Nós geramos átomos em lugar da realidade das coisas: Pascal e o a-teísmo do
infinito
O que designa a expressão "Desproporção do homem" no fragmento La199?1 Numa
primeira leitura, esse texto parece perfeitamente claro em sua intenção.
"Trata-se", nos diz por exemplo J. Mesnard,2 "de situar o homem entre dois
infinitos", declinando, segundo todas as modalidades concebíveis, a
desproporção, isto é, a ausência de proporção entre o homem e o infinito. De
maneira exemplar, o excerto que se segue o confirma:
Pois afinal que é o homem na natureza? Um nada com relação ao
infinito, um tudo com relação ao nada, um meio entre o nada e o tudo,
infinitamente afastado de compreender os extremos; o fim das coisas e
seus princípios estão para ele invencivelmente escondidos num segredo
impenetrável.
Igualmente incapaz de ver o nada de onde foi tirado e o infinito em
que é engolido, que fará ele então senão perceber alguma aparência do
meio das coisas num desespero eterno de conhecer quer o seu
princípio, quer o seu fim? Todas as coisas saíram do nada e foram
levadas até o infinito. Quem acompanhará esses espantosos movimentos?
O autor dessas maravilhas as compreende. Nenhum outro pode fazê-lo.
Por não terem contemplado esses infinitos, os homens se lançaram
temerariamente à procura da natureza como se com ela mantivessem
alguma proporção.3
A última frase diz bem a ausência de medida comum entre o homem e a natureza, a
ausência de relação de conformidade entre o homem finito e o infinito. "As
coisas extremas são para nós como se não existissem e nós não existimos com
relação a elas; elas nos escapam ou nós a elas",4 diz um pouco adiante nosso
texto. A comparação do finito com o infinito estabelece a nulidade do homem com
suficiente nitidez, afastando a necessidade de nela insistir.
Que nos baste explicitar o seguinte ponto: numa primeira abordagem, o texto
parece afirmar com extrema radicalidade que a desproporção do homem, ou melhor
' e é preciso aqui acrescentar algo ao título do fragmento que é apenas uma
espécie de manchete ', a desproporção do homem com o duplo infinito da pequenez
e da grandeza descreve a abolição de qualquer relação com estes dois extremos:
o homem ou o ser sem relação com a natureza ou com o infinito.
Esta leitura imediata e aparentemente evidente do fragmento é insuficiente ao
menos por quatro razões:
1) A ela se opõe em primeiro lugar à literalidade do texto:
O homem, por exemplo, tem relação com tudo que conhece. Precisa de
lugar para contê-lo, de tempo para durar, de movimento para viver, de
elementos para o corpo, de calor e de alimentos para [se] nutrir, de
ar para respirar. Ele vê a luz, sente os corpos, enfim tudo cai sobre
a sua aliança. É preciso então, para conhecer o homem, saber de onde
vem sua necessidade de ar para subsistir; e para conhecer o ar, saber
por que vias se estabelece essa sua relação com a vida do homem etc.
A chama não subsiste sem o ar; portanto, para conhecer um, é preciso
conhecer o outro.5
O texto indica nitidamente não a ausência de qualquer relação entre o homem e a
natureza, mas, ao contrário ' e isto por intermédio da relação epistêmica ',
que a desproporção do homem com relação à natureza diz respeito à multiplicação
de relações entre o homem e as próprias partes da natureza. Sendo assim, a
desproporção do homem diz respeito à abolição de uma medida comum entre o homem
e a natureza pela multiplicação de relações entre o homem e os objetos que
conhece. O texto nos leva, então, a pensar uma desmesura do infinito com
relação a nós a partir do fato de que o homem, relacionando-se ao que conhece,
não pode se relacionar com o infinito senão pluralizando, multiplicando
indefinidamente as relações até o ponto de tornar a totalidade delas
desmesurada com relação ao conhecimento que dele se pode alcançar. Tal é a
situação exemplar da relação causal:
Portanto, sendo todas as coisas causadas e causantes, ajudadas e
ajudantes, mediatas e imediatas, e todas se mantendo por um laço
natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes,
tenho como impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim
como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.6
A relação causal é exatamente aquela pela qual, em física, por exemplo, nós
conhecemos certas propriedades dos corpos. No entanto, o que nos indica a força
heurística da relação causal é que ela nos coloca virtualmente em relação com o
todo da natureza. E é precisamente porque nos coloca em relação com o todo, que
o todo como tal desaparece de nosso horizonte de conhecimento.
2) Uma segunda dificuldade diz respeito à maneira pela qual o fragmento La 199
descreve a desproporção. Ela é, com efeito, ao menos dupla: é desproporção na
ordem do corpo e do espaço ' o que corresponde à longa primeira parte do texto.
A desproporção do homem, porém, está também ligada à inteligência: "nossa
inteligência ocupa, na ordem das coisas inteligíveis, a mesma posição que o
nosso corpo na extensão da natureza".7 Assumamos então que nossa inteligência é
desproporcional às coisas inteligíveis. Sob este aspecto, a desproporção do
homem ' composto de duas naturezas, como lembra o fim do fragmento ' vincula-se
a um pensamento da proporção, da medida, da relação, o qual é irredutível
(mesmo se deve incluí-lo) ao pensamento da proporção espacial. O homem, por sua
inteligência, está no meio de dois extremos:
Limitados em todo gênero, esse estado que ocupa o meio entre dois
extremos encontra-se em todas as nossas potências. Nossos sentidos
não percebem nada de extremo, barulho demais nos ensurdece, luz
demais nos ofusca, distância demais e proximidade demais nos impedem
de enxergar. Comprimento demais e brevidade demais no discurso o
tornam obscuro, verdade demais nos espanta. Conheço pessoas que não
podem compreender que quem de zero tira quatro resta zero. Os
primeiros princípios têm evidência demais para nós; prazer demais
incomoda, consonâncias demais desagradam na música, e benefícios
demais irritam. Queremos ter com que saldar a dívida.8
Há portanto uma infinitude da inteligência na qual esta última ocupa o meio.
Este meio, contudo, não é um meio pensado em termos escalares, como se os anjos
estivessem acima de nós e as bestas abaixo, posto que a centralidade é descrita
por Pascal como aquela que define um campo de objetivação específico: escutamos
tal tipo de barulho, vemos tal tipo de luz, compreendemos tal tipo de
raciocínio, e assim por diante. É, portanto, porque o homem tem uma relação com
um campo de objetos bem determinado, circunscrito à medida de suas faculdades
de pensar e de conhecer, que ele é desproporcional, considerando-se o todo das
coisas inteligíveis. Porque proporcional ao campo da experiência humana, o
homem é desproporcional ao todo dos objetos inteligíveis ' como o mostra o
exemplo do ácaro ao qual nos referiremos ' no qual a imaginação (e portanto o
espírito) não cessa de passar além dos limites dos objetos concebidos.
Assim, não somente reencontramos, aplicado às coisas intelectuais, o que já
havíamos visto no nosso primeiro ponto; mas é preciso agora, além disso, que
concebamos uma proporção irredutível à medida, à espacialidade, para conceber a
desproporção do homem ' corpo e espírito ' com relação ao infinito. Notaremos
de passagem a oposição e, conseqüentemente, a irredutibilidade de nosso
fragmento à temática do caniço pensante (e portanto à oposição grandeza/
miséria) que compreende o infinito e assim tudo abarca pelo seu olhar, ao passo
que aqui o próprio espírito é abarcado e, por conseqüência, compreendido
naquilo e por aquilo que vê.
3) A terceira dificuldade diz respeito ao modo com o qual Pascal busca conceber
o termo ou os termos por meio dos quais ele descreve a desproporção do homem.
Com efeito, como o mostrará o exemplo do ácaro, a desproporção do homem
explicita-se a partir do contraste que acabamos de exibir entre os "dois
infinitos", segundo a expressão do Esprit de Géométrie, o infinito da pequenez
e o infinito da grandeza. Nesse sentido, o homem aparece como um meio entre
duas infinidades obtidas por análise (pequenez) ou composição (grandeza) e pela
infinitização destas duas operações. Esta centralidade, entretanto, acompanha-
se de uma centralidade entre o nada e o infinito: seria possível superpor e
identificar "ser meio entre nada e tudo", "ser entre os dois abismos do
infinito e do nada" e ser um "meio entre dois infinitos"?
Que haja aí uma verdadeira dificuldade está claro no caso da decomposição
imaginária do ácaro: pois esta decomposição mostra que jamais chegamos a
suspeitar da presença do nada. Muito pelo contrário, o caso do ácaro mostra que
há muita(s) realidade(s) que nos distancia(m) para sempre do nada. Ora, estes
dois modos de conceber o ser-meio do homem ' entre dois infinitos e entre o
nada e o infinito ' parecem se unificar. Mas não dizem eles o contrário um do
outro? A oposição do nada ao infinito não está, como aquela dos dois infinitos,
totalmente do lado do ser. Assim, no Esprit de Géométrie, Pascal escreve: "há
propriedades comuns a todas as coisas cujo conhecimento abre o espírito às
maiores maravilhas da natureza. A principal está entre os dois infinitos que se
encontram em todas, um da grandeza, outro da pequenez".9
Assim, trata-se aqui de uma propriedade das coisas, portanto do ser e não do
nada. O que pode então designar esta centralidade do homem que o torna
desproporcional igualmente face ao nada e ao infinito?
4) Visto que ' e esta é a última dificuldade ' não há em nosso texto dois pares
de conceitos que permitem conceber esta desproporção, mas três: pois aos pares
nada/infinito e duplo infinito (de grandeza e pequenez), convém acrescentar o
par nada/natureza. A identificação é claramente dada pela retomada da questão:
"o que é o homem no infinito?" sob a forma "pois, enfim, o que é o homem na
natureza?" Conseqüentemente, o que designa esta desproporção do homem com
relação ao infinito, à natureza, ao nada? Vemos que a resposta não é evidente
sobretudo se, como nós tentamos mostrar, a desproporção do homem é secundária
(na ordem da condição) com relação a uma proporção primária do homem a seus
objetos de pensamento.
Gostaríamos de estabelecer a tese segundo a qual a desproporção do homem
descreve um fechamento deste em sua própria centralidade: esta centralidade tem
o teor e o alcance de uma primazia epistêmica que efetivamente expõe a posição
do homem cartesiano na natureza, isto é, face a ela.
Nesta perspectiva, o fragmento La 199 constitui a exibição da posição do homem
na natureza, posição que, confrontando-o apenas consigo mesmo, é, de fato, uma
posição necessariamente a-téia, isto é, privada de Deus. É por isso que esse
fragmento constitui uma crítica radical ao conceito cartesiano de infinito como
nome de Deus ' o infinito cartesiano, apesar de Descartes, não chega
efetivamente a nomear senão a natureza, isto é, o criado. Descartes se iludiu
sobre aquilo que acreditou conceber. Nós tentaremos estabelecer o primeiro
ponto e não poderemos senão sugerir o segundo.
I. Este fechamento do homem em sua própria centralidade ' que tem o sentido de
uma primazia epistêmica ' é descrito pela "Desproporção do homem" no enunciado
do qual não avaliamos o sentido cartesiano: "nós geramos átomos em lugar da
realidade das coisas".10 Pois o que são estes átomos? Precisamente este
conhecimento que se faz "grosso modo por figura e movimento", isto é, por
constituição metódica de seu objeto:11 o objeto certo, cuja atomicidade define
a relação constitutiva com o conhecimento que o instaura. Os próprios termos do
fragmento La 199 o provam de maneira incontestável:
Mas para apresentar-lhe um outro prodígio também espantoso, procure
ele naquilo que conhece as coisas mais delicadas, que um ácaro lhe
oferece na pequenez de seu corpo partes incomparavelmente menores,
pernas com juntas, veias nas pernas, sangue nas veias, humores nesse
sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas, que dividindo
ainda essas últimas coisas ele esgote as suas forças nessas
concepções e que o último objeto a que ele pode chegar seja agora o
de nosso discurso. Ele pensará talvez que está aí a extrema pequenez
da natureza. Quero mostrar-lhe dentro disso um abismo novo. Quero
pintar-lhe não apenas o universo visível, mas a imensidão que se pode
conceber da natureza, no âmbito dessa contração de átomo. Que ele
veja uma infinidade de universos, cada um dos quais tem o seu
firmamento, os seus planetas, a sua terra, na mesma proporção que o
mundo visível, nessa terra dos animais e finalmente dos ácaros nos
quais reencontrará aquilo que os primeiros deram, e encontrando ainda
nos outros a mesma coisa sem fim e sem descanso. Que ele se perca
nessas maravilhas tão espantosas em sua pequenez quanto as outras em
sua extensão.12
O ácaro é, num certo sentido, "o último objeto ao qual se pode chegar", o
limite do concebível, o ponto derradeiro alcançado pela imaginação que inflou
suas concepções até o limite além do qual ela não concebe mais nada. Ora,
tratando-se de fazer deste último objeto "o de nosso discurso (...) quero
mostrar-lhe dentro disso um abismo novo (...) uma infinidade de universos, cada
um dos quais tem o seu firmamento, os seus planetas, a sua terra, na mesma
proporção que o mundo visível", o todo dos objetos assim constituído por esta
nova divisão recebe o caráter atômico da certeza que o produziu já que ele se
revela estruturado como "todo este mundo visível [que] não é senão um traço
imperceptível no amplo seio da natureza". Pois tal como no esforço de divisão,
que no caso do ácaro leva até o "último objeto ao qual se pode chegar", o átomo
é definido pelo limite da potência do espírito em dividir a partir de um
primeiro movimento de divisão; semelhantemente, a estrutura do mundo visível
como um todo é de aparecer como um "traço" atômico, dado que indecomponível.
Por hipótese, se ainda fosse decomponível no momento mesmo em que aparece como
"traço", nós nos relacionaríamos a um objeto, montanha ou ácaro, e não ao todo
do mundo visível. Simultaneamente, ele é "imperceptível" porque define o limite
do perceptível. Não é temerário supor que o horizonte na sua compreensão
transcendental seja a determinação conceitual que Pascal tem em mente para
conceber aqui "todo este mundo visível" como um traço: traço ao mesmo tempo
provisório como o é o limite alcançado pela divisão atômica ou certa; traço,
todavia, definitivo, porque toda divisão, nada fazendo senão recuá-lo, não o
suprime jamais e o supõe sempre. O que é próprio deste horizonte ' do mundo
visível como todo ' é poder indefinidamente recuar e indefinidamente se
reconstituir na espessura mesma da linha que ele é: este último objeto obtido
pela divisão do ácaro é "agora [o objeto] de nosso discurso", nos diz Pascal. É
o novo ponto de partida de uma divisão imaginária na qual se pode "pintar não
apenas o universo visível", mas "uma infinidade de universos (...) na mesma
proporção que o mundo visível". O universo visível não se esvaneceu na divisão
imaginária, apenas é reconstituído mais longe, para além do precedente ponto de
chegada da divisão que o havia instaurado. Ele foi reconstituído numa
proximidade tão grande quanto o precedente, na imaginação ou na própria
concepção que o instaura como o fim da divisão: "se a nossa vista pára aí, que
a imaginação passe além; ela ficará mais depressa cansada de conceber que a
natureza de fornecer". Mas eis que a imaginação cansou de conceber porque parou
no último objeto concebido: a divisão imaginativa abriu o horizonte no seio do
qual os objetos estão dispostos como firmamento, planetas, terra e assim por
diante até o último. Este último objeto, sendo então alcançado pela imaginação,
confunde-se com o ponto de parada da própria divisão imaginativa. O limite do
concebível foi então atingido na medida da intenção que abrira este campo de
concepção. A imaginação é assim ela própria alcançada ' o que traduz a primazia
epistêmica e cartesiana do espírito ' e por isso mesmo ela já passou "além"
deste ponto de parada, deste "último objeto", isto é, dela mesma: ela
literalmente se transcendeu de modo a dar à visão um (novo) mundo visível a
ver, a fornecer a concepção na Natureza, isto é, nos objetos. A literalidade do
texto deve, com efeito, despertar nossa atenção: se a natureza não cansa de
fornecer proficuamente, é sob a condição e na medida de uma concepção que se
cansa de perguntar, de conceber, enfim de uma visão que "pára": o mundo visível
constituído por este ponto de parada se revela um "todo visível [como] um traço
imperceptível" que solicita novamente sua própria divisão. A prodigalidade da
natureza é então relativa a uma concepção que a relança sem cessar. A auto-
limitação pontual do espírito na sua divisão oferece objetos à visão, mas por
esta mesma razão é como que aspirada pelo arbitrário de seu ponto de parada em
direção a uma nova divisão. Este ponto de parada é, com efeito, arbitrário com
relação às coisas dado que é relativo à concepção do espírito e responde
somente aos pré-requisitos da certeza. Mas, posto que a natureza não é pródiga
senão pela solicitação do espírito, ela é então relativa a ele. Longe de
descrever a exterioridade mesma das coisas com relação ao espírito, a
"natureza" do fragmento La 199 ' que somente o termo infinito realmente poderá
descrever, como mostraremos ' designa a possibilidade do mundo visível. Este
mundo visível, porém, concebido em sua possibilidade, é apreendido como o fim
sempre disponível do esforço de concepção, o concebido atém-se à sua fonte e
como correlato sempre já lá na imaginação que o visa. Fazendo isso, Pascal nada
fez além de descrever o próprio campo do pensamentoque se oferece ao pensamento
certo, ou melhor, como pensamento certo.
O objeto certo, isto é, aquele da ciência é daqui em diante o único objeto ao
qual o homem se relaciona, objeto que não é portanto senão o inverso de si
mesmo. É por isso que este conhecimento só pode dar-se grosso modo,
constantemente condenado a ser retomado na medida da multiplicação de
experiências, como estabeleceu o Préface au Traité du Vide, condenado a jamais
esgotar a hidra do conhecível. Sabemos que Descartes pensava o cognoscível
limitado por sua relação com o espírito que conhece. Pascal pretende mostrar
que ela o torna, ao contrário, indefinidamente recuável.
A expressão "a realidade das coisas", no lugar da qual se obtém o átomo que
nosso pensamento gera, manifesta o alcance desse pressuposto. Esta realidade
das coisas, da qual o objeto certo nos distancia, visaria ela à existência
efetiva das "coisas nelas mesmas" e não mais "com relação a nós"? Se não se
pode a princípio excluir esta interpretação, nada impede, todavia, que se
compreenda que o átomo que nós geramos em lugar da realidade das coisas vise
essencialmente, na continuação das análises precedentes, à realitas mesma das
coisas, seu ser-coisa enquanto tal, à realitas rerum que não é nada além do
átomo de certeza que nossa concepção produz. Voltemos ao exemplo do ácaro: o
que é um ácaro? Sem dúvida um inseto considerado como o último objeto da
divisão. Mas igualmente "um abismo novo (...) [quando ele] oferece na pequenez
de seu corpo partes incomparavelmente menores, pernas com juntas, veias nas
pernas, sangue nas veias, humores nesse sangue, gotas nesses humores, vapores
nessas gotas (...) [Pode-se a partir dele] pintar não apenas o universo
visível, mas a imensidão que se pode conceber da natureza no âmbito dessa
contração de átomo (...) uma infinidade de universos, cada um dos quais tem o
seu firmamento, os seus planetas, a sua terra, na mesma proporção que o mundo
visível", isto é, na exata medida de nosso espírito que divide. Da mesma
maneira que o ácaro é inseto proporcionalmente ao mundo visível, ele próprio é
uma infinidade de universos na medida da divisão imaginativa. Qual é então a
realidade das coisas? Dito de outro modo: em que consiste seu ser-coisa
enquanto tal? Resposta: no fato de ser uma "contração de átomo", não somente um
átomo, mas uma contração de átomo; isto é, um átomo que é tal porque o espírito
contraiu nele mesmo um "âmbito" que compreende "uma infinidade de universos". O
ácaro é visível enquanto ácaro desde que não se veja a infinidade de universos
que ele compreende, dada a condição de não mais o dividir e de tomá-lo como "a
extrema fineza da natureza". Ele não é tal senão quando retido e contido na
visão estanque que assim temos dele, quando enfim o contraímos em átomo. A
realidade das coisas é assim uma atomicidade constituída por contração, uma
indivisibilidade obtida pela pausa da divisão, logo, por uma visão estanque:
ela é aquilo que é visto de tal maneira que, se dividida novamente, deixa de
ser (em resumo, isto descreve a intuitis mentis cartesiana). Ela resulta do
ponto de parada da divisão de nossa concepção e se confunde, pois, com o objeto
elaborado desta maneira, o qual se define por sua atomicidade com relação ao
ato do pensamento que, ao parar e se limitar, compreende algo de determinado,
de certo. Nós não geramos, portanto, senão átomos "em lugar de" [au prix de],
literalmente, "em comparação com", mas, ao mesmo tempo, "em troca de", isto é,
que ocupam o lugar [qui tiennent lieu de] da realidade das coisas no espírito:
pois não há realitas, res senão por contração, na medida do espírito, o que se
sabe desde as Regulae ou, ao menos para Pascal, desde o Discurso do Método ou
das Meditationes. O cartesianismo do fragmento La 199 não pode aparecer mais
acabado que nesta expressão que traz sua efígie.
É preciso, por fim, destacar que a distinção entre existência em si das coisas
e seu ser em relação a nós só pode ser posta a partir da distinção dos modos de
consideração das coisas que rege o cartesianismo de Descartes, mas prolongando-
o além daquilo que ele explicitamente concebe. Com efeito, convém sublinhar que
esta distinção das considerações jamais deu lugar no próprio Descartes ' e
sobretudo não na Meditatio VI ' à constituição de duas ordens de coisas, pois a
única ordem possível é precisamente aquela que subordina a coisa ao
conhecimento certo, a consideração das coisas nelas mesmas não chega jamais a
se constituir em uma ordem, já que ela promove essencialmente a dúvida. É
exatamente a consideração das coisas nelas mesmas que é duvidosa, pois as
coisas nelas mesmas não podem ser objeto de nenhuma decisão epistêmica. Neste
sentido, o cartesianismo de Descartes não fundou a duplicação de uma ordem de
coisas nelas mesmas por aquela das coisas com relação a nós, pois somente a
segunda é determinável. Conseqüentemente, a ordo rerum é em Descartes sempre e
unicamente aquela das coisas "em relação a nós". Ou, se se preferir, a coisa
nela mesma é sempre somente a natureza simples (e seus compostos) nas Regulae e
a idea rei (res qua idea) nas Meditationes porque não há outra(s) realitas que
se ofereça(m) à coisa a não ser esta(s).13
Ainda que se suponha que a expressão vise em Pascal o mesmo que o francês
contemporâneo entende por ela, ou seja, a distinção entre as coisas
independentes de nós em sua efetividade e as coisas enquanto relativas a nós, a
intenção do fragmento La 199 descrita por nós não seria menos exata, pois,
salvo erro de nossa parte: 1) esta análise da "realidade das coisas" tem uma
intenção propriamente apologética no nosso fragmento e não é mais abordada em
outro lugar; 2) de todo modo, ela não o é num contexto científico precisamente
porque para Pascal a ciência nasce da consideração das coisas em relação a nós;
3) a "realidade das coisas" que estaria aqui em questão só adquire sentido em
relação ao pensamento verdadeiro da criação, do qual a consideração do mundo '
que é constituída de objetos ' não dá conta e por isso mesmo atinge o limite do
concebível: "O mundo visível todo não é senão um traço imperceptível no amplo
seio da natureza. Idéia alguma se aproxima dela, por mais que expandamos nossas
concepções para além dos espaços imagináveis, não geramos senão átomos em lugar
da realidade das coisas. (...) Enfim, é a maior característica sensível da
onipotência de Deus que a nossa imaginação se perca nesse pensamento."14 Deus
está tão mais escondido no Mundo quanto este mundo é um mundo de objetos
certos, isto é, o mundo que o homem gera pela metodicidade da relação que a ele
lhe abre o acesso. Deus está tão desesperadamente ausente do mundo que o homem
nele não encontra senão a si mesmo, entre o infinito e o nada, ou ainda entre o
infinitamente grande e o infinitamente pequeno. E a realidade das coisas, por
contraste com este átomo que nós geramos em seu lugar e que a exemplo do ácaro
nossa imaginação pode indefinidamente abrir em "um abismo novo", é então, num
certo sentido, o limite mesmo do que podemos conceber. E por esta razão este
limite é interno à própria concepção.
Conseqüentemente, é a "Desproporção do homem" que descreve a essência da
finitude humana; desproporção do homem que não é tanto aquela do homem com
relação à natureza, mas sim aquela que a mediação da natureza ' ou seja dos
objetos de que o conhecimento se constitui ' torna patente: ela é a
desproporção do homem com relação a seu próprio lugar, da cogitatio a seu
cogitatum. Trata-se de uma posição de fundo da relação de Pascal com a
filosofia, como o prova o Entretien avec M. De Sacy ' dentre outros textos e a
despeito da cronologia incontestável que os separa. Esse texto lhe dá uma
primeira formulação na teoria das contrariedades, em que o homem aparece
essencialmente desproporcional, mas somente em razão da contrariedade do par
miséria/grandeza, isto é, da desproporção entre nossa consciência dos deveres e
nossa impotência para cumpri-los. Mas, como Vincent Carraud mostrou em seu
Pascal et la Philosophie(1992), esta primeira compreensão da desproporção do
homem não integra o cartesianismo porque não descreve sua compreensão do homem.
Também é preciso que este par miséria/grandeza encontre um modo de dar conta do
cartesianismo, o que será feito na segunda enunciação do par miséria/grandeza '
grandeza do pensamento e miséria do corpo ', dando lugar a um segundo
tratamento do pensamento da desproporção do homem. Entretanto, este ainda não
dirá o essencial, posto que o fragmento La 199 terá a tarefa de repeti-la, mas
concebendo-a como essência mesma do pensamento, ou seja, como des-proporção do
homem em sentido estrito. O homem é cindido por uma dupla proporcionalidade ou
relação constitutiva da essência do pensamento. A primeira é aquela do
cognoscível a seu espírito que lhe abre o próprio campo do conhecimento; a
segunda é a do espírito ao conhecido que o é limitadamente, e por isso mesmo
indefinidamente, unicamente na medida e na proporção da limitação introduzida
pelo ato mesmo do conhecimento que não conhece senão reduzindo o conhecido ao
certo, contraindo a coisa-pensada em átomo (de certeza). Sendo assim, aquilo
por meio de que o conhecimento é possível marca essencialmente sua nulidade.
II. Gostaríamos, para finalizar, de rapidamente mostrar que Pascal conduz assim
o cartesianismo à sua mais alta possibilidade, assumindo o que impõe a essência
da verdade como certeza para avaliar esta desproporção. Este ponto está
claramente visível se percebermos que em La 199 se repete um célebre texto
cartesiano para se criticar o caráter que Descartes pretende lhe dar.
Trata-se da passagem das Primeiras respostas, na qual Descartes expõe a
diferença entre o indefinido e o infinito. Para fazer isso, ele afirma:
Direi aqui primeiramente que o infinito, enquanto infinito, não é
verdadeiramente compreendido, mas que é todavia entendido; pois
entender clara e distintamente que uma coisa seja tal que nela não
possamos encontrar limites é claramente entender que ela é infinita.
E eu acrescento aqui a distinção entre indefinido e infinito. Não há
nada que eu nomeie propriamente infinito senão aquilo em que não
encontro limite em nenhuma das partes, sentido no qual somente Deus é
infinito. Mas as coisas nas quais somente sob algum aspecto não vejo
fim, como a extensão de espaços imaginários, a variedade de números,
a divisibilidade das partes da quantidade e outras coisas
semelhantes, chamo-as indefinidas, e não infinitas, porque elas não
são sem fim e sem limite em todas as partes. Além disso, faço a
distinção entre a razão formal do infinito, ou infinidade, e a coisa
que é infinita. Pois, quanto à infinidade, ainda que a entendamos ser
muito positiva, nós não a entendemos contudo senão de um modo
negativo, a saber, nós não notamos na coisa nenhuma limitação. E
quanto à coisa que é infinita, nós a entendemos verdadeiramente
positivamente, mas não adequadamente, isto é, nós não compreendemos
tudo o que nela é inteligível.15
A infinidade é portanto tal que, ainda que nós entendamos que ela é a mais
positiva, ela deve contudo ser entendida de uma certa forma negativa. Que
sentido pode ter este enunciado que parece ser uma contradição em termos? Para
desfazer a dificuldade, convém distinguir entre o modo de intelecção do
infinito e o que ele alcança. Tratando-se do infinito, a evidência não o pode
compreender, ou seja, abarcá-lo com sua intelecção, mas somente experimentar o
excessivo e constante ultrapassamento ao qual seu esforço de ideação a submete,
sempre ultrapassada por todas as partes pelo que é em todas as partessem
limite. A evidência que tenta entender Deus só o entende negatio modo, como o
que sempre escapa a todo esforço de apreensão. Mas o que então é entendido? A
idéia mesma do infinito, ou seja, de um aliquid que é positivamente algo, uma
natureza verdadeira e imutável. Por quê? Porque, sendo toda idéia idéia de uma
coisa (ver AT VII, 44, 4), o que é entendido negatio modo é todavia alguma
coisa realmente inacessível e portanto positivamente infinita:16 o próprio de
toda idéia é ser aquilo em que se realiza a conversão da evidência em seu
conteúdo certo, objetivamente dado. Ser positivamente, realmente o correlato de
um modo negativo de intelecção, é isto mesmo o infinito, enquanto dado em sua
idéia: aí está a realidade objetiva do infinito, a idéia certa do infinito,
"idea maxime vera et maxime clara et distincta" (AT VII, 46, 27-28).
A questão, levada até o ponto onde bem podemos reconhecer o esforço pascaliano
de conceber o infinitamente grande, torna-se: o que designa então esta natureza
dada no infinito, isto é, na razão formal do infinito? Sabemos que a resposta
de Descartes é que o infinito é Deus como dado certo na idéia que dele temos. E
esta idéia é apreendida a partir de uma evidência negatio modo que, realizando-
se, torna-se certa.
Mas, no fundo, do que ela está certa? ' poderia lhe perguntar Pascal. Pois ela
de fato só está certa desta capacidade de realizar que tem a evidência em seu
escape em direção a um que quer que seja de diferente dela, que a mens vê,
descobre e dele se assegura: ela descobre sua própria capacidade de receber
como coisa evidente, objeto, o que lhe é dado ver nela mesma, recebido nela
como objeto, isto é, como um conteúdo real (positivo). Ao fazer isso, porém,
ela se relaciona apenas à pura objetividade de todo objeto possível, sempre
indefinidamente reconduzida no esforço próprio do espírito de consubstanciar um
saber. A mens, na idéia de infinito, assegura-se de sua receptividade
(evidência) enquanto capaz de compreender, isto é, certa. E isto não é nada
mais que a natureza como o todo dos objetos pensáveis. Não é, portanto, senão
por um golpe de força que esta razão formal do infinito ou infinidade é fixada,
estancada sobre uma natureza acabada ainda que infinita ' "isto é, para me
explicar em uma palavra, [sobre uma natureza] que fosse Deus" (conforme o golpe
de força do Discurso do Método, AT VI, 34, 23-24)', ao passo que corretamente
descrita, isto é, como o faz o fragmento La 199, ela é suscetível de constituir
dois infinitos que o espírito jamais esgota, mas que têm a formalidade da
natureza como totalidade de todos os objetos pensáveis possíveis. O infinito
cartesiano é portanto a-teu, natureza, não um nome divino e ainda menos a idéia
de Deus. Percebemos agora como Pascal pôde substituí-la indiferentemente pelo
nome de natureza. Compreendemos também como, voltando à fonte da constituição
da idéia de infinito, não de maneira a contestar-lhe o modo de constituição,
mas, ao contrário, explorando-a exatamente segundo o que ela supõe para mostar
que o que é apreendido não é o que Descartes acreditou, Pascal pôde destituir a
metafísica acabada, isto é, cartesiana, de sua pretensão.