O Direito Internacional repensado em tempos de ausências e emergências: a busca
de uma tradução para o princípio da não-indiferença
Introdução
Em meados de 2000, às portas do novo século, o renomado sociólogo português,
Boaventura de Souza Santos, em sua obra Crítica da Razão Indolente: Contra o
desperdício da experiênciafaz uma advertência mandatória aos cientistas
sociais:
A experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do
que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e
considera importante; esta riqueza social está a ser desperdiçada. É
deste desperdício que se nutrem as idéias que proclamam que não há
alternativa, que a história chegou ao fim e outras semelhantes; para
combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as
iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar
credibilidade [...] é necessário abandonar o modelo de racionalidade
que chamo "razão indolente" [...] e adotar o que designo como "razão
cosmopolita", fundada sobre a sociologia das ausências, a sociologia
das emergências e o trabalho de tradução. (grifou-se)
Nesta breve passagem estão contidas três idéias centrais à compreensão desta
análise, que busca inspiração na Teoria proposta por Boaventura: a) o
entendimento de que, fora dos grandes centros de poder ' leia-se Estados Unidos
e Europa ' estão sendo conduzidas experiências alternativas àquelas hegemônicas
nos âmbitos político, jurídico, social, econômico e cultural (sociologia das
emergências); b) Que estas experiências têm sido vistas por estes centros como
marginais, irrelevantes e/ou equivocadas, e, dentro desta lógica, são
cinicamente produzidas como não existentes (sociologia das ausências); c) Que,
no entanto, estas experiências se apresentam com um incrível potencial de
sucesso e que, estando localizadas em grande parte no Hemisfério Sul, poderão
servir de modelo entre estes países, com a necessária adaptação à realidade de
cada um (trabalho de Tradução).
A análise que por hora se pretende fazer parte do pressuposto de que também no
âmbito das complexas relações entre os Estados, experiências valiosas estão
sendo desperdiçadas, ou porque encontram a sólida barreira da língua ou então
porque partem de contextos os quais não se acredita como produtores de
alternativas viáveis. É neste contexto que se busca situar o Princípio da Não-
Indiferença. Elaborado em solo africano, com base no conhecimento popular que
advertia não ser possível resignar-se diante do sofrimento alheio, esta nova
doutrina pode ser compreendida, dentro da sociologia das ausências e
emergências, como alternativa ao Princípio que, até então, havia figurado como
cláusula pétrea nas Relações Internacionais: a Não-Intervenção. Apesar de não
haver sido mencionado acima da linha do Equador, onde ainda é inexistente, as
necessidades que levaram à adoção deste novo paradigma também são sentidas para
além mar, chegando ao Brasil e à América Latina no momento em que se percebe
que o desenvolvimento "ilhado" já não é mais possível.
O presente estudo se detém na busca do terceiro elemento proposto por
Boaventura: o trabalho de tradução. Tradução no sentido de interpretação entre
a experiência brasileira e a africana no que diz respeito ao Princípio da Não-
Indiferença, confrontando as preocupações que lhe dão origem, o modo como é
adotado e as diferentes respostas que com ele se pretende dar nestes dois
contextos.
Tendo em vista o ineditismo do tema e a quase inexistência de teorização acerca
do mesmo, o presente estudo assume o caráter de ensaio e experimentalidade que
lhe condena à resignação diante da crítica e à constante reelaboração.
Pelo não desperdício da experiência: Considerações acerca da utilização
africana do Princípio da Não-Indiferença
Falar do processo que leva à adoção do Princípio da Não-Indiferença em solo
africano é falar, antes de tudo, de uma mudança de paradigmas sem igual na
cultura securitária deste continente. Mais do que isso, é revisitar e trazer à
tona a sabedoria destes povos, o espírito pan-africano que os entrelaça e ver a
África como produtora de experiências alternativas a um modelo hegemônico, no
qual sempre será vista com preconceito, descrédito ou, no máximo, com piedade.
Dois acontecimentos nos parecem essenciais no traço desta análise1, uma vez que
figuram como momentos em que, tomadas por uma forte noção de si, as nações
africanas rejeitam a ordem vigente e passam a reivindicar uma ordem alternativa
de concepção do e atuação no mundo. Estes momentos são: a) a descolonização
massiva Pós-Segunda Guerra Mundial e b) o massacre de Ruanda em meados dos anos
noventa. No bojo destes dois acontecimentos se dá a criação, respectivamente,
da Organização da Unidade Africana e sua substituta, a União Africana. Ao
estudo do confronto entre as urgências de cada um destes períodos e a cultura
securitária adotada em cada um deles é que se destinará esta primeira seção da
análise.
A importância do Princípio da Não-Intervenção no contexto pós-colonial
O contexto pós-Segunda Guerra Mundial, em que se dá a proliferação de
organizações internacionais defensoras dos Direitos Humanos e a incorporação da
busca pela paz e defesa da autodeterminação das nações como tema de Fóruns
Internacionais, oferece um cenário bastante profícuo ao movimento massivo dos
países africanos rumo à independência. Sua posterior incorporação às Nações
Unidas desenha, por conseguinte, um cenário bastante inusitado no âmbito desta
organização: a prevalência de países "subdesenvolvidos" em seu quadro formador
(Figura_1). Desta confluência resultou um substancial redirecionamento da
agenda da ONU, até então voltada aos interesses daqueles que se vinham
consolidando como novos pólos de poder mundial: Estados Unidos e URSS.
A Conferência de Bandung, expoente desta nova arquitetura, realizada em 18 de
Abril de 1955, contou com a participação de 29 Estados e 36 convidados, que
representavam aproximadamente 60% da população mundial. Realizada ao alvedrio
das potências americana e soviética, a Conferência sinalizou o interesse de
seus membros em participar de forma ativa e propositiva no sistema
internacional, recusando o alinhamento prévio aos blocos existentes, ao mesmo
tempo em que conferiu apoio aos territórios afro-asiáticos em processo de
descolonização.
Neste contexto, reagindo à forte ingerência externa que tentava imiscuir-se no
vazio deixado pela descolonização, é aprovada, por Resolução da XV Assembléia
Geral da ONU, a Declaração de Garantia de Independência dos Países Coloniais, a
qual tinha por pilares: a) a defesa da autodeterminação dos povos; b) o repúdio
a quaisquer tipos de ação armada e medidas de repressão dirigidas contra os
povos dependentes; c) a defesa da integridade territorial destes países; d) a
defesa da não-ingerência nos assuntos internos dos Estados e do respeito aos
direitos soberanos de todos os povos; e) o entendimento de que a falta de
preparação no domínio político, econômico, social ou no campo da educação não
deveriam servir de pretexto para o retardamento da independência.
Em um cenário onde as necessidades estavam centradas na abolição de um sistema
colonial residual e no impedimento de ingerências futuras partindo das novas
potências, os Princípios defendidos nesta oportunidade pareciam os mais hábeis
a garantir a emancipação em todas as suas formas. Tanto era assim, que nestes
mesmos moldes foi aprovada, em 25 de Maio de 1963, na Etiópia, em um clima de
euforia onde estavam presentes discursos acerca da Identidade Africana e do
Pan-Africanismo2, a Organização da Unidade Africana ' OUA, cujo intuito maior
estava centrado na construção de uma Nova África, capaz de atuar de maneira
mais coesa e incisiva do cenário internacional. A OUA erigiu-se sobre os
Princípios basilares do Direito Internacional: a igualdade soberana das Nações;
a não ingerência nos assuntos internos dos Estados; e a livre-determinação dos
povos.
No entanto, o cenário favorável no qual foi concebida não se estenderia por
muito tempo3. Em breve, tanto a arquitetura internacional do pós-guerra se
dissolveria com a queda do Muro de Berlim, quanto à geografia interna africana,
herdada do período colonial e jamais revista, seria contestada por uma série de
movimentos revoltosos. Assim, enquanto os Estados Unidos ampliavam sua atuação
hegemônica, a África ardia em conflitos étnico-religiosos internos aos Estados,
que a pintavam como um típico quadro hobbesiano de tensão permanente, onde a
violação dos direitos humanos passou a ser uma constante.
Neste cenário, uma cultura securitária fundada no Princípio da Não-Intervenção
já não se mostrava suficiente para atender aos imperativos do novo tempo.
O massacre de Ruanda e a emergência de um novo Princípio na União Africana
Em 1994, a História africana é marcada por um dos episódios mais paradigmáticos
no que concerne à violação dos Direitos Humanos. Não apenas porque em Ruanda
foram mortos entre 800.000 e 1.000.000 pessoas entre Tutsis e Hutus moderados '
o que equivaleria a 11% do total da população e 4/5 dos tutsis que viviam no
país ' mas porque foram mortos diante da mais completa indiferença de seus
vizinhos e/ou das Organizações Internacionais.
Durante o massacre, a cultura securitária que conforma a Organização da Unidade
Africana, assim como a Carta das Nações Unidas, parece ter servido à inércia
destes agentes uma vez que, ao serem chamados ao auxílio, alegavam o dever de
não interferir nos assuntos internos do país em questão, soberano em suas
decisões4. Aí se constata aquela que talvez seja a mais grave debilidade do
Direito Internacional contemporâneo pensado e institucionalizado desdee para os
países desenvolvidos, como prudentemente apresentam Cilliers e Sturman (2002):
The concept of State sovereignty, on which the international system
and the OUA were founded, presumes that each state has the power,
authority and competence to govern its territory. For many African
States, however, sovereignty is a legal fiction that is not matched
by governance and administrative capacity.
Esta consciência, associada à lembrança ainda bem presente de outras graves
violações, conduz à certeza de que algo significativo deveria ser feito para
evitar novos massacres. Assim é que os Chefes de Estado Africanos substituem,
em 2002, a Organização da Unidade Africana pela União Africana. Esta
substituição vai muito além da semântica ' que em si já se liberta do
racionalismo Ocidental contido na idéia de "organização" e busca uma nova forma
de se referir a si. Ela contem um novo modelo de integração continental,
respaldado por uma cultura securitária que, em suas peculiaridades, pode ser
compreendida como uma exeperiência alternativa em uma cena Internacional cuja
arquitetura e funcionamento seguem padrões hegemônicos.
A nova cultura securitária supera uma doutrina de não-intervenção, necessária
nos anos 60 a 80, quando se davam os processos de descolonização no continente,
mas incapaz de atender às demandas da nova época. Essa nova doutrina tem sido
chamada de não-indiferença e tem suas raízes no conhecimento popular africano
que afirma não ser possível desviar os olhos enquanto a casa de um vizinho está
em chamas.
Transposta para o Acto Constictutivoda UA, esta doutrina vai respaldar a
intervenção em um Estado Africano em duas circunstâncias: a) mudanças
inconstitucionais de governo (art.4º, "p" da Carta da UA),essencialmente no que
diz respeito aos frequentes Coups d´états levados a cabo em solo africano,
diante dos quais se tinha, até então, o que Williams(2005) chama "indiferença
oficial" dos Estados e da OUA; e b) Intervenção humanitária nas chamadas "grave
circunstances",entre as quais figuram crimes de guerra, genocídios e crimes
contra a humanidade(art. 4o,"h" da Carta da UA).
Ainda de acordo com o Acto Constictutivo,a iniciativa da intervenção poderá
partir: a) de decisão da Assembléia Geral da UA ou, b) da solicitação de um
Estado Membro. Aprovada a intervenção, sua implementação e a supervisão caberão
a um novo órgão criado no âmbito da UA, the Peace and Security Council, o qual
deverá conduzir-se de acordo com as linhas gerais do Relatório elaborado pela
International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS), acerca
da Reponsabilidade de Proteger5. Este Relatório, além de estabelecer critérios
a serem observados durante a intervenção, aconselha que ela seja conduzida por
países que não estejam diretamente envolvidos no conflito, isto é, que com ele
não tenham nada a ganhar ou a perder6.
Institucionalizada, esta nova doutrina securitária traz em si uma importante
reflexão: a de que a inviolabilidade dos limites dos Estados não deve ser
defendida com maior intensidade do que a vida e dignidade de seus habitantes.
Não se quer dizer aqui que o baluarte da soberania deva ser, agora,
impiedosamente enterrado, mas que, sim, ele deve passar por uma profunda
resignificação. Talvez esta resignificação esteja centrada, conforme sugere o
relatório da ICISS, na substituição de uma idéia de Soberania como Controle,
por uma idéia de Soberania como Responsabilidade. Isto implica em que a
justificativa para a inviolabilidade de um Estado não se deve mais dar pela
eficácia de uma imposição legalmente aceita ' e jamais contestada ' de
Soberania7. O respeito a sua autoridade implica, agora, em fazer reconhecer seu
compromentimento e efetiva atuação na proteção do bem estar de seus cidadãos.
Assim, pode-se dizer que o Princípio da Não-Indiferença em solo africano assume
as feições elencadas abaixo:
Traçadas as considerações acerca da utilização do Princípio da Não-Indiferença
em âmbito africano, partir-se-á, agora, para a análise experimental daquela que
parece ser sua tradução brasileira8.
A tradução da experiência: O Princípio da Não-Indiferença reconduzindo a
política internacional brasileira
Assim como na História africana, talvez não tenha havido, na história latino-
americana, um contexto de necessidades tão preementes que exigisse uma
subversão de paradigmas incrustrados na nossa política externa como o momento
presente. A soberania e os Princípios de sua lógica estatal-nacionalista '
responsáveis pela indiferença africana em relação a massacres que aconteciam
fora das fronteiras nacionais ' fez, também por aqui, dos vizinhos ' e só deles
' a responsabilidade por seus problemas.
Ultrapassando a perspectiva do desenvolvimento como horizonte a ser alcançado
no âmbito de cada uma das unidades de uma sociedade internacional atomizada em
Estados-nação, a dinâmica atual impõe o reconhecimento das interligações entre
o sucesso do progresso político, econômico e social internos àqueles obtidos
para além das fronteiras nacionais. E, assim, os problemas que afetam a vida
dos vizinhos são, à medida que convulsionam a estabilidade do grupo, problemas
que importam a todos os países da região. Dentro dessa nova lógica de problemas
compartilhados surgem, paralelamente, espaços alternativos às clássicas vias
que reduziram o universo de atores, realidades e relações a dicotomias que
carregam, arraigadas em si, fortes hierarquias, como as idéias de Norte/Sul,
Emoção/Razão, Cultura/Ciência, etc.
A diferente feição que assumiu a política externa brasileira a partir do
governo Lula ' assim como a Carta Africana de 2002 ' parece bem se inserir
nessa nova dinâmica que adentra espaços não explorados e cria novas vias e
perspectivas de cooperação. Para identificá-la, inicialmente apresentam-se as
novidades, em seu aspecto pragmático, da política externa brasileira do período
e, em seguida, identificam-se esses novos elementos a partir, essencialmente,
dos discursos oficiais do atual Presidente do Brasil e do seu Ministro de
Relações Exteriores. Ao fim, questiona-se a respeito da importância da
institucionalização de um Princípio que contemple a perspectiva norteadora
dessas novas prática e retórica da atuação externa brasileira.
As urgências contemporâneas inspirando uma prática Internacional renovada
Desde o século XIX, o Princípio da Não-Intervenção tem acompanhado a atuação
externa brasileira. Num primeiro momento, se o defendeu com vistas à manutenção
de sua independência da antiga metrópole e, logo, com o redesenhar do mapa de
forças internacional, a invocação de tal pilar da política externa teria seu
sentido transmutado para expressar a salvaguarda contra a investida de
potências estrangeiras. Isso porque, muito embora tivesse mais força que seus
vizinhos, e pudesse, na prática, atuar de forma mais ativa em seus territórios,
o Brasil sempre temeu a possibilidade de que, ao adotar tais práticas
intervencionistas e proferir um discurso que as sustentasse, pudesse vir a ser
alvo de intervenções semelhantes por parte das grandes potências. Assim, o
Princípio da Não-Intervenção desenhou-se como um dos mais consagrados
Princípios dentre aqueles que regem as relações internacionais da República
Federariva do Brasil, tendo mesmo merecido um lugar na Carta Fundamental de
1988 (VIZENTINI, 2001).
A partir do atual governo, tem-se visto uma atuação diferenciada de política
externa. As necessidades econômicas, sociais e políticas pelas quais tem
passado as populações de alguns países forçaram a estruturação de relações
internacionais imbuídas de valores humanistas que, como tais, escapam às
lógicas reducionistas que pautaram as atuações dos Estados nacionais até então.
Essa atuação internacional diferenciada não encontra sua razão de ser no
persistente discurso do interesse nacional, mas edifica-se sobre um sentimento
de responsabilidade global cuja feição universalizante se encontra no que em
comum de humano cada indivíduo encerra. No indivíduo e na assecuração da sua
dignidade enquanto ser humano, na possibilidade de melhoria de sua condição de
vida, está a razão e o fim da atuação internacional de um Estado que conseguiu,
à semelhança da experiência africana, superar aquela que Bauman (2006)
denominou como "lógica do entrincheiramento local".
Três exemplos trazem elementos que revelam a inauguração desta nova política
externa por parte do Brasil.
O primeiro consiste no perdão de dívidas estrangeiras. Desde o início de seu
mandato, o presidente Lula perdoou as dívidas de Bolívia (US$ 52 milhões), Cabo
Verde (US$ 2,7 milhões), Gabão (US$ 36 milhões), Moçambique (US$ 331 milhões,
equivalentes a 95% da dívida deste país com o Brasil) e Nigéria (US$ 84
milhões), entre outros9. Em si, esses países sustentam em comum a condição de
estarem entre as nações com os menores índices de desenvolvimento mundiais10.
O segundo refere-se ao caráter da participação brasileira para a estabilização,
reconstrução e viabilização do Haiti.
A experiência brasileira no território do país caribenho iniciou-se em maio de
2004, no âmbito da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti
(MINUSTAH). Essa não é a primeira vez que o Brasil participa de uma missão
deste tipo, mas alguns fatores tornam essa atuação especial e paradigmática: a)
o contingente brasileiro no Haiti é um dos maiores já deslocados sob o mandato
da ONU; b) pela primeira vez a América do Sul tem a maioria da tropa em uma
Missão de Paz da ONU; c) pela primeira vez o Brasil tem o comando de uma força
de paz internacional; d) a proposta brasileira ultrapassa os objetivos de
garantir a instauração de condições seguras para o desenvolvimento de um
processo que garanta a livre expressão do povo haitiano para a escolha de seus
dirigentes.
O Haiti é um dos países mais pobres do mundo. De acordo com estatísticas
oficiais, 80% da população vive abaixo da linha da pobreza e pouco mais de 50%
desta é analfabeta. Nas cidades, a maior parte da população passa fome e vive
em favelas, onde o esgoto corre a céu aberto (SADER et al., 2007). Nessas
condições, agravadas pelas violentas crises políticas que há décadas assolam o
país, é inconteste o risco iminente e irreparável de vida que correm milhares
de seres humanos e que fazem urgente a cooperação internacional imediata. Mesmo
ciente de suas próprias necessidades, o Brasil destacou esforços não só na
seara militar mas também, mais amplamente, em outras dimensões, como a social,
técnica e cívica, para assistir a população haitiana e para chamar a atenção da
comunidade internacional para as necessidades do país. É nessa perspectiva
ampliada de atuação que podem ser vistas ações como a cessão de itens da ração
dos soldados à população, o envio de centenas de quilos de medicamentos pelo
Ministério da Saúde brasileiro e o jogo de futebol Brasil-Haiti, promovido pela
Confederação Brasileira de Futebol. Também evidenciando que sua ação se propõe
a reestruturar de forma sustentável o espaço haitiano, o Brasil enviou uma ação
multidisciplinar de cooperação técnica para identificar setores em que o país
poderia colocar à disposição do Haiti conhecimentos e mão-de-obra especializada
para a reconstrução da infra-estrutura e instituições do país caribenho (SOUZA;
ZACCARON, 2006). Tal iniciativa, apesar de não demandar enormes montantes de
recursos financeiros, aporta auxílio a um país de tudo necessitado e significa
uma linha importante de cooperação que se inaugura entre dois países que,
apesar das escassas relações que mantém hoje em dia, carregam nas populações
que formaram suas sociedades laços étnicos, culturais, religiosos e históricos
comuns.
Por fim, ressalta-se a postura do governo brasileiro que reconheceu a
nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos, deflagrada em maio de 2006, como
ato soberano legítimo do Estado andino. Em que pesem as fortes críticas que lhe
endereçaram a mídia nacional, o presidente brasileiro demonstrou coerência ao
reconhecer os direitos de propriedade sobre os recursos naturais, tanto pelo
fato de refletir um direito reivindicado pelo próprio Brasil há muito tempo
(lembre-se da nacionalização brasileira marcada pela conhecida campanha "O
Petróleo É Nosso", realizada em 1953), quanto pelo fato de corresponder a
declarações internacionais firmadas pelo país, como, por exemplo, a Resolução
1803, da Assembléia Geral das Nações Unidas, que definiu para os Estados a
"soberania permanente sobre suas riquezas e recursos naturais", além de dispor
que estes podem livremente estabelecer as regras para a "exploração, o
desenvolvimento e a disposição de tais recursos" (ZANELLA; MARQUES, 2006).
A postura do governo brasileiro no caso da nacionalização boliviana levou em
consideração tanto a coerência com a normativa internacional pelo próprio
Brasil votada, como as necessidades práticas de um país que, apesar de suas
riquezas naturais, manteve, durante mais dois séculos, o status de mais pobre
da América do Sul. A atitude brasileira partiu de uma perspectiva que considera
responsabilidade de todos a busca de um desenvolvimento mais uniforme das
nações, capaz de melhorar fortemente as condições de existência e os níveis
econômicos das populações dos países menos desenvolvidos. Mais uma vez nota-se,
aqui, que a revalorização dessa perspectiva ampliada de responsabilidade,
partindo de um país marginal no sistema internacional para outro, também
marginal, quebra com a idéia de que a ajuda e a cooperação podem somente se dar
no âmbito e sentido das realações Norte/Sul ou Desenvolvidos/
Subdesenvolvidos11. Também aqui está presente uma nova perspectiva de atuação
que não reproduz ante os mais fracos os esquemas de dominação que lhes são
impostos a partir das potências mundiais. Eis, enfim, um terceiro exemplo de
uma política que não fecha os olhos ante o sofrimento e as carências dos menos
favorecidos e que, ao fazê-lo, instrumentaliza a política internacional
brasileira de vias para estabelecer contatos, relações e dinâmicas de
cooperação a partir de uma perspectiva ampliada que contempla, além dos canais
mantidos com os países desenvolvidos, também aqueles que podem ser
estabelecidos com os subdesenvolvidos.
Os três exemplos citados trazem elementos que permitem visualizar o caráter
inovador da política externa do presidente Lula. São elementos que evidenciam a
reorientação da atuação externa brasileira também considerando a solidariedade
e responsabilidade devidas para com as populações que sofrem em função de
conflitos internos, carências de todas as ordens, repressão, falência do
Estado, impossibilidade ou ausência de vontade deste de reduzir tais
sofrimentos. Tal como na África, a atuação do Brasil começa a ser orientada
pela convicção de que já não é possível desviar o olhar quando a casa do
vizinho arde em chamas. Nisso não há ineditismo. A sensação de que a
minimização das desigualdades substanciais entre os países é uma condição sine
qua non para o avanço geral também foi vivenciada nas décadas de 60 e 70,
quando o contexto da descolonização ensejou uma série de propostas a partir de
países subdesenvolvidos. Entre essas propostas estavam um Novo Direito e uma
Nova Ordem Econômica Internacional. No entanto, enquanto nesse momento, o
discurso não encontrou na prática um modo de viabilizar a realização de seus
anseios, o presente inverte esta lógica e coloca a prática à frente da
retórica. Nesse sentido é que os discursos, tanto o Ministro de Relações
Exteriores quanto do Presidente do Brasil devem ser compreendidos, como uma
tentativa de fundamentar essa nova lógica de atuação internacional do país
O Princípio da Não-Indiferença perpassando o discurso político brasileiro
Escorando a prática progressiva ' porque acrescida de valores universais, que
ultrapassam o "entrincheiramento do local" ' e revolucionária ' porque desafia
as lógicas reducionistas a que os Estados viam presas as possibilidades de suas
atuações externas ' alguns agentes politicamente ativos da cena nacional vêm
fazendo em seus discursos referências em relação à redefinição de prioridades e
instrumentos da atuação internacional do país. Em especial neste caso, onde o
discurso sucedeu ou acompanhou a prática, através da manifestação pública,
Celso Amorim e Lula buscaram oficializar as intenções que justificaram as
feições de determinada política e tentaram estabelecer a concatenação, no plano
das idéias, que dá sustentação ao que vem sendo executado.
O discurso do Presidente Lula é, desde seu início, marcado por uma forte
perspectiva humanista, que reconhece a importância e busca sobrepor os valores
da solidariedade e da cooperação àqueles da indiferença e omissão perante os
excluídos12. Essas intenções são desde logo anunciadas como parte de uma
política que pretende vê-las em operação, superando as posturas meramente
reativas que habitualmente acompanham os discursos do gênero. São suas
palavras, em discurso por ocasião da formatura de uma nova turma de diplomatas
brasileiros, em setembro de 2005:
Não aceitamos como fato consumado uma ordem internacional injusta
(...). Nossa atuação diplomática é fundada na defesa de Princípios,
mas também na busca de resultados. Tem uma dimensão utópica sem
deixar de ser pragmática.
Mais adiante o presidente menciona o Princípio da Não-Indiferença como
norteador dessa política internacional que seu governo propôs-se a seguir:
Em um mundo globalizado e interdependente, nossa contribuição à paz e
à democracia é determinada pelo Princípio da Não-Indiferença. Por
isso nos engajamos nos esforços de estabilização do Haiti. (Grifou-
se)
Menciona, ainda, outros novos caminhos da atuação internacional de seu governo,
como a crescente intensificação das relações com países africanos e o
incremento do diálogo Sul-Sul. Ao fim, volta a enfatizar a importância desse
Princípio que sensibiliza o país para o que acontece além-fronteira através de
uma alegoria que faz referência à importância do desenvolvimento conjunto da
América do Sul:
(...) porque não seremos ricos se tivermos nas nossas costas países
miseráveis onde persiste a fome, o desemprego e a miséria.
Essas palavras anunciam que a política internacional brasileira atual está a
serviço dos valores que o governo prioriza, dentre os quais estão aqueles
ligados ao Princípio da Não-Indiferença que o Presidente, através da prática e
do discurso, colabora para delinear.
As palavras do Ministro Celso Amorim revelam ainda mais claramente esse caráter
da diplomacia do governo Lula. Em 2003 ela estava bem definida enquanto
Princípios norteadores e propostas que demonstram a consciência do governo da
necessidade de assumir responsabilidades na cena internacional para fazer
frente aos desafios contemporâneos:
A ação diplomática do governo Lula está impregnada de uma perspectiva
humanista, que faz com que seja, a um só tempo, instrumento de
desenvolvimento nacional e defensora de valores universais (2003, p.
155).
A mesma aspiração por desenvolvimento e progresso social, que moldam
a ação governamental em âmbito interno, nos mobilizará nos planos
regional e global. Nossa aspiração por paz e solidariedade passa
necessariamente por uma atenção detida para as carências dos menos
favorecidos (2003, p. 160).
Dois anos mais tarde, em discurso pronunciado por ocasião da XXXV Assembléia
Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), a perspectiva humanitária da
atuação internacional brasileira volta a ser reforçada pelo Ministro. Nesta
ocasião, porém, após confirmar que um dos apoios da diplomacia brasileira
encontra-se no Princípio da Não-Intervenção em assuntos internos, ressalta que
isso não deve servir de pretexto para negar a solidariedade ativa do país:
A diplomacia brasileira pauta-se pelo Princípio de Não-Ingerência em
assuntos internos, consagrado em nossa Carta. O governo do Presidente
Lula tem associado a esse Princípio básico uma atitude que
descrevemos como de "não-indiferença". Temos prestado nosso apoio e
solidariedade ativos em situações de crise, sempre que somos
solicitados e consideramos ter um papel positivo (AMORIM, 2005).
(Grifou-se)
Cerca de um ano mais tarde o tom do discurso e a importância da atitude de Não-
Indiferença seriam novamente invocados, na subsequente reunião Assembléia Geral
da OEA:
É muito importante que todos nós sejamos capazes de praticar a não-
indiferença, isto é, um engajamento no auxílio sempre que solicitado,
para a consolidação democrática dos países. Mas, ao mesmo tempo,
também é importante nos abstermos de interferir em processos
internos. É isso que tem guiado a política do Presidente Lula,
baseada na integração, baseada na amizade, baseada na não-
indiferença, mas também na não-intevenção (AMORIM, 2006). (Grifou-se)
Em todas as falas é interessante notar que a menção à Não-Indiferença aparece
sempre associada a uma atuação, a uma prática. Sua utilização se dá, portanto,
já no contexto de algo que vem se operando e que, assim, já ultrapassou a
fronteira do programático e atingiu o pragmático. Essa nuance é importante,
pois na ocasião dos pronunciamentos já estavam em curso experiências práticas
de solidariedade ativa, como as citadas na seção anterior.
Por fim, a Não-Indiferença como Princípio orientador de uma nova dinâmica de
Política Externa veio citada por Ricardo Seitenfus, membro da Comissão Jurídica
Interamericana da OEA, em seu pronunciamento por ocasião da Sessão Especial
sobre os Princípios de Direito Internacional contidos na Carta da Organização
dos Estados Americanos, realizada em Washington, em março de 2007.
Ressalta o professor que, apesar de ainda não estar consolidado como Princípio,
o caráter das atuações internacionais de alguns países das Américas no Haiti
tem possibilitado a vivência prática de valores que estão em sua base, como as
idéias da responsabilidade solidária dos membros da Organização por um
desenvolvimento integral. Em suas palavras:
Sem prejuízo da aplicação do Princípio da não-intervenção, é urgente
e necessária a distinção entre este e um novo Princípio de direito
internacional que se afirma progressivamente ' trata-se do Princípio
da Não-Indiferença.(...)
A operacionalização do Princípio da Não-Indiferença se faz a partir
do conceito de diplomacia solidária. Agindo coletivamente,
desprovidos de interesses menores e subalternos, um grande número de
países das Américas fornece na atualidade o exemplo desta nova forma
de perceber, além da fria razão de Estado, os desafios dos Homens. A
atuação desses países no Haiti constitui esta nova perspectiva para
as relações interamericanas (SEITENFUS, 2007).
Esta harmonia nos discursos sobre a diplomacia do governo Lula, que se
encontram entre agentes politicamente ativos, confere uma legitimação simbólica
às ações que já estão em curso. Acontece aqui um ajustamento particular, em que
as práticas de cooperação antecedem a sustentação em diferentes foros do
discurso da solidariedade. Se se tiver em consideração, por exemplo, o que
aconteceu durante as décadas de 60 e 70, em que apesar dos discursos e
documentos internacionais firmados, pouco se conseguiu fazer de efetivo para
melhorar as condições de vida das populações dos países subdesenvolvidos,
percebe-se a diferença da dinâmica que vem se desenvolvendo em termos de
Política Internacional sob o atual governo. Essa dinâmica é, sem dúvida, nova,
e os valores que a inspiram compõem o arcabouço que dá sustentação àquele que
vem se definindo como Princípio da Não-Indiferença.
Conclusão
A História tem contribuído para que se desenhe, de tempos em tempos, às
populações de países marginalizados, um cenário no qual é possível tomar noção
das mazelas de sua existência e, assim, lançar-se em busca de voz e vez em um
contexto que lhes é hostil.
Durante o breve século XX este cenário foi esboçado algumas vezes ' nos anos 60
com a forte corrida pela independência nos continentes asiático e africano; nos
anos 70 com a tentativa de lançar as bases de um Direito Internacional do
Desenvolvimento, alicerçado sobre uma Nova Ordem Econômica Internacional ' sem
que, no entanto, emergisse dos rabiscos iniciais a grande obra final, capaz de
subverter a lógica de dominação que condena alguns países a mais completa
marginalidade.
Às portas do século XXI, esta oportunidade parece ser novamente oferecida. No
entanto, para que se possa vê-la como tal, é necessário analisá-la com olhos
despidos daquela concepção que rege a experiência ao alvedrio da vontade,
manipulando nossa compreensão e consequente atuação no mundo, nas engrenagens
de uma lógica que Boaventura chamou "indolente". Não basta, no entanto, que
conheçamos as inúmeras experiências alternativas que têm sido levadas a cabo na
vastidão deste planeta sem que elas possam ser consistentemente traduzidas à
nossa realidade, fazendo sentido no lugar que ocupamos e em relação às
urgências que enfrentamos.
Nesse sentido é que se pretendeu inserir o presente estudo, uma vez que traz à
tona uma experiência que se dá em uma região marginalizada do cenário clássico
das Relações Internacionais, e tem servido de inspiração para compreender os
novos mares pelos quais tem navegado a política internacional brasileira. Não
que as experiências sejam as mesmas, também porque elas respondem a urgências
distintas, de maneiras distintas. Mas o traço em comum que as liga está na
experimentação de fórmulas próprias e alternativas para problemas que já não
encontram resposta em lógicas hegemônicas que, não raro, são a própria razão da
existência das mazelas do mundo subdesenvolvido.
Na África, a Não-Indiferença vem responder à insuficiência de uma cultura
securitária baseada na Não-Intervenção para resolver dilemas que ultrapassam as
fronteiras e capacidades do Estado. Já no Brasil, a Não-Indiferença vem
legitimar uma atuação internacional que teve de ser refundada para melhor
responder às demandas de um continente em crise, onde não se pode mais ignorar
que não há desenvolvimento possível em meio à miséria e à desesperança.
De distinto entre as duas experiencias está o fato de que em territorio
africano a Não-Indiferença é inicialmente incorporada ao discurso dos
presidentes, para então ser institucionalizada no âmbito da Carta Africana e,
assim, viabilizar a intervenção. Esta lógica é invertida pela experiência
brasileira, onde o princípio vem conformar e legitimar uma prática que já vem
sendo adotada. O passo seguinte seria a institucionalização do Princípio. No
entanto, a transformação da práxis em Direito deve levar em conta aspectos que
definam sua abrangência e seus limites, para que assim, consiga-se delimitar
critérios de operacionalização da Não-Indiferença, de modo que ela possa
constituir-se em efetivo agente da solidariedade, e não apenas em mais uma bela
roupagem para a ingerência dos mais fortes sobre os mais fracos.
Este processo exige, no entanto, um longo caminho de amadurecimento e
consolidação, como intuiu Ricardo Seitenfus (2007):
Este Princípio dialoga para além do Estado, pois se dirige à Humanidade. Por
ser jovem, carece de uma teorização e de uma prática que o torne geral e
constante, para que se transforme em Direito. Se por um lado o conceito e a
juridicidade da não-intervenção estão consolidados, há um longo caminho a ser
trilhado até se consolidar como conceito e se tornar realidade o Princípio da
Não-Indiferença.