Normas e redistribuição: um estudo sobre condicionantes internacionais das
políticas de combate ao racismo no Brasil
Introdução
Este artigo apresenta dois objetivos centrais. Em primeiro lugar, busca
desenvolver estudo de caso relativo aos canais de transmissão entre normas
internacionais e políticas redistributivas. Neste contexto, examina como o
reconhecimento e a exposição do Estado a normas e instituições internacionais
podem condicionar a implementação de políticas redistributivas no âmbito
doméstico. De acordo com a principal hipótese do estudo, a "abertura" do Estado
ao ambiente internacional pode alterar o equilíbrio doméstico entre coalizões
contrárias e favoráveis a políticas redistributivas, contribuindo - por meio de
distintos "mecanismos de transmissão" - para a superação de obstáculos
políticos à redistribuição.
Em segundo lugar, no artigo pretende-se discutir condicionantes e incentivos
internacionais à trajetória recente das políticas de combate à discriminação
racial no Brasil, no âmbito da discussão mais geral sobre a relação entre
normas internacionais e possibilidades de redistribuição. Tem sido amplamente
documentada a presença de desigualdades raciais significativas no Brasil, cuja
moderação requereria a implementação de políticas baseadas em dois modelos
fundamentais: enfoques repressivos e valorizativos1; ou políticas de ação
afirmativa, que apresentariam natureza compensatória e redistributiva. O estudo
de caso tem como objeto particular as políticas implementadas no período 1995-
2005, o qual se caracterizaria por relativa continuidade no sistema político
doméstico, em particular no que toca às preferências do Poder Executivo
relativas ao objeto de estudo.
Para fins de apresentação, o artigo está dividido em cinco seções: a) normas
internacionais e políticas redistributivas: teoria; b) as normas internacionais
de combate à discriminação racial; c) breve histórico da política brasileira de
combate à discriminação racial; d) a política brasileira de combate à
discriminação racial entre 1995 e 2005; e) conclusões.
Normas internacionais e políticas redistributivas: teoria
As políticas redistributivas têm sido objeto de atenção considerável no âmbito
das literaturas teórica e empírica da economia política. A "economia política"
da redistribuição enfatiza o peso de determinantes de natureza política - e
mais especificamente, de natureza eleitoral - sobre a dimensão e o alcance de
programas governamentais de características redistributivas.2 Embora demonstre
como a implementação de políticas redistributivas pode defrontar-se com
obstáculos expressivos, dependendo de composição política entre os interesses
de grupos sociais beneficiados e prejudicados, tal literatura se limita à
consideração dos condicionantes domésticos de políticas redistributivas.
O impacto de normas internacionais sobre as possibilidades domésticas de
implementação de políticas redistributivas é tema cujo exame se ampara na
conjugação de dois padrões de construções teóricas: modelos de interação entre
os ambientes doméstico e internacional; e modelos que detalham os efeitos de
normas e de instituições internacionais sobre processos tanto sistêmicos como
domésticos.
Característica marcante da produção teórica em relações internacionais, em
particular nas últimas duas décadas, tem sido a construção de modelos que
buscam integrar as dinâmicas políticas nos âmbitos doméstico e internacional.
Os modelos de "variância residual" buscam integrar a política doméstica a
teorias fundamentalmente sistêmicas; nestes modelos de equilíbrio parcial, a
política doméstica tende a ser representada como variável interveniente que
introduz "variância residual" em torno das previsões usualmente decorrentes de
pressões sistêmicas. Em contraste, os "jogos de dois níveis" baseiam-se em
modelos de equilíbrio geral que examinam a interação estratégica entre fatores
domésticos e internacionais.3
Por outro lado, a busca de maior compreensão sobre o significado e o impacto de
normas e instituições internacionais resultou na elaboração de três distintos
conjuntos de modelos teóricos: a) modelos que estudam os impactos de
instituições sobre a estrutura de incentivos com que se defrontam os Estados;
b) modelos que estudam os impactos sobre a estrutura de representação com que
se defrontam os atores domésticos; e c) modelos que examinam os impactos das
instituições sobre a própria estrutura de identidade de Estados e de atores
domésticos.
O primeiro grupo de modelos - vinculados à teoria dos "regimes internacionais"
- ressalta os impactos de normas e de instituições sobre os incentivos que
condicionam a atuação de atores internacionais, em contextos de
interdependência estratégica, particularmente no tocante à definição das
possibilidades de cooperação no sistema interestatal.4
O segundo grupo de modelos ressalta que normas internacionais teriam impacto
primário sobre a "estrutura de representação" de grupos domésticos, afetando a
forma como são condicionadas e agregadas as preferências de atores domésticos e
são definidas as preferências coletivas. Neste contexto, normas internacionais
facilitariam a remoção de obstáculos a determinados resultados e criariam
incentivos a que grupos governamentais e privados domésticos busquem "pontos de
apoio" internacionais a seus interesses específicos. Na busca de tais "pontos
de apoio", os grupos domésticos buscariam, sobretudo, reforçar sua posição
relativa no jogo político doméstico, o que se aplicaria tanto a atores estatais
- que, na posição de "iniciadores" de políticas públicas, teriam interesse em
minimizar "pontos de veto" domésticos - como a grupos privados potencialmente
beneficiados pela internacionalização de determinados processos políticos.5
O terceiro grupo de modelos ressalta que normas e instituições internacionais
teriam impactos fundamentais sobre a "estrutura de identidade" de Estados e de
grupos domésticos, afetando a forma como são constituídas as preferências de
atores sociais. Teorias de inspiração sociológica - a Escola Inglesa e a
abordagem construtivista das relações internacionais - constituiriam o núcleo
central de contribuições a ressaltar o efeito "constitutivo" das instituições
internacionais.
A consideração dos três grupos de modelos permitiria a identificação de três
mecanismos principais de influência das instituições internacionais sobre
atores sociais, estatais e não-estatais: a) contratação - interação que permite
melhoras a todas as partes negociantes, sem a piora de qualquer parte (melhoria
no sentido de Pareto), por meio da manipulação de incentivos; b) coerção -
interação que torna possível piora de bem-estar para algumas das partes
negociantes, sobretudo em cenários de conflito distributivo, por meio da
manipulação de sanções e do exercício de restrições externas; c) persuasão -
interação que permite mudanças no ordenamento de preferências dos atores, a
partir de novos modelos de compreensão intersubjetiva.
A apreciação teórica da relação entre instituições internacionais e política
redistributiva - que implica presença e identificação de grupos "perdedores" e
"ganhadores" no jogo político doméstico - pode beneficiar-se com particular
intensidade dos insights provenientes dos modelos relativos às estruturas de
representação e de identidade. Para tanto, deve reconhecer que, ao se ampararem
em normas internacionais, atores domésticos freqüentemente buscam reforçar sua
posição no jogo doméstico; ao mesmo tempo, deve superar a dicotomia entre os
motivos específicos das duas categorias de atores - estatais e privados -, por
meio de síntese analítica que reconheça a possibilidade de formação de
coalizões domésticas entre atores estatais e grupos privados.
De acordo com esta perspectiva, baixas intensidade e freqüência de políticas
redistributivas não necessariamente refletiriam preferências do "Estado",
podendo antes constituir o resultado de equilíbrio político, no plano
doméstico, que bloqueia sua implementação. Neste cenário, a presença de normas
e de instituições internacionais pode ser fator decisivo para assegurar a
prevalência da coalizão "redistributivista", com vistas a superar tanto "pontos
de veto" à implementação de políticas públicas.
O impacto de normas/instituições internacionais sobre o jogo doméstico seria
observado a partir dos canais de contratação, persuasão e coerção, mencionados
anteriormente, e a partir de um quarto canal, denominado de mobilização. Tal
canal contemplaria a possibilidade de que "pontos de apoio" internacionais
podem revelar-se decisivos para a configuração relativa de coalizões domésticas
favoráveis e contrárias a determinadas políticas públicas. Ainda que tenha
ocorrência limitada no tempo - caso, por exemplo, associada à realização de
conferências -, a afirmação de normas/instituições internacionais pode gerar
momentum político que viabiliza a prevalência (ainda que temporária) de
determinada coalizão no jogo político doméstico. Neste contexto, possibilitaria
a implementação de políticas que, na ausência de tal "impulso mobilizador", não
seriam politicamente viáveis.
Naturalmente, o alcance e os impactos de tais canais e mecanismos de
transmissão dependeriam de diversos parâmetros: sensibilidade das preferências
estatais à pressão internacional; graus de organização das coalizões domésticas
e de acesso ao processo decisório; e custos "sistêmicos", de "audiência" e de
"reputação" associados ao descumprimento de normas internacionais. Tais
elementos conformariam distintas possibilidades de equilíbrio, entre as quais
se destacariam: a) "integração plena", situação em que a abertura ao ambiente
internacional se traduz em incentivos consistentes para a implementação de
políticas redistributivas no âmbito doméstico - tal resultado estaria associado
à existência de significativa pressão sistêmica pela adesão a normas
internacionais, bem como de elevados graus de organização da coalizão doméstica
pró-redistribuição e de permeabilidade do processo decisório a pressões
internacionais; b) "integração incipiente", situação em que a abertura ao
ambiente internacional não gera incentivos suficientemente fortes para a
implementação de políticas redistributivas internas - tal resultado seria
associado à existência de elevados custos para o exercício da ação coletiva
internacional, bem como de graus limitados de organização da coalizão doméstica
pró-redistribuição e de permeabilidade do processo decisório a pressões
internacionais.6
Normas internacionais e combate à discriminação racial
A implementação de políticas domésticas de combate à discriminação racial tem
um de seus pontos de apoio na existência de normas e instituições
internacionais que buscam prevenir e eliminar a ocorrência do racismo.
Pode-se argumentar que tal ambiente normativo já se traduzia em pressão
internacional entre os anos 60 e 80, ainda que de forma menos intensa do que
aquela observada no período posterior. Dois fatores foram fundamentais para a
conformação de tal quadro, sendo o primeiro o processo de descolonização, que
possibilitou a emergência de número significativo de atores internacionais,
sensíveis ao racismo em virtude de sua experiência histórica, e cuja atuação
foi favorecida pelas possibilidades de barganha estratégica abertas pelo
conflito Leste-Oeste. O segundo fator foi a visibilidade alcançada pela questão
em decorrência do regime de apartheid na África do Sul, que atraiu o repúdio
sistemático da comunidade internacional, a ponto de possibilitar a aprovação,
no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de um regime de sanções
contra o país nos anos 70.
Embora se observem indícios de pressão sistêmica, os meios de pressão
internacional ainda apresentavam limitações significativas. Observa-se evolução
gradual dos instrumentos à disposição da comunidade internacional a partir de
1970, quando é estabelecido o "Procedimento 1503" da CDH - mecanismo de exame
confidencial de denúncias de violações de direitos humanos. A partir dos anos
80, observa-se proliferação de instrumentos extra-convencionais de proteção dos
direitos humanos, com a criação de uma série de relatores por país - com
mandatos de monitoramento da situação dos direitos humanos em países
específicos -, e de relatores temáticos - com mandatos de monitoramento de
direitos específicos em todo o mundo. O tratamento das denúncias de violações
passa por transformações no âmbito da CDH - com o recurso crescente a
procedimentos públicos -, e são criadas instâncias de diálogo com organizações
não-governamentais nos principais organismos internacionais. Em síntese, no
período ocorreu a construção gradual de uma estrutura de pressão da comunidade
internacional em prol da proteção dos direitos humanos.
Em termos específicos, o imediato pós-segunda Guerra Mundial ensejou o empenho
da comunidade internacional na criação de instrumentos e na convocação de
conferências destinados a combater o racismo. Os delitos de natureza racista
cometidos pelo regime nazista teriam constituído inspiração inicial para a
construção de estruturas institucionais e normativas, no âmbito das Nações
Unidas, destinadas a combater o fenômeno, processo que ganhou impulso com o
movimento de descolonização.7
Teve importância central a adoção pela Assembléia Geral das Nações Unidas
(AGNU), em dezembro de 1965, da Convenção Internacional sobre a Eliminação da
Discriminação Racial, em vigor a partir de 1969. Vários de seus artigos
reproduziram elementos já presentes na Declaração Universal das Nações Unidas
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de novembro de
1963. Tanto a Declaração como a Convenção procuram definir o fenômeno da
discriminação racial e estabelecer compromissos dos Estados - nos planos
político, legislativo e administrativo - de combate ao problema. Para os
propósitos do artigo, apresentam particular interesse os dispositivos - nos
artigos 1º e 2º - que estimulam a adoção de ação afirmativa em defesa de grupos
em situação de inferioridade no âmbito das sociedades nacionais.8
A Convenção cria mecanismo de supervisão das obrigações - o Comitê para a
Eliminação da Discriminação Racial (Cerd) - com funções de: a) assessoramento e
supervisão, por meio do exame periódico das medidas implementadas pelos Estados
com vistas ao cumprimento de suas obrigações; b) conciliação, para casos objeto
de queixas interestatais; e c) investigação, relativa a queixas ou comunicações
individuais, nos casos de Estados que tenham opcionalmente reconhecido a
competência do Cerd para receber e examinar tais queixas.
O período compreendido pelas décadas de 1970 e 1980 também foi marcado por
intenso exercício de convocação de conferências e de estabelecimento de
compromissos, os quais definiram as bases do soft law a regular a atuação dos
Estados na matéria. Em 1972, a AGNU proclamou a Década de Ação para o Combate
ao Racismo e à Discriminação Racial, procurando mobilizar a comunidade
internacional por meio de ações nos planos nacional, regional e internacional.9
A constatação de que os objetivos da Primeira Década não haviam sido plenamente
alcançados levou a Assembléia Geral a proclamar a Segunda Década de Ação para o
Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, prevendo uma série de iniciativas
- entre 1983 e 1992 - nos campos educacional, de proteção de minorias e de
combate ao apartheid.10
Em 1978, realizou-se em Genebra a Primeira Conferência Mundial para o Combate
ao Racismo e à Discriminação Racial, ocasião em que se aprovou Plano de Ação
prevendo iniciativas nos planos nacional e internacional. A Segunda Conferência
Mundial para o Combate ao Racismo e à Discriminação Racial também se realizou
em Genebra, no ano de 1983, e procurou avaliar as atividades realizadas no
período 1973-1983, formulando medidas específicas nos campos do combate ao
apartheid, da educação e treinamento, dos meios de comunicação, da promoção dos
direitos de minorias e da implementação de instrumentos internacionais.
A análise das declarações políticas e dos planos de ação aprovados permite
delinearem-se alguns elementos adicionais que caracterizam o tratamento do tema
durante o período. Em comparação com instrumentos aprovados em período mais
recente, percebe-se que aqueles documentos confeream peso especial a ações - de
natureza assistencial ou estrutural - a serem implementadas no plano
internacional. O programa de ação da Primeira Conferência apresenta, por
exemplo, 19 parágrafos dedicados às medidas a serem adotadas no plano
internacional, em comparação com 14 parágrafos que descrevem as medidas
relativas ao plano nacional.
A ação internacional proposta compreendia vertente "assistencial", composta
tanto por mandatos específicos para órgãos e agências especializadas das Nações
Unidas, como por medidas de natureza financeira - de que é exemplo a idéia,
apresentada no Programa da Primeira Década, de que a "Assembléia Geral deveria
estabelecer um fundo internacional em bases voluntárias para auxiliar os povos
em luta contra a discriminação racial e o apartheid ". A vertente "estrutural"
apresentava características distintas, já que, em nome do combate ao racismo,
ecoava propostas de ações redistributivas no plano mundial, como o
estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional, caracterizada nas
duas conferências como um "importante meio de combate às causas que geram o
racismo e a discriminação racial".
Observam-se características distintas no período que tem início nos anos 90. A
Terceira Década de Ação para o Combate ao Racismo e à Discriminação Racial foi
proclamada em 1993, mesmo ano em que se realizou a Conferência de Viena sobre
os Direitos Humanos e foi designado Relator Especial da CDH sobre Formas
Contemporâneas de Racismo e Discriminação Racial. A Terceira Década apresentou
visão mais ampla do fenômeno do racismo, à luz dos acontecimentos que estavam
gerando transformações significativas na realidade internacional11.
Tal tendência manifestou-se com particular intensidade na Terceira Conferência
Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul, em 2001. A
Declaração e o Plano de Ação aprovados na Conferência de Durban apresentam
enfoques distintos e introduzem novos temas nas considerações relativas ao
racismo. Em particular, altera-se o peso relativo das iniciativas de combate ao
racismo a serem implementadas nos planos nacional e internacional, conforme o
diagnóstico de que
"... os obstáculos para superar a discriminação racial e alcançar a
igualdade racial residem, principalmente, na ausência de vontade
política, na inexistência de legislação eficiente, na falta de
estratégias de implementação e de medidas concretas por parte dos
Estados" (parágrafo 79).
Confere-se destaque à necessidade de implementação em nível nacional de
políticas e legislação adequadas, com atenção particular a medidas positivas em
favor das vítimas de racismo. Tais políticas especiais ou positivas são
detalhadas, incorporando objetivos como
"... o alcance de representação adequada nas instituições
educacionais, de moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos, no
emprego, especialmente nos serviços judiciários, na polícia, exército
e outros serviços civis".
A alteração de peso relativo é sentida, por exemplo, no capítulo do plano de
ação relativo às medidas de prevenção, educação e proteção, que apresenta 82
parágrafos sobre medidas a serem adotadas no âmbito nacional e 9 parágrafos
sobre medidas no âmbito internacional.
O tratamento internacional do combate ao racismo a partir dos anos 90 aponta,
portanto, tendências de ampliação das normas relativas ao ordenamento doméstico
e às políticas no âmbito interno, em detrimento de normas relativas a
transformações estruturais no sistema internacional. À luz da evolução do
quadro normativo internacional, as próximas seções analisam a implementação de
políticas contra o racismo no Brasil.
Breve histórico da política brasileira de combate à discriminação racial
O exame da relação entre ambiente internacional e a formulação de políticas
públicas de combate à discriminação racial no Brasil permite a identificação de
dois períodos distintos. O primeiro compreenderia as décadas de 1960, 1970 e
1980, podendo-se adotar como marcos os anos de 68 - quando o Brasil ratifica a
Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial -, e 88 - quando é adotada
uma nova Constituição. Pode-se argumentar que a relação entre os cenários
internacional e doméstico criou condições para que o país se encontrasse, no
tocante à questão racial, em situação de "integração incipiente" ao ambiente
normativo internacional.
Conforme ressaltado na seção anterior, os meios de pressão internacional ainda
apresentavam limitações significativas, ainda que gerassem incentivos
sistêmicos para a adesão ao ambiente normativo. Por outro lado, a realidade
doméstica no Brasil seria caracterizada por barreiras no estabelecimento de
canais regulares de diálogo entre governo e sociedade - com dificuldades de
auto-organização, por parte dos grupos domésticos, e de acesso institucional ao
processo decisório - e por baixo custo interno de descumprimento das normas
internacionais.
O Brasil efetivamente assumiu obrigações e compromissos internacionais no
período: a) apoiou a proclamação, em 1963, da Declaração das Nações Unidas
sobre a Eliminação da Discriminação Racial; b) assinou, em 1965, a Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação Racial, ratificada em 1968; c) assinou a
Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), concernente à
Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão (1968), assim como a Convenção
Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1968); e d)
participou, em 1978 e 1983, das I e II Conferências Mundiais de Combate ao
Racismo.
No entanto, tal foi uma adesão matizada, na medida em que partiu das premissas
de que haveria democracia racial no país, de que a mestiçagem seria vocação
peculiar brasileira, de que a escravidão teria trazido benefícios ao país, e de
que no Brasil não haveria conflitos raciais. À época, o Movimento Negro já
procurava denunciar o "mito" da democracia racial. Embora sua organização e
eficácia de atuação somente se tenham consolidado durante os anos 80, com a
construção de espaços de atuação no âmbito do Estado12, o movimento já estava
em processo de reorganização na década de 1970.13
A combinação entre tais desdobramentos refletiu-se nas características das
poucas iniciativas de combate à discriminação racial adotadas no período, que
privilegiaram enfoques repressivos e valorizativos, em detrimento de políticas
de ação afirmativa.
A partir da redemocratização, foram esboçadas as primeiras iniciativas
especificamente voltadas para a promoção da igualdade racial. O governo
estadual de São Paulo criou, em 84, o Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra, com o objetivo de formular políticas de
valorização da população negra, experiência seguida da criação de diversos
conselhos estaduais e municipais. Ainda nos anos 80, o Patrimônio Histórico
tombou símbolos da cultura negra, como a Serra da Barriga, sede do Quilombo dos
Palmares, em Alagoas, no ano de 86. Também se registram a proclamação do dia 20
de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, como o Dia Nacional da
Consciência Negra, e a fundação do Memorial Zumbi.
O ano de 88 representa marco no tratamento da questão racial, uma vez que a
Constituição Federal estabeleceu parâmetros para o combate à discriminação
racial no Brasil. Contribuição fundamental da Constituição foi a criminalização
do racismo, reforçada por leis infraconstitucionais posteriores - como a Lei
no. 7716 (89), que definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor,
e a Lei no. 9459 (97), que estabeleceu a punição dos crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.
Em fins da década de 1980, observa-se transição rumo ao segundo período,
marcado pelo progressivo estabelecimento de novo padrão de relação entre
ambiente internacional e políticas domésticas de combate ao racismo. Como
exemplo, pode-se assinalar a criação da Fundação Cultural Palmares, em 1988,
fato expressivo ao representar, no âmbito do Executivo Federal, instituição com
mandato especificamente direcionado para os interesses da população negra,
inicialmente circunscrito ao plano cultural. A transição rumo à conformação de
novos princípios e políticas de combate ao racismo no Brasil intensificou-se
nos anos 90 e tornou-se plenamente visível no período 1995-2005.
A política brasileira de combate à discriminação racial entre 1995 e 2005
O período que tem início em 95 caracteriza-se pela mudança de titularidade no
Poder Executivo, bem como pela intensificação de iniciativas e políticas com o
objetivo de combater a discriminação racial, o que obedece a duas ordens de
fatores.
O primeiro fator consiste na mudança das posições oficiais do Governo
brasileiro sobre a discriminação racial. Já no discurso de posse do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, o governo brasileiro reconheceu oficialmente, pela
primeira vez, a existência de preconceito e de discriminação racial no país, e
salientou a necessidade de interlocução política com o Movimento Negro.14 As
preferências governamentais no período podem ser apreendidas a partir de
documentos como discursos e entrevistas. Tais fontes revelam o interesse
governamental em promover a igualdade de oportunidades no país - inclusive por
meio do exame das experiências adotadas nos Estados Unidos -, com o intuito de
gerar "oportunidades quase compulsórias para compensar os desequilíbrios
sociais e as discriminações existentes"; ainda não se observam, contudo,
propostas explícitas de ação afirmativa no início do período.15 Também se
depreende dos documentos a noção de que a implementação de políticas de ação
afirmativa encontraria forte resistência no âmbito da sociedade brasileira - em
entrevista, o Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou não ser contrário a
políticas de ação afirmativa, salientando que as mesmas se defrontariam com
resistência significativa na sociedade brasileira.16
O segundo fator ressaltado seria o grau de organização já alcançado à época
pelo Movimento Negro. Tal fator se tornou evidente com a realização da "Marcha
Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida", em novembro de
95, com a participação de dezenas de milhares de pessoas, e resultando em
documento com diagnóstico sobre o racismo e programa de ações. No conjunto de
reivindicações então apresentadas, já se destacavam propostas de ação
afirmativa, como o estabelecimento de incentivos fiscais às empresas que
adotassem programas de promoção da igualdade racial, o desenvolvimento de ações
afirmativas para acesso à universidade e a cursos profissionalizantes, e a
promoção da representação proporcional dos grupos étnicos/raciais nas campanhas
de comunicação do governo.
Também se deve destacar a criação, por decreto presidencial, do Grupo de
Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População
Negra) - vinculado ao Ministério da Justiça -, na mesma data da Marcha Zumbi
dos Palmares. Proposto no âmbito do governo, a partir da mobilização de setores
do Movimento Negro, entre os objetivos do Grupo se incluíram propor ações de
combate à discriminação racial e estimular ações da iniciativa privada. O
formato do GTI - colegiado de representantes da sociedade civil e do governo -
representou novidade, uma vez que possibilitou a emergência de canal
institucional de diálogo direto do Movimento Negro com o governo. Em 1998, o
GTI População Negra apresentou seus principais resultados à presidência da
República, propondo iniciativas inclusive na área de políticas afirmativas, com
atenção particular aos campos de educação, mercado de trabalho e comunicação
social.
Paralelamente à instalação do GTI População Negra, o Ministério da Justiça
lançou o I Programa Nacional dos Direitos Humanos (I PNDH), em 96, o qual
apresentou tópico especificamente destinado à população negra. Ao estipular
metas para as ações de combate ao racismo, o I PNDH faz alusão explícita ao
desenvolvimento de ações afirmativas, entre as quais: a) estimular a presença
de grupos étnicos diferenciados em propagandas institucionais contratadas pelo
governo; b) apoiar as ações da iniciativa privada que realizem discriminação
positiva; e c) desenvolver ações afirmativas para acesso à universidade e a
cursos profissionalizantes.17
Ao mesmo tempo em que a abertura do Estado à sociedade civil se traduziu em
pressão "de baixo", a adesão do Estado brasileiro ao regime internacional de
promoção e proteção dos direitos humanos favoreceu cenário de pressão "de
cima", com vistas à atuação mais incisiva do governo no combate ao racismo.
Neste contexto, observou-se a adesão do país aos principais tratados
internacionais de direitos humanos, além da Convenção para a Eliminação da
Discriminação Racial: Convenção para a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher, em 84; Convenção contra a Tortura, em 89; Convenção sobre os Direitos
da Criança, em 90; e Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 92. Tal movimento fortaleceu-se
com o reconhecimento da competência contenciosa da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em 98, e a definição de um novo padrão de diálogo e de
relacionamento com os mecanismos extra-convencionais de monitoramento dos
direitos humanos. O Brasil intensificou o diálogo com tais mecanismos,
recebendo visitas de relatores especiais - como os Relatores Especiais sobre a
Tortura, sobre o Direito à Alimentação, e sobre Execuções Sumárias ou
Arbitrárias -, e estendendo-lhes, no ano de 2001, convite permanente (standing
invitation) para visitas ao Brasil.
Em 92, organizações sindicais de trabalhadores denunciaram, à Organização
Internacional do Trabalho (OIT), a existência de discriminação racial no
mercado de trabalho brasileiro, denúncia a que o Ministério do Trabalho e
Emprego procurou reagir por meio de medidas. A partir de 95, o ministério
iniciou parceria com a OIT - por meio do Programa para a Implementação da
Convenção 111 - para a adoção de políticas de combate à discriminação no
mercado de trabalho. Em 96, decreto presidencial criou, no âmbito do MTE, o
Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação
(GTDEO), de composição também múltipla (representantes governamentais, de
trabalhadores, de empregadores e do Ministério Público do Trabalho), e com a
missão de elaborar plano de ações. Um de seus desdobramentos foi o lançamento,
em 97, do Programa Brasil, Gênero e Raça, que resultou na implementação, nas
Delegacias Regionais do Trabalho, de Núcleos de Promoção da Igualdade de
Oportunidades e de Combate à Discriminação no Emprego e na Profissão.
Em 93, o Brasil apoiou a proclamação da "Terceira década para a eliminação do
racismo e da discriminação Racial", no âmbito da AGNU. Na mesma ocasião, apoiou
a criação de relatoria especial sobre as formas contemporâneas de racismo,
discriminação racial, xenofobia e intolerância, no âmbito da CDH. O relator
Maurice Glélé-Ahanhanzo visitou o Brasil em 95, a convite do governo
brasileiro, e apresentou relatório e críticas sobre a situação racial no Brasil
à CDH, em 96.
A abertura ao ambiente internacional também se manifestou no plano do
relacionamento do Brasil com o Comitê para a Eliminação da Discriminação
Racial. Em 1996, o governo brasileiro encaminhou relatório consolidado ao
Comitê18. Em sua apreciação do documento, o Cerd considerou como insuficientes
as medidas até então adotadas pelo Governo brasileiro, sublinhou a necessidade
de que o Brasil desenvolvesse indicadores para avaliar as políticas de proteção
dos direitos de pessoas vulneráveis, e recomendou ao governo brasileiro fazer a
declaração facultativa de reconhecimento da competência do Cerd para tramitar
denúncias de violações no Brasil dos direitos cobertos na Convenção.19 A
assinatura da declaração facultativa ocorreu em 2002.
A partir de 2000 - quando tem início a preparação da participação do Brasil na
Conferência de Durban -, podem-se observar indícios de que o Brasil estaria em
situação de "integração plena" ao ambiente normativo internacional. Na
seqüência da mobilização relacionada à conferência, passam a ser implementadas
diversas medidas de ação afirmativa. Não se observara, anteriormente,
equilíbrio político favorável à sua implementação, a despeito de tais medidas
estarem previstas na Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial e nos
instrumentos internacionais subseqüentes, e de contarem com o apoio do
Movimento Negro e de setores do Executivo brasileiro.
O processo de preparação para Durban resultou em significativa mobilização da
coalizão doméstica favorável à ação afirmativa, em decorrência tanto da
publicidade conferida ao tema como, principalmente, da criação de outros canais
de acesso ao processo decisório. Em setembro de 2000, foi criado o Comitê
Nacional para a preparação da participação brasileira em Durban - composto por
representantes do governo federal, da sociedade civil, da Câmara dos Deputados
e do Ministério Público Federal -, com o mandato de definir as posições
brasileiras a serem defendidas durante a Conferência. Com o intuito de
subsidiar as atividades do Comitê, foram realizados encontros e conferências em
todo o país.
Tal processo culminou na realização, em julho de 2001, da Conferência Nacional
contra o Racismo e a Intolerância, com a presença de 1.700 delegados no Rio de
Janeiro. Na ocasião, foi aprovada a "Carta do Rio" - conjunto de propostas que
subsidiariam o Relatório do Brasil à Conferência de Durban. Conferiu-se
destaque a propostas de ação afirmativa "que possibilitem a superação e o fim
da reprodução de práticas e políticas socialmente discriminatórias"20, nas mais
diversas áreas, incluindo a adoção de cotas em universidades, em cargos
comissionados do serviço público, na publicidade oficial federal, nos concursos
públicos, nas executivas partidárias e na mídia.
As propostas tiveram ressonância significativa no Relatório do Comitê Nacional
para Durban, o qual apresentou revisão das medidas antidiscriminação adotadas
no país, bem como diagnósticos e propostas de ação para o combate ao racismo.
No conjunto de propostas, deve-se assinalar "a adoção de medidas reparatórias
às vítimas do racismo, da discriminação racial e formas conexas de
intolerância, por meio de políticas públicas específicas para a superação da
desigualdade", as quais deveriam contemplar "medidas legislativas e
administrativas destinadas a garantir a regulamentação dos direitos de
igualdade racial previstos na Constituição de 1988, com especial ênfase nas
áreas de educação, trabalho, titulação das terras".21
Logo após Durban, o estabelecimento de canais de acesso ao processo decisório
ganhou novo ímpeto com a criação, em outubro de 2001, do Conselho Nacional de
Combate à Discriminação (CNCD), no âmbito do Ministério da Justiça. O CNCD,
órgão colegiado composto de representantes governamentais e da sociedade civil
- com ênfase especial na participação de entidades da comunidade negra -, foi
criado com a competência de propor e avaliar políticas afirmativas de promoção
da igualdade e de proteção dos direitos de indivíduos e grupos afetados por
discriminação racial.
Tais desdobramentos refletiram-se em políticas. Uma avaliação dos principais
instrumentos legais referentes ao tema (leis, decretos, portarias) adotados no
Brasil desde 68 revela, em primeiro lugar, a intensificação de iniciativas a
partir de 2001, quando passa a ser adotada a grande maioria dos instrumentos
sob exame. Em segundo lugar, observa-se nítida diferenciação no tocante às
características das iniciativas: as medidas implementadas antes de 2001
inserem-se nos padrões valorizativo ou repressivo, ao passo que as medidas
adotadas a partir desta data inserem-se, predominantemente, no universo da ação
afirmativa. Observam-se, ainda, referências à Conferência de Durban nos textos
de todos os instrumentos legais que vieram a implementar políticas de ação
afirmativa.
A partir de 2001, diversos órgãos do governo federal passaram a implementar
iniciativas de combate à discriminação racial. O Ipea realizou estudos e
pesquisas sobre a matéria, ao passo que os Ministérios da Justiça, do
Desenvolvimento Agrário, da Educação, da Cultura e das Relações Exteriores
implementaram programas e iniciativas de ação afirmativa. Em 2001, o Supremo
Tribunal Federal passou a considerar constitucional o princípio da ação
afirmativa, e adotou políticas de ação afirmativa a partir de 2002, passando a
reservar 20% das vagas de sub-contratados a afro-descendentes.
Em 2001, o Ministério do Desenvolvimento Agrário estabeleceu cotas para afro-
descendentes em cargos de direção, no preenchimento de vagas em concurso
público, e na contratação por empresas prestadoras de serviço e por organismos
internacionais de cooperação técnica. Programas de Ação Afirmativa, prevendo o
estabelecimento de cotas em moldes semelhantes, também foram adotados no
Ministério da Justiça (Portaria 1.156, de 20.12.2001) e no Ministério da
Cultura (Portaria 484, de 22.8.2002). O Ministério da Educação criou o Programa
Diversidade na Universidade (Lei 10.558, de 13.11.2002), com a finalidade de
promover o acesso de afro-descendentes e indígenas ao ensino superior; e o
Ministério das Relações Exteriores - por meio do Protocolo de Cooperação sobre
a Ação Afirmativa no Instituto Rio Branco, de 21.3.2002 - concedeu
"bolsasprêmio de vocação para a diplomacia" em favor de estudantes afro-
descendentes que viessem a candidatar-se ao Instituto Rio Branco.
Em maio de 2002, foi instituído o Programa Nacional de Ações Afirmativas, com o
objetivo de coordenar as diversas iniciativas governamentais. Como objetivos
específicos, o programa buscou promover: a) a observância, pelos órgãos da
Administração Pública Federal, de metas percentuais de participação de afro-
descendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de
cargos em comissão de direção e assessoramento superiores; b) a concessão de
pontuação adicional, nas licitações promovidas por órgãos da Administração
Pública Federal, em benefício de fornecedores que adotassem políticas
compatíveis com os objetivos do Programa; c) a inclusão, nas contratações de
empresas prestadoras de serviços, de metas percentuais de participação de afro-
descendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência. No mesmo mês, o
governo federal lançou a segunda edição do Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH II), também prevendo medidas de ação afirmativa: a) ampliação, no
âmbito da União e dos estados e municípios, do acesso dos afro-descendentes às
universidades públicas e aos cargos e empregos públicos; b) apoio às ações da
iniciativa privada no campo da discriminação positiva.
No que tange ao combate à discriminação racial, podem-se identificar elementos
de continuidade no período imediatamente posterior, quando tem início o Governo
Luiz Inácio Lula da Silva. Tais elementos residiriam, sobretudo, na
implementação de políticas públicas em conformidade com o modelo de ação
afirmativa.
Em março de 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), com status ministerial. Caberia à Seppir, entre
outros atributos, coordenar políticas de diferentes ministérios e órgãos
governamentais para a promoção da igualdade racial, e acompanhar o cumprimento
de acordos e convenções internacionais. As diretrizes de atuação do Governo
federal foram apresentadas mais detalhadamente com a divulgação, em novembro de
2003, da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto n. 4.886).
Entre diversos objetivos, o documento previa novas iniciativas públicas no
plano da ação afirmativa, por meio de incentivos à adoção de políticas de cotas
nas universidades e no mercado de trabalho, e à implementação de programas de
diversidade racial em empresas.
De acordo com levantamento realizado, cerca de 26 iniciativas foram
implementadas entre os anos de 2003 e 2004.22 Paralelamente - e em consonância
com tendências observadas anteriormente -, foram instituídos novos canais de
diálogo entre Governo Federal e sociedade civil, bem como entre Governo Federal
e demais entes da federação, em matéria de combate à discriminação racial. Foi
instituído o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Cnpir), com o
objetivo de reforçar o diálogo entre Governo Federal e sociedade civil com
vistas à implementação da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Também se deve registrar a constituição do Fórum Intergovernamental de Promoção
da Igualdade Racial (Fipir), com o objetivo de fortalecer a cooperação entre os
diferentes entes da Federação.
Em julho de 2005 - declarado "Ano nacional da promoção da igualdade racial" -,
foi realizada a 1ª Conferência nacional de promoção da igualdade racial (1ª
Conapir). A conferência contou com a participação de aproximadamente mil
delegados, e abordou a promoção da igualdade nas três instâncias de governo e o
cumprimento dos compromissos internacionais, entre outros eixos temáticos.
Com base nas considerações apresentadas, pode-se constatar marcada
intensificação de iniciativas governamentais de combate ao racismo - e na
implementação de ações afirmativas, em particular - no período que teve início
com a preparação da participação brasileira na Conferência de Durban. Embora o
período 1995-2005 se distinga, em geral, no tocante aos padrões e à intensidade
da ação governamental em matéria de combate ao racismo, o sub-período com
início em 2000 representaria novo patamar no tocante à proliferação de
iniciativas e à instituição de canais de diálogo com setores organizados da
sociedade civil. A consideração de que a Conferência de Durban teria
representado "momento-chave" internacional para catalisar e intensificar
iniciativas de combate ao racismo no Brasil - particularmente no plano da ação
afirmativa - tem ressonância em reflexões provenientes de fontes governamentais
e da sociedade civil:
A convocação da 3ª CMR significou uma oportunidade inédita de mobilização do
Estado brasileiro e da sociedade civil em torno dos temas relacionados ao
racismo, permitindo não só uma observação de sua incidência no país, mas também
um olhar sobre a diáspora africana, em especial na América Latina e no Caribe.
(...) Diferentes setores avaliam que, de fato, o processo e os acordos da 3ª
CMR vieram a significar, antes de tudo, a ampliação dos espaços de disputa
contra o racismo, bem como a mobilização de novos atores e a inserção em novas
estruturas estatais.23
Conclusões
No tocante às políticas públicas de combate à discriminação racial no Brasil,
teria ocorrido uma transição entre cenário de "integração incipiente" - que
caracterizaria o relacionamento entre Brasil e ambiente internacional durante
as décadas de 60 e 70, principalmente - para situação de "integração plena" -
que caracterizaria o padrão daquele relacionamento a partir dos anos 90. Os
fundamentos da transição devem ser buscados no comportamento do sistema
internacional - desenvolvimento do ambiente normativo e institucional relativo
ao combate à discriminação racial - e na evolução da realidade política e
institucional do Brasil - configuração de canais de acesso ao processo
decisório governamental, e organização dos grupos com interesse mais direto na
matéria.
Com relação ao ambiente internacional, pode-se concluir que o sistema normativo
de combate à discriminação racial se tornou mais denso a partir dos anos 60, e
passou a dispor de instrumentos de pressão mais claramente identificados. Por
outro lado, o sistema político e institucional brasileiro foi marcado por dois
processos paralelos: a) a redemocratização do país, com a instituição de canais
de acesso da sociedade civil ao processo decisório relativo às políticas
públicas; b) a crescente organização do movimento negro brasileiro. A tais
fatores deve ser agregada a compatibilidade entre a pressão dos grupos
interessados em políticas mais efetivas de combate ao racismo e a distribuição
de preferências do Poder Executivo, no tocante à matéria, no período 1995-2005.
O período de "transição" foi possivelmente caracterizado por maior pressão
internacional por adesão ao sistema normativo, elevação dos custos de
"audiência" e de "reputação" de descumprimento das normas internacionais de
combate ao racismo, e maior sensibilidade das preferências estatais à "pressão"
internacional. Embora se registrem, no período, episódios de pressão
"tradicional" da comunidade internacional, provavelmente tiveram mais eficácia
as "pressões" conduzidas ao amparo de canais de "persuasão" - associados aos
efeitos constitutivos da abertura ao sistema internacional - e de "mobilização"
- associados ao impulso político conferido por eventos internacionais a
iniciativas domésticas.
O canal de persuasão esteve em construção progressiva no período, à luz da
participação do país nas principais iniciativas, e do diálogo do Brasil com as
principais instituições internacionais com atribuições na matéria. Por sua vez,
o canal da "mobilização" está fundamentalmente associado à realização da
Conferência de Durban, em 2001. O processo preparatório da participação
brasileira, e a própria abrangência das deliberações em Durban, conferiram
impulso significativo à implementação de políticas públicas mais incisivas no
tocante à redução de desigualdades raciais.
Ao instituírem canais mais amplos e diretos de acesso de grupos organizados ao
processo decisório, e ao elevarem o perfil político do tema, os processos de
preparação e de implementação das recomendações de Durban geraram condições
favoráveis à atuação governamental com o objetivo de reduzir desigualdades
raciais. Tais condições favoreceram a implementação de programas de ação
afirmativa no país, os quais já integravam, há tempos, o rol de demandas do
movimento negro organizado.
Sob esta perspectiva, a interrelação entre ambiente internacional - sobretudo a
mobilização associada ao "momento-chave" consagrado por Durban - e realidade
política doméstica possibilitaram a implementação de políticas com impactos
redistributivos. Viabilizaram, neste contexto, a superação de "pontos de veto",
usualmente associados a focos de resistência difusa, na opinião pública
brasileira, à rationale que tem norteado a implementação de programas de ação
afirmativa.
1 JACCOUD, Luciana; BEGHIN, Nathalie. Desigualdades Raciais no Brasil: um
balanço da intervenção governamental. Brasília: Ipea, 2002. p.55-56.
2 ROBERTS, Kevin. Voting Over Income Tax Schedules. Journal of Public
Economics. Vol. 8, p. 329-340, 1977.
3 MORAVCSIK, Andrew. Introduction - integrating international and domestic
theories of international bargaining. In: EVANS, Peter B.; JACOBSON, Harold K.;
PUTNAM, Robert D. Double-Edged Diplomacy - international bargaining and
domestic politics. Berkeley: University of California Press, 1993. 490p. pp. 3-
42.
4 KEOHANE, Robert. After Hegemony - cooperation and discord in the World
Political Economy. Princeton: Princeton University Press, 1984. 290p.
5 DREZNER, Daniel W. (ed.). Locating the Proper Authorities - the interaction
of domestic and international institutions. Michigan: the University of
Michigan Press, 2003. 280p.
6 GODINHO, Rodrigo. Normas internacionais e distribuição: caminhos da política
redistributiva em jogos de dois níveis. Tese de Doutorado. Universidade de
Brasília/Irel, 2007.
7 ALVES, José Augusto Lindgren. A Arquitetura Internacional dos Direitos
Humanos. São Paulo: FTD, 1997. p.87.
8 UNITED NATIONS. International Convention on the Elimination of All Forms of
Racial Discrimination. New York, 1965.
9 UNITED NATIONS. First Decade to Combat Racism and Racial Discrimination.
General Assembly resolution 3057 (XXVIII). New York, 1973.
10 UNITED NATIONS. Second Decade to Combat Racism and Racial Discrimination.
General Assembly resolution 387 (XIV). New York, 1983.
11 UNITED NATIONS. Third Decade to Combat Racism and Racial Discrimination.
General Assembly resolution 48 (LXXXI). New York, 1993.
12 JACCOUD, Luciana; BEGHIN, Nathalie. Op.cit. p.15.
13 RIBEIRO, Matilde. Diversidade Racial, Étnica e Processos de Participação
Política na América Latina. Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2001.
14 CARDOSO, Fernando Henrique. Discurso de Posse no Congresso Nacional.
Brasília, 1995.
15 BRASIL. Ministério da Justiça/SEDH. Construindo a democracia racial.
Brasília, 2000.
16 TOLEDO, Roberto Pompeu. O Presidente segundo o sociólogo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
17 BRASIL. Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos.
Brasília, 1996.
18 BRASIL. Ministério das Relações Exteriores e Ministério da Justiça. Décimo
Relatório Periódico Relativo à Convenção Internacional Sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial. Brasília: 1996. 122p.
19 COMMITTEE ON THE ELIMINATION OF RACIAL DISCRIMINATION. Concluding
Observations of the Committee on the Elimination of Racial Discrimination:
Brazil. (CERD/C/304/Add.11). Geneva, 1996.
20 FUNDAÃÃO CULTURAL PALMARES. A Fundação Cultural Palmares na III Conferência
mundial de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata. Brasília: 2001.
21 Comitê nacional para a reparação da participação brasileira na III
Conferência mundial das Nações Unidas contra o racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata. Relatório. Brasília: Ministério da Justiça,
2001. p.19.
22 PAIXÃO, Marcelo. Conferência pela Promoção da Igualdade Racial - tese guia.
Rio de Janeiro: 2004. 122p. p.106.
23 WERNECK, Jurema. A Luta Continua: o combate ao racismo no Brasil pós-Durban.
Observatório da Cidadania. Brasília: 2005.