Instituições, Direito e soberania: a efetividade jurídica nos processos de
integração regional nos exemplos da União Européia e do Mercosul
Introdução
No âmbito dos processos de integração regional, a construção de um arcabouço
normativo proveniente dos órgãos conjuntos de integração, apresentou, desde o
início, características próprias quanto à implementação de suas normas no
espaço territorial dos Estados. Mais especificamente, tem sido necessário
definir um tipo diferenciado de articulação desta nova "ordem jurídica" com os
distintos ordenamentos jurídicos nacionais, baseados no princípio tradicional
da soberania do Estado. Neste sentido, a efetividade do conjunto de normas
destinado a implementar os objetivos do acordo de integração depende, em grande
medida, de sua receptividade nos sistemas jurídicos nacionais. Tal constatação
refletiu-se na necessidade de desenvolver um mecanismo original de coexistência
entre a ordem jurídica destinada a normatizar o processo de integração regional
e os direitos nacionais.
A crescente importância das instituições na definição e no alcance do
desenvolvimento econômico de um determinado país ou região constituirá o
contexto teórico deste trabalho, que tem por objetivo analisar e discutir
determinadas questões provenientes desta nova configuração de relacionamento
entre distintas ordens normativas, sob a perspectiva da eficácia das
instituições jurídicas de integração para alcançar os objetivos desejados.
Após a delimitação do marco conceitual, serão inicialmente examinadas as
relações entre Direito nacional e o Internacional Público, formatadas sob a
égide da soberania dos Estados, tal qual expressa em suas Constituições
nacionais. Em um segundo momento, serão dispostos os elementos comuns a este
novo tipo de articulação entre ordenamentos jurídicos e posteriormente será
abordada a dinâmica da coexistência entre distintas ordens jurídicas na União
Européia e no Mercosul. Por último, as considerações finais remetem à
necessidade de repensar a soberania nos processos de integração regional, sob a
perspectiva da eficácia de seu ordenamento jurídico para alcançar o conjunto
dos objetivos desejados.
Instituições, desenvolvimento econômico e integração regional
Para a teoria econômica neoclássica, o equilíbrio numa economia e as variáveis
econômicas relevantes, tais como preços e produtos, podem ser explicados apenas
por si mesmos. Nesta perspectiva, o desenvolvimento econômico e a inserção
competitiva internacional de um determinado país ou região têm sido
habitualmente vistos sob a ótica das condições macroeconômicas. Fatores como
tamanho e crescimento do mercado, disponibilidade do fator trabalho e seus
custos, níveis de inflação e de endividamento externo e a situação do balanço
de pagamentos foram sempre considerados os principais indicadores de
desenvolvimento econômico e do grau de atratividade para projetos de
investimento internacional e comércio.
Deste modo, as variações das estruturas institucionais entre países ou regiões
integradas foram simplesmente desconsideradas ou tratadas apenas como fatores
secundários. No entanto, a evolução das teorias econômicas vem apontando para a
importância crescente do quadro institucional na definição do desempenho
econômico. Ou seja, a eficiência dos sistemas jurídico, político e
administrativo tornou-se essencial para determinar o grau de desenvolvimento
econômico, e impôs a análise do papel das instituições e seu impacto, como um
dos fatores chave para apresentar elementos de explicação das diferenças nas
taxas de crescimento e renda per capita entre os países.
Por "instituições" compreende-se um conjunto normativo orientado a determinados
objetivos e os instrumentos que garantam sua execução, para dirigir o
comportamento individual em determinada direção. Neste contexto, o trabalho de
North é fundamental para entender a relação entre mudança institucional e
desenvolvimento econômico1. Segundo este autor, as instituições devem ser
entendidas como sendo as regras do jogo, ou seja, são as restrições criadas
pela sociedade e que constituem a forma por meio da qual ocorre a interação de
seus membros. Sua função é reduzir a incerteza, ao proporcionar uma estrutura à
vida cotidiana, definindo e limitando o conjunto de escolhas dos indivíduos.
Assim, a eficiência dos mercados depende das instituições de suporte capazes de
definir e fornecer regras formais e informais de jogo para o seu funcionamento,
ocupando um lugar central na análise do processo de desenvolvimento econômico.
Na perspectiva da Teoria Neo-institucional, a Teoria Econômica do Direito
oferece um quadro de análise das instituições jurídicas, no qual estuda o
impacto do sistema normativo sobre o comportamento dos agentes econômicos e sua
repercussão sobre preços e quantidades de bens e serviços, tendo por objetivo a
eficiência na maximização da riqueza2. Seu fundamento está na concepção de que
o "mercado" é uma criação essencialmente jurídica, consistindo em uma série de
normas gerais, que permitem que potenciais compradores ou vendedores de bens ou
serviços entrem em contato entre si, com o objetivo de comerciar. Em sua
acepção mais ampla, tais normas são essencialmente as que definem os direitos
de propriedade sobre os ativos tangíveis e intangíveis (direitos reais e
direitos de propriedade intelectual), as que estabelecem o modo de celebração
de contratos e as obrigações decorrentes dos mesmos e as normas de
responsabilidade civil extracontratual, complementares a estas últimas nas
hipóteses em que se produzem relações entre agentes econômicos que não surjam
de um contrato3.
Neste sentido, as instituições em geral, e as jurídicas em particular, são
essenciais para a redução dos custos de transação e do grau de incerteza e
instabilidade das sociedades e economias4. Ou seja, instituições jurídicas
debilitadas afetam profundamente o desenvolvimento econômico, pois reduzem a
segurança jurídica, aumentam a incerteza e os riscos, terminando por
comprometer o planejamento de agentes privados, bem como as demais
instituições.
No quadro deste enfoque institucional de análise, a organização internacional
resultante de acordos de integração regional pode ser definida, como sendo uma
associação voluntária de Estados, dotada de órgãos permanentes, próprios e
independentes, encarregados de administrar os interesses coletivos e capazes de
expressar uma vontade juridicamente distinta da de seus membros5. Desta forma,
as decisões adotadas nas instâncias criadas para administrar o acordo, passam a
substituir as instâncias nacionais correspondentes, nas áreas em que o Tratado
Constitutivo reservou para as competências conjuntas. Consequentemente, a base
normativa que orienta o processo de tomada de decisões e possibilita a
previsibilidade de atuação à médio e longo prazos, deixa de derivar dos
governos nacionais e passam a estar vinculada às instâncias conjuntas. Neste
sentido, o debate sobre a eficiência das instituições jurídicas em processos de
integração regional, torna-se essencial para o sucesso de projetos conjuntos de
desenvolvimento.
No contexto da integração regional, situam-se dois grandes modelos
institucionais, o supranacional correspondente à experiência da União Européia,
e o intergovernamental, utilizado, com variantes, por todos os demais blocos
econômicos e pelo Mercosul em particular. A União Européia é jurídica e
politicamente caracterizada pela supranacionalidade, sendo sua contraface
econômica, uma união econômica e monetária, com a instituição de um mercado
interno e de uma moeda única (mesmo que nem todos os Estados-membro tenham
tomado o Euro como moeda). Já o Mercosul adotou o padrão intergovernamental
clássico para organizar sua estrutura institucional, mantendo nos seus Estados-
parte todo o controle do processo decisório, o qual necessita de consenso para
gerar qualquer tipo de decisão. Quanto à sua profundidade, o Mercosul encontra-
se no estágio de uma "União Aduaneira em implantação", traduzindo a dificuldade
de consolidação da zona de livre comércio e a constante perfuração da Tarifa
Externa Comum. No entanto, tal situação não impede, ou não deveria impedir, a
progressiva formação de uma política comercial comum correspondente à união
aduaneira. Adotando o pressuposto de que o estabelecimento de blocos de
integração regional é um dos elementos de estímulo à atividade econômica,
efetuaremos a seguir uma comparação entre a União Européia e o Mercosul quanto
à eficiência de suas respectivas estruturas jurídicas para a implementação das
normas comunitárias6.
Direito e Integração Regional7
Sob uma perspectiva qualitativa, a maior diferença entre um Mercado Comum e as
etapas anteriores da integração regional, Zona de Livre Comércio e União
Aduaneira, reside, em grande medida, na circunstância de que o Mercado Comum
não se restringe apenas ao livre acesso a mercados. Ou seja, deve garantir a
livre circulação de produtos e fatores produtivos, independentemente das
diversas normas nacionais que regulem a atividade econômica, como por exemplo,
padrões técnicos ou sanitários, de forma a permitir equiparação de concorrência
na oferta de produtos e serviços no mercado integrado. Este aprofundamento
torna imperiosas medidas de aproximação legislativa, o reconhecimento mútuo de
especificações nacionais, assim como uma normatização comum sobre concorrência.
Etapas de integração negativa tais como a eliminação das barreiras ao comércio,
devem ser complementadas por etapas de integração positiva, em especial a
harmonização de padrões técnicos, normas de defesa do consumidor e legislação
ambiental. O objetivo principal, portanto, é garantir a liberdade e a igualdade
das condições de concorrência ao diminuir as distorções do mercado ampliado.
Acordos de integração regional dão origem a organizações internacionais
destinadas a implementar a cooperação econômica, comercial e, eventualmente,
política, consideradas como objetivo principal do acordo. Em seu âmbito, são
criadas estruturas institucionais destinadas a administrar o processo
propriamente dito. Dependendo da profundidade da integração desejada, o
ambiente jurídico e institucional criado para gerenciar a implantação e o
desenvolvimento dos objetivos acordados, poderá ser mais ou menos intenso.
Desta forma, a Zona de Livre Comércio e a União Aduaneira, por serem menos
ambiciosas, podem manter um quadro meramente intergovernamental. No entanto, um
Mercado Comum, necessita de mecanismos supranacionais, que garantam a
instituição de um espaço econômico mais integrado. Neste sentido, os sistemas
intergovernamental e supranacional são expressões institucionais e jurídicas
das diversas formas de integração regional.
No caso das organizações intergovernamentais, sua estrutura, composição de seus
órgãos, âmbito de competências e sistema decisório, são geridos por formas
tradicionais do Direito Internacional Público (DIP), baseadas no principio da
igualdade soberana entre os Estados e não ingerência em seus assuntos internos.
A adoção de decisões da organização é efetuada por órgãos compostos por
representantes dos governos, que são designados por estes e sujeitos às suas
instruções. Utiliza-se a regra de unanimidade quando as decisões possuem efeito
vinculante e, principalmente, a eficácia das decisões é mediata, ou seja,
qualquer decisão adotada pela Organização deve ser executada pelos próprios
Estados-membro para que possa produzir efeitos na sua ordem jurídica interna.
Este desenho institucional corresponde, com algumas variantes e com exceção da
União Européia (UE), a todos os demais processos de integração regional.
Por sua vez, a supranacionalidade comunitária destaca a especificidade
institucional e jurídica do processo de integração europeu. Não existe uma
definição unívoca de supranacionalidade, a qual designa um novo tipo de
organização internacional, em que os Estados-membro não se encontram mais em
situação de absoluta igualdade, é permitida a ingerência em seus assuntos
internos e a relação entre a organização e os Estados deixa de ser de
coordenação e passa a ser de subordinação destes àquela. O resultado consiste
em uma transferência substancial de competências legislativas, executivas e
judiciárias por parte dos Estados em favor da organização.
Desta forma, dependendo da intensidade pretendida, o arcabouço jurídico
elaborado para normatizar as relações surgidas no interior do bloco será mais
ou menos sofisticado, ou seja, poderá ser tanto mais específico e autônomo em
relação ao DIP, quanto mais aprofundado seja o processo de integração. Tal
especificidade se manifesta particularmente nas relações entre este novo
ordenamento jurídico e os ordenamentos jurídicos nacionais. Neste caso, não se
utilizam mais as categorias tradicionais de relacionamento entre Estados, porém
um tipo diferenciado. Quanto mais supranacional e, portanto, com mais âmbitos
de soberania compartida ou de cessão de direitos de soberania, mais peculiar
será o arcabouço jurídico deste tipo de interação.
Soberania, Direito Internacional e Constituição
A tendência para a formação de espaços regionais integrados tem alterado o eixo
da discussão jurídica. As categorias tradicionais utilizadas tanto pelo Direito
Internacional Público quanto pelo Direito Constitucional, tornaram-se
insuficientes para explicar e, sobretudo, organizar as relações entre Estados
surgidas no interior de um processo de integração regional. O aparato
constitucional tradicionalmente utilizado pelos Estados para regulamentar sua
atuação no sistema internacional, apresentou limites de ordem conceitual e
procedimental para ordenar as relações intra-regionais. Neste sentido, torna-se
imperioso debater a extensão de conceitos fundamentais da Teoria Geral do
Estado e da Teoria Constitucional, tais como soberania e supremacia
constitucional, com o objetivo de permitir a abertura dos sistemas jurídicos
nacionais às normas externas. Nas próximas seções serão abordadas as relações
tradicionais entre Estados soberanos e Direito Internacional, bem como as
peculiaridades da Teoria Jurídica nos processos de integração regional.
Os Estados e o atributo da soberania
A questão envolvendo a soberania estatal surgiu a partir de meados da Idade
Média, no bojo da luta desenvolvida pelos Estados territoriais contra as
renovadas pretensões de suserania do Sacro Império e contra o exercício do
poder temporal pelo papado. A partir dos séculos XIII e XIV desenvolveu-se a
tese de que o senhor local seria um suserano não submetido a nenhum outro
poder, sendo este movimento rumo à autonomia em relação ao Império e ao papado
indispensável ao processo de formação dos Estados modernos. Mas é apenas a
partir de Bodin que a soberania constitui-se como elemento decisivo dos
atributos do poder de Estado. Neste sentido, sua teoria sustenta que a essência
do Estado é a unidade do poder, a qual transforma uma simples associação de
seres humanos em entidade estatal e implica o poder discricionário que o
soberano exerce sobre o conjunto de instrumentos normativos que coordenam o
convívio social em direção a uma sociedade juridicamente organizada.
Desde a Paz da Westfália, a soberania possui uma origem e finalidade políticas
tanto no âmbito interno quanto externo. Externamente, a soberania confere aos
Estados um poder que não admite subordinação a nenhum outro poder, mas que é
compartido por outros Estados soberanos, atores das relações internacionais e
sujeitos de Direito Internacional. Internamente, confere à autoridade na qual
está fundamentada (o príncipe, uma assembléia, o povo ou nação) um poder
absoluto, supremo, o qual subordina as demais vontades e exclui a competência
de qualquer outro poder similar.
Superada a fase da identificação entre o soberano e o Estado (l'état c'est
moi), a teoria democrática situa no povo o detentor da soberania do Estado,
cuja maior expressão jurídica é o Poder Constituinte. Esta tese remonta, sob o
ponto de vista histórico, às doutrinas contratualistas de cunho liberal,
segundo as quais a origem da sociedade e o fundamento do poder político,
estariam em um contrato que fosse a expressão do consenso da maioria dos
indivíduos8. Assim, a fonte final do poder legiferante do Estado é o povo,
motivo pelo qual é o único detentor legítimo do Poder Constituinte9.
Deste modo, o conceito de soberania que originalmente possui um conteúdo fático
vinculado às suas origens políticas e internacionais, é posteriormente
recepcionado como atributo jurídico nacional, onde significará a supremacia do
poder interno e a fonte de legitimidade do poder político, expressas no primado
absoluto da Constituição10. Juridicamente, portanto, a soberania interna
significa que no território do Estado a Constituição é suprema e apenas as
normas elaboradas pelo legislador nacional, ou as que por ele forem
reconhecidas como tal, são válidas.
Constituição e Direito Internacional
As respostas que o Direito Constitucional fornece ao convívio entre Estados,
vêm sendo elaboradas desde o início mesmo do Direito Internacional. Em especial
os três aspectos seguintes são relevantes na articulação de ambas as ordens
jurídicas, e que se manifestarão também nos processos de integração regional.
a) se as normas de Direito Internacional são de aplicação imediata no
âmbito interno dos Estados, ou se é necessária alguma norma nacional
que integre a norma internacional ao sistema jurídico nacional;
b) qual sua posição hierárquica dentro do ordenamento jurídico
nacional. Ou seja, caso haja conflito entre uma norma internacional e
outra nacional, a quem caberá a primazia;
c) o controle da constitucionalidade da norma internacional perante
as Constituições Nacionais.
Em relação ao primeiro aspecto, uma das principais diferenças entre o Direito
Internacional e a ordem jurídica interna, repousa no seu fundamento de
validade. O Direito interno é válido em virtude da vontade do legislador
nacional como expressão jurídica da soberania interna, enquanto o Direito
Internacional possui sua validade decorrente do consenso entre Estados
soberanos e Organizações Internacionais.
Para a teoria monista, Direito Internacional e Direito Nacional são subsistemas
de um único ordenamento jurídico, porém com distintos âmbitos de incidência.
Neste caso, não existe necessidade de ato complementar para que uma norma
internacional tenha validade interna. Já para a teoria dualista, Direito
Internacional e Direito Nacional formam ordens jurídicas separadas, sem contato
entre si. Para que uma norma internacional tenha validade no âmbito jurídico
interno, será necessário incorporá-la ao sistema jurídico nacional.
Para além do debate teórico, a prática tem demonstrado que as normas
internacionais não possuem validade imediata na ordem jurídica interna dos
Estados. A influência da ordem jurídica internacional sobre a nacional
necessita, portanto, de um ato suplementar, por meio do qual se possibilita a
abertura da soberania dos Estados em relação ao Direito Internacional. Para que
as normas internacionais possuam validade na ordem jurídica interna, elas devem
converter-se em normas nacionais, por um procedimento de transformação
específico, que lhes confere novo fundamento de validade e novos destinatários.
Por sua vez, a estrutura hierárquica das normas no interior de um sistema
jurídico está elaborada de acordo com princípios de validade e procedimento. A
Constituição possui a posição mais elevada, e o sistema como um todo está de
tal forma articulado que, na hipótese de conflito, a norma superior derroga a
norma inferior, e a posterior derroga a anterior11. Uma vez válida a norma
internacional dentro do sistema jurídico interno, está aberta a possibilidade
de conflito com uma norma nacional. Neste caso, a primazia dependerá da posição
hierárquica da norma internacional, a qual poderá ser incorporada entre um
amplo espectro hierárquico, que vai desde Lei Complementar (subordinada apenas
à Constituição e sem poder ser alterada pelo legislativo nacional), até Lei
Ordinária (a qual pode ser modificada por qualquer lei posterior), passando por
inúmeras variações nacionais.
Por último, como a Constituição é a expressão do Poder Constituinte, ela
encontra-se no ápice do sistema jurídico nacional, e todas as demais normas lhe
estão subordinadas. Esta conformação dos sistemas jurídicos nacionais em uma
pirâmide tanto mantém a legitimidade do sistema, quanto sua coerência interna.
A norma internacional incorporada deverá ser compatível com a Constituição e,
deste modo, sofrer seu controle de constitucionalidade. Se for considerada
incompatível, ela será declarada nula e não produzirá efeitos.
É importante observar quecaso nãocumpracom suas obrigações internacionais, o
Estado pode incorrer em responsabilidade, ou seja, vir a sofrer alguma sanção
por parte dos demais Estados celebrantes de um tratado ou integrantes de uma
organização internacional. Assim, caso uma norma internacional venha a ser
derrogada por outra lei nacional posterior, ou se um juiz declarar inaplicável
a norma internacional em virtude de sua inconstitucionalidade, este Estado
estará incorrendo em responsabilidade internacional, não importando quais sejam
suas considerações constitucionais de ordem interna12.
Direito e Ordenamento Jurídico dos Processos de Integração
É extremamente importante salientar que não existe uma teoria jurídica que
conceitualize o conjunto das relações entre o direito dos processos de
integração e os ordenamentos jurídicos nacionais. Por um lado, porque as
diferenças entre o sistema supranacional e o intergovernamental dificultam a
elaboração de uma tipologia única de conceitos. Por outro, porque o fenômeno da
integração regional é relativamente recente, e desta forma, ao contrário do
Direito Internacional tradicional, a formação das categorias destinadas a
coordenar este novo tipo de interpenetração de distintas ordens jurídicas,
ainda encontra-se em elaboração13.
De modo geral, o Direito emanado dos processos de integração regional, é
dividido em Direito Primário e Direito Secundário. Por Direito Primário,
entendem-se os Tratados Constitutivos e suas alterações. Por Direito
Secundário, as normas editadas pelos órgãos de integração, no exercício de suas
competências executiva, legislativa e jurisdicional. Em relação aos três
aspectos anteriormente citados, as soluções tradicionais tornaram-se
insuficientes e desenvolveram-se mecanismos diferenciados para conciliar o
ordenamento jurídico nacional com a nova realidade da integração.
Em relação à aplicabilidade da norma comunitária nos sistemas jurídicos
acionais, existem as seguintes possibilidades:
- Aplicabilidade mediata absoluta: a norma comunitária necessita
sempre de um ato interno de incorporação para que possa produzir
qualquer tipo de efeito na ordem jurídica nacional. Neste caso, não
existe diferença quanto à norma comunitária e a internacional.
- Aplicabilidade mediata moderada: dependendo do tipo de norma
comunitária, será ou não necessário um ato interno de incorporação.
Assim, a norma comunitária cuja incidência ocorre exclusivamente no
âmbito do Poder Executivo, possui aplicabilidade imediata. Já a norma
comunitária, que de alguma forma altere a ordem jurídica vigente,
necessita de um ato do Legislativo nacional para sua incorporação.
- Aplicabilidade imediata absoluta: a norma comunitária entra
diretamente na ordem jurídica interna dos Estados, sem necessidade de
qualquer ato de incorporação.
- Aplicabilidade imediata moderada: a norma comunitária determina
expressamente que deverá ser incorporada.
Por sua vez, a posição hierárquica do direito emanado dos órgãos de integração
regional dentro dos sistemas jurídicos nacionais pode ser a seguinte:
- Hipótese supranacional: a norma comunitária, tanto primária quanto
secundária, é superior à Constituição dos Estados e seus ordenamentos
jurídicos. Não pode ser modificada por nenhuma lei nacional anterior
ou posterior.
- Hipótese supralegal: quando as normas comunitárias são superiores
ao conjunto das leis do Estado, mas não à Constituição. Neste caso, a
norma comunitária não poderá ser contrária à Constituição, mas uma
vez considerada constitucional, não poderá ser alterada por nenhuma
norma nacional posterior, a não ser por uma alteração constitucional.
- Hipótese legal: quando a norma comunitária não possui posição
hierárquica definida, é incorporada mediante procedimento ordinário e
pode ser alterada por uma lei nacional posterior (mesmo que depois o
Estado responda pelos prejuízos causados).
E, por fim, o controle da constitucionalidade da norma comunitária talvez seja
o aspecto mais controverso e de difícil equacionamento nas relações entre ambas
as ordens jurídicas. A renúncia à verificabilidade da norma comunitária, em
especial da norma derivada, à Constituição nacional, tem exigido prodígios de
hermenêutica constitucional e abertura ao sistema jurídico comunitário. Neste
item apresentam-se três possibilidades:
- Renúncia total: Órgãos jurisdicionais singulares e Cortes
Constitucionais, abdicam do controle da conformidade da norma
comunitária, primária e secundária, à Constituição Nacional.
- Renúncia parcial: apenas as Cortes Constitucionais mantém a
possibilidade de efetuar o controle da constitucionalidade da norma
comunitária. Os órgãos jurisdicionais singulares perdem tal
competência
- Controle total: o conjunto do Poder Judiciário nacional mantém
intacta sua competência para efetuar o controle da
constitucionalidade da norma primária e secundária. Significa, por
exemplo, que uma norma comunitária emanada tanto dos Tratados
Constitutivos quanto dos órgãos decisórios conjuntos, poderia ter sua
inconstitucionalidade argüida perante qualquer juízo singular ou
colegiado.
Nas próximas seções serão abordadas as experiências supranacional e
intergovernamental de inter-relacionamento entre ordenamentos jurídicos
distintos, com o objetivo de analisar em que medida cada um apresenta respostas
e limites às tensões entre soberania e instituições na dinâmica da integração.
Direito nacional, Supranacionalidade e Direito Comunitário Europeu14
Como bem sublinhado por Bleckmann, desde seu início o Direito Comunitário
Europeu não se constituiu em Direito Internacional Público no sentido
tradicional do termo15. Ou seja, não formou um conjunto jurídico que possuísse
seu fundamento de validade nos mesmos critérios que regem a produção de normas
de Direito Internacional. A conseqüência mais importante desta linha de
raciocínio reside na afirmação de que o Direito comunitário primário não é mais
Direito Internacional. Ao contrário, trata-se de um Direito com dupla natureza,
que concomitantemente possui um caráter constitucional, aliado ainda aos
aspectos internacionais provenientes de suas origens nos Tratados
Constitutivos16. Frente ao silêncio normativo, os conflitos de articulação
entre as ordens jurídicas nacionais e a comunitária foram resolvidos, de forma
pretoriana, pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE)17. O
resultado foi uma estrutura jurídica inédita no histórico das relações entre
Estados, baseada nas seguintes características.
Inicialmente, a aplicabilidade imediata da norma comunitária, em especial de
Regulamentos e Decisões18, a qual dispensa a interposição legislativa nacional
para integrar-se ao ordenamento jurídico dos Estados-membro. Ao impor-se ao
Direito estatal por força e exigência de sua natureza, deve ser absolutamente
comum a todos os Estados, não podendo estes invocar razões de Direito
Constitucional para abster-se de fazê-lo e nem exigir mecanismos diferenciados
de internalizarão da norma.
Por sua vez, a primazia da norma comunitária decorre pela transferência, por
parte dos Estados-membro, de certas parcelas de sua soberania em favor da
Comunidade Européia19, apresentando-se em três níveis distintos:
a) não apenas o Direito Comunitário originário, mas também o derivado
possui a prevalência perante o Direito nacional;
b) em relação a leis nacionais anteriores à norma comunitária, esta
detém a primazia e revoga aquelas. Mas também leis nacionais
posteriores à norma comunitária já editada não são válidas;
c) a primazia das normas comunitárias incide também sobre as
constitucionais. Ou seja, o Direito Comunitário não necessita
coincidir com as Constituições nacionais e nem pode ser avaliado por
elas.
A reiterada imposição da primazia da norma comunitária sobre a nacional
condensou-se na quase que inevitável afirmação, por parte do TJCE, da natureza
constitucional do Tratado de Roma20. Independentemente da questão de saber se
os Tratados Constitutivos possuem os requisitos funcionais e materiais que os
possibilitem ser qualificados como sendo a Constituição da Comunidade
Européia,o certo é que as disposições normativas constantes nos Tratados
Constitutivos sobre o TJCE, os métodos por este empregados para o seu
desempenho e os princípios gerais que consubstanciam o exercício de suas
funções, são razões que justificam plenamente "o paralelismo ou equiparação que
a doutrina efetua entre o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e a
justiça constitucional nacional"21.
Tal questão, transferida ao terreno do controle jurisdicional do Direito
Comunitário, pode ser formulada do seguinte modo: o TJCE é o intérprete máximo
do sentido e extensão do TCE e da compatibilidade do direito comunitário
derivado. Para manter a coesão do Direito Comunitário houve, ao longo de todo o
processo de integração europeu, a renúncia, por parte dos Tribunais
Constitucionais nacionais, do controle da constitucionalidade da norma
comunitária, ou seja, da adequação do ordenamento jurídico comunitário às
Constituições nacionais. Em outros termos, o Direito Comunitário não necessita
coincidir com as Constituições nacionais e nem pode ser avaliado por elas.
Neste sentido, um exemplo paradigmático foi a posição adotada pelo
Bundesverfassungsgericht (BverfG)22, o qual com a sentença "Solange II",
renunciou ao exercício de sua jurisdição constitucional enquanto (Solange) o
Direito e o Tribunal de Justiça comunitário dispensarem o mesmo nível de
proteção aos direitos fundamentais que a Lei Fundamental de Bonn (Grundgesetz)
considera indisponível.
O denominado acquis communautaire (entendido como sendo o conjunto dos
princípios de lealdade comunitária e da boa-fé) impõe aos Estados a aceitação
do Direito Comunitário na sua íntegra, em seu atual estado de evolução e
independentemente das suas fontes (e assim incluindo os princípios elaborados
por via jurisprudencial, como é o caso do primado). Para tanto, grande parte
dos Estados efetuou alterações em suas Constituições, incluindo uma cláusula de
autorização geral para a delegação de poderes soberanos ou uma cláusula geral
de limitação da soberania estatal23:
Esta abertura constitucional possibilitou a criação de um quadro jurídico
específico, que garantiu o cumprimento das regras destinadas a implementar o
mercado comum, e posteriormente a união econômica e monetária, mesmo que à
revelia circunstancial de alguns Estados-membro ou de conjunturas políticas e
econômicas nacionais eventualmente contrárias à integração. Em sua trajetória,
portanto, a UE consolidou-se como um exemplo único de processo de integração
regional, que ao promover a livre circulação dos fatores produtivos e instituir
um mercado comum, dotou-se, simultaneamente, de um arcabouço jurídico e
institucional inédito na experiência constitucional e política internacional.
Direito nacional, Intergovernamentabilidade e Integração no Mercosul
Dificilmente o Tratado de Assunção pode ser interpretado como elemento
ordenador de uma estrutura jurídica independente e autônoma tal como ocorreu na
União Européia a partir do Tratado de Roma, tendo em vista as disposições sobre
a incorporação de normas aos sistemas jurídicos nacionais constantes no
Protocolo de Ouro Preto e sua ênfase no sistema intergovernamental24.
A este respeito podem ser feitas algumas observações. A primeira, relacionada à
complexidade do procedimento de incorporação. Conforme está previsto, a norma
editada pelos órgãos do Mercosul deve ser inicialmente incorporada de acordo
com a sistemática constitucionalmente prevista em cada um dos Estados-parte
para qualquer norma de Direito Internacional. A partir daí o procedimento se
desdobra, com sua obrigação de informar a Secretaria do Mercosul do ato de
incorporação, e posteriormente aguardar que a Secretaria comunique o anúncio da
incorporação da norma pelos quatro Estados. Somente então é que cada Estado,
individualmente, oficializa o ato por meio da publicação no respectivo Diário
Oficial para que o início da vigência ocorra, simultaneamente, 30 dias depois
da notificação pela Secretaria do Mercosul. Ou seja, este procedimento, por si
só, é bem mais complexo do que o habitualmente previsto para os Tratados em
geral.
Por outro lado, o art 42 POP determina expressamente a incorporação das normas,
"quando necessário", aos ordenamentos nacionais. A ausência da necessidade de
incorporação pode decorrer tanto do fato de que se trate de norma destinada
regulamentar o funcionamento interno do Mercosul, quanto da constatação de que
o Estado já trata do assunto em pauta em alguma norma nacional. Neste caso,
instaura-se a incerteza quanto à simultaneidade e uniformidade da incorporação,
na medida em que cada Estado poderá decidir, discricionariamente, sobre a
necessidade ou não da incorporação de determinada norma.
Concluído o procedimento de incorporação da norma, os Estados-parte possuem
distintas concepções quanto à sua posição hierárquica dentro dos respectivos
ordenamentos jurídicos nacionais25. A Argentina adota o sistema supralegal, o
qual prevê que o Congresso pode aprovar Tratados de Integração que deleguem
competências e jurisdição a organizações estatais, sob a condição de
reciprocidade e igualdade. Neste caso, as normas provenientes de tais
organizações possuem hierarquia superior às leis federais, quando forem
cumpridas as condições de reciprocidade, igualdade e respeito pela ordem
democrática e os direitos humanos26. O mesmo ocorre com a Constituição do
Paraguai, em que uma cláusula permite a participação do Estado em uma estrutura
supranacional, em "condições de igualdade com outros Estados e que garanta a
vigência dos direitos humanos, da paz, da justiça, da cooperação e do
desenvolvimento nos âmbitos político, econômico, social e cultural"27. Apesar
de ambos os países possuírem cláusulas de habilitação constitucional para a
integração, o texto argentino é mais amplo que o paraguaio, pois prevê a
situação hierárquica do direito derivado do Mercosul, o que não ocorre com a
Constituição paraguaia. Por sua vez, Brasil e Uruguai, adotam o sistema da
legalidade nas relações entre Direito Internacional e Direito nacional. Neste
sentido, as normas internacionais (quaisquer que sejam) não possuem um status
diferenciado, sendo que a norma posterior (qualquer que seja) derroga a norma
anterior (mesmo sendo uma norma de origem internacional).
Desta forma, apenas Argentina e Paraguai possuem dispositivos constitucionais
que viabilizam a abertura de suas estruturas jurídicas ao direito emanado do
Mercosul. No entanto, o fato das duas Constituições adotarem o princípio da
reciprocidade, exclui a adoção unilateral de medidas destinadas à incorporação
automática das normas Mercosul e de seu status hierárquico privilegiado, se os
outros Estados-membro do bloco não o fizerem. Tanto Brasil quanto Uruguai
mantém mecanismos constitucionais defasados em relação às necessidades de um
direito da integração, Argentina e Paraguai não se utilizam de seus próprios
dispositivos constitucionais se não houver a devida reforma constitucional nos
demais Países. Decorrente desta situação encontra-se o baixo índice de
incorporação da normativa Mercosul e, portanto, o não cumprimento das regras
destinadas a implementar o processo de integração, causando, consequentemente,
falta de efetividade e um impacto extremamente negativo à eficácia política e
econômica do Mercosul28.
Por sua vez, todos os Estados-parte mantém intactos seus sistemas de controle
da constitucionalidade da norma internacional, e, por conseguinte também, da
norma comunitária. Neste sentido, não é efetuada qualquer distinção entre as
normas de origem internacional e as de origem comunitária. Permanecem,
portanto, dois tipos de controle de constitucionalidade, o concentrado e o
difuso. Desta forma, tanto as Cortes Supremas, quanto os órgãos de primeira e
segunda instancias, podem manifestar-se sobre suposta inadequação da norma
Mercosul às Constituições nacionais. Neste caso, a manutenção do sistema difuso
é particularmente problemática. Considerando, no curso de um processo, que
determinada norma Mercosul seja inconstitucional, qualquer órgão judiciário
suspende a aplicação da norma até a manifestação definitiva do órgão
jurisdicional de recurso29. Instaura-se assim uma situação de descompasso
jurídico entre os Estados, pois uma norma Mercosul seria considerada
constitucional (aplicável) em um Estado e inconstitucional (inaplicável) em
outro.
As dificuldades doutrinárias e jurisprudenciais decorrentes do Direito Mercosul
podem ser sintetizadas nas contradições surgidas em duas sentenças de
diferentes órgãos jurisdicionais brasileiros. No primeiro caso, o Superior
Tribunal de Justiça - STJ qualificou como constitucional um dispositivo do
Mercosul inicialmente considerado inconstitucional pelos juízos de primeiro e
segundo grau. Na sentença proferida, o STJ argumentou que a suspensão judicial
da importação de arroz argentino e uruguaio, garantida pelo acordo de livre
comércio do Mercosul, estava provocando duas importantes conseqüências: a perda
de credibilidade da política externa brasileira e, principalmente, o
comprometimento da consolidação do Mercosul30. Neste caso, ficou evidente a
percepção de que, mesmo em um sistema intergovernamental, existe a necessidade
de mecanismos diferenciados de articulação das ordens jurídicas.
Contudo, em outra ocasião, o Supremo Tribunal Federal ao examinar a recepção e
aplicabilidade de uma norma do Mercosul, manifestou-se no sentido de que não
existe um verdadeiro direito comunitário, "já que as convenções celebradas sob
a égide do Mercado Comum do Sul qualificam-se no presente estágio de seu
desenvolvimento institucional, como instrumentos regionais de direito
internacional público"31. Ou seja, o problema, além do sistema
intergovernamental em si, reside no fato de que setores da doutrina e
jurisprudência não admitem a especificidade do Direito do Mercosul como um
Direito Comunitário ou da Integração, e, neste sentido, traduzindo
juridicamente um novo tipo de formatação das relações entre Estados.
Instituições, Soberania e Integração: algumas considerações
Na articulação entre os ordenamentos jurídicos nacionais e o comunitário
europeu, a renúncia ao controle da constitucionalidade das normas comunitárias
implicou, indiretamente, na renúncia à tese da soberania absoluta do povo tal
como expressa no Poder Constituinte. Ocorreu, portanto, um deslocamento da
fonte última do poder do Estado, não mais expresso nos preceitos
constitucionais internos, mas baseado num conjunto normativo supranacional, o
qual não possui (ainda) um mandato popular explícito para atuar de modo a
contrariar as Constituições nacionais. Por sua vez, a aplicabilidade imediata
da norma comunitária, vincula não apenas as instituições do Estado, mas também
as pessoas privadas. Ou seja, existe um conjunto de normas que não emana
exclusivamente do Estado e nem depende de sua vontade para vincular seus
destinatários. Por outro lado, a primazia do Direito Comunitário e o caráter
constitucional dos Tratados Constitutivos, constantemente reafirmados pela
jurisprudência do próprio TJCE, alçaram-no à condição de Tribunal
Constitucional supranacional. Portanto, se existe uma Constituição
supranacional e um órgão competente para interpretá-la e impor tal
interpretação aos destinatários, caracteriza-se a submissão dos órgãos do
Estado a uma fonte de poder que lhes é, efetivamente, exterior.
Por sua vez, a instabilidade jurídica do Mercosul reflete a diversidade de seus
objetivos, em especial a implantação de um verdadeiro Mercado Comum, com os
instrumentos institucionais meramente intergovernamentais, típicos de uma
simples Zona de Livre Comércio, sem maiores ambições integracionistas e sem
nenhum tipo de mecanismo de "soberania compartida". Ao manter o status quo
constitucional baseado na soberania nacional, este modelo tem provocado uma
série de problemas e impasses, tornando-se clara a necessidade de dispositivos
constitucionais específicos que permitam a abertura da ordem jurídica nacional
ao direito da integração.
O conceito tradicional de soberania do Estado sofreu profundas alterações desde
o fim da Primeira Guerra Mundial. Em especial, a soberania externa foi
subordinada às regras do Direito Internacional, caracterizado pela "igualdade
soberana entre Estados", porém sujeitos às regras válidas para todos. Neste
sentido, a soberania adquire um significado de independência em relação à
outros Estados, porém de dependência quanto às regras comuns32. Nesta
concepção, a transferência voluntária de parcelas de soberania a organizações
internacionais é perfeitamente possível, na medida em que não é mais viável a
autonomia ilimitada do Estado.
Mais complexa é a situação no interior dos Estados, caracterizada pela
soberania interna. O entendimento relacionado à superioridade das normas
constitucionais sobre as internacionais de qualquer natureza e a manutenção de
um espaço jurídico impermeável ao exterior, não decorre de uma posição
dogmática relacionada ao primado absoluto da soberania do Estado, tal como no
século XIX. Aqui, a questão está centrada no conceito de legitimidade do
ordenamento jurídico, já que o povo, detentor da soberania interna, se expressa
pelo Poder Constituinte e de seus representantes eleitos para mandatos
legislativos específicos.
No caso dos Estados-membro da UE, resta a questão de saber se atualmente a
unidade do poder do Estado já não foi em tal medida esgarçada no processo
supranacional de integração, que se torna necessário indagar por uma nova
configuração estatal. No entanto, tal como demonstrado pelo debate sobre a
Constituição Européia, a diluição total da soberania ainda está longe de ser
pacífica. O exemplo do Mercosul demonstra que mesmo no modelo
intergovernamental, existe a necessidade de um sistema jurídico com
características diferenciadas. A atual concepção de soberania interna e externa
é insuficiente para promover a integração supra-estatal e inserir sua ordem
normativa dentro da dogmática jurídica dos Estados-parte. A manutenção do
paradigma constitucionalista do inicio do século XX, e a ênfase na soberania
interna, tem ocasionado o descompasso entre as condicionantes da integração e
um quadro jurídico defasado.
Qualquer ordem econômica baseada no mercado está indissociavelmente vinculada a
um quadro jurídico confiável, que garanta contratos e proteja direitos33. Nesta
perspectiva, a importância do sistema jurídico no âmbito de processos de
integração regional é decisiva, na medida em que seu desenvolvimento econômico,
político e social, depende fortemente das diretrizes apresentadas pelas normas
destinadas a implementar a integração. Sob a ótica da eficácia de seu
ordenamento jurídico para alcançar os objetivos desejados, cada processo de
integração possui um componente de ordem política e não apenas jurídica. Neste
caso, o debate sobre soberania e integração deve incluir, também, o debate
sobre a manutenção da atual configuração dos Estados e os rumos de sua eventual
transformação.
1 NORTH, Douglass C. Institutiones, Cambio Institucional Y Desempenõ Econômico.
Traducción de Agustín Bárcena. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
2 COLLONA, German. Analisis Economico del Derecho. Buenos Aires : Ciudad
Argentina, 2001, p.12.
3 COLONNA, op.cit., p.19.
4 Os custos de transação são custos para descobrir os preços relevantes,
negociar, concluir e impor contratos, de informação, etc. e são influenciados
pelo "ambiente institucional" e pelo conjunto de atributos que afetam a tomada
de decisões.
5 VELASCO, Manuel Diez de. Las Organizaciones Internacionales. Madrid : Tecnos,
1995, p.37.
6 Nos limites deste trabalho, o termo "comunitário" é utilizado para adjetivar
os elementos decorrentes de qualquer processo de integração regional, tanto o
supranacional europeu, quanto os demais.
7 A expressão "integração regional" refere-se de forma geral a processos de
integração economica e cooperação entre Estados, de intensidade e objetivos
distintos.
8 As teorias contratualistas dos século XVIII consideram o Estado decorrente de
um contrato social de cada um com todos os outros, sobre um conjunto de
princípios fundamentais. Assim, o fundamento de legitimidade do poder político
reside na soberania do povo, que expressa um contrato entre iguais. Sob a
perspectiva jurídica, foi o Abade Sieyès que, ao efetuar a diferenciação entre
Poder Constituinte e Poder Constituido, possibilitou a concepção da
superioridade formal da Constituição sobre as demais normas.
9 Importa sublinhar o fato de que a experiência histórica afirma ser o povo o
único detentor legítimo do Poder Constituinte, mas não o único a exercer
efetivamente tal poder.
10 VIGNALI, Heber Arbuet. Derecho Internacional Publico. Temas de la Teoria
General. Santa Fé: Universidad Nacional del Litoral, 1996, p.17.
11 De acordo com critérios generalizados de solução de antinomias jurídicas,
"lex superior derogat legi inferior" e "lex posterior derogat legi anterior.
12 De acordo com o diposto no art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados entre Estados e Organizações Internacionais (1986): "Um Estado-Parte
de um Tratado não pode invocar as diposições de seu direito interno para
justificar o inadimplemento de um Tratado".
13 O que não impede que cada processo de integração regional conte com teóricos
aptos a refletir e sistematizar seu Direito Comunitário.
14 No momento da elaboração deste trabalho, o Tratado de Lisboa ainda não foi
ratificado, e, portanto, o Tratado da União Européia - TUE - e as normas dele
decorrentes não possuem, ainda, o mesmo status jurídico do direito proveniente
do Tratado da Comunidade Européia, considerado Direito Comunitário em sentido
estrito.
15 BLECKMANN, Albert. Europarecht. Das Recht der Europäischen Gemeinschaft.
5., neubearbeitete Auflage. Köln-Berlin: Carl Heymanns Verlag, 1995, p. 415.
16 O termo "Tratados Constitutivos" abrange o Tratado da Comunidade Européia
(Tratado de Roma) que cria a Comunidade Econômica Européia em 1957, os Termos
de Adesão e os Tratados que o modificam ou complementam, tais como
interpretados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.
17 O "ativismo jurisdicional" do TJCE reiteradamente enfatizou a
particularidade do projeto de integração europeu e do Direito Comunitário, e
sua diversidade em relação a outras Organizações Internacionais de cunho
intergovernamental e perante o Direito Internacional Público clássico.
18 Regulamentos e Decisões formam o núcleo dos temas mais importantes de
direito comunitário. Já as diretivas estão mais vinculadas à harmonização das
legislações nacionais, e necessitam de um ato nacional de incorporação.
19 Segundo jurisprudência do TJCE, iniciada com o caso Costa/ENEL de 1964 e
posteriormente reiterada através de inúmeras decisões no mesmo sentido
20 Os Verdes contra o Parlamento Europeu, de 1986, na qual o TJCE afirmou que,
"nem seus Estados membros e nem suas instituições podem subtrair-se ao controle
da conformidade de seus atos com a carta constitucional fundamental que é o
Tratado de Roma".
21 DUARTE, Maria Luíza. A teoria dos Poderes Implícitos e a Delimitação de
Competências entre a União Européia e os Estados-membro. Lisboa : Lex, 1997, p.
296 e 297.
22 Tribunal Federal Constitucional alemão.
23 A Alemanha configura o exemplo mais elaborado deste sistema, no qual o art
24, I da Lei Fundamental possibilita a transferência de poderes soberanos para
Organizações Internacionais, e a própria integração européia está prevista no
art 23.
24 O Protocolo de Ouro Preto (POP) de dezembro de 1994 deu início à implantação
da União Aduaneira e estruturou jurídica e institucionalmente o Mercosul.
25 Como sua adesão da Venezuela ainda não é definitiva, não será considerada
membro pleno neste artigo.
26 Artigos 75 e 22 da Constituicao Federal Argentina.
27 Artigo 145 da Constituicao do Paraguai
28 Sobre a incorporação da normativa Mercosul, ver CRISTINI, M; AMAL, M.
Investimento Direto Externo no Mercosul. O papel da Europa. Rio de Janeiro:
Konrad Adenauer Stiftung, 2006.
29 A maior parte dos sistemas sul americanos de controle difuso de
constitucionalidade concede ao juiz singular a capacidade de suspender a
aplicação da norma ao caso concreto, caso a considere inconstitucional.
30 STJ. Petição Nº 1273/RS. Registro Nº 2000/0040618-0.
31 STF AgRg 8.279/98. Voto do Relator, Ministro Celso Mello.
32DOERING, Karl. Allgemeine Staatslehre. Heidelberg : C.F.Müller, 2004, p. 117.
33 HERDEGEN, Matthias. Internationales Wirtschaftsrecht. München : C.H. Beck,
2007, p. 86.