Sociabilidade e moralidade: Hume leitor de Mandeville
I
Não resta dúvida de que Mandeville é uma referência importante para o
pensamento moral de Hume. O problema posto pela Fábula das Abelhas acerca da
relação entre vícios privados e benefícios públicos incendiou um debate em
torno do qual gravitou, de um modo geral, todo o pensamento moral do século
XVIII. Hume se alinha entre os tantos críticos de Mandeville; mais
precisamente, entre aqueles que, como Hutcheson, insistiram na naturalidade dos
sentimentos morais contra o arficialismo mandevilliano, contra a tese de que
nosso apreço pelas virtudes sociais nos teria sido inculcado por hábeis
políticos, como uma técnica de governo.
É pelo menos nesse sentido que se encaminham as passagens do
Tratado da Natureza Humana3
e da
Investigação sobre os Princípios da Moral4
em que a referência a Mandeville é explícita, embora não nominal: não é
verdade diz Hume que ";as distinções morais originam-se da educação, e
foram inicialmente inventadas, e depois encorajadas, pela arte dos políticos, a
fim de tornar os seres humanos tratáveis, e subjugar sua ferocidade e egoísmo
naturais que os incapacitavam para a vida em sociedade";. A educação e a
política têm certamente uma influência considerável. Mas, ao seu lado, é
preciso também reconhecer o papel da natureza: ";as virtudes sociais têm uma
beleza e estimabilidade (beauty and amiableness) naturais que, de pronto e
anteriormente a todo preceito e educação, recomendam-nas ao respeito da
humanidade não instruída e angariam sua afeição"; (EM 173; trad. p. 77-8).
Em passagens como essa Hume não tem apenas Mendeville sob a mira, mas toda uma
tradição que inclui Hobbes e Locke, além dos moralistas agostinianos franceses
Pascal, La Rochefoucauld, Nicole, Bayle , todos aqueles que, aos seus olhos,
intentaram fundar o edifício da moralidade (no caso dos agostinianos: da
moralidade socialmente praticada) sobre a base estreita do egoísmo e do amor-
próprio. Hume, porém, claramente distinguia nessa grande família de moralistas
dois grandes grupos: o dos partidários do princípio que ";afirma que toda
benevolência é mera hipocrisia";, que a moralidade é um mero disfarce do nosso
egoísmo e amor-próprio, e o dos partidários do princípio que afirma que
";nenhuma paixão é e nem pode ser desinteressada"; e que, tendo isso em vista,
entendem que a base natural da moral só pode residir em sentimentos dessa
ordem. (EM 247-8, trad. p. 187-8). A diferença está em que os primeiros
entendem que os valores e práticas constituídos sobre a base do amor-próprio e
do egoísmo são falsos, enquanto que os segundos os tomam por genuínos. Hume vê
claramente que cada um desses grupos o primeiro incluindo os moralistas
franceses e Mandeville, o segundo Hobbes e Locke, para nos restringirmos aos
modernos reclamam, da parte daqueles que como ele querem afirmar a
naturalidade dos sentimentos sociais e benevolentes, respostas distintas.
Contra o segundo grupo (Hobbes e Locke), cabe mostrar que não faz sentido
pensar a moralidade como o verão de uma só andorinha, que a tudo vê a partir de
si mesma e que a tudo julga a partir da única e exclusiva perspectiva de seu
próprio interesse, posto que os juízos morais que efetivamente fazemos
pressupõem (em sua pretensão de universalidade, como dirá posteriormente Kant
acerca dos juízos de gosto) que saiamos de nós mesmos e de nossa perspectiva
particular, para adotar, ao menos no momento em que julgamos, a perspectiva do
outro. O juízo moral, insiste Hume, é um juízo com os outros, e a moralidade
pressupõe a sociabilidade e o convívio, uma porta de saída de nós mesmos. Não
ter visto isso é um dos erros que anima a hipótese contratualista quando supõe
que a vida social e política possam ser deduzidas da vontade de indivíduos pré-
sociais, os quais, em função de um cálculo solitário do próprio interesse,
passam a aderir a certos valores e regras necessários à manutenção dos vínculos
sociais. Como se, antes mesmo do exercício da sociabilidade e de um convívio
efetivo com os outros pudesse haver algo como a moralidade, a capacidade de
discernir e o apreço por certos valores e normas de conduta partilhados!
Mas, como resposta ao segundo grupo que inclui Mandeville e é o que nos
interessa aqui não basta insistir sobre a origem social das distinções
morais. Pois, é justamente isso o que fazem os partidários da tese de que
nossas práticas morais e supostas virtudes não são senão um disfarce do amor-
próprio, uma forma de angariar a aprovação e os favores alheios em benefício
próprio. ";É vivendo em sociedade que nos tornamos sociáveis";5, diz
Mandeville, numa formulação contra a qual Hume não teria muito o que objetar.
Pois, mesmo insistindo contra Mandeville sobre a naturalidade dos nossos
sentimentos sociais e benevolentes, Hume está certo (desta vez, contra
Hutcheson) de que esses sentimentos, restritos ao âmbito das relações
familiares e íntimas, não são suficientes para fundar e regular uma vida social
complexa, e que é uma sociabilidade desta ordem, regulada por regras de
justiça, sustentada por um governo e fundada sobre relações de interesse muito
mais extensas do que as que brotam de nossa benevolência natural, é uma
sociedade desse tipo que oferece as condições para a emergência de normas e
valores cujo respeito nos habilita a viver em sociedades cada vez mais
complexas. É, portanto, vivendo em sociedade (em sociedades complexas) que nos
tornamos criaturas morais e sociáveis (aptos a viver em sociedades complexas).
Sob o fundo dessa convergência, porém, desenha-se a crítica de Hume a
Mandeville: o que regula a sociabilidade é uma capacidade genuína, e não
hipócrita, de fazer distinções morais e agir em conformidade com elas. Noutros
termos: a sociabilidade é, para Hume, a diferença de Mandeville, o berço
legítimo da moralidade.
Nossa intenção aqui é a de procurar compreender o teor, a força e as
implicações da crítica de Hume a Mandeville, obscurecida em função do fundo
comum a partir do qual ambos pensaram a moralidade. Para ambos, a moralidade
constitui-se no interior e a partir da vida social, e a sociabilidade, ao menos
em sua forma complexa, constitui-se fundamentalmente, embora não exclusivamente
no caso de Hume, por laços de interesse. Para além das convergências, porém,
não é sem interesse atentar às divergências e medir sua força.6 Ao defender o
caráter genuíno da moralidade socialmente praticada, Hume não se limita, como
se pode pensar, a subscrever com sinal invertido a versão mandevilliana da
relação entre sociabilidade e moralidade, dando o nome de virtude àquelas
qualidades que Mandeville, em respeito a uma antiga idéia de moralidade que a
Fábulaajudou a tornar caduca, ainda chamava de vício. É bem mais decisiva a
operação de Hume no sentido de salvar a moralidade dos ataques dos céticos
morais, dentre os quais Hume incluia Mandeville. Trata-se para ele de mostrar
que a moralidade que nossa sociabilidade comporta se conforma com a idéia de
moralidade pressuposta em nossos juízos e práticas sociais. Tal idéia exclui o
egoísmo e o amor-próprio do rol dos sentimentos morais e condena os juízos e
práticas neles fundados. Ali onde Mandeville entende que nenhum juízo e prática
se conformam a essa idéia, no entanto pressuposta por esses mesmos juízos e
práticas (daí sua hipocrisia), Hume quer mostrar sua inegável conformidade e,
assim, assegurar que a sociabilidade possa ser efetivamente o reino da
moralidade.
Comecemos por esboçar o modo como Mandeville vê a relação entre sociabilidade e
moralidade, para em seguida ver o modo como Hume a vê e, por fim, identificar o
eixo de sua crítica a Mandeville.
II
Grande parte da força e do impacto da Fábula das Abelhas se deve à ambigüidade
certamente intencional de sua mensagem, à incerteza quanto ao sentido último da
tese que ela expõe, o que motivou uma diversidade de interpretações nem sempre
compatíveis a seu respeito. Mandeville seria um ateu e libertino, pregando o
vício como um meio da felicidade nessa vida?7 Ou ele estaria, ao contrário,
condenando nossa avidez pela prosperidade material, mostrando ser ela
incompatível com a virtude, tomada em sentido rigoroso?8 Ou, talvez ainda, o
autor da Fábulase deixasse melhor descrever como um bom e neutro observador de
uma mudança nos rumos das relações econômicas e sociais ocorrida em seu tempo,
constatando suas contradições com a moral até então vigente.9 São muitas as
facetas de Mandeville, construídas ao longo da história cheia de contornos nem
sempre serenos de assimilação da Fábula.
Um ponto, no entanto, nos parece certo. Se entendermos que o essencial da
Fábula reside na idéia de que nossas relações econômicas se desenrolam de
maneira autônoma, prescindindo de uma regulação moral, e que, em contrapartida,
a moralidade deve se instaurar em um outro campo que não o da sociabilidade
efetiva (num outro mundo, Ideal ou efetivamente alcançado após a morte); se
entendermos, enfim, que Mandeville mostrou ser a moralidade em sua roupagem
tradicional incompatível com a sociabilidade, só nos resta pensar que Hume
tenha invertido essa equação pelo sacrifício dos antigos ideais morais, ou
seja, mediante a elaboração de uma nova moral, adaptada às exigências da
sociabilidade e do progresso econômico. Isso não é de todo falso. Mas deixa à
sombra a discussão mais relevante entre Mandeville e Hume acerca da natureza
(social, para ambos) de nossos engajamentos morais.
É preciso levar a sério as passagens da Fábula em que Mandeville se declara um
defensor tão ardoroso quanto Shaftesbury das virtudes sociais, posto que o
valor associado a elas foi de fato o que, segundo ele, viabilizou o progresso
da sociabilidade.10 Se é assim, o que Mandeville traz de novo não é tanto a
proclamação da autonomia da sociabilidade em relação à moralidade, num caminho
que lhe teria sido aberto pela literatura agostiniana francesa, mas a tese de
que necessariamente incorremos num auto-engano quanto à compreensão da natureza
da moralidade sobre a qual a ordem social (e econômica) se apoia. E é isso,
precisamente, o que Hume quer negar a Mandeville.
Como nos mostra E. J. Hundert11, o que singulariza o discurso mandevilliano
acerca da moral, e o que o fez chocante aos olhos de seus contemporâneos,
reside sobretudo no ponto de vista naturalista adotado pelo, vale lembrar,
médico Mandeville. Mandeville é, antes de tudo, um naturalista empenhado em
descrever o mecanismo de funcionamento da sociedade a partir de certos
princípios naturais: as paixões humanas12. É este naturalismo e o projeto de
fazer uma ";ciência do insociável homem sociabilizado";13 o que, segundo
Hundert, distingue Mandeville da tradição agostiniana francesa, a despeito do
inegável débito da Fábula em relação a essa literatura. Mandeville fala do
homem enquanto mero homem, enquanto homem natural, movido por princípios
naturais, deixando de lado a temática da queda e do homem decaído, central na
literatura agostiniana.
Não que Mandeville não se refira às Escrituras e à doutrina do pecado capital.
Mas este é apenas um argumento em favor da perspectiva que ele adota a de
descrever a história da moralidade como uma história natural, a história do
homem não iluminado pela fé e que precisou se desenvolver, organizar-se moral e
socialmente, a partir de suas próprias faculdades e luzes naturais. A
referência à queda encontra-se, assim, a serviço da fixação do espaço próprio
de um discurso naturalista e não da tematização de um sentido trágico da
existência, sob a ótica do pecado. ";Considerei adequado esclarece Mandeville
na introdução de sua Investigação sobre a Origem da Virtude Moral, que integra
o corpo da Fábula investigar como o homem sem maiores qualificações poderia,
entretanto, por meio de suas próprias imperfeições, ser ensinado a distinguir
entre o vício e a virtude. E nesse ponto cumpre-me desejar que o leitor
registre de uma vez por todas que, quando digo homens, não estou aludindo a
judeus nem a cristãos mas simplesmente a homens, no estado de natureza e
ignorância da verdadeira divindade";.14 O espaço da moralidade (daquela que
importa ao naturalista) é, portanto, o deste mundo.
Sendo assim, para o naturalista, a moral ou a capacidade de distinguir entre o
vício e a virtude é uma capacidade adquirida no decorrer de uma história
natural da sociabilidade, cuja marcha Mandeville se propõe a descrever
sobretudo na Investigação sobre a Origem da Virtude Moral e nos diálogos que
compõem o segundo volume da Fábula. Trata-se nesses momentos de mostrar como a
sociabilidade foi engendrada a partir de um jogo das paixões humanas em si
mesmas contrárias à vida em sociedade, e como a moralidade, originalmente
ausente, se engendrou e passou a operar como um elemento central, o pilar dessa
ordem. A história natural da sociabilidade e da moralidade é, assim, uma
história do progresso das paixões humanas, em seu jogo mecânico. Tal mecânica
funciona ao modo de um tear (a imagem é de Mandeville)15, entrelaçando as
paixões humanas no tecido da sociabilidade, ligando os homens uns aos outros
numa ordem social e conformando suas condutas ao que ela requer.
Uma tal engenhoca social precisou porém de um artífice para que se pusesse em
funcionamento. Trata-se da figura não muito precisa, mas central na história
natural da Fábula, dos ";legisladores";, dos ";políticos"; e ";outros homens
sábios";16, que souberam num dado momento inventar um discurso moral louvando
as virtudes sociais e associando a grandeza dos homens à sua capacidade de
abnegação e renúncia das próprias paixões, discurso do qual tais homens
souberam explorar o fundo retórico, usando-o como um instrumento para mover as
paixões dos outros homens no sentido da sociabilidade. Um simples discurso,
apelando a normas e valores aos quais as paixões humanas em sua natureza
mecânica são a princípio surdas, não seria capaz de mover os homens no sentido
de renunciarem aos seus próprios e imperativos impulsos naturais não fossem os
homens movidos pela paixão dominante do amor-próprio. É a ela que os
governantes apelam, sabendo que estamos dispostos a sacrificar a satisfação de
outras paixões pela conquista de uma boa imagem e reputação, soando como um
prêmio ao amor que nutrimos por nós mesmos. É, assim, a partir de um jogo das
paixões (o amor-próprio no centro da cena), que nos tornamos sensíveis a certos
valores necessários à manutenção e ao progresso da ordem social.
Mas se é assim eis o desfecho polêmico de toda essa história , o
funcionamento da sociabilidade envolve um desnível necessário entre o princípio
motor de nossa conduta social (as paixões procurando vias cada vez mais
oblíquas de satisfação, causa mecânica e efetiva de nossa conduta) e a
representação que fazemos dessa mesma conduta quando nos deixamos lavar pelo
feitiço da adulação de um discurso laudatório no qual despontamos como
criaturas nobres e excelsas, seres morais que orientam seu comportamento por
fins e valores. Como se o princípio de nossa conduta social fosse o
reconhecimento do valor do ethossocial e não, tão simplesmente, nossas paixões!
Tudo se passa, assim, como se a narrativa naturalista de Mandeville sugasse
para o campo da marcha mecânica da natureza toda a pretensão normativa da
moral. O princípio de nossa conduta não são deveres e valores postos como fins,
mas paixões operando como causas eficientes. A sociabilidade, contudo, só se
torna coesa e ordenada no momento em que nos deixamos seduzir por um discurso
que falseia esse dado natural, descrevendo nossa conduta por referência a uma
suposta nobreza e destinação moral. Este auto-engano ou esta hipocrisia é,
portanto, necessária ao bom funcionamento da sociabilidade. É ela que nos
determina o amor-próprio como causa motora no sentido da adesão aos valores
requeridos pela ordem social.
III
Hume, ele também, adota um ponto de vista naturalista para falar da moral. O
termo, sabemos, envolve um longa disputa acerca do estatuto da filosofia
humeana como um todo; no presente contexto, contudo, quer tão somente designar
o fato de que Hume se proponha, como Mandeville, a investigar a origem de nossa
capacidade de distinguir entre o vício e a virtude, fazendo-a remontar ao seu
princípio natural, ao dado além do qual não é mais possível retroceder, e que
é, para Hume, como se sabe, da ordem de um sentimento o prazer e desprazer
despertados pelos objetos e associados a eles, princípio de uma preferência sem
a qual não haveria para nós nada semelhante a um valor. Trata-se para Hume,
como para Mandeville, de reconhecer aí apenas o princípio de uma história da
sociabilidade e da moralidade, que ultrapassa, sem negar, o naturalmente dado.
Como para Mandeville, igualmente, a moral será para Hume da ordem de um
discurso, uma linguagem socialmente constituída fixando os valores da
sociabilidade. E uma investigação sobre os princípios da moral é para ele, como
para Mandeville, uma investigação acerca da história natural da sociabilidade e
da moralidade que ela comporta.
A diferença com Mandeville está, como já indicamos, no fato de Hume entender a
moralidade constituída ao longo da história natural da sociabilidade como uma
moral genuína, adequada à idéia que fazemos da moralidade e do ethos virtuoso.
Vai nesse sentido o esforço de Hume, visível sobretudo na Investigação sobre os
Princípios da Moral, em mostrar que não somos movidos apenas pelo amor-próprio
e por interesses de ordem egoísta, mas também por sentimentos de ordem
benevolente e humanitária, por uma sorte de concernimento com os outros a
simpatia , que é o princípio natural da moral.17 Seria, contudo, restringir
enormemente o escopo da argumentação humeana reduzi-la à prova de que
princípios desinteressados operam naturalmente em nós, como se toda a questão
se resolvesse pela adoção de um olhar mais otimista acerca da natureza humana,
como se bastasse atribuir ao homem a dignidade moral que Mandeville lhe negara
para que a moralidade fosse então salva. A admissão da naturalidade da simpatia
é apenas o primeiro passo de uma argumentação bem mais sofisticada visando
suprimir a distância instaurada por Mandeville entre o domínio da natureza do
jogo mecânico das paixões e o domínio da norma do comportamento orientado
por fins. Trata-se para Hume de mostrar que de um domínio a outro a passagem é
boa.
Para tanto, o primeiro passo (e este é só um primeiro passo), consiste em
estabelecer a simpatia como princípio natural da moral. Acompanhemos a
argumentação que conduz a esse resultado, começando por lembrar o que se
mostrará essencial no contexto de nossa discussão que a simpatia é
considerada por Hume sobretudo como o princípio natural dos juízos e não, ou ao
menos não imediatamente, das açõesmorais. O ponto de honra de Hume na
Investigação sobre os Princípios da Moral, cuja argumentação está inteira
voltada para rebater as morais do egoísmo, não é tanto mostrar que somos
naturalmente determinados a agir em benefício dos outros, mas, sobretudo, que
somos naturalmente determinados, pelo fato da simpatia operar em nós, a julgar
levando em conta o que dá prazer e desprazer aos outros e não apenas a nós
mesmos. Eis o argumento de Hume a esse favor, se nos for permitido resumi-lo.
Hume parte do fato do juízo moral: discernimos entre a virtude e o vício, e os
valores discernidos são compartilhados e sedimentados numa linguagem comum.
Quem negará que os termos benevolência, coragem ou prudência exprimem virtudes?
Nem mesmo Mandeville negaria que ao menos no plano da linguagem, embora não no
da conduta, opera-se uma distinção entre o vício e a virtude. Ora, essas
distinções são muitas vezes aplicadas a situações nas quais não estamos
concernidos, na avaliação de ações e caracteres a ação benevolente de Pedro
em relação a João, a coragem de Aquiles, a imprudência de Karl que não
beneficiam ou prejudicam aquele que enquanto mero espectador julga a ação, mas
os personagens envolvidos na cena contemplada. Quem julga, em função de sua
posição de espectador, é desinteressado.
Posto isso, resta investigar qual o princípio que guia nossas preferências tais
como expressas em nossos juízos e sedimentadas em nossa linguagem comum. A
resposta não tarda: trata-se evidentemente, quer nos mostrar Hume, da simpatia.
Qual outro princípio pode explicar da maneira mais natural e simples que um
observador prefira o que chama virtude ao vício senão uma capacidade de sentir
com os outros, que o faz ver-se de alguma forma concernido com o que beneficia
a outrem além dele mesmo? O mais mesquinho dos homens, incapaz de mover uma
palha em benefício alheio, se é que faz uso de uma linguagem valorativa, se é
que julga, há de ser tocado minimamente que seja pela simpatia e levar em
consideração o que interessa a um outro além de si mesmo.
Não há, deste modo, no que diz respeito a tese de que somos naturalmente
movidos pela simpatia, tal como desenvolvida na Investigação, nenhum parti-pris
acerca da natureza de nossas motivações, sobre a natureza boa ou má dos homens
(até porque qualquer tomada de posição nesse sentido depende de que antes se
possam justificar os juízos com base nos quais se exprimem esses valores), mas
apenas uma análise dos juízos de valor que corriqueiramente fazemos e que, como
quer mostrar Hume, pressupõem as operações da simpatia. No limite, a simpatia
serve a Hume como uma maneira de mostrar que estamos naturalmente abertos ao
domínio dos valores ou do gosto, entendendo por gosto não a expressão pura e
simples de uma preferência o que supõe apenas os sentimentos de prazer e
desprazer , mas a expressão de uma preferência comum ou partilhada com os
outros. A simpatia fornece o princípio mecânico envolvido na formação dos
juízos de gosto. Ela é, por assim dizer, o ponto em que a natureza se abre para
o domínio dos valores.18
O pecado de Mandeville estaria justamente em não ter se preocupado com indicar
esse ponto de abertura. A idéia de que hábeis políticos teriam inventado os
valores deixa sem explicação o processo que possibilitou aos homens discernir
valores e, a partir daí, compreender a linguagem que pretende exprimi-los. ";Se
a natureza não nos ajudasse quanto a isso, seria em vão que os políticos
falariam em honroso ou desonroso, louvável ou condenável. Essas palavras seriam
inteiramente ininteligíveis; não estariam vinculadas a nenhuma idéia, como se
pertencessem a uma língua completamente desconhecida por nós. O máximo que os
políticos podem fazer é estender os sentimentos naturais para além de seus
limites originais; mas a natureza tem ainda de fornecer a matéria-prima, dando-
nos alguma noção das distinções morais."; (T, 500; trad. p.540-1).
Vale insistir: a simpatia deve ser suposta como princípio natural dos juízos
que estabelecem distinções morais e não, imediatamente, como princípio das
ações morais. A insistência se justifica se lembrarmos que Mandeville nos
conduz à conclusão de que a moral não se inscreve em nossas práticas sociais
apelando ao fato de que tais práticas (nossas ações, portanto) são motivadas
por paixões e não por valores. Mas na base deste argumento cético há um
equívoco: a desconsideração da questão do juízo e do que deve ser o ponto de
partida de toda investigação moral, a saber, o fato de que discernimos entre o
vício e a virtude. No lugar de um tal fato, no princípio de suas doutrinas
especulativas, as ";morais do egoísmo"; colocam uma espécie de metafísica das
motivações, que acaba por paralisar toda investigação sã acerca dos princípios
da moral.
Por partirem de uma tal metafísica, a tradição criticada por Hume, já desde
Pascal e La Rochefoucauld, se esmera em multiplicar o que poderíamos chamar
";os paradoxos da motivação";: discernimos virtudes e vícios, ajustamos nosso
comportamento a esse discernimento, mas nada garante que esse discernimento nos
coloque diante de valores mais que aparentes, uma vez que a prática da virtude
pressupõe uma certa qualidade humanitária e caridosa de nossas motivações de
cuja presença em nós e nos outros jamais podemos nos assegurar. Via de regra, o
que se pode mostrar é precisamente o contrário: nossa conduta social não é
animada por motivações genuinamente morais. Desta incerteza transformada em
suspeita chega-se ao ceticismo: se reina aqui o princípio da dúvida é porque
tudo para nós é opaco e obscuro quando o assunto é moral, a despeito de nossa
aparente segurança para discernir, nas diversas condutas e ações que se nos
apresentam, entre o vício e a virtude. Mas tal segurança apenas mostra o quanto
somos cegados pelo amor-próprio, até o ponto de recusarmos a ver nossa própria
fraqueza e nossa corrupção moral.
Hume inverte um tal raciocínio. Partamos, diz ele, daquilo acerca do que não
resta dúvidas: discernimos entre a virtude e o vício, esse discernimento se
supõe partilhável e é efetivamente partilhado, como atestam certos acordos
efetivos, ainda que restritos. Compreendamos, então, qual a condição desse
juízo: a simpatia. E ";uma vez que se tenha feito essa concessão, a dificuldade
estará suprimida, e uma interpretação natural e desimpedida dos fenômenos da
vida humana irá em seguida prevalecer, pode-se esperar, em todas as
investigações especulativas"; (EM, 199, trad. p. 117). Podemos a partir daí
pensar melhor, diríamos, como a moralidade se inscreve nos assuntos humanos.
Pois, a separação entre os planos do juízo e da ação não apenas assegura o fato
da moralidade contra as investidas céticas das morais do egoísmo, obstinadas em
reconduzir o edifício da moralidade à base estreita do amor-próprio; ela
permite também mostrar e isso é fundamental, no diálogo com Mandeville a
inscrição social da moralidade, o modo como a moralidade se insere numa
história da sociabilidade, cujo princípio motor não é desde a origem valores,
mas paixões ou motivações no limite incompatíveis com a noção que fazemos da
virtude. Nesse ponto, como já indicamos, Hume está absolutamente em acordo com
Mandeville: a história da sociabilidade pode ser entendida como uma história do
interesse, como um jogo das paixões egoístas nos levando a aceitar certas
regras de conduta (as regras de justiça) e a acatar certos valores (como a
castidade e a obediência civil) fundamentais ao bom funcionamento da
sociabilidade e à resolução dos conflitos que lhe são inerentes. Se fazemos
isso, se agimos assim, é sobretudo porque vemos na sociabilidade um meio
adequado para satisfazer nossas próprias paixões. Mas a ação que assim pode-se
dizer interessada, ao promover as condições da sociabilidade, oferece à
moralidade entenda-se: à nossa capacidade de julgar desinteressadamente a
partir das operações da simpatia a condição (material) de se exercer e se
refinar.
Em poucas palavras: a separação entre os planos do juízo e o da ação permite a
Hume explicar, de um só golpe, a formação da sociedade a partir do interesse e
do egoísmo e a origem social da moralidade a partir do desinteresse e da
simpatia. A moral é o produto desses dois grupos de paixão: das paixões
egoístas ou interessadas, que estão na base das ações que produzem o progresso
da sociabilidade, e das paixões sociais ou desinteressadas, que estão na base
dos juízos que, uma vez exercidos na vida social, dão origem ao gosto. O
interesse produz a vida social em sua forma complexa, oferecendo ao
desinteresse a ocasião de se exercer no julgar, pelo que se produz e se refina
nossa capacidade de discernir entre o vício e a virtude.
Precisemos esse último ponto, isto é, o modo como se dá a gestação social da
moralidade.
IV
Falar de vício e virtude é falar de preferências compartilhadas, gerais e
abrangentes. ";A idéia de moral pressupõe algum sentimento comum a toda
humanidade, capaz de recomendar o mesmo objeto à aprovação generalizada e fazer
com que todos os homens, ou a maioria deles, concordem em suas opiniões e
decisões relativas a esse objeto. Ela também pressupõe um sentimento tão
universal e abrangente que consiga estender-se a toda a humanidade e tornar até
mesmo as ações e comportamentos das pessoas mais distantes em objetos de
aplauso ou censura, na proporção em que estejam ou não em acordo com a regra de
direito que se estabeleceu"; (EM, 221, trad. p. 156).
Em função de sua generalidade e abrangência as noções morais pressupõem em seu
princípio uma capacidade de julgar (e, em sua base, uma capacidade de sentir)
que leve em conta algo mais do que exclusivamente nossa própria felicidade e
miséria. Se, no entanto, essa capacidade de sentir e julgar por simpatia é uma
condição necessária do discernimento moral, ela não é ainda sua condição
suficiente.
Por meio da simpatia se produz um ponto de vista comum a mim e a outro, uma
primeira porta de saída de nós mesmos que constitui a base da moralidade. Mas
esse ponto de vista não é ainda stricto sensu um ponto de vista moral. Ele não
é ainda o ponto de vista dos homens em geral, mas de um pequeno conjunto ou
partido de homens, de modo que a simpatia, quando restrita, pouco acrescenta à
perspectiva do egoísmo: os juízos que se fazem a partir dela são ainda parciais
e, além disso, irregulares, isto é, não apenas diferem do juízo de outros
homens que tenham outros interesses ou valores, como diferem dos meus próprios
juízos em outras ocasiões, conforme varie o foco e o objeto da simpatia. Ser
capaz de simpatia não é ainda discernir valores morais, posto que esse
discernimento pressupõe um ponto de vista geral e regular, ao passo que os
sentimentos produzidos pela simpatia, nas diversas circunstâncias particulares
em que ela efetivamente opera, são, ao contrário, parciais e irregulares.
A princípio, tal irregularidade pode ser vista como uma objeção à tese de que a
simpatia é o princípio natural da moral, posto que contradiz a regularidade e a
abrangência de facto dos juízos morais. Assim como o interesse não pode estar
na base dos juízos morais porque é parcial e irregular enquanto o juízo é geral
e regular, o mesmo parece valer para a simpatia, ela também, como o interesse
(a diferença é de grau), variável e de abrangência restrita. Hume, no entanto,
quer guardar uma diferença de natureza entre simpatia e interesse para
reafirmar a simpatia como o princípio natural da moral.19 A moral remonta a
simpatia, mas não é inteiramente dada com ela, pois envolve um processo de
correção de sua irregularidade.
São bem conhecidas as afirmações de Hume acerca da necessidade de corrigir a
parcialidade da simpatia pela adoção de um ponto de vista geral para julgar.
";Seria impossível conseguir conversar com alguém em termos razoáveis diz ele
se cada um de nós considerasse os caracteres e as pessoas somente tais como
nos aparecem em nosso ponto de vista particular. Portanto, para impedir essas
contínuas contradições, e para chegarmos a um julgamento mais estável das
coisas, fixamo-nos em algum ponto de vista firme e geral; e, em nossos
pensamentos, sempre nos situamos nesse ponto de vista, qualquer que seja nossa
situação presente"; (T, 581, trad. p. 621). Não queremos aqui insistir sobre
esse ponto. Para nossos fins, basta notar que não há moralidade sem que a
parcialidade original da simpatia seja corrigida pela adoção de um ponto de
vista invariável e abrangente, um ponto de vista para julgar que não seja
estritamente o meu, nem o meu e o de meus familiares e conhecidos, mas o dos
homens em geral. Basta notar isso, para em seguida insistirmos sobre um outro
ponto: o processo dessa correção pelo qual nasce propriamente a moralidade
coincide com o progresso natural da sociabilidade. Hume o diz explicitamente:
";o intercâmbio de sentimentos na sociedade e no convívio diário (conversation)
nos leva a formar um critério geral e inalterável com base no qual passamos
aprovar ou desaprovar caracteres e maneiras"; (T, 603, trad. p. 643)20.
Pelo simples fato de vivermos em sociedade somos levados a corrigir a
irregularidade da simpatia. Pois a vida social oferece não apenas a ocasião
para que a simpatia opere produzindo valores, como também a ocasião de
observarmos a irregularidade e parcialidade de suas operações. Vemos, em função
de nossas múltiplas relações sociais, dos diversos e variados sentimentos que
nos ligam uns aos outros numa sociedade complexa, que se nossa situação em
relação aos outros fosse diversa nossos juízos seriam também outros. Aprendemos
assim a separar o princípio da simpatia, operando como uma causa geral sempre
presente onde um valor se produz, das circunstâncias particulares em que a
simpatia opera, os meus sentimentos particulares em relação aos homens, em
função da posição particular que ocupo em relação a eles no interior da vida
social.21 Retiradas essas circunstâncias, resta a simpatia, não mais como uma
condição natural e material de produção de um valor operando efetivamente em
nós, mas como um princípio, o critério ou a regra de produção de um juízo de
valor.
Para chegar à regra, fazemos remontar os efeitos (no caso, os valores) a sua
causa comum: onde há valor há simpatia, juízo a partir de uma posição que não é
a nossa ";é pela influência que o caráter ou as qualidades de uma pessoa
exercem sobre aqueles que têm algum relacionamento com ela que a censuramos ou
elogiamos"; (T, 582; trad. p. 622). Temos a partir daí um critério de correção
da parcialidade de nossos sentimentos, uma regra para julgar que se destaca dos
casos em que os juízos são efetivamente produzidos, em circunstâncias
particulares, associados a sentimentos particulares. Passamos a tomar a
imparcialidade como regra, desprezamos as fontes da parcialidade nossas
paixões particulares e as circunstâncias que as determinam porque sabemos,
por experiência pela experiência da simpatia , que a adoção de um ponto de
vista alheio, um certo desprendimento em relação as nossas próprias paixões e
sentimentos, é o princípio natural, a causa dos juízos de valor.
A regra do julgar que preside a correção da parcialidade original da simpatia
não se impõe como um dever-ser. Hume emprega, é verdade, uma linguagem
finalista quando diz ser preciso corrigir a simpatia para que se chegue a
juízos morais estáveis. Mas esse fim não é dado de antemão. Ele só pode ser
reconhecido como um fim, a moralidade só pode constituir em si mesma um valor,
ali onde a natureza opera em nós nos determinando nesse sentido: determinando-
nos (1) a produzir valores, (2) a refletir sobre o seu modo de produção e (3) a
privilegiar o que há de regular nessa produção. Eis as etapas que é preciso
vencer para que se mostre conforme a intenção polêmica do pensamento moral
humeano tendo em vista o pano de fundo oferecido pela Fábula das Abelhas que
do fato à norma, da natureza ao valor a passagem é boa.
Que a natureza nos determine a produzir valores é algo dado no simples fato da
simpatia operar em nós. Por sua vez, a reflexão sobre as operações da natureza,
sobre a causalidade natural dos juízos e, em especial, dos juízos de valor
(reflexão que a filosofia humeana pretende fazer, mas que pode e deve ser feita
pelo homem comum esclarecido), prepara a passagem do fato à regra, da natureza
à norma, do juízo ao padrão do juízo.22 Esse processo, na moral, é um
prolongamento natural da experiência da simpatia. A simpatia abre a porta dos
valores e mostra o caminho para refiná-los. Nesse sentido, ela é, ao mesmo
tempo, o fato e a regra dos juízos morais. Fatoporque opera como causa efetiva
dos juízos de valor, mesmo se parciais e pouco abrangentes. E regra, porque
mostra a quem reflita sobre suas operações a circunstância comum que acompanha
tais juízos: a adoção de um ponto de vista mais amplo que o nosso. A reflexão
sobre as causas de nossos juízos oferece na moral, assim como nos raciocínios
causais sobre questões de fato, critérios para julgar: num caso como no outro
julga melhor quem souber separar as causas particulares que determinam nossos
juízos privados e circunstanciais, das causas gerais, que determinam nossos
juízos partilhados e regulares23.
Mas o que nos leva a privilegiar uma forma de juízo a outra? Certamente não o
fato de visarmos de antemão o valor de verdade dos juízos, sejam epistêmicos ou
morais. Não visamos a verdade dos fatos ou a objetividade dos valores. A
verdade não é um fim, mas, antes, um efeito, um produto de nossos juízos
regulares, comuns e refletidos.24 O que nos determina, pois, a privilegiar esse
tipo de juízo?
Hume insiste por diversas vezes no valor afetivo da regularidade, da não
contrariedade, da facilidade das transições costumeiras da imaginação. Mas
quando nos impomos critérios para julgar e zelamos pela regularidade dos
juízos, fazemos bem mais do que ceder aos nossos impulsos naturais. A reflexão
e o exercício da filosofia demandam esforço, um esforço que não pode ser contra
natura, mas que tampouco eqüivale à posição do homem comum, que se deixa levar
irrefletida e indiscriminadamente por seus impulsos.25 Gostaríamos aqui de
sugerir que o que nos determina a este esforço de reflexão reflexão sobre as
causas naturais dos juízos que está na base da produção de juízos regrados e
regulares é a própria sociabilidade ou nossas paixões sociais tais como
formadas no interior da vida social. Não é isso, afinal, o que nos sugere o
famoso desfecho do livro I do Tratado? Que nossas opiniões se desmoronam e
desagregam ";quando não suportadas pela opinião alheia"; (T, 264-5; trad. p.
297), que este desmoronamento é vivido sob a forma da melancolia e do desespero
e que, enfim, não pode haver para nós verdade (ou se quisermos: objetividade)
se não ali onde partilhamos juízos, isto é, na sociabilidade?26
Se é assim, então podemos dizer que os prazeres da sociabilidade, de ver as
próprias opiniões, valores e crenças espelhados nos outros consistem numa
motivação, numa causa natural operando no sentido da regulamentação dos juízos.
Não gozaríamos desses prazeres a nós tão caros27, não chegaríamos sequer a
partilhar uma linguagem28 se não fôssemos capazes de corrigir o que há de
parcial em nossos juízos, capacidade que adquirimos pelo fato mesmo de vivermos
em sociedade, de experimentarmos prazeres sociais, partilharmos uma linguagem e
refletirmos sobre suas causas. Por seu turno, os valores e crenças de facto
partilhados se oferecem desde o princípio, para todo ser social, como um
critério ou padrão para a regulação dos juízos. Não é de se estranhar,
portanto, que a reflexão moral de Hume parta dos valores já constituídos ou do
que Hume chamará no início da Investigação sobre os Princípios da Moral um
catálogo do mérito: se não pode haver propriamente moralidade onde não houver
uma experiência social da moralidade, a reflexão sobre a moral deve ela também
partir dos valores socialmente dados.
Compreende-se assim a relação de mútua reciprocidade entre moralidade e
sociabilidade cujo aspecto positivo Hume se dispôs a afirmar contra Mandeville.
Entre uma e outra há, primeiro, uma comunhão de origem: o princípio de todo
valor coincide com o princípio da vida social a simpatia que, em sua forma
original, se exerce em conjunção com um sentimento benevolente restrito ao
âmbito dos vínculos familiares. E quando o interesse se une à benevolência na
formação das sociedades complexas, quando nossos vínculos sociais se
diversificam, é ainda a sociabilidade, na medida mesma em que se amplia, que
oferece à simpatia a condição de se corrigir, permitindo que se exerça em
múltiplas circunstâncias e associada a diversos sentimentos que não apenas os
de benevolência, evidenciando assim a diferença entre as causas gerais e as
causas particulares de nossos juízos. E, por fim, são ainda os prazeres
sociais, aos quais nos afeiçoamos à medida em que nos socializamos, que nos
motivam a procurar e prezar a correção dos juízos, a fazer do fato de sermos
capazes de discernir valores comuns um valor comum.
Desfaz-se, assim, o aparente paradoxo posto por Mandeville: a moralidade nasce
da sociabilidade, e mesmo que o progresso da sociabilidade dependa de
motivações que nossa linguagem moral caracterizará como viciosas, ainda assim a
vida social oferece o único solo em que a moral pode florescer, como uma
capacidade de discernir valores e partilhar juízos.29
V
Dentre os opositores esclarecidos de Mandeville, Hume talvez seja aquele que
com maior veemência insistiu sobre a inscrição necessariamente social da moral
o que faz a singularidade e o interesse de sua resposta a Mandeville.
O paradoxo de Mandeville versa sobre essa relação: a moral é um produto natural
da sociabilidade e pour cause não está a altura de suas pretensões normativas.
Nas respostas que Rousseau ou Kant dão a Mandeville, quando procuram
restabelecer a possibilidade de uma relação positiva entre moralidade e
sociabilidade, guarda-se o caráter problemático desta relação, tal como
sugerido por Mandeville: o problema de Mandeville permanece tal e qual sempre
que a moralidade for pensada como um produto da sociabilidade, não sendo
desfeito senão no plano da idealidade no plano ideal de uma causalidade
inversa, de uma regulação puramente moral da sociabilidade. Hume retém outros
aspectos da Fábula que não este, e caminha em sentido contrário, fazendo da
sociabilidade, de sua naturalidade e de sua experiência efetiva, o lugar
próprio da moralidade, sem com isso perder de vista o problema de fundo posto
pela Fábula das Abelhas, qual seja, que a sociabilidade não necessariamente se
organiza como uma ordem moral, que na origem ela não é uma ordem moral e que,
portanto, longe de ser naturalmente dada, a moralidade deve ser vista como um
produto da história humana e uma conquista do esclarecimento.
Se, mesmo levando em conta o desnível tão tematizado no século XVIII entre
ordem moral e ordem social, se, ainda assim, importa a Hume mostrar que não há
moralidade sem sociabilidade, é porque, para ele, o sujeito moral (quem julga)
não está dado, nem como sujeito prévio, transcendental ou transcendente ao
mundo, nem como consciência ou interioridade pré social e política. O sujeito
moral e o valor que corresponde ao seu juízo são construídos social e
publicamente, no exercício efetivo do embate das opiniões.