De interfaces tecnológicas e rascunhos de experiências
para K. Imrad
Lá, não há um lá. Eles ensinavam isso às crianças ao explicar o
ciberespaço.
(William Gibson. Mona Lisa Overdrive.)
O jardim a domesticação, a aculturação e a representação idealizada
da natureza
agora está na máquina. (Hillis, K. Digital sensations.)
If clothes are the second skin of human beings, architecture is the
third skin.
(De Cauter. The capsular civilization: On the city in the age of
fear)
1.
A arquitetura urbana atual não corroborou alguns prognósticos de teóricos da
sociedade da informação. Na direção inversa daquela antevista em representações
de futuro que afirmavam a superação da vida nas grandes cidades, a sociedade de
informação permanece sociedade urbana. Contudo, transformações significativas
já se operaram, se não exatamente na configuração material do espaço
arquitetônico, pelo menos no que se refere a um, digamos, rearranjo de alguns
elementos que estruturam conceitualmente este mesmo espaço arquitetônico e
urbano.1
Refiro-me especificamente aqui aos resultados decorrentes do uso dos lugares
quando mediado por aparatos tecnológicos. Já é possível mostrar que boa parte
das tecnologias atuais de comunicação altera comportamentos e hábitos de
freqüentação dos lugares, o que vem provocando alguns deslocamentos na
experimentação corpórea da cidade.2
Admitindo a tecnologia como força intermediadora presente na vida cotidiana, e
que afeta a realidade experiencial corporificada, examino, a seguir, sua
influência sobre a percepção contemporânea dos espaços e lugares que habitamos.
Descreverei algumas situações de uso público dos espaços, discutindo os efeitos
causados por uma crescente utilização de Internet sem fio, câmeras de
vigilância onipresentes, telas de tv em alta resolução nas estações de metrô e
pontos de ônibus, tocadores de mp3 e telefones celulares quase que
invariavelmente acrescentados ao vestuário.
A análise dos fatos observados obedeceu a uma matriz conceitual, tanto
fenomenológica quanto materialista, e à estratégia de descrever um material
específico, no qual houvesse uma integração entre experiências pessoais e
representações espaciais denotadoras da interação entre tecnologia e
arquitetura. Em síntese, o objetivo deste texto é chegar a algumas observações
teorizantes por meio de descrições dos modos segundo os quais as pessoas
interagem corporalmente e combinam suas vidas cotidianas com a experimentação e
o uso espacial dos media eletrônicos e das tecnologias da comunicação.
Em primeiro lugar, mostrarei que, uma vez dada essa condição de mediação
tecnológica, o conceito de participação dos habitantes na arquitetura chega a
uma posição limítrofe, o que, em boa medida, passa a exigir uma redefinição de
tal conceito, se quisermos assumir sua validade de modo radical. Em segundo e
último lugar, discutirei até que ponto a materialidade da arquitetura é uma
variável componente da transformação da experiência que está evidentemente em
curso na cultura urbana de nossos dias, quando, à experimentação do espaço
arquitetônico (visível), faz-se somar uma rede (invisível) reconfiguradora de
relações individuais e coletivas com os lugares.
2.
Walter Benjamin afirmava que, ao viver em uma grande cidade, compreendemos o
mundo por meio de uma apropriação tátil das coisas, somada ao olhar distraído
que dirigimos a estas. Assim se caracteriza a singularidade da percepção
espacial em uma metrópole: uma experiência corpórea que oscila continuadamente
entre "misturar-se" com as coisas ou vê-las de relance, mas, em qualquer dos
casos, atitude marcadamente empírica, cujo resultado, tal como disse Benjamin,
"revela aspectos fisiognômicos que residem nas coisas minúsculas". Entretanto,
esta não é uma experiência solipsista, pois refere-se, antes, à
comunicabilidade envolvida na lida concreta com o mundo.
Para usar a terminologia de uma e outra correntes filosóficas aqui subjacentes,
pode ser dito que cada situação espaço-temporal em que se desenrola a
experiência humana se configura em uma materialidade demarcada tanto subjetiva
quanto intersubjetivamente.3 Diz respeito a um engajamento corpóreo não apenas
em relação às coisas (objetos), mas também a outros sujeitos e à
circunvizinhança (entorno) de quem faz a experiência. Tais conceitos
(engajamento corpóreo, intersubjetividade, distração, apropriação tátil,
comunicabilidade) ajustam-se bem à experiência que aqui está em questão
aquela que resulta do uso de variados equipamentos tecnológicos no ambiente
urbano; na realidade, um jogo entre o corpo e o espaço, em uma relação mediada
em diversos graus pela tecnologia.
Não é preciso sequer sair de casa para entender com quais variáveis lidamos ao
tratar desse assunto. Muito provavelmente a maioria de nós já aderiu
entusiasticamente à conexão Skype ou já precisou regular o tempo dispendido por
algum adolescente ou por si próprio em frente às telas do messenger. Isso
tampouco é um fenômeno recentíssimo: enquanto em 1992 poucos de nós dávamos
notícia do que fosse a Internet, uma década depois os números do acesso à
Associated Press no site do America On Line, em onze de setembro, são
impressionantes: naquele único dia houve um milhão de visitas e, nos dias que
se seguiram, pelo site da AOL passaram um bilhão e duzentos milhões de
mensagens instantâneas.4 Atualmente, de tempos em tempos, os cadernos
dominicais dos jornais e as revistas semanais discutem as alterações no que
chamam "geografia espacial da casa", em geral alertando os pais a "colocarem o
computador da casa em uma área comum a todos os familiares", para facilitar o
controle dos acessos.
Ou seja, ainda que não nos tenhamos dado conta, tomamos parte neste jogo:
alguns mais, outros menos e uns poucos distantes e à lógica que sustenta tal
jogo nem a ausência é algo estranho, pois, a concordar com os teóricos das
primeiras metrópoles do século XIX, viver em um ambiente urbano sempre foi
jogar pela regra da inovação técnica, estando conscientes ou não, em um
amálgama de experiência e medo imaginário e em uma oscilação entre pertencer e
querer desgarrar-se, pois ficar próximo ou afastar-se sempre foi a baliza da
vida moderna, e recusar-se à estimulação é parte do leque de atitudes que
configura o comportamento dos indivíduos urbanos. Georg Simmel já assinalava
que distância e aversão são o complemento exato de reação e envolvimento, e
juntos configuram o conjunto de possibilidades de acomodação dos sentidos aos
conteúdos e às formas da vida metropolitana.5 Quando Simmel escreveu a respeito
dos efeitos da metrópole sobre a vida mental (Nervenleben), o fez chamando a
cidade de arena de luta e reconciliação entre dois modos de vida que, a partir
do século XIX, viriam redefinir o papel do indivíduo na cultura moderna. A
presença da tecnologia nas grandes cidades compôs indubitavelmente as formas de
vida urbana, a tal ponto que esta, se, por um lado, "é mais e mais composta de
conteúdos impessoais e ofertas que tendem a deslocar as colorações e
peculiaridades genuinamente pessoais6"; por outro, na contrapartida do jogo, é
vida que pode se tornar "infinitamente fácil para a personalidade à qual tantos
estímulos, oportunidades, interesses, usos do tempo e usos da consciência são
oferecidos de todos os lados. Tudo isso carrega uma pessoa como se fosse um
rio, e ninguém precisa se esforçar em nadar.7"
A cidade que hoje é assim não o seria sem a tecnologia. A cada vez que é
preciso destrinchar as complexas relações entre tecnologia e grandes cidades, a
afirmativa de Benjamin sobre a transformação da percepção tem enorme
ressonância: não mudaram apenas os aspectos materiais da vida humana ao longo
do tempo; antes, é a percepção humana que se reorganiza continuadamente. Tal
reorganização interna configuraria os diversos modos históricos segundo os
quais as pessoas lidam com objetos do mundo externo, sendo, a um só tempo,
condição e resultado destes.8 Se considerarmos como fator crucial na história
das cidades capitais ou das regiões metropolitanas do século XX o crescimento
exponencial de produção, distribuição e consumo de aparatos tecnológicos que
vão da eletricidade à tecnologia eletrônica , a compreensão da dinâmica urbana
novecentista permite inferir que as cidades crescem e se consolidam
especialmente em decorrência da oferta de tecnologias da comunicação,9 daí se
seguindo que uma análise das estruturas atuais da percepção humana deverá
incluir necessariamente a dimensão comunicativa da vida urbana. É
especificamente na interseção entre as táticas individuais e coletivas dos
moradores e o uso de tecnologia de comunicação que se pode verificar quão
profundamente se alterou a cultura material novecentista, passando a refletir
nossas percepções modificadas sobretudo em relação ao espaço e aos aparatos que
a ele estão atados.
Na década de 1960, a arquitetura apontou de modo bastante enfático, esta
inervação das cidades pelo par comunicação/informação, tornando-o tema de
muitos experimentos projetuais. O fato de que as propostas mais radicais nessa
direção tenham ficado à margem de certo padrão de desenvolvimento dos ambientes
construídos diz muito sobre uma incapacidade (ou ingenuidade) da arquitetura
àquela altura do século XX, para lidar com a tecnologia da comunicação enquanto
fator de alteração da experiência espacial.10 Sobraram metáforas e alegorias,
enquanto a vida ordinária das pessoas nas cidades avançava exatamente à revelia
ou apesar do conservadorismo arquitetônico e urbano, e o cotidiano ia se
modificando em função de eletrodomésticos, dispositivos eletrônicos e outros
tantos gadgets campeões de audiência do consumo mais popular.
Nas condições atuais, autores de teoria da arquitetura aferem a interação
comunicativa entre objetos usados/lugares freqüentados por pessoas, adotando
posições diversas. É relevante a abordagem de Dalibor Vesely, que, seguindo os
passos de Gadamer quanto à imbricação de interpretação e situação dialógica,11
e, em muitos momentos, ecoando também o conceito de experiência de Walter
Benjamin, discute longamente a natureza do vínculo entre arquitetura e
comunicação.12 No caso desta teoria, não mais se trata de focar neste ou
naquele atributo formal ou imagético de um edifício ou lugar urbano, mas,
antes, de pautar os efeitos do espaço habitado sobre o usuário, este último
entendido como protagonista em uma ação progressiva de seleção e definição das
necessidades de um lugar arquitetônico.
Dalibor Vesely parte da premissa de que a constituição de um espaço coerente é
permitida pela capacidade do corpo humano de situar-se por meio de níveis
sucessivos de experiência (movimentos corporais, envolvimento corpóreo,
experiência perceptiva, imagens conceituais e pensamentos), configurando o que
ele denomina "horizonte de todas as nossas experiências" ou espacialidade.13
O movimento do corpo nível primeiro da experiência entre elementos do
espaço arquitetural cria um espaço comunicativo, na medida em que, ao nos
movimentarmos, aprendemos e adquirimos a habilidade de freqüentar um lugar. O
movimento ativa as relações geométricas entre coisas e espaço e, por isso, é
condição suficiente para nossa percepção de propriedades ambientais. Graças à
compreensão das partes constitutivas de um objeto arquitetônico, alcançada por
meio do movimento do corpo que explora o espaço físico, conforma-se para o
habitante uma situação que cumpre o papel sintético de estruturar a experiência
subjetiva, na qual a motilidade é responsável por conferir à arquitetura não
apenas o status de medium, mas também de componente estruturante de identidades
e permanências.14 Neste raciocínio, a arquitetura somente se efetivaria, ou se
tornaria real, na performance, isto é, quando uma ação fosse desempenhada no
lugar.15
Tem-se aqui uma definição de arquitetura a partir do seu efeito, cunhada na
interseção entre o individual e o particular, isto é, arquitetura como espaço
habitado, como situação da vida cotidiana em que os gestos traduzem o
aprendizado de um comportamento e a familiaridade espacial que se adquiriu.16
Trata-se de uma descrição fenomenológica do espaço em ato, pois não é apenas
uma enumeração de elementos constituintes do espaço, mas também uma
estratificação do fenômeno espaço, configurado necessariamente em uma dimensão
temporal e segundo a ação de um sujeito. São os gestos e os percursos de um
indivíduo que delineiam (e, em boa medida, definem) a experiência humana do
espaço. Nesta acepção do vivido, o conceito estabelece-se para além do espaço
geométrico (espaço mental concebido pela matemática) e espaço físico (na
dimensão prático-sensível, de percepção da natureza). O ambiente construído,
além de ser um instrumento de mediação, é também de tradução, pelo que cada
edifício intrinsecamente exigiria do habitante uma experimentação versátil, na
mesma medida em que a ele se apresentaria de muitos modos.17 Graças a seu
conteúdo comunicacional a arquitetura pode ser considerada como invariavelmente
experiencial; pode-se ir mais além e dizer, com Vesely, que o uso enquanto
experiência do lugar é a vida concreta de um objeto concebido por um
arquiteto.
Vejamos como esta posição teórica se comporta em relação ao tópico em discussão
aqui, qual seja, se a experiência da cidade é primeiramente corpórea, ela é,
hoje, mediada pelas tecnologias de comunicação e informação; em outros termos,
assume-se que a tecnologia da comunicação afeta decisivamente os modos pelos
quais experienciamos o mundo urbano, por mais plurais e flexionados que sejam
seus arranjos de lugar e ambiente construído.
3.
Admitindo que as tecnologias de comunicação e informação contribuem para
reconfigurar a percepção do espaço (os fluxos) e do tempo (os ritmos), meus
exemplos de predileção serão aqui, até um tanto obviamente, os telefones móveis
e o iPod (ou seus correlatos: walkman, discman ou quaisquer equivalentes
tocadores de mp3). Todos são, em suma, utensílios digitais móveis e
personalizados, funcionando como interfaces-chave por meio das quais muitos
moradores urbanos delineiam, configuram e praticam suas atividades urbanas.
Cada um, telefone celular e toca-mp3, conforma uma peculiar experiência
individual de construção de uma atmosfera, em certa medida, suspensiva da
cidade.
Enquanto interfaces, funcionam como uma espécie de membrana, recobrindo o
humano, e são zonas fronteiriças sensíveis de negociação entre o indivíduo, seu
entorno e o universo maquínico.18 É notável observar uma calçada no centro da
cidade, repleta de gente, cada qual munida com seus minúsculos fones de ouvido,
movendo-se no interior de uma bolha virtual. O iPod materializa o isolamento
consentido, mantendo a distância as outras pessoas, os sons indistintos da
cidade, o ruído das ruas e explicitando algo que, desde sempre sabíamos, mas
que, agora, assume-se socialmente de maneira silenciosa, por todo o conjunto de
pessoas à sua volta. Cada ser humano, se já compreendia o mundo a partir de
seus filtros particulares, agora evidencia o procedimento dessa compreensão,
que não é outro senão o de apartar-se da possibilidade de comunicar a
experiência, e sem que isso sequer cause alguma estranheza nos transeuntes
urbanos.19 Mas o que chama a atenção é que essa maneira individual de
experimentar o mundo esteja exacerbada no hábito de portar um aparato que
explicite ao outro o quanto você se separa dele.
Não obstante ficarem suspensas as condições do diálogo (e, portanto, da troca
comunicativa), na mesma medida em que a cidade, este procedimento desvela os
esboços de uma nova interação social. Se um aparato de tecnologia de
comunicação e informação começa a influenciar processos e experiências na vida
urbana, considerar algo como um espaço dialógico entre habitantes das grandes
cidades a ser estabelecido no fluxo diário das atividades implica incluir na
conta da intersubjetividade o ponto cego e inaudível que demarca o quanto cada
um vive dentro da própria "trilha sonora da minha vida". E, dessa vez, essa
trilha não se desenhou com as músicas que, por acaso, tenham embalado seus
encontros, as saídas para dançar, um rádio tocando alto na rua, o disco no
restaurante, pois, neste caso, a música tem a função de matizar a experiência
individual do espaço, sobrepondo-se à visualidade obrigatória deste,
freqüentemente desmaterializando-o.
O telefone celular, por sua vez, é atualmente a mais bem acabada ilustração da
mobilidade e da recombinação do uso das ruas por meio de tecnologias de
comunicação e informação. Seu uso faz com que o transeunte se destaque do real
circundante, na direção de um universo particular em meio à cena urbana, o que,
de certo modo, reconfigura os âmbitos privado e público, pois que implica em
uma forma de privatização do espaço público. O telefone móvel mudou o ato de
caminhar, com as ruas tornando-se verdadeiras e literais vias de informação,
reunindo trocas eletrônicas, espaços e transportes públicos. Considerada a
espacialidade, pode-se afirmar que ele permite criar um terceiro lugar, que é
uma espécie de paisagem para o encontro particular em meio à cena urbana. De
uma perspectiva temporal, ao falar em um telefone enquanto se movimentam, os
habitantes urbanos vivem a ilusão de um presente contínuo, simulam o
paralelismo de duas vidas: a que se desenrola enquanto freqüentam um
determinado espaço; e uma outra, a que controlam ou a partir de onde são
controlados, e à qual se reportam via ligação telefônica. Repare-se, a este
respeito, que, muitas vezes, as descrições espaciais são parte do diálogo. As
conversas incluem a menção sobre onde estão e o que fazem quem liga e quem
recebe a chamada as respectivas paisagens passando a ser ocasionalmente o
terceiro na conversa.20 Tudo isso para não mencionar a derivação supérflua no
consumo, cujo âmbito produtivo certamente comemora um objeto que, nascido da
mais perfeita conjunção funcional de economia e tempo, e gerado para operar no
mais ajustado âmbito de produtividade e controle que demarca o mundo
administrado, tenha acabado por encontrar na falta de utilidade seu uso mais
corrente: basta observar este ícone da eficiência invariavelmente presente nas
mãos dos adolescentes quando então se revela um brinquedo que potencializa o
hábito de jogar conversa fora em intermináveis diálogos sobre tudo e nada.
No que concerne ao movimento, ou ao espaço comunicativo que um habitante
estabelece no seu entorno urbano, ambos, celular e iPod, são máquinas que dão
nova forma à interação do corpo com o ambiente, confirmando o que Benjamin
falava já nos anos 1930. Para freqüentar a cidade não é mais necessário estar
atento a ela, uma vez que é mesmo distraidamente que se constitui a experiência
cotidiana urbana. Entretanto, o que é de se notar, neste caso, é que, à já
usual fragmentação visual feita da coleção de imagens que alguém recorta
enquanto caminha ou trafega pela cidade, vem somar-se a solicitação de outros
sentidos humanos; e o aparato tecnológico, se, por um lado, isola e protege,
por outro, inscreve o corpo de uma nova maneira no ambiente.
Refiro-me a uma preocupação das ruas baseada em sutis mudanças no deslocamento
e na permanência, que confere nova feição à apropriação do território por um
usuário. Quando definida a partir de um conceito de experiência da arquitetura,
a apropriação de um lugar por parte de seu habitante caracteriza-se como aquilo
que decorre da conjunção que se estabelece entre o espaço dado e os aparatos
que tornam possível o desempenho das atividades. Dado um determinado lugar, a
condição necessária para gerar apropriação é o desenrolar das atividades dentro
dele. Conseqüentemente, a distribuição espacial não é mais tão crucial quanto a
interação comunicativa que objetos e espaço permitem. Porém, no tocante à vida
urbana, é preciso perguntar pela natureza das ações desse usuário que porta um
iPod e fala a um telefone móvel; indagar em que medida ele conseguiria
protagonizar aquela ação "de seleção e definição de necessidades" de que fala
Vesely.
4.
Nesta oscilação entre ouvir sozinho suas próprias músicas e reportar-se pela
fala a outro lugar, estabelece-se um jogo entre envolvência/recusa, no qual a
cidade experimentada se condensa e se satura. Se é incontestável que, nestas
condições, quanto ao comportamento das pessoas em relação à sua própria
espacialidade(definida pelo movimento), a vida cotidiana fica revigorada, não é
suficientemente nítido se daí decorre qualquer transformação na produção do
ambiente urbano. Devemos perguntar, afinal, até que ponto a materialidade da
arquitetura é um componente necessário à transformação da experiência que está
em curso.
Já terá a arquitetura, de algum modo, acatado dentre suas premissas de desenho
este novo engajamento das pessoas com seus lugares pois, sim, elas vêm
estabelecendo um novo modo para lidar com a materialidade do seu ambiente? Em
cada descrição de freqüentação dos espaços causada pelos aparatos tecnológicos
nota-se que o uso pode ser criativo apesar da arquitetura (no extremo, diz-se
que "a forma pode ser qualquer uma, uma vez que eu sou de qualquer modo
indiferente a ela"), ou seja, é perfeitamente plausível que formas
arquitetônicas conservadoras em um contexto urbano estabelecido acolham
práticas com alguma dose de autonomia, se não exatamente criativas, práticas
que se fazem ajustar para permitir a sobrevivência. Entendo que aqui esteja uma
tarefa para a arquitetura, pois diz respeito ao engajamento do habitante na
produção do seu ambiente. E é aqui onde o conceito de participação chega a uma
posição limítrofe, exigindo ser reconsiderado.
Para entender como a produção dos espaços lida com estas formas de engajamento
e participação em mutação, é preciso analisar situações em que o avanço nas
aplicações dos meios de tecnologia de comunicação e informação não esconde sua
opacidade, que diz respeito à apatia ou indiferença e à alienação a elas
intrínseca com a qual se comportam habitantes urbanos, de que o melhor
exemplo parece ser a infeliz decisão de colocar TVs gigantes, com áudio de
cinema, em algumas das mais movimentadas estações de metrô mundo afora. As
enormes telas painéis que informam a temperatura externa, o tempo entre o
próximo trem e o seguinte e o noticiário que retransmite a programação de um
canal de notícias 24 horas são um paliativo na breve espera dos trens,
colhendo os transeuntes em ânimos absortos e gestos hipnotizados. Ao mesmo
tempo, câmeras e espelhos convexos espalham-se pelos túneis de acesso ao metrô,
registrando a distância os comportamentos, mas a população parece não mais se
incomodar com a vigilância permanente, uma vez que, seja em um país na América
Latina, seja na Ásia, assentam-se sobre a justificativa poderosa da segurança e
da proteção. Você não se incomoda mais em ser espionado, porque sabe que isso
pode ser o seu salva-vidas em uma situação de perigo extremo. No Brasil, os
roubos e a morte banalizada em um assalto aleatório. Na Europa e na América do
Norte, o pavor dos ataques sincronizados que derrubam aviões, edifícios,
explodem trens e ônibus.
A contrapartida da segurança é o controle da circulação, uma vez que a
vigilância urbana se constitui da observação do comportamento a distância,
resultando daí que a maioria das relações sociais já esteja envolvida em
medidas antecipadas de precaução de riscos e perigos. Acatamos a invasão das
nossas esferas individual e coletiva; aceitamos que possamos ser localizados,
dirigidos e rastreados, porque isso parece ser, a cada ano, mais e mais parte
de uma experiência urbana lastreada na regulação da vida cotidiana. A
vigilância vem se tornando, de fato, serviço: tome-se, como exemplo, a gravação
de cada clique em um website em benefício do mercado consumidor ou para as
políticas de controle da pornografia on-line. Dados, neste caso, tornaram-se o
verdadeiro material de vigilância, do mesmo modo que a vida privada se tornou
prontamente traduzível em dados.21
Este é o ponto em que o efeito da tecnologia é tão-somente devastador, ponto em
que a recepção na distração pensada por Benjamin encontra seu grande obstáculo.
Quando pessoas se deixam ficar alheadas diante das telas, a tecnologia nada faz
além de reproduzir a forma do culto. Nada há daquela percepção flexível e
distanciada, então concebida por Benjamin como um modo analítico de perceber o
mundo somente possibilitado pelos mediatecnológicos. Ao contrário, o constante
aumento da oferta tecnológica é diretamente proporcional ao isolamento de
indivíduos do seu entorno físico; cada vez mais os moradores urbanos ficam
retidos em cápsulas desenhadas para amortecer sua percepção do ambiente que os
envolve.
Esta encapsularização da vida urbana leva Lieven de Cauter a diagnosticar uma
"sociedade encapsulada"22 que denota, por um lado, uma cidade dominada tanto
pela exclusão quanto pela simulação, em que o medo é o resultado; e, por outro,
uma hipertrofia da esfera privada, em que casas são máquinas de conforto e
anestesiamento.
Faz sentido falar de uma civilização capsular uma vez que certo
limiar tenha sido cruzado. Precisamente por que o encapsulamento
humano faz parte de uma lógica antropológica, que tem raízes
profundas na cultura, um encapsulamento intenso (ou encapsulamento de
segundo e terceiro graus), combinado com outros mecanismos, pode ser
reafirmado. Neste caso, nos tornamos mais do que nunca fomos e mais
do que deveríamos ser prisioneiros voluntários da arquitetura.23
A cápsula, que tanto pode ser uma ferramenta quanto uma extensão do corpo,
funciona como um ambiente artificial controlado, um receptáculo que tem a
finalidade explícita de isolar ou ignorar a paisagem externa, considerada
sempre hostil. É interface que acaba por se tornar fim em si mesma, meio que se
transforma literalmente em ambiente.24 Na origem desses invólucros estão a
velocidade e o transporte trem, automóvel, avião e espaçonave são cápsulas
reais (atualmente, carros hermeticamente fechados, com temperatura artificial e
insulados para proteger os ocupantes dos choques e até da sensação de
velocidade). Ao lado cápsulas reais, a tecnologia de micro eletrônica produziu
cápsulas virtuais (iPod, telefone móvel, telas que nos retiram mentalmente do
lugar em que nos situamos), confirmando um encapsulamento que já se fazia
anunciar em 1969, no texto seminal de Kisho Kurokawa, Capsule declaration. Para
o arquiteto integrante do movimento denominado metabolismo japonês, "a cápsula
é arquitetura ciborgue. Homem, máquina e espaço constroem um novo corpo
orgânico que (...) cria um ambiente por si só (...) um aparato que se
transforma num espaço vivo, de tal modo que o homem não espera viver em outro
lugar, é uma cápsula."25
Na opinião de Lieven de Cauter, o emprego destas máquinas de estimulação
determina uma lógica social fundada no hiperindividualismo amparado por
tecnologias do isolamento, uma vez que o princípio de estimulação produzido nas
cápsulas é uma poderosa membrana de representação (e reprodução do real, ainda
que débil e ilusória). Quanto à repercussão de tal lógica nos espaços urbanos,
prevê o filósofo que cada intervenção no desenho das cidades inevitavelmente
envolverá fechamento, restrição ou cerceamento em algum grau. "Quanto maior a
mobilidade, mais capsular nosso comportamento. Somos nômades sedentários", diz
de Cauter, e, a seu ver, os elementos primários ("arquétipos simultaneamente
arcaicos e hipermodernos") da arquitetura urbana do século XXI serão a cerca, o
muro, o portão, a enclave, a barreira, a fortaleza, a fronteira.26 A
arquitetura desta nova cidade é a arquitetura das cápsulas, cujo papel político
é evidente graças a seu efeito colateral: são ferramentas politicamente
relevantes e eficientes, porque induzem os indivíduos a um constante
entorpecimento. Walter Benjamin não teria apostado em algo mais desolador.
5.
Mesmo concluindo que o resultado da tecnologia onipresente em nossas vidas
urbanas não será outro senão um "paradigma no qual entretenimento e controle,
abertura e isolamento virão sempre juntos",27 as prospecções de Lieven de
Cauter acerca da vida urbana futura não são, contudo, de todo desesperançadas.
Para contornar a aporia em que desemboca sua oposição ao encapsulamento, ele
aponta para algo como uma capacidade de resistência dos habitantes, traduzida
em táticas que redesenhariam as relações tanto individuais quanto coletivas com
os lugares.28
A hipótese da capacidade de resistência de habitantes e suas comunidades
parece-me plausível, quando se trata de pensar a vida em uma grande metrópole.
Quando as pessoas se sentem pertencentes ao mundo em que vivem, um envolvimento
com os espaços que habitam é um bom ponto de partida. Somente assim o habitante
urbano exercita práticas criativas em um contexto urbano consolidado, podendo,
afinal, tornar-se "um protagonista em uma ação progressiva de seleção e
definição de necessidades" da arquitetura que usa.
Reafirmar a força das comunidades29 pode, de fato, constituir o ponto central
de um novo tipo de participação em arquitetura, uma vez que se assume todo
espaço enquanto espaço social, inerente à existência, de modo que "pessoas
fazem os lugares, lugares fazem as pessoas".30 No que toca ao projeto de
arquitetura, a consideração dessa dialética sócio-espacial estabelece uma
práxis bem delineada, pois intervir no espaço passa a significar compreender
sua dinâmica, entre a prática e a representação, e não mais manobrar seus
atributos, buscando parâmetros para o desenho. Mas como saber das pessoas que
habitam ou habitarão os espaços projetados? Como saber qual usuário agirá
criticamente em uma arquitetura urbana tão sujeita à ação das máquinas de
estimulação que são as cápsulas? Anthony Vidler coloca, nos seguintes termos,
essa questão: "que tipo de sujeito é construído através do uso das ferramentas
digitais que hoje produz esse tipo de superfície envolvente?"31
Para encaminhar uma resposta, penso no fator de intensificação dos ritmos da
vida cotidiana que é a presença das redes sem fio. Ao redimensionar a
mobilidade dos habitantes e alterar a freqüentação de espaços coletivos, essas
redes constituem uma esfera pública mediada pela tecnologia, espécie de pólis
cujo feitio é dado por um notebook, uma placa airport e o hábito de carregar a
vida e o trabalho em uma bolsa às costas.
Em algumas cidades ao redor do mundo forma-se uma aliança entre o consumo e os
provedores de Internet sem fio, que tem promovido uma extensão dos espaços
domésticos e/ou de trabalho e, por conseguinte, ensaiado uma forma de
sociabilidade. Bibliotecas, campi universitários, cafés, livrarias, farmácias,
lojas todos são lugares que permitem o uso de rede, conexão e serviços de
cópia, impressão, reprodução de documentos, como um serviço paralelo à sua
principal função programática, o que resulta no hábito de consumir o que era
originariamente oferecido ali. Estratégia é o outro nome deste pacto, em que já
se fazem notar iniciativas vigorosas na direção de sua finalidade. Uma
reportagem de jornal fotografou recentemente, à hora do almoço, os parques da
cidade de Philadelphia, nos Estados Unidos, e relatou pelo menos um caso
exemplar: um mestre de obras, 62, trabalhador free-lancer, que, em seu
intervalo, desce para o parque para checar as mensagens eletrônicas contendo
prováveis ofertas de próximos trabalhos.32 A administração daquela cidade
inclui na oferta de serviços públicos, desde o ano de 2004, o provimento de
Internet a baixo custo para uma área de 350km2 dentro do perímetro urbano.33 As
companhias de tv a cabo e telefonia contestaram judicialmente a concorrência do
governo e, como perderam a disputa naquela cidade, já se armaram juridicamente
para impedir que outras municipalidades tomem igual iniciativa, juntando à
oferta de infra-estrutura básica (luz, água e telefone) o acesso digital em
alta velocidade.34 O objetivo a curto prazo é incluir uma grande parcela da
população de média e baixa rendas na "era digital", mas a cidade americana, na
verdade, replica uma estratégia de planejamento já bastante presente na Ásia,
onde boa parte das cidades assumiu a ferramenta da Internet de alta velocidade
como elemento crucial nas políticas de desenvolvimento urbano.35
A experiência e a conceitualização da cidade realizada por usuários vivendo sob
tais políticas urbanas parecem se alterar a ponto de definir elementos para uma
nova dinâmica da forma urbana, mesmo que em minúsculas transformações.36 Ainda
que vinculada ao consumo, portanto implicada em funcionalização e
instrumentalização dos usos, não há dúvidas de que esta flexibilização é, em
parte, positiva quando se trata de estabelecer traços de convivência.
Além disso, a alteração das relações espaciais entre os espectadores e o que
eles vêem reflete mudanças paralelas na tecnologia e no modo como ela é usada.
Ainda que no interior de lojas de bebida e comida mas principalmente porque
começam a fazer parte dos serviços incluídos em preços de aluguel de moradias
temporárias as redes sem fio têm permitido que os trabalhadores estendam suas
áreas de trabalho para fora dos escritórios, que os alunos das universidades
ocupem espaços abertos espalhados pelos campi, fundindo a pausa e o trânsito
nos lugares públicos.
São estes territórios multidimensionais cafés, parques, campi, terraços de
bares, mesas nas calçadas, lavanderias no subsolo que podem propiciar novos
agrupamentos; as mais diversas comunidades podem nascer nestes lugares de
performance onde a tecnologia é experimentada de modo corpóreo de tal maneira
que a cidade confirma-secomo conjunto de espaços de tradução, isto é, situações
urbanas que permitem estabelecer conexões entre estas trocas on-line (a
navegação na Internet) e a tradicional realidade urbana, biológica e social dos
corpos humanos situados em lugares.
O mestre de obras de Philadelphia remete à amplitude do tema dos lugares
abertos à intervenção de seus habitantes. A sua atitude, em que o uso renova o
lugar ao adaptá-lo às demandas, explicita a necessidade de que a arquitetura
pense o potencial dos usos temporários como motor de mudança urbana, pois reúne
a experimentação do espaço arquitetônico (visível) ao uso das redes
(invisível). Cada vez mais os habitantes têm habilidades diversas enquanto
receptores de informação são moventes, são imersivos, ou contemplativos e,
com as mídias eletrônicas (associadas a informação de massa, política, vida
familiar, trabalho e entretenimento), tendem a interrogar, subverter e
transformar outros contextos de linguagens, reverberando no modo como gerem
seus espaços próprios.37 É uma transformação na estrutura humana de percepção
nada desprezível para quem desenha lugares.
Compreender os usuários da cidade atual requererá tanto informação como
crítica. Na verdade, é uma operação política, pois implica aceitar o conflito,
a confrontação, uma vez que as únicas regras nesta investigação são a
contingência e a imprevisibilidade que dela decorre. Arquitetos, em geral, não
estão dispostos a pagar o ônus de uma real compreensão política dos fatos em
termos de compromisso e crítica profundos. Mas qualquer teoria da participação
em arquitetura deve atrelar-se necessariamente à consciência política, o que é
o contrário do desengajamento. Em um processo participativo os indivíduos são
capazes de interrogar a heterogeneidade de uma situação, reconhecer sua própria
posição e então ir além dela, abrindo-a para novos significados, novas
possibilidades. A participação, afinal, serve como parte de um processo
educativo, no qual a imaginação é ferramenta coletiva para a transformação do
real, para o estabelecimento do horizonte de possibilidades.
6.
É verdade que não somos os Jetsons, mas já estamos quase em Gattaca, a cidade
dos scanners de retina. Se ficamos com Lefebvre, afirmando que o espaço é parte
do processo de organização e transformação social, é possível que possamos
relacionar as representações coletivas da arquitetura contemporânea à cidade e
às novas mídias. Aos arquitetos, cabe insistir em encontrar e sustentar
caminhos para uma produção arquitetônica que seja politicamente consciente e
transformadora. É daí, e só aí, que decorre nosso reconhecimento de uma nova
condição urbana, como habitantes de uma espacialidade que tem na mobilidade das
redes um forte catalisador da criatividade difusa e da produção imaginária.
Entretanto, isso só será efetivo se necessariamente implica pensar formas
cotidianas de se pronunciar e de atuar nesses espaços.
A passividade dos que habitam, mas que poderiam e deveriam "habitar
como poetas" (Hölderlin), não poderia ser comparada ao estranho
bloqueio que freia o pensamento arquitetural e urbanístico? Os
projetos são atingidos por uma espécie de maldição. Eles não podem ir
além da utilização de alguns procedimentos gráficos ou tecnológicos.
A imaginação não consegue alçar vôo. (...) não existe pensamento sem
referência a uma prática (aqui, a do habitar e do uso; mas que
prática é possível se o habitante e o usuário permanecem mudos?).38