Crise e castigo: as relações Brasil-África no governo Sarney
Introdução
O período compreendido entre 1985-1990 teve como uma de suas principais
características o desafio de consolidação da democrática no país. Findo o
regime militar, o país se pôs à urgente demanda de recuperação de sua
normalidade institucional, à gestão de um novo ordenamento constitucional
(consagrado pela Carta de 1988) e à estabilização econômica. Nesse marco
temporal, a diplomacia brasileira viu-se acossada pelos impactos resultantes do
processo que levaria ao término da Guerra Fria e pelas restrições advindas da
crise da dívida externa. Já na década de 1990, tais constrangimentos
condicionam sensivelmente a formulação da política externa brasileira, que
passa a buscar uma nova sintonia num sistema internacional caracterizado pelo
fim do conflito Leste-Oeste e pelo veloz impacto da globalização econômica.
Ainda que se detecte que as premissas da ação diplomática do país tenham sido
mantidas, é forçoso reconhecer que ao Itamaraty foi imposta a necessidade de
estabelecer contato com novos atores e interesses sociais. Mesmo que
significativamente distante da atenção da mídia e da opinião pública, a
política externa passou a figurar como espaço das negociações político-
partidárias; no qual, as nomeações dos chanceleres Olavo Setúbal por Tancredo
Neves em 1985, e de Roberto de Abreu Sodré pelo presidente Sarney em 1986
representam nítidos resultados das negociações partidárias, que acabaram por
retirar do corpo diplomático a tradicional chefia do Itamaraty.1
Assim, com Olavo Egídio Setúbal (1985-1986) e, posteriormente, Roberto Costa de
Abreu Sodré (1986-1990) à frente do Ministério das Relações Exteriores, coube
ao governo José Sarney de Araújo Costa (1985-1990) a difícil tarefa de
recuperar a projeção internacional brasileira num contexto em que as pretensões
dos países em desenvolvimento por uma ordem econômica internacional,
fundamentada no direito ao desenvolvimento, mediante a cobrança coletiva do Sul
por recursos financeiros e tecnológicos, perderam força.
Paradoxalmente, nesse cenário profícuo para transformações e mudanças, observa-
se que as diretrizes tradicionais da política externa brasileira não chegaram a
ser significativamente alteradas. Ao contrário do que se registra nos processos
de mudança de regimes em outros países latino-americanos, como Argentina,
Uruguai ou Peru, no Brasil a política externa desenvolvida sob o período
militar é mantida em quase sua totalidade; registrando-se que o Itamaraty
buscou seguir atuando no plano internacional de acordo com as premissas
orientadoras da década de 1970.
Desse modo, observa-se que, ao longo do governo Sarney, a diplomacia brasileira
buscou agir em conformidade com os pressupostos básicos do regime militar. Como
atesta José Sarney em seu depoimento: "Não, eu não acho que houve ruptura
nenhuma [na condução da política externa], ao contrário nós tivemos foi um
avanço, uma adaptação."2 Assim, mesmo quando considerada a "diplomacia para
resultados", como ficou conhecida a política externa brasileira sob a gestão de
Olavo Setúbal, as análises reiteram a percepção de que inexistem fatores
consideravelmente importantes que atestem características de mudança de
orientação na diplomacia brasileira a partir da Nova República. Ainda que sob
regime democrático, a orientação externa veio convergir para as linhas de
atuação traçadas ainda no período militar pelo Itamaraty, que soube preservar,
sem maiores dificuldades, seu grau de autonomia, mantendo "[...] um
distanciamento progressivo dos constrangimentos enfrentados pelo Estado
brasileiro em seu esforço de reordenamento da ordem política e econômica do
país."3
Percepção igualmente endossada pelo depoimento de Marcílio Marques Moreira ao
considerar que a indicação de ministros não-diplomatas não chegou a favorecer
ou propiciar maior exposição do Ministério das Relações Exteriores ao jogo
político. Segundo Moreira: "Tanto Setúbal quanto Sodré, assim como a maioria
dos ministros anteriores que não eram da carreira, ouviam muito a Casa. E
tinham mais condições de defender o ponto de vista da Casa do que uma pessoa do
quadro, que, em geral, não tem projeção nacional."4
Por conseqüência, durante o governo Sarney, a diplomacia brasileira, na linha
do que já vinha sendo feito pelo Itamaraty durante o regime militar, guiou-se
pelos preceitos da coexistência e da cooperação com todos os demais membros da
sociedade internacional. Fato que explica o restabelecimento de relações
diplomáticas com Cuba, cuja coerência assenta-se sobre a vocação ecumênica da
política externa brasileira.
No tocante às relações do Brasil com o continente africano, entretanto, a
política externa do governo Sarney observou dificuldades em operar em estrita
consonância com o que havia sido desenvolvido no governo João Baptista
Figueiredo (1979-1985). Considerando a proposta metodológica apontada por
Hermann5, a seguir procura-se demonstrar, a partir da análise de indicadores
econômicos, bem como pelo depoimento de atores políticos envolvidos com a
temática, que as relações político-comerciais Brasil-África refletem ajustes
(adjustment changes) de agenda que desfavorecem o relacionamento Brasil-África.
O lugar da África no governo Sarney: continuidade e ajustes
De acordo com dois diplomatas diretamente ligados a sua execução, por um lado,
embora o governo Sarney tivesse uma política externa na qual buscasse atribuir
características próprias, ele não tinha uma política específica para o
continente africano. "A África não era uma prioridade para o [governo]
Sarney".6 Ainda que se reconhecesse a importância das relações Brasil-África,
ela era encarada como menos relevante no quadro geral da política externa deste
governo. Portanto, na gestão Sarney, as relações com o continente africano
guiaram-se por "[...] uma política muito mais focada na área de laços
culturais, de laços emocionais, de um passado.[...] Um lip service, como se
fala. Quer dizer, era um gesto que em relação à África."7
Nesse sentido, ainda que inexistam fatores suficientemente relevantes para se
atestar mudança significativa na condução da política externa brasileira para o
continente africano, pode-se perceber que, na gestão Sarney, ela perde o
destaque alcançado no governo predecessor, sofrendo ajustes que sinalizam sua
adequação aos objetivos gerais da nova gestão: adensamento e maior convergência
nas relações com os EUA e os países do Cone Sul, especialmente com a Argentina.
Objetivos que denotam o fortalecimento do processo de regionalização da
política externa brasileira.
No rol de modificações ou ajustes realizados, podem ser citados os esforços no
intuito de favorecer aspectos de interdependência entre o Brasil e países
africanos, particularmente com aqueles cuja Língua Portuguesa fosse o idioma
oficial - PALOP, por meio de uma política de valorização das identidades
culturais. Assim, em 1989, em São Luís, realizou-se o encontro dos Chefes de
Estado dos Países de Língua Português, tornando-se o embrião do projeto de
constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP. Nessa
reunião, em que estiveram presentes os chefes de Estado de Portugal, Angola,
Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, foram aprovados os
objetivos comuns que integrariam tais países no Instituto Internacional de
Língua Portuguesa, a saber:
a) promover a defesa da língua portuguesa, no pressuposto de que se
trata de patrimônio comum dos países e povos que a utilizam como
língua nacional ou oficial;
b) fomentar o enriquecimento e a difusão do idioma como veículo de
cultura, educação, informação e de acesso ao conhecimento científico
e tecnológico;
c) promover o desenvolvimento das relações culturais entre todos os
países e povos que utilizam o português;
d) encorajar a cooperação, a pesquisa e o intercâmbio de
especialistas nos campos da língua e da cultura;
e) preservar e difundir o Acordo Ortográfico já assinado pelos sete e
em curso de ratificação.8
Em paralelo, o governo buscou reforçar mecanismos, como o sistema de
countertrade, que garantissem o intercâmbio comercial entre os dois lados do
Atlântico.9 Ademais, buscou-se criar convergência em torno de questões
bilaterais e internacionais que expressassem aspirações mútuas de cooperação e
intercâmbio, o que indica uma preocupação em garantir interesses políticos e
econômicos brasileiros no continente africano. Assim, em 1988 o Brasil
alimentava três linhas de crédito com Angola: a de curto prazo, para
financiamento de bens de consumo (180 dias), que variava de US$ 50 milhões a
US$ 90 milhões; a de médio prazo, para os bens de capital (até 5 anos) que
variava de 60 a 120 milhões de dólares; e a terceira, específica para a
construção da hidrelétrica Capanda pela Odebrecht S.A., que absorveu recursos
superiores a US$ 1 bilhão.
Esses esforços de aproximação do Brasil com o continente africano durante o
governo Sarney passaram a convergir com as preocupações expressas pelos
parceiros da região, particularmente em relação à África do Sul e ao apartheid.
As dimensões de cooperação econômica viriam a se alinhavar à postura política
mediante a declaração de "nossa total condenação ao apartheide nosso apoio sem
reservas à emancipação imediata da Namíbia, sob a égide das Nações Unidas", na
XL Sessão da Assembléia Geral da ONU. Posição consubstanciada pela formalização
brasileira de sanções ao apartheidque incluíram: o veto à exportação de
petróleo e derivados, armas e munições, licenças e patentes, bem como, a
suspensão das atividades de intercâmbio cultural, artístico ou desportivo junto
ao Estado sul-africano (em 1985) e a simbólica condecoração (em 1987) do bispo
sul-africano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz e símbolo internacional da
resistência anti-racial.
Por tal perspectiva, ao longo do governo José Sarney pode-se constatar esforços
governamentais, ainda que limitados, no sentido de desenvolvimento das relações
Brasil-África. Também é importante salientar que a política externa do governo
Sarney demonstrou preocupação em assegurar a presença do Brasil no Atlântico
Sul, recolhendo apoio político do continente africano para transformá-lo, em
1986, pela Resolução 41/11, (e à revelia da representação Norte-americana, que
votou contra o projeto), numa Zona de Paz e Cooperação. A criação da ZOPACAS
tem um importante significado estratégico relevante, pois reverte
favoravelmente ao Brasil a função estratégica do Atlântico Sul. No contexto da
Guerra Fria, as marinhas sul-americanas receberam do governo norte-americano
equipamentos destinados prioritariamente a possíveis conflitos anti-submarinos
e à missão de auxiliar na defesa do Atlântico Sul contra uma suposta incursão
de submarinos soviéticos.10
Assim, ao se decidir pela exclusão do Atlântico Sul de um envolvimento militar
na disputa Leste-Oeste, ou mesmo de eventuais confrontações regionais,
sinalizando o repúdio à presença de armamento nuclear na região, o Brasil deu
um passo significativo para a redefinição das percepções estratégicas no Cone
Sul, já que implicaria menor influência da lógica da Guerra Fria no
condicionamento da defesa nacional.11
Elaborado pelo diplomata Antonio Celso Souza e Silva, o projeto de constituição
da ZOPACAS foi apresentado ao presidente Sarney que delegou ao Itamaraty a
responsabilidade de desenvolvê-lo em moldes, porém, mais modestos do que
originariamente formulado pelo diplomata; que vislumbrava a possibilidade de
constituição de um tratado à semelhança da Organização do Tratado do Atlântico
Norte, no qual o Brasil teria um papel de destaque na promoção de uma zona
desnuclearizada. As principais limitações ao projeto da ZOPACAS adivinham da
situação vivenciada pelos principais parceiros: Angola, que se encontrava em
guerra civil e África do Sul, sob regime do apartheid. Constituída pelos países
da costa ocidental da África e pelos banhados pelo Atlântico Sul, na América
Latina, a ZOPACAS teve como objetivo, ainda, o de servir de fórum capaz de
favorecer formas de integração e colaboração regional, um local em que o Estado
brasileiro vislumbrava a possibilidade de maximização de seus interesses no
plano atlântico. Sua criação conteria a estratégia da diplomacia brasileira no
que toca à preservação da condição já conquistada pelo Brasil no Atlântico Sul,
uma vez que intenta reforçar os laços do país com a África Subsaariana,
contrabalançando a influência argentina e sul-africana na região.
Retomada no governo Itamar Franco, a ZOPACAS ganha um sentido mais pragmático,
como tentativa de fortalecimento do papel do país na região; uma resposta do
governo às pressões norte-americanas de abarcar a região sul-americana em seu
projeto de integração hemisférica - inicialmente como uma ampliação do Nafta e,
posteriormente, com a proposta de criação da Alca. A ZOPACAS atendia aos
interesses do país no sentido de ampliar o espaço para a cooperação econômica e
comercial, propiciando a formação de mais uma zona de livre comércio;
possibilitando a cooperação nas áreas técnico-científica e iniciativas de
caráter político-diplomático sobre proteção ambiental desnuclearização e
solução de conflitos. Nesse período, findo o regime do apartheidna África
Austral, o relançando da ZOPACAS visa abrir um canal comum entre os países do
Cone Sul e os da região africana, particularmente com a África do Sul e Angola.
No primeiro caso, como destacam Hirst e Pinheiro:
Deve-se ressaltar a busca de cooperação na área tecnológica,
agropecuária e de combate ao narcotráfico e, principalmente, o
esforço da diplomacia brasileira, através de seu Departamento de
Promoção Comercial, de aproximar o empresariado dos dois países em
direção a empreendimentos conjuntos com base na crença de que a
África do Sul deverá liderar um processo de integração econômica no
continente, semelhante ao MERCOSUL.12
Já em relação a Angola, a atuação do Brasil caracteriza-se pelo reiterado apoio
em prol da pacificação do país, prestado inclusive por meio de apoio à
advertência apresentada pelo Conselho de Segurança da ONU (em julho de 1993) ao
líder da UNITA (Jonas Savimbi), com embargo a seu grupo, caso não abandonasse a
ação militar e respeitasse o resultado das eleições de setembro de 1992.
Posição, aliás, que o país mantinha em relação aos outros Estados africanos
desde a década de 60.
Economia internacional: os impactos restritivos
Depois de um período marcado por um visível dinamismo diplomático -
caracterizado pelo "pragmatismo ecumênico responsável", no qual se destacava
uma ativa política em direção a África e uma constante participação nas agendas
do mundo em desenvolvimento, que acompanhou a grande expansão do modelo de
industrialização e exportação de manufaturados dos anos 70, com forte
crescimento econômico -, as mudanças tanto de âmbito doméstico quanto externo
inferiram negativamente sobre a atuação externa brasileira. A política externa
do Brasil foi compelida a reagir às investidas do exterior, e, por não as poder
prever ou controlar, viu-se obrigada a assumir uma postura reativa e defensiva.
Considerando o contexto internacional e as ações até agora descritas, a análise
da política externa brasileira indica que a mesma passa a caracterizar-se pelas
categorias de marginalidade e "custo África". No que diz respeito à primeira
categoria, ela representa a percepção diplomática de que o país enquadra-se
numa condição marginal no sistema internacional em transição, particularmente
no que tange aos seus efeitos econômicos e comerciais. Como denuncia o discurso
proferido por Abreu Sodré perante XLI Sessão Ordinária da ONU:
No que respeita à equidade, à desejável redução do grande fosso entre
países ricos e pobres, vimos assistindo à paralisação quase completa
da cooperação econômica internacional. As iniciativas dos países em
desenvolvimento esbarram no imobilismo e mesmo na hostilidade dos
países desenvolvidos. Acentua-se, por outro lado, o protecionismo
comercial destes países, prática iníqua inclusive porque
incorretamente comparada com as medidas legítimas que os países em
desenvolvimento necessitam adotar protege sua nascente produção
interna. Há uma diferença indisfarçável entre um e outro
comportamento: um preserva a concentração de riqueza, sustentando
atividades não-competitivas, outro busca assegurar a sobrevivência
dos países mais pobres em sistema internacional injusto e
desequilibrado, que os obriga, inclusive, a acumular saldos
crescentes para o pagamento de seus compromissos financeiros
externos.13
O país, assim como o conjunto das nações latino-americanas, encontrar-se-ia
encurralado pela nova configuração econômica internacional.
Esmagados pelo peso da enorme dívida externa, vivem os países da região um
quadro de graves dificuldades, cujas repercussões internas se traduzem em
recessão, desemprego, inflação, aumento da miséria e violência. Apanhados por
uma conjunção viciosa de fatores econômicos - alta dos juros internacionais,
queda dos preços dos produtos primários e seletividade de mercados nos países
desenvolvidos - enfrentamos uma crise só comparável à que atingiu as economias
de mercado no início dos anos trinta.14
No processo de transição do regime militar, a Nova República herda o grave
problema da dívida externa, que debilitava sensivelmente o relacionamento
externo brasileiro. Sua renegociação coloca em xeque a própria capacidade do
país em, por um lado, obter novos prazos de vencimento do principal,
reformulando as condições gerais que regulam a dívida; e, por outro, ampliar as
exportações como meio da elevação do superávit comercial e combater o crescente
endividamento externo que desde o governo Figueiredo vinha comprometendo
sobremaneira as finanças e a própria margem de manobra internacional do país
(Tabela_1).
![](/img/revistas/rbpi/v51n2/a04tab01.jpg)
O tema da marginalidade também transparece ao se avaliar a percepção da
diplomacia brasileira sobre o diálogo Norte-Sul. Tradicionalmente pautado pela
articulação do Grupo dos 77, no contexto da bipolaridade Leste-Oeste, no
governo Sarney este diálogo adquiriu um tom dissonante em relação ao Sul. As
acusações do Norte quanto ao cumprimento dos direitos humanos, às pressões para
adesão ao TNP, combate ao narcotráfico, ao terrorismo, à imigração ilegal, aos
conflitos regionais e à democratização ditam a agenda e condicionam as
negociações internacionais do país que, no plano doméstico, ainda enfrenta a
densa e complexa tarefa de:
[...] transformar as estruturas jurídicas e institucionais
remanescentes do autoritarismo, convocar a Assembléia Nacional
Constituinte, canalizar e resolver as demandas sociais e políticas
recém liberadas, proceder ao ajuste econômico, enfrentar um
emaranhado de problemas sócio-econômicos, que iam da pressão da
dívida externa à inflação, do crescimento da pobreza absoluta ao
incremento dos problemas urbanos, da crise do abastecimento ao
progressivo desinvestimento que afetava a economia, dos problemas
ambientais que acabariam por concentrar a atenção internacional sobre
o Brasil à evidência dos problemas na área dos direitos humanos e à
pressão por resolvê-los.15
Nesse cenário, torna-se patente a opção brasileira pelo enfrentamento de temas
até então tidos como inegociáveis, o que indica sua preocupação em responder
positivamente às demandas políticas internacionais. A partir da segunda metade
da década de 80, o fortalecimento da hegemonia norte-americana e a
implementação da "agenda de valores hegemônicos universalmente aceita" abriram
novos contextos de vulnerabilidade para o Brasil, que se caracterizariam pela
adoção dos padrões internacionais de normas de proteção do trabalho, dos
direitos humanos, do meio-ambiente, dos inventos, dos consumidores, entre
outros. Estes foram somados a condicionamentos tradicionais, como os referentes
à segurança e à exploração da Amazônia.16
Reiterados os princípios de autodeterminação e não-intervenção, o governo
decide aderir aos Pactos Internacionais das Nações Unidas sobre Direitos Civis
e Políticos, à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
reconhecendo que: "A Declaração Universal dos Direitos Humanos é, sem dúvida, o
mais importante documento firmado pelo homem na História contemporânea." Por
conseqüência, compreende-se por que: "A nossa força passou a ser a coerência.
Nosso discurso interno é igual ao nosso chamado internacional. E desejamos,
agora, revigorar, com redobrada afirmação, nossa presença no debate das
nações."17 Portanto, o porquê de o país veio tornar-se signatário de vários
tratados internacionais que, até então, eram encarados com certa desconfiança e
apreensão.
Frente ao quadro, tanto setores governamentais quanto da sociedade civil
passaram a relativizar a importância das relações Sul-Sul, compreendendo que os
países do Terceiro Mundo encontravam-se em situação igualmente insatisfatória
do ponto de vista financeiro e comercial, tornando-se incapazes de suprir as
demandas nacionais para a ampliação das exportações. Percepção ratificada pela
análise da situação dos países em desenvolvimento ao longo do período em que,
imersos num processo de marginalização econômica entre as décadas de 1970 e,
mais substancialmente, na de 1980, registram uma retração na participação no
comércio mundial (tabela_2), ao mesmo tempo em que há um aumento expressivo do
endividamento externo (tabela_3).
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[/img/revistas/rbpi/v51n2/a04tab03.jpg]
No caso dos países africanos a situação é particularmente agravada pela
progressiva deterioração de sua capacidade econômico-financeira. Na região da
África Subsaariana, em menos de dez anos a dívida externa praticamente duplica,
registrando uma evolução da dívida total de 84 para 165 bilhões de dólares
entre 1980-1988, o que corresponde, respectivamente, à evolução do
comprometimento do PIB dos Estados da região de 31% para 67%. As relações
comerciais dos países africanos são igualmente afetadas, uma vez que o serviço
da dívida em relação à porcentagem das exportações salta de 10% para 21% no
mesmo período. Indicadores que se manterão negativamente expressivos até a
primeira metade da década de 1990 quando, como visto mais a frente, o cenário
econômico-financeiro da região começa a dar sinais de recuperação.
Dessa forma, apreende-se que a conjunção de variáveis de ordem doméstica e
externa põe em xeque a manutenção da política externa que vinha sendo
desenvolvida pelo país em relação ao Terceiro Mundo. Para o continente
africano, conseqüentemente, essa política externa vê-se sensivelmente abalada,
pois a desarticulação da lógica terceiro-mundista e dos postulados diplomáticos
nas suas articulações frente ao embate Norte-Sul inviabiliza parte da
legitimidade da ação diplomática que, mesmo não se declarando terceiro-
mundista, tinha na identidade com o Terceiro-Mundo um dos seus pilares básicos.
A partir de então, o Brasil passa a perder espaço no continente africano,
substancialmente em função dos problemas econômicos da maioria dos sócios
cultivados ao longo dos anos 70 e começo dos 80; pois vários países tiveram
problemas cambiais ou de estrangulamento do setor externo. Fato que acarretou a
perda de espaço brasileiro para países europeus, como é o caso de Portugal, por
exemplo, que rapidamente foi tomando espaço brasileiro em países como Angola.
Em conseqüência, o sistema brasileiro de trading companies, à base de comércio
barter, esgotou-se rapidamente.
A estes fatores agregou-se a percepção governamental de que os esforços do
governo deveriam ser concentrados no espaço Sul-americano. Desta forma, a
agenda do governo Sarney seria sensivelmente pautada pela idéia de integração
regional, o que levaria o Presidente a considerar que os olhares da diplomacia,
durante seu governo, voltar-se-iam para a América do Sul, em contraposição ao
espaço até então vislumbrado pelos governos predecessores no Atlântico Sul.
Assim, ao ingressar na segunda metade da década de 1980, o peso dos
condicionantes econômicos internacionais e a percepção governamental dessa
situação alteram negativamente as relações e perspectivas da política externa
nacional para o continente africano. Em boa medida porque, nesse contexto, a
persistência da crise no Brasil, contrastava com o rápido crescimento da
economia mundial, impulsionado pela recuperação dos países afetados pelos
choques do petróleo e pela dívida, bem como, pelo surgimento de novas áreas
dinâmicas entre os países em desenvolvimento - NIC's: Hong Kong, Coréia,
Cingapura e Taiwan (tabela_4). Os problemas econômicos brasileiros - tais como
a queda no ritmo de expansão, a falta de capacidade para corrigir os
desequilíbrios macroeconômicos e o agravamento do quadro social - dificultavam
a atualização e o aprimoramento de nossos vínculos com o contexto mundial.
[/img/revistas/rbpi/v51n2/a04tab04.jpg]
O país não consegue beneficiar-se desse novo dinamismo externo, sofrendo com a
incapacidade de ampliar sua participação nos fluxos de comércio e de
investimento externo, de financiamento e de tecnologia. Como demonstra a tabela
5, mesmo quando comparado com outros países latino-americanos, a participação
brasileira nos fluxos internacionais de investimento direto é nitidamente
reduzida, passando de cerca de 5,2% entre 1977-1980 para 3,31% entre 1981-1985
e menos de 2% e 1% , respectivamente, entre a segunda metade da década de 80 e
o início da década de 1990.
[/img/revistas/rbpi/v51n2/a04tab05.jpg]
Por conseqüência, a percepção governamental é a de que o crescimento
'generalizado' vivenciado no período militar se arrefece e se torna,
claramente, desigual. Alguns países crescem sensivelmente mais que outros e os
processos de diferenciação se acentuam. Entre as potências, consolida-se a
afirmação do Japão e da CEE, e com isso, o universo econômico torna-se
multipolar; também há crescente diferenciação no Terceiro Mundo, com a
distância entre os NIC's, os países africanos e os latino-americanos na década
de 1980.
Os dados descritos convergem para minar a sustentabilidade da política
brasileira em direção à África atlântica, sub-região com a qual o
relacionamento comercial brasileiro agora se via adversamente afetado em função
da crise que atinge a maioria dos países da África Subsaariana e pelo fim da
política de incentivos às exportações subsidiadas de bens e serviços pelo
Brasil. Após ter experimentado seu apogeu nos anos 1960-1970, em decorrência de
um conturbado período de crise política e econômica pelo qual o país
atravessava, o interesse brasileiro pelo continente africano na segunda metade
da década de 1980 encontrava-se em acentuado declínio; registrando-se que, no
curto período de 1985 a 1990, a participação da África na corrente de comércio
do Brasil decresce de cerca de 8% para 3%, no caso das exportações, e de,
aproximadamente, 13% para 3,0% nas importações (tabela_6).
[/img/revistas/rbpi/v51n2/a04tab06.jpg]
A crise econômica internacional que se registra neste período é particularmente
profunda na África, tornando os mercados africanos cada vez mais reduzidos. Com
a elevação das taxas de juros (de cerca de 3% a 4 % em 1973, para 22% a 23% nos
anos 80) decai significativamente o interesse comercial brasileiro pelo
continente africano. Nesse contexto, os países africanos sofrem intensamente
com os efeitos da dívida externa, a escassez de recursos para o desenvolvimento
e os rigorosos programas de ajustamento estrutural coordenados pelo FMI e pelo
Banco Mundial, que fragilizaram as economias africanas, reduzindo-lhes a
capacidade em ampliar o comércio exterior para os mercados do Sul.
A crise no comércio exterior africano é particularmente evidente. Embora se
registre que seu arrefecimento se dá ao longo da década de 50, é precisamente
entre as décadas de 1980-1990 que sua participação no fluxo internacional de
comércio diminui mais expressivamente (tabela_7) Tal fato repercute diretamente
na composição do fluxo de comércio, pois, a menor participação na corrente
internacional de comércio inibe a capacidade de absorção de novas tecnologias e
a própria eficácia e viabilização de projetos estruturais. Em conseqüência,
nesse período, percebe-se que as exportações e importações continuam a exibir
os típicos padrões coloniais de especialização: exportação de produtos
agrícolas e matérias primas minerais, o que inclui o petróleo, no caso de
alguns países; e importação de bens de capital, máquinas, bens manufaturados e
energia, largamente adquirida pela maioria dos países.
[/img/revistas/rbpi/v51n2/a04tab07.jpg]
Frente a esse cenário, e em meio às demandas comerciais e às dificuldades
financeiras enfrentadas pelo Brasil, depreende-se que o relacionamento com os
países africanos não é uma dimensão que possa ser privilegiada, mesmo por que
os Estados africanos não são capazes de favorecer um intercâmbio político e
comercial satisfatório. No quadro geral da política externa brasileira, a
manutenção das relações com o continente africano é percebida como
relativamente onerosa. Uma dimensão de baixa consistência para a projeção
internacional do país; um vetor externo caracteristicamente deficitário,
insuficiente. Nesse período, a crise que se impõe ao Brasil e particularmente à
África afeta as suas relações, implicando uma atenção diferenciada para o
continente africano, que deixa de ser uma região essencial para a promoção dos
interesses do país.
Com efeito, a categoria "custo África" engloba um contexto no qual se
identifica a conjunção de variáveis tanto econômico-comerciais quanto
políticas. No primeiro caso, ela se atrela ao arrefecimento da intensidade
comercial: ao longo do governo Sarney as relações comerciais Brasil-África
sofrem um retrocesso visível, levando os níveis de comércio retornarem aos das
décadas de 1950 e 1960. Já no início da década de 1990, o comércio do Brasil
com a África fica em torno de 3% das relações comerciais do país, após ter
alcançado níveis em torno dos 10% no início da década anterior.18 No plano
político, a categoria "custo África" engloba a percepção amplamente difundida,
e posteriormente consolidada, de que a insistência no relacionamento com o
continente africano teria um custo relativamente elevado para a política
externa brasileira. Com efeito, esse "custo" está associado à idéia de que as
lutas por libertação e a conquista das independências ocorridas entre as
décadas de 1960 e 1970 não lograram por fim a maior parte dos conflitos
vivenciados no continente africano.
Já na década de 1980, cristalizou-se a imagem de que os Estados da África, em
comparação ao seu período colonial, ainda seriam impressionantemente frágeis;
tanto quanto numerosos. Estruturados, em sua maioria, a partir de elites
étnicas, estes Estados eram considerados incapazes de gerar instituições
nacionais que assegurassem a aplicação e o cumprimento de leis e contratos. A
natureza do pacto social, expresso pela ordem constitucional e seus processos,
não resultara em níveis de coesão social capazes de garantir a paz em tempos de
crise. Fato que se ligava diretamente à prevalência do sistema unipartidário
que, sob qualquer forma e intento, fez proliferar o modelo de Estado de partido
único como fundamento de unidade e bem-estar social geral, frustrando as
expectativas criadas ao longo da descolonização, acarretando num processo
desenfreado de crises e desacertos.19 Sua adoção acarretou no patrimonialismo,
nepotismo, tribalismo e corrupção generalizada, minando o otimismo da era da
independência, propiciando intervenções militares cujos registros, com poucas
exceções, têm sido muito piores do que aqueles dos regimes que eles
substituíram.20
Conseqüentemente, os Estados africanos seriam pouco para não dizer quase nada
atrativos aos investimentos externos. Paralelamente, o deteriorar da situação
econômica veio contribuir para o aumento do fluxo de refugiados e migrantes,
agravando as condições de higiene, segurança e habitação. Nesse ambiente, o
continente africano transformou-se em palco para o crescimento desenfreado de
uma série de doenças, ainda que muitas delas totalmente passíveis de controle
(como poliomielite, sarampo, dengue etc.), fossem (e ainda são) capazes de
fazer milhões de vítimas a cada ano. Já no caso da epidemia de Aids, a situação
apresentou-se de forma mais assustadora, chegando ao ponto de afetar as
perspectivas demográficas em longo prazo em vários países.
A esse conjunto de indicadores associou-se a queda das receitas das exportações
tradicionais, ocasionada pela deterioração do preço das commodities, que
levaram ao atraso do pagamento e acúmulo das dívidas exteriores. Esse fato teve
como conseqüência a concentração dos HIPC (Heavily Indebted Poor Countries) no
continente africano. Entre as décadas de 1980 e 1990, dos 41 HIPC, 33
encontravam-se na África, registrando-se que, entre os 20 HIPC classificados
como em situação de endividamento insustentável, 16 localizavam-se na África
Subsaariana. A Tabela_8 fornece indicadores da gravidade do endividamento
externo destes países, cujo comprometimento econômico e financeiro tornou-se
claramente insustentável.
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Relações Brasil-África: o distanciamento progressivo
O baixo embasamento societário em plano nacional, expresso pela ausência
generalizada de conhecimento sobre a realidade africana, também contribuiu para
a depreciação das relações diplomáticas, colaborando para o distanciamento
progressivo do Brasil em relação ao continente. Com a exceção de algumas poucas
empresas de grande porte, mesmo no meio empresarial brasileiro a percepção
acerca das oportunidades comerciais ou sobre a economia dos países africanos
demonstrava-se superficial ou caricatural, noção que, de certa forma, até hoje
se mantém. Como atesta Pimentel:
Excluídas algumas grandes empresas, que procuram consolidar presença
no continente africano, o setor privado brasileiro não está
familiarizado com as diferenças entre os diversos países africanos,
tendendo a julgar a África como um todo em função dos aspectos
negativos ressaltados pela imprensa.21
A confluência desses indicadores, conseqüentemente, impossibilitou a
sustentação de uma política externa para o continente africano, nem mesmo se
conseguiu manter as bases que vinham sendo desenvolvidas sob o período militar.
Para um país que enfrenta a tarefa de consolidar o regime democrático, a
insistência no relacionamento com um continente mergulhado em crises político-
institucionais, como se configurava a África, na época, encontrava pouco apoio.
Em conseqüência, não foram continuados os programas de cooperação e perdeu-se,
desse modo, o ímpeto que se desejava em relação à África em termos de
iniciativas concretas, salvo, parcialmente, no tocante à África portuguesa e
como a Nigéria, parceiro comercial importante.
Em comparação com períodos anteriores, percebe-se que as relações Brasil-África
tornam-se cada vez menos relevantes. Ao fim dos anos 80, essas relações
traduzem um cenário marcado pela crise da dívida externa nos dois lados do
Atlântico, pelo arrefecimento do sistema bi-polar e posterior fim da Guerra
Fria, pelas mudanças políticas na África Austral, em particular pela
independência da Namíbia e início da implosão do apartheide pela revisão dos
parâmetros das relações Norte-Sul. Com a crise do endividamento no Brasil e nos
países africanos, inviabiliza-se a manutenção das linhas de crédito brasileiras
para os parceiros africanos. Ao mesmo tempo, observa-se, no plano das relações
bilaterais, o contencioso de dívidas não-pagas e o ônus, para o Brasil, da não-
renovação de antigas linhas.
Em conseqüência registra-se um afastamento do Brasil em relação aos parceiros
africanos.
Nesse cenário, a política externa brasileira para a África sofre
demasiadamente, pois sua manutenção, pelo menos nos moldes que vinha sendo
desenvolvida, vê-se comprometida até mesmo no âmbito diplomático. Nas palavras
de um embaixador, para a diplomacia, a política em direção ao continente
africano perde espaço e sua legitimidade passa a ser contestada.
A percepção em muitos setores é a de que, tanto política como comercialmente:
"A África é deficiente."22 No âmbito do Itamaraty, registra-se que poucos
membros, em particular "[...] os ex-funcionários do departamento de divisão da
África"23, mantêm o interesse naquele continente e insistem em sua relevância.
Mesmo assim, declara Alberto da Costa e Silva:
Houve um desinteresse crescente. [...] Essa crise econômica foi
acompanhada pela imensa crise política e de expectativas na África,
ou seja, ela, que era a expectativa dos anos 60, nos anos 80 passou a
ser um desastre, um continente sem solução na percepção do mundo,
especificamente para os brasileiros. Não valia a pena investir na
África. Angola, Moçambique estavam em guerra civil; Guiné-Bissau,
paupérrima; Cabo Verde, se pudesse, voltaria a fazer parte de
Portugal - que seria mais vantajoso para eles, pois grande parte do
dinheiro era dos imigrantes que vinham de Portugal e assim teriam
livre acesso, não precisariam de passaporte. Mesmo países até então
tranqüilos como a Etiópia e a Libéria, que eram os dois Estados
independentes mais antigos da África, entraram em crise, em processo
de ruptura. As elites da Libéria são destruídas. Ou seja, tínhamos um
cenário que não encorajava. Nossa política africana estava
agonizando; só não agonizou porque havia sempre no Itamaraty aqueles
abnegados que mantinham o fogo.24
A transição para a segunda metade dos anos de 1980 impõe ao Brasil e à África
dificuldades de todas as ordens. No Brasil, a situação não deixa de ser
aflitiva: entre 1975 e 1985 a dívida externa passa de US$ 21 bilhões para mais
de US$ 95 bilhões, observando-se que sua renegociação resulta em perda de
liquidez da economia, incapacitando o país de dar sustentação a sua política
comercial em direção ao mercado africano. Em tal situação, a ineficácia das
políticas convencionais proporcionou um ambiente profícuo para teses
heterodoxas; em que vários programas econômicos foram implementados sem sucesso
duradouro para a estabilização macroeconômica. Como resultado, já em 1986 o
volume das exportações para a África sofre uma redução significativa: de 7,9%
para 4,2% no total das exportações. Queda que irá acentuar-se ainda mais na
década de 1990, quando as exportações para o continente registram, entre 1992 e
1996, um quadro de estagnação, com resultados em torno de US$ 1,5 bilhão, valor
significativamente inferior ao alcançado em 1985.25
Com isso, a política externa brasileira ingressa numa tendência de concentração
de seus esforços para promoção das relações com países considerados
prioritários no continente africano, particularmente com os de língua
portuguesa e, posteriormente, com a Nigéria e a África do Sul, frente à
iniciativa deste em favor da superação do apartheid. Em todos os casos, a
prioridade dos relacionamentos se atrela a aspectos comercias e políticos.
A política em direção a África ajusta-se à percepção governamental de que sua
manutenção depende de um novo enquadramento, caracteristicamente mais pontual e
objetivo; o que implica seu redimensionamento. Uma vez constatada a limitada
capacidade dos parceiros africanos em dar retorno consistente e seguro às
demandas brasileiras, o Executivo adota uma postura de favorecimento e
incentivo de mecanismos que colaborem com o intercâmbio cultural entre o Brasil
e o continente africano. Em face das alterações observadas no plano
internacional, a política externa brasileira para o continente africano
orienta-se para a concentração e priorização das relações com os países de
língua portuguesa. Sinal disso é que, à exceção de São Tomé e Príncipe, todos
os demais países africanos de língua oficial portuguesa contavam com
representações brasileiras. Essas representações diplomáticas tinham por
objetivo fundamental manter a presença brasileira no continente africano,
consolidando um sistema de informações tanto de cunho político quanto econômico
sobre a região. Seu caráter estratégico e instrumental é nítido: o patrimônio
de herança africana, apontado no discurso diplomático como um dos parâmetros da
cultura brasileira, um importante valor nacional, como num fator de aproximação
com outros povos, torna-se um instrumento de aproximação da diplomacia
brasileira com os países africanos. Um capital político de valor intangível,
mas objetivamente utilizado no esforço de ampliação e promoção da imagem
internacional do país.
Conclusão
Considerando os objetivos deste trabalho, buscou-se demonstrar que as relações
Brasil-África durante a gestão Sarney caracterizam-se por um processo de
ajustes (adjustment changes), tal como proposto por Hermann, em que se verifica
a clara perda de importância dos parceiros africanos para a projeção
internacional do país. Contribuem para esse processo, de forma conjugada,
fatores econômicos e políticos. No primeiro caso, destacam-se a crise econômica
internacional, que afeta os países em desenvolvimento, particularmente os
Estados da África Subsaariana, e a conjuntura econômica doméstica adversa. No
espectro político, pesam as transformações por que passa a ordem internacional
e a clara perda da capacidade de articulação dos países em desenvolvimento - em
conseqüência, dos postulados que orientavam a diplomacia brasileira no âmbito
das relações Sul-Sul.
Por outro lado, a menor importância comercial não chegou a eliminar as
perspectivas da política externa brasileira para o continente africano. Se as
expectativas econômicas e comerciais se viram frustradas, o mesmo não se pode
dizer em relação ao lugar ocupado pelos PALOP e pelo próprio Atlântico Sul na
diplomacia brasileira. A instauração do IILP, em 1999, embrião da CPLP, nesse
sentido, não pode deixar de ser vistos como resultado de iniciativas do governo
Sarney que, em 1989, como visto, protagoniza o primeiro encontro dos Chefes de
Estado dos Países de Língua Portuguesa. Quanto ao Atlântico Sul, com a
constituição da ZOPACAS, ele passa a representar um espaço singular para a
projeção diplomática brasileira - um contexto geopolítico no qual o Brasil vê-
se particularmente capaz de atuar como protagonista e mediador entre os países
da América do Sul e os da África Subsaarina banhados pelo oceano.
Em todo caso, o cômputo geral das relações Brasil-África no governo Sarney
indica que foi atribuída a elas uma dimensão de menor relevância para a
inserção internacional do país, sobretudo quando comparada à gestão Figueiredo.
Considerando a capacidade de manutenção do processo de formulação e execução em
matéria de política exterior no âmbito do Itamaraty, deduz-se que esse fenômeno
não esteja relacionado propriamente à mudança de regime político ou
simplesmente à lógica das relações comerciais; mas à própria dificuldade de
leitura e resposta do Brasil aos constrangimentos externos que empurraram o
país e, com maior rapidez e intensidade, o continente africano, para uma
situação marginal no ambiente internacional.
Os ajustes realizados sobre a política externa brasileira para o continente
africano denotam, igualmente, o processo de reorientação em que ingressa a
diplomacia brasileira frente ao cenário internacional das décadas de 1980-90,
marcado pelo fim da polarização estabelecida por EUA-URSS e pela imposição de
um sistema internacional de caráter transitório imprevisível. Para o Brasil,
esse período reflete uma nova postura do país no que diz respeito à adesão a
regimes internacionais e arranjos cooperativos, em que a política externa em
direção ao continente africano passa a ter um "custo" relativamente elevado;
uma vez que, mesmo no âmbito diplomático, passa a ser questionada a capacidade
dos parceiros africanos em responder positivamente às demandas nacionais.
1 PINHEIRO, Letícia. Política Externa Brasileira, 1889-2002. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editores, 2004.
2 SARNEY, José. (José Ribamar Ferreira de Araújo Costa) Presidente da República
(1985-90). Entrevista concedida ao Núcleo de Pesquisa em Relações
Internacionais da Universidade de São Paulo. Brasília, 1999.
3 HIRST, Mônica; LIMA, Maria Regina Soares S. de. Crisis y Toma de Decisión en
la Política Exterior Brasileña: el Programa de Integración Argentina-Brasil y
las Negociaciones sobre la Informática con Estados Unidos. In: RUSSELL, Roberto
(org.), Política Exterior y Toma de Decisiones en América Latina. Buenos Aires:
RIAL/GEL, 1990, p. 64.
4 MOREIRA, Marcílio Marques. Diplomacia, política e finanças de JK a Collor: 40
anos de história por um de seus protagonistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001,
pp. 149-150.
5 HERMANN, Charles. Changing Course: When Governments Choose to Redirect
Foreign Policy. International Studies Quarterly, 34, Number 1, March, 1990, pp.
3-22.
6 COSTA e SILVA, Alberto da. Diplomata de carreira (aposentado). Entrevista
concedida ao autor. Rio de Janeiro, 2006.
7 BARBOSA, Rubens. Diplomata de carreira (aposentado). Entrevista concedida ao
autor. São Paulo, 2006.
8 COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA. Documentos - Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa. Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, 1999, 126 p.
9 Em síntese, o sistema de countertradeconsistia num instrumento de capacitação
e facilitação do comércio do Brasil com o continente africano, tendo o petróleo
como principal produto de troca. A ativação deste mecanismo pretendia
aperfeiçoar o potencial comercial e empresarial brasileiro no continente
africano, bem como nas incursões do país no Oriente Médio e América Latina,
garantindo-lhe certa margem de autonomia nos seus esforços de ampliação e
diversificação de parceiras. Para uma análise ver: OLIVEIRA, Henrique Altemani
de. Política externa brasileira e relações comerciais Brasil - África. Tese
(Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987. FONSECA, R. G.
da. A experiência profissional nas novas formas de comércio. In: Seminário
Countertrade e Alternativas Comerciais e Financeiras na Exportação. São Paulo:
Fundação Centro de Estudos do comércio Exterior, 1984.
SANTANA, Ivo de. Relações Econômicas Brasil-África: A Câmara de Comércio Afro-
Brasileira e a intermediação de Negócios no Mercado Africano. Estudos Afro-
Asiáticos, Ano 25, nº. 3, 2003.
10 VIDIGAL, Armando Amorim Ferreira. O Atlântico Sul: uma analise pós-guerra
fria. Escola Superior de Guerra, 1993. (mimeo).
11 SODRÉ, Roberto de Abreu. No espelho do tempo: meio século de política. São
Paulo: Best Seller, 1995, p. 321.
12 HIRST, Mônica; PINHEIRO, Letícia. A política exterior do Brasil em dois
tempos. Revista Brasileira de Política internacional. Ano 38, nº 1, 1995, p.
15.
13 SODRÉ, Ministro Roberto de Abreu. XLI Sessão Ordinária da Assembléia Geral
da Organização das Nações Unidas, 1986. In: In: CORRÊA, Luiz Felipe de Seixas.
(org.) O Brasil nas Nações Unidas 1946-2006. Brasília : Fundação Alexandre de
Gusmão, 2007, p. 467.
14 SARNEY, José. (José Ribamar Ferreira de Araújo Costa). XL Sessão Ordinária
da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, 1985 In: CORRÊA, Luiz
Felipe de Seixas. (org.) O Brasil nas Nações Unidas 1946-2006. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p. 453.
15 CORRÊA, Luiz Felipe de Seixas. A Política externa de José Sarney. In:
ALBUQUERQUE, J. A. G. (org.) Sessenta anos de política externa brasileira.
1930-1990. Crescimento, Modernização e Política Externa. São Paulo: Cultura/
Nupri-USP, 1996, p. 365.
16 VIGEVANI, Tullo; CORREA, Priscila Rodriguez; CINTRA, Rodrigo. Globalização e
Segurança Internacional: a posição do Brasil. In: DUPAS, Gilberto e VIGEVANI,
Tullo. (orgs.) O Brasil e as Novas Dimensões da Segurança Internacional. São
Paulo, Editora Paz e Terra, pp. 53-86, 1999.
17 SARNEY, José. (José Ribamar Ferreira de Araújo Costa). XL Sessão Ordinária
da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, 1985 Op. cit. p. 447.
18 SARAIVA, José Flávio Sombra. Do silêncio a afirmação: as relações do Brasil
com a África. In: CERVO A.L. (org.) O Desafio internacional: A Política
Exterior do Brasil de 1930 a nossos dias. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1994, p. 320.
19 SYLLA, Lanciné. Tribalisme et parti unique en Afrique noire. Paris: Presses
de la Fondation Nationale de Science Politique, 1977.
20 GROVOGUI, Siba N. A crise do Estado na África: desafios do pacto democrático
na África. In: COELHO, Pedro Motta Pinto, & SARAIVA, Flávio Sombra (org.)
Fórum Brasil-África: Cooperação e Comércio. Brasília: Instituto Brasileiro de
Relações Internacionais (IBRI), 2004.
21 PIMENTEL, José Vicente de Sá. Relações entre o Brasil e a África subsaárica.
Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 43, nº. 1, 2000, p. 10.
22 BARBOSA, Rubens. Diplomata de carreira (aposentado). Op. cit.
23 COSTA e SILVA, Alberto da. Diplomata de carreira (aposentado). Op. cit.
24 COSTA e SILVA, Alberto da. Diplomata de carreira (aposentado). Op. cit.
25 SANTANA, Ivo de. Notas e Comentários sobre a Dinâmica do Comércio Brasil-
África. Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília, v. 46, n. 2, p.
113-137, 2003.