiverem qualquer impacto útil, então as gerações
futuras se alegrarão que tenhamos mantido nossa pólvora intelectual
seca.17
Clausewitz
Com tudo o que se já escreveu, e escreve, sobre a obsolescência ou a
imoralidade dos trabalhos de Clausewitz, não há como evitar o resultado mais
incisivo de seus críticos mais sinceros ou selvagens. Em qualquer momento dado,
é comum que se afirme a Teoria da Guerra como uma das diversas possibilidades
de igual potencial do entendimento da guerra. Isso é usualmente acompanhado da
atribuição da qualidade de "clássico", que em muitas disciplinas significa que
não deve ser lido, embora possa ser citado em epígrafes. Em outras tradições,
uma obra centenária tem estar, necessariamente, obsoleta, e se busca o que quer
que seja a produção dos últimos cinco anos em periódicos como sendo
aprioristicamente superiores. Há ainda quem discorde do mérito por não querer
encarar os resultados. No entanto, assim que se tem a perspectiva de ter
formulado algo novo sobre a guerra cai a máscara de equanimidade para com os
proponentes antes listados como alternativas. Porque o pleito de novidade
descobre que a interlocução com a Teoria da Guerra é não apenas necessária,
mas, num reconhecimento tardio e sincero, descobre que só a interlocução com
Clausewitz pode vir a ser suficiente.
Em "Educação, Política e Guerra na Vida de Clausewitz"18, Paret realizou uma
dessas passagens que reconfigura um campo do saber. Criticou de maneira cabal a
literatura especializada de seu tempo considerando as fontes em inglês, alemão
e francês, concluindo pela insustentabilidade das interpretações vigentes,
marcadas pela fragmentação dos aspectos que compõe o título de seu artigo.
Acusou, ainda, os que deliberadamente abandonavam a integridade do estudioso,
político e soldado, privilegiando um ou outro aspecto como dispositivo retórico
de críticas, quando não como erros de partida irrecuperáveis.
Paret delineou os termos da real dimensão de Clausewitz e de sua obra,
refletindo um esforço original com acesso ao conteúdo total de seus escritos. É
com base nessa reapreciação integral que Paret propôs que o ideal que eleva a
reflexão intelectual de Clausewitz a uma qualidade superior é seu entendimento
da educação como o germe transformador do indivíduo, do Estado e da guerra.
Essa é a posição intelectual que acomoda toda a gama de suas considerações
políticas, militares e éticas.
É difícil separar a apreciação valorativa da justeza destas questões
intelectuais de seu valor prático de maximizar o poder prussiano. O próprio
Clausewitz não se preocupava com tal distinção: identificou as possibilidades
de melhoria e incremento do conteúdo de sua profissão, a conduta da guerra, de
sua classe, a militar, e do futuro de seu país no contexto, e com o benefício,
da transformação política e social que se difundia pela Europa. Não há,
portanto, contradição que fosse um inimigo implacável de Bonaparte e da
Revolução e, ao mesmo tempo, um defensor convicto, tanto apaixonado quanto
intelectual, da maior participação popular. O centro dessa última era a
educação, que passaria a ser objeto de política pública por ser capaz de fazer
do súdito, um cidadão e, portanto, um soldado animado pelo amor à pátria e não
pelo medo da punição.
O conceito de educação de Clausewitz afirmava um relacionamento recíproco entre
individuo e sociedade. Por um lado, o indivíduo estaria sujeito à educação
política em termos de torná-lo consciente e apto a contribuir para a sociedade.
Por outro lado, a sociedade estaria inclinada a formar a personalidade e a
maturidade particular de cada indivíduo, permitindo o livre desenvolvimento de
suas potencialidades. Clausewitz, beneficiário e partícipe consciente do
processo de reforma da educação prussiana na virada dos Séculos XVIII para XIX,
compreendia que esta havia se transformado numa questão capital. Como um dos
principais ativistas do movimento reformador, condicionou a própria
possibilidade de sobrevivência da Prússia à reforma, que desenvolvesse uma
conjunção salutar entre soberano, governo e povo. Foi tal reforma que, mesmo
incompleta, gerou a força necessária para as Guerras de Libertação da Prússia
(1813-1814).
Vencida a guerra, Clausewitz dedicou-se à elaboração de um arcabouço conceitual
que contribuísse para a conclusão de tal reforma democrática explicando a
conduta da guerra.
Da Guerra é uma tentativa de descobrir os princípios, forças e
tendências que orientam a guerra, de compreender as funções da
violência nos relacionamentos entre os Estados, e especular sobre o
seu uso racional e bem-sucedido. Só combinando o universal com o
específico é que Clausewitz podia aspirar a sequer dar início a tal
empreendimento. Não era apenas a guerra dos primeiros anos do Século
XIX que servia como seu objeto de estudo, mas a guerra desde o início
dos tempos. Sua experiência pessoal e conhecimento histórico tinham
assim que ser abstraídos, com as generalidades daí resultantes, sendo
objeto de análise lógica para seus desenvolvimento e refinamento.
Possivelmente em função deste objetivo universal, suas opiniões sobre
assuntos políticos contemporâneo mal são mencionadas no curso de seus
argumentos; por outro lado, ele se apóia amplamente em seus estudos
históricos.
Clausewitz tinha pena dos homens práticos que só se interessavam por
teorias que lhes dissessem o que fazer. Não cabia à teoria, ele
escreveu, dar fórmulas para a ação; no máximo a teoria podia treinar
e fortalecer o juízo de quem agisse. A pureza deste entendimento não
foi comprometida, mas recebeu uma nota realista que é típica do
pensamento de Clausewitz, pelo seu argumento de que quanto mais uma
teoria se aproxima da meta do completo entendimento, mais ela
afastava da condição objetiva de conhecimento para a condição
subjetiva de habilidade. O inquérito especulativo rigoroso, emanado
da visão mais ampla possível do problema, podia desta forma acomodar
o seu interesse no concreto, sem sucumbir a demandas imediatas que
haviam limitado a permanência de todas as teorias militares
anteriores. O resultado era um trabalho de validade geral. Apoiava-se
em algumas leis básicas: que a violência era a essência da guerra;
que a violência não admite modificação lógica; que o conceito
absoluto de guerra é sempre modificado pelas forças do mundo real.
Estes princípios eram suplementados pelas análises dos propósitos de
guerra e os meios pelos quais estes propósitos podiam ser obtidos '
a guerra é um instrumento político' é uma conclusão; cada sociedade
determina suas próprias formas de violência' é outra ' e pela
discussão dos fatores morais e psicológicos envolvidos no ato de
guerrear.19
O melhor enquadramento para que se possa apreciar o artigo de Gray, "Quem manda
na parada é Clausewitz, valeu? ' o futuro é o passado com GPS"20, é o seu
contexto. Ele resultou do convite da British International Studies Association
para a um diagnóstico do campo do Estudos Estratégicos em número especial da
Review of International Studies. Trata-se de uma apresentação sem meias
medidas, provocativa como o seu título revela. Seu centro é a afirmação de que
existem obras clássicas, essenciais, "que colocaram as grandes coisas de
maneira suficientemente correta"21.
Gray situa a discussão da necessidade e preeminência de Clausewitz em termos da
utilidade política do saber do uso de força. Entende o valor de sua teoria a
partir da perspectiva de que uma teorização digna desse nome se confronta e
busca explicar a realidade. Nisso, expressa o juízo bem-humorado de que ao
assumir-se no campo dos Estudos Estratégicos, é obrigado a reconhecer que
[s]abe-se que se têm problemas como estudioso quanto uma questão tão
corriqueira quanto o nome de seu campo de estudos, e de sua
especialidade, trazem consigo bagagens indesejadas. Proponho lidar
com este fato ignorando-o. O texto se refere às relações
internacionais, política internacional, estudos internacionais e
política mundial sem temor, favor ou significado subjacente. Com
relação ao canto particular no amplo campo assim indicado, sou mais
rigoroso. Referências em meu texto a estudos, teoria, ou história
"estratégica" indicam assuntos conexos de maneira direta com o uso da
força. De quando em vez, para sinalizar minha liberalidade de
espírito e perspectiva genuinamente holística, refiro-me a estudos
"de segurança". Mas que conste o registro de meu voto subscrevendo a
posição de que o conceito de estudos de "segurança" seria inclusivo
até a impossibilidade de sua execução. Estudar a "segurança" exigiria
o estudo de tudo, um fato que se materializaria no estudo
inteiramente sem foco sobre coisa alguma em particular.22
As perspectivas de uma paz duradoura eram tão vivas nas vésperas das Guerras
Napoleônicas quanto nas das Primeira e Segunda Guerra Mundiais. É necessário
impedir que esforços moralizantes venham querer maquiar o uso da força
vestindo-o com outras roupagens, afirmando causalidades distintas da política,
esferas de saber distintas da estratégia, como as intervenções humanitárias ou
as Missões de Paz. Isso só leva a erros, e erros usualmente produzem tragédias.
Afirmando a centralidade dos Estudos Estratégicos para qualquer perspectiva
conseqüente dos estudos internacionais, aponta sua capacidade explicativa como
argumento suficiente para dar-lhes atualidade. Destaca, ainda, ciente dos
pleitos contemporâneos, como se tratam de realidades que são factuais e não
socialmente construídas. Reconhecer as falhas dos Estudos Estratégicos, de
Clausewitz, não significa deixar de afirmar o seu valor perene. Qualificando a
ocorrência, freqüência e gravidade dos "maus tempos" como contingentes à
situação particular de um povo ou país, ainda assim o uso da força se põe. É
incisivo ao apontar como é
[p]ara obter um desempenho superior para estes maus tempos' quando a
ameaça ou o uso concreto de força se torna uma preocupação dominante,
os escritos de um General-de-Brigada Prussiano, publicados a 167 anos
atrás são um fonte destacada de inspiração. No Da Guerra Clausewitz
está certo o bastante sobre o essencial de seu assunto. De fato, ele
é tão correto que não há competidor plausível entre os demais
teóricos de estratégia. A analogia entre Clausewitz para os Estudos
Estratégicos e Aron e Morgenthau para as Relações Internacionais não
é menos válida por ser amplamente indesejável para muitos estudiosos
contemporâneos. Da mesma forma que Clausewitz explica a estratégia
para todos os tempos, Aron e Morgenthau informa seus leitores da
maior parte, e possivelmente de tudo, que eles realmente precisam
saber. (...) claro que o Da Guerra de Clausewitz tem seus limites,
como os tem o Paz e Guerrade Aron e o Paz entre as Nações de
Morgenthau. No entanto, não se busca a perfeição, mas sim explicações
suficientes para o mal-comportamento humano na esfera da política
mundial.23
Preocupações
Em 2005, Hew Strachan soou o alarme ao documentar a situação atual como sendo a
de perda do significado da estratégia24. Seu diagnóstico é que se perdeu de
vista o que é, e para que serve, a teoria que sustenta o entendimento e a ação
estratégica. Isso é especialmente trágico quando esta perda parece advir de um
processo difuso que destruiu o conteúdo do termo "estratégia", reduzindo-o a um
conjunto de platitudes e banalidades.
Isso reflete uma tolerância irresponsavelmente superficial, que toma usos
claramente retóricos do idioma e mesmo esforços deliberadamente
propagandísticos como propostas de categorias ou conceitos. Reflete uma
arrogância pseudo-pragmática diante da teoria que acaba por destruí-la através
da sucessão de tentativas ad hoc de re-definições da guerra, que são a
tentativa de redescobrir termos originais Clausewitzianos ao mesmo tempo em que
os recusa de partida. Assim, a clareza do que sejam as dimensões política,
tática e estratégica da guerra como um fenômeno acaba obscurecida por meias
medidas e emendas, quando não por modismos, marketing ou pela sonoridade de uma
determinada formulação.
Ao longo do Século XX, sucederam-se grande estratégia', estratégia total',
níveis de estratégia (militar, naval, aérea, aeroespacial, industrial,
operacional, etc.) e não-estratégia. Admitiu-se até mesmo expressões mais ou
menos doutrinantes da "arte" ou "ação" operacionais, que acabam sendo pouco
mais que um novo capítulo na luta por autonomia militar. Mesmo acadêmicos vêm
ceedendo à ambição de uma expansão tal da estratégia que chegam a aceitar que
se abandonem os Estudos Estratégicos pelos Estudos de Segurança, cujo resultado
final foi o de "ao tentarem ser inclusivos, acabarem sendo nada"25.
O rumo do reparo, aponta Strachan, é razoavelmente óbvio: só o estudo de
história pode colocar teorias em seus contextos, e só o retorno à fonte teórica
no rigor de seu conteúdo, com o benefício da crítica, pode reedificar a
estratégia. Aqui o perigo é o exílio, por dinâmicas corporativas militares e
acadêmicas, da estratégia a um tipo de consideração histórica.
Mas a estratégia não é uma questão para historiadores. Diz respeito a
todos nós. A estratégia diz respeito à guerra e à sua conduta, e se a
abandonamos, abrimos mão da ferramenta que nos ajuda a definir,
moldar e compreender a guerra. (...) [Uma] verdade fundamental mas
pouco apreciada [é] que a guerra tem sua própria natureza primordial,
independentemente de sua ambientação política ou social. Mas as
potências do Ocidente conspiraram, inconscientemente, para o processo
pelo qual a guerra uma vez mais passa a ser compreendida apenas em
seus termos primitivos. Arrancou-se a guerra de seu contexto
político. (....) Mesmo Estados envolvidos de facto numa guerra não
mais a declaram, receosos de infringirem o Direito Internacional.
Paradoxalmente, assim, o Direito Internacional desregulamentou a
guerra.26
Tal desregulamentação acena com as mais graves conseqüências: a impropriedade
do recurso ao uso de força para os fins daqueles mesmos que o consideram. Uma
guerra sem regulação se arrisca, a todo o momento, a ser uma guerra sem
controle, pura destruição infrutífera e inconseqüente.
O Estado tem, portanto, um interesse em se re-apropriar do controle e
da direção da guerra. E esse é o propósito da estratégia. A
estratégia existe para que a guerra seja útil ao Estado, para que ele
possa, se necessário, usar de força para atingir objetivos políticos.
Uma das razões pelas quais estamos inseguros sobre o que é a guerra é
porque estamos inseguros sobre o que é, ou não é, estratégia. Não é
política pública; não é política; não é diplomacia. Relaciona-se com
elas, mas não as substitui. Definições abrangentes de estratégia
podem ter ajudado durante a Guerra Fria, mas este foi ' ironicamente
' um conflito potencial da magnitude das duas guerras mundiais e uma
era de comparativa paz entre as grandes potências. Vivemos agora numa
era em que se percebe uma disposição pronunciada de parte dos Estados
Unidos e do Reino Unido para irem à guerra. As guerras de hoje não
são como as duas guerras mundiais, cuja escala deu margem às noções
de grande estratégia. Naquela ocasião, grandes idéias ajudaram a
lidar com grandes problemas. Mas hoje tais conceitos, aplicados de
maneira frouxa, roubam as guerras localizadas diante do mundo de
escala e definição. As ameaças são infladas e se tornam menos
gerenciáveis pelo uso de um vocabulário que é impreciso. A "guerra
contra o terror" é o caso em tela. É compreensível que, depois do
choque de 11 de Setembro, os EUA tenham maximizado o problema, tanto
em termos do ataque original (que poderia ter sido tratado como
crime, não como guerra) quanto em termos das respostas necessárias
para lidar com a ameaça subseqüente. Os EUA não souberam relacionar
meios a metas (no sentido militar) e a seus objetivos (no sentido
político). Abandonaram a estratégia. Usaram de palavras como
prevenção e preempção, conceitos derivados da estratégia, mas sem
contexto. Tornaram-se assim não fundamentos de ação militar, mas
diretrizes de política externa.27
Gray pode, uma vez mais, ter apontado para o que é o centro da questão,
confrontando a expectativa de que o Século XXI seria um idílio pacífico em
contraste com o Século XX. Outro Século Sangrento28 comunica o seu prognóstico.
Reduzir esta visão aos desdobramentos do 11 de Setembro é perder de vista a
amplitude e a prudência que orientam a apresentação do contexto da guerra. A
questão é a evolução do sistema internacional, dito de maneira clara, dos
processos pelos quais a atual posição dos EUA será mantida ou desafiada.
Isso incorpora e reflete a diversidade de interesses regionais e mesmo locais.
Contra a complacência e arrogância do Ocidente, alerta para a existência de
visões de mundo distintas, que admite questões propriamente culturais e
política quanto a metas e valores, que assegura o surgimento de formas
alternativas, simétricas ou assimétricas, de construção e uso dos instrumentos
de poder e de guerra. São esses os elementos que tem que ser considerados na
gestão do equilíbrio de forças e poderes em função dos interesses envolvidos, e
não a reprodução de versões do Ocidente, de suas formas de democracia e mercado
como um dever-ser universal e consensual. Daí sua preocupação, já que
(...) é difícil fazer bem estratégia. Mas ainda, alguns países parece
mal "fazer" estratégia. Os Estados Unidos da América são principal
exemplo de um país que raramente "faz" estratégia. A comunidade de
defesa dos EUA produz muitos livros e estudos, e realiza muitas
conferências em homenagem à estratégia. Mas na prática é seu hábito
lutar taticamente, e agora operacionalmente, e não estrategicamente.
É dizer, aplica-se força, mas com uma direção política incipiente.
Estratégia diz respeito a ameaçar ou aplicar a força com um propósito
dado pelos fins da política. Neste mister, quando convidada, a
estratégia é o controle vital do comportamento militar. Deveria
determinar quanta força se empregar tanto quanto como empregá-la.
Assim como a direção política, a estratégia é despida de valores.
Quando atende a uma direção política ambiciosa e expansiva, a
estratégia também deve sê-lo. Mas a estratégia deveria sempre manter
o controle dos rumos da guerra. Mesmo Estados que não conseguem
compreender estratégia, ou que persistem, para além de uma educação
superficial, em afrontar o saber estratégico, irão descobrir que seu
comportamento militar tem efeito estratégico.
A estratégia pode ser concebida explicitamente para os fins da dissuasão.
Nestes casos objetiva, sem dúvida, controlar a ocorrência da guerra. O grau com
que a estratégia de fato controla a guerra depende das circunstâncias locais,
especialmente as circunstâncias culturais.29
Dar conta do desafio estratégico não acontece automaticamente. Demanda um
equilíbrio, um sistema de responsabilização e contrapesos entre as organizações
militares, o governo e a academia. Se cada um destes atores for seguir suas
próprias inclinações e tendências, então o resultado pode ser um novo divórcio
na reflexão estratégica, como foi o caso dos EUA no Vietnã. A questão não é
pedante, ou "acadêmica" no sentido pejorativo de diversas tradições anti-
intelectuais. Diz respeito ao risco de uma dessas tragédias que macula décadas
ou mesmo do desamparo nacional diante do bélico. Gray dá eco presente a
preocupação de Earle e de Brodie, de Paret e Betts que corresponde, em termos
amplos, ao problema da democracia diante da necessidade de compreender e usar
do bélico. Essa é a compreensão dos Estudos Estratégicos em sua plenitude e
razão de ser, assumindo a tarefa de dar conta do mérito das causas, condutas e
conseqüências do bélico, que os revela como a base reflexiva da Defesa
Nacional.
1 Este texto decorre do desenvolvimento do projeto de pesquisa Tecnologia e
Defesa (CNPq) e da vigência da bolsa de produtividade em pesquisa concedida a
Domício Proença Júnior e de doutorado concedida a Érico Esteves Duarte pelo
CNPq. Seu conteúdo reflete ainda, em parte, o resultado de pesquisas e estudos
anteriores com Eugenio Diniz, Salvador Ghelfi Raza, Mauro G. F. Mosqueira
Gomes, Marco Cepik, Jacqueline Muniz, Tiago Cerqueira Campos, Wilson Lauria e
Rafael Ávila, ainda que a responsabilidade por esta apresentação permaneça
integralmente com os autores.
2 EARLE, Edward M. National Defense: a program of Studies. Political Science
Quarterly. New York, 55(4), 1940, p. 481-495.
3 EARLE. Op. cit., p. 482.
4 EARLE. Op. cit., p. 485.
5 EARLE. Op. cit., ênfases no original, p. 498.
6 BRODIE, Bernard. Strategy as a Science. World Politics. Baltimore, 1 (4):
467-488, 1949.
7 GRAY, Colin S. Across the Nuclear Divide, Strategic Studies Past and Present.
International Security. 2 (1): 24-46, 1977.
8 GRAY, Op. cit., p. 38.
9 EARLE, Edward Mead, ed. Makers of Modern Strategy. Princeton: Princeton
University Press, 1943 (reprint 1971).
10 GRAY 99 , nota 11, p. 46,
11 MURRAY, Williamson. Clausewitz out, computer in: military culture and
technological hubris. The National Interest. Washington: Nixon Center, 1997.
Disponível em: <www.nationalinterest.org> Acesso em: 31 out. 2006.
12 MURRAY, Op. cit., § 1-3 do item One of the Great.
13 MURRAY, Op. cit., § 11-13 do item The Gulf War.
14 BETTS, Richard K. Should Strategic Studies Survive?. World Politics.
Baltimore, 90(1): p. 7-33, 1997.
15 BETTS, Op. cit., p. 7-9.
16 BETTS, Op. cit., ênfases no original, p. 25-26.
17 BETTS, Op. cit., p. 33.
18 PARET, Peter. Education, Politics, and War in the Life of Clausewitz.
Journal of History of Ideas. Philadelphia, 29(3): 394-308.
19 PARET, Op. cit., p. 406-407.
20 GRAY, Colin S. Clausewitz Rules, OK? ' the future is the past with GPS.
Review of International Studies. Special: 162-182, 1999.
21 GRAY, Op. cit., p. 162.
22 GRAY, Op. cit., p. 161, nota 3.
23 GRAY, Op. cit., p. 179-180.
24 STRACHAN, Hew. Lost Meaning of Strategy. Survival. London, 4 (3): 33-54,
2005.
25 STRACHAN, Op. cit., p. 47.
26 STRACHAN, Op. cit., p. 48.
27 STRACHAN, Op. cit., p. 49-50.
28 GRAY, Colin S. Another Bloody Century: future warfare. London: Weidenfeld
& Nichols, 2006.
29 GRAY, Op. cit., p. 364.