O amor é mais frio que a morte: negatividade, infinitude e indeterminação na
teoria hegeliana do desejo
Of course all life is a process of breaking down,
but the blows that do the dramatic side of the work[...]
don't show their effect all the once.
(Scott Fitzgerald)
Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está
fortemente consolidada, e a singularidade (Einzelnheit), como convém,
tornou-se tanto mais insignificante (gleichgültiger); época em que a
universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e
as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do indivíduo na
obra total do espírito só pode ser mínima. Assim, ele deve esquecer-
se, como já o implica a natureza da ciência. Na verdade, o indivíduo
deve vir-a-ser, e também deve fazer o que lhe for possível; mas não
se deve exigir muito dele, já que tampouco pode esperar de si e
reclamar para si mesmo.2
Essas afirmações são importantes por sintetizarem tudo aquilo que várias linhas
hegemônicas do pensamento filosófico do século XX imputaram a Hegel. Filósofo
da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da
diferença e das aspirações de reconhecimento do individual às estratégias de
síntese do conceito. Expressão mais bem acabada da crença filosófica de que só
seria possível pensar através da articulação de sistemas fortemente
hierárquicos, com o conseqüente desprezo pela dignidade ontológica do
contingente, deste mesmo contingente que "tampouco pode esperar de si e
reclamar para si mesmo". Defesa de uma história na qual o presente apresentaria
uma "universalidade do espírito fortemente consolidada", história teleológica
esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda
fossem possíveis.3
Em todas essas acusações transparece o que teria sido a impossibilidade
hegeliana em dar conta de um particular que não deveria nem poderia ser
reduzido à condição de mera particularidade. Como se, em Hegel, o particular
fosse apenas a ocasião para a realização concreta do universal, não tendo, com
isto, realidade alguma em si. Em todas estas acusações parece ressoar o
diagnóstico de Adorno: "Se Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre
o universal e o particular até uma dialética no interior do próprio particular,
o particular teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este
direito ' tal como um pai repreendendo seu filho: "Você se crê um ser
particular" ', ele o abaixe no nível de simples paixão e psicologize
(psychologistisch) o direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto não é
apenas um pecado original individual do filósofo".4 Isto não seria um pecado
individual do filósofo porque seria um pecado de todo seu sistema.
Mas podemos nos perguntar sobre a correção de tais interpretações. Hegel teria
simplesmente ignorado as exigências necessárias para o reconhecimento da
individualidade ou estaria, na verdade, procurando construir as condições para
uma recompreensão dos processos de individuação? Estaríamos diante de um traço
definidor dos limites da filosofia hegeliana ou esse seria o ponto mais
importante de um amplo projeto que visa fornecer um conceito renovado de
individualidade em relação ao qual ainda não fomos capazes de nos medir?
Sabemos que Hegel desenvolve seu conceito de individualidade através da noção
de consciência-de-si. No entanto, esquecemos com freqüência como a consciência-
de-si hegeliana não é um conceito mentalista próprio à reflexividade de uma
subjetividade auto-suficiente que se delimita em relação ao que lhe é exterior.
Na verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um conceito relacional que visa
descrever certos modos de imbricação entre sujeito e outro que têm valor
constitutivo para a experiência do Si mesmo. Por ser a consciência-de-si um
conceito relacional, seus atributos maiores no campo prático (como
determinação, autonomia, liberdade e imputabilidade) só podem ser pensados em
seu verdadeiro sentido quando abandonamos a crença de que a experiência da
ipseidade está assentada na entificação de princípios formais de identidade e
unidade. Até porque, a consciência-de-si não se funda na apreensão imediata da
auto-identidade, mas naquilo que nega sua determinação imanente. Se quisermos
utilizar um vocabulário contemporâneo, diremos que a consciência-de-si
hegeliana é o locus de uma experiência fundamental de não-identidade que se
manifesta através das relações materiais do sujeito ao outro. Relações essas
que são pensadas a partir das figuras do trabalho, do desejo e da linguagem.
Mas dizer que a consciência-de-si é um conceito relacional é ainda dizer muito
pouco. Pois isto pode simplesmente significar que toda subjetividade é, desde o
início, dependente de uma estrutura intersubjetiva de relações que a constitui
e a precede. No entanto, parece que Hegel quer dizer algo a mais. Para tanto,
precisaremos compreender melhor quem é este outro com o qual me relaciono em
experiências constitutivas que se dão no campo do trabalho da linguagem e do
desejo. Trata-se apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade
mais profunda que está para além do que determina uma individualidade como
objeto de representação mental, um para além que me coloca em confrontação com
algo que, do ponto de vista da consciência, é indeterminado?
Se seguirmos esta segunda hipótese, talvez compreendamos melhor porque, para
Hegel, a individualidade livre (ou seja, aquela individualidade que realizou
seu processo de formação) é aquela que leva ao campo da determinação a força
disruptiva da confrontação com o indeterminadoe que, por isso, tem a capacidade
de fragilizar toda aderência limitadora a uma determinidade finita. Talvez seja
assim que devamos entender afirmações maiores de Hegel como: "A liberdade não
se vincula pois nem ao indeterminado nem ao determinado, mas ela é ambos".5 Ou
ainda: "O Eu é a passagem(Übergehen) da indiferenciação indeterminada para a
distinção determinada e põe uma determinação como um conteúdo e objeto".6
Lembremos que, por ser passagem, o Eu nunca deixa de conservar os momentos que
ele coloca em relação através do movimento de passar no oposto. O que nos leva
a dizer que ele deve conservar algo do que ainda não é um Eu, algo que é pré-
individual.
Esta confrontação com o indeterminado enquanto processo fundamental de
constituição da individualidade ficará mais clara se nos perguntarmos pela
função de experiências limitescomo aquelas desempenhadas pela morte e pela
angústia no processo de formação da consciência-de-si. Veremos que, longe de
serem meros motivos de uma leitura demasiado "existencialista" da fenomenologia
hegeliana ou ainda de uma temática moralizadora vinculada a um processo de
formação ligado ao ressentimento e à resignação diante da finitude (como quer
Deleuze e, de uma certa forma, Gerard Lebrun),7 a morte e a angústia no caminho
de formação da consciência-de-si têm funções lógicas bastante precisas. Pois
elas indicam o processo necessário de abertura àquilo que, do ponto de vista da
consciência imersa em um regime de pensar marcado pela finitude da
representação e dos modos de categorização do entendimento, só pode aparecer
como desprovido de determinação.8 Neste sentido, não deixa de ser irônico
lembrar que a intuição de Kojève a respeito da centralidade da confrontação com
a morte no processo de formação da consciência-de-si não era exatamente
incorreta. Restava apenas descrever de maneira mais adequada sua função
fenomenológica.
Por outro lado, insistir neste aspecto nos permitirá mostrar como, a partir de
uma perspectiva hegeliana, o processo de reconhecimento da individualidade não
pode estar restrito ao simples reconhecimento da reivindicação de direitos
individuais positivos que não encontram posição em situações normativas
determinadas, como o quer Honneth ao afirmar não ser possível compreender
porque a "antecipação da morte, seja a do próprio sujeito seja a do Outro,
deveria conduzir a um reconhecimento da reivindicação de direitos
individuais".9 O mesmo Honneth para quem a experiência da indeterminação é
vivenciada pela consciência basicamente como fonte de sofrimento, como: "um
estado torturante de esvaziamento".10
De fato, a questão não pode ser respondida se compreendermos o que exige
reconhecimento como sendo direitos individuais, expressões singulares da
autonomia e da liberdade. Mas não é isto que Hegel tem realmente em vista.
Tanto é assim que ele não teme afirmar que o não arriscar a vida pode produzir
o reconhecimento enquanto pessoa, mas não enquanto consciência-de-si autônoma e
independente. Como se a verdadeira autonomia da consciência-de-si só pudesse
ser posta em um terreno para além (ou mesmo para aquém) da forma da pessoa
jurídica portadora de diretos positivos e determinações individualizadoras. Por
isso, tudo nos leva a crer que Hegel insiste que se trata de mostrar como a
constituição dos sujeitos é solidária da confrontação com algo que só se põe em
experiências de negatividade e des-enraizamento que se assemelham à
confrontação com o que fragiliza nossos contextos particulares e nossas visões
determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-
se diante desta negatividade é condição para a constituição de um pensamento do
que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento também
não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por Habermas
ao afirmar:
Eu me compreendo como "pessoa em geral" e como "indivíduo
inconfundível" que não se deixa substituir por ninguém em sua
biografia. Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum com
todas as outras pessoas as propriedades pessoais essenciais de um
sujeito que conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um indivíduo
inconfundível, que responde, de maneira insubstituível, por uma
biografia tão formadora quanto singular.11
Interpretações desta natureza entificam uma noção personalista de
individualidade, noção ligada ao Eu como figura de uma determinação completa.
Isto nos impede de pensar a fluidez de um conceito de individualidade onde toda
determinação seria corroída por um fundo de indeterminação que fragiliza sua
identidade e sua fixidez. Por outro lado, tais interpretações tendem a
constituir a universalidade como conceito normativo e essencialista ao demarcá-
la a partir de um conjunto determinado de "propriedades pessoais essenciais"
que não são objetos de questionamento ou conflito, mas motor de toda demanda
presente em conflitos sociais. Esta é uma via que nos leva, necessariamente, à
substancialização do conceito de sujeito. Como veremos, é exatamente para
impedir derivas desta natureza que Hegel insiste tanto na necessidade de o
trajeto em direção à universalidade passar pelo "trabalho do negativo" e pelo
"caminho do desespero".
Ontogêneses e conflitos
Se reconstruirmos o dispositivo fundamental de desenvolvimento da teoria
hegeliana da formação da consciência-de-si, veremos que se trata de partir de
considerações sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas dos
sujeitos, uma ontogênese que se desenvolve através de processos de socialização
e de individuação. Trata-se de se perguntar sobre a gênese empírica de nossas
habilidades cognitivas e de nossos esquemas de determinação racional da ação.
No entanto, em vez de partir da análise das práticas de socialização através de
identificações que ocorrem em núcleos elementares de interação social (família,
sociedade civil, instituições, Estado), Hegel prefere, inicialmente, fornecer
algo como uma matriz fenomenológica geral para a inteligibilidade de tais
processos. Trata-se da dialética do Senhor e do Escravo (DSE).
Conhecemos tentativas contemporâneas de invalidar o papel central da DSE na
reflexão sobre os processos de formação e reconhecimento da consciência-de-si.
Robert Williams dirá, por exemplo: "Não é o processo completo de reconhecimento
recíproco, mas o fracasso em realizar tal reconhecimento que será enfatizado.
Por esta razão, a figura do Senhor/Escravo tende a dominar o relato sobre a
intersubjetividade na Fenomenologia".12 Apenas no seu sistema de maturidade
Hegel teria enfim fornecido todo este "processo completo". Mas leituras desta
natureza tendem a esquecer como a Fenomenologiajá é a versão completa do
sistema a partir do ponto de vista da consciência,assim como a Ciência da
Lógicaé a versão completa do sistema a partir do ponto de vista do saber
objetivo. Neste sentido, nunca é prudente relativizar o que a Fenomenologianos
traz, como se tratasse de processos incompletos.
Na verdade, o desconforto de vários comentadores hegelianos com a DSE vem
principalmente do fato de ela nos mostrar como os processos de reconhecimento
social são mediados por um desejo que instaura o conflito enquanto solo
ontológico, por se apresentar desde o início como aquilo que constitui relações
apenas a partir de dinâmicas de dominação e servidão. Através do desejo,
procuro submeter o outro à condição de objeto desprovido de autonomia, outro
cuja essência consiste apenas em ser suporte do meu desejo. Mas como o desejo é
o primeiro modo de relação ao outro, então o conflito que ele instaura tem o
peso de um dado ontológico para o modo de ser da consciência-de-si.
No entanto, se assim for, parece haver um equívoco neste esquema hegeliano.
Pois: "De acordo com Hegel, o processo de reconhecimento começa com o fato de o
Eu estar fora de si, de ele estar cancelado como ser-para-si e intuir si-mesmo
apenas no outro. No entanto, esta não é uma estrutura de luta, mas do amor".13
Um conflito com o outro só faz sentido por pressupor que o outro deve e é capaz
de me reconhecer. Se acreditasse que o outro não é capaz (por ser, por exemplo,
louco) ou não deve me reconhecer (por ser, por exemplo, alguém que desprezo),
então não haveria demanda de reconhecimento, não haveria tentativa de submeter
o sistema de interesses do outro ao meu desejo. Mas se creio que o outro deve e
é capaz de me reconhecer, é porque há um tipo prévio de vínculo que poderíamos
chamar de "amor" e que serve aqui como base intersubjetiva inicial e não
problemática de relações. Assim, Hegel deveria ter começado a descrição dos
processos conflituais de reconhecimento entre sujeitos a partir da apresentação
do amor como fundamento e base normativa das demandas sociais de reconhecimento
presentes em processos de interação. Algo que, por sinal, ele faz em seus
textos de juventude, como na Filosofia do espírito,de 1805.
Retomar a DSE, entretanto, pode nos explicar porque Hegel não tem como
concordar com tentativas contemporâneas de recuperar o amor como "estrutura
geral de reconhecimento recíproco"14 que deveria ser pressuposta como solo
intersubjetivo primário para o desenvolvimento seguro e normatizado de todo e
qualquer processo de determinação social da individualidade. Isto ao menos se
pensarmos o amor a partir do paradigma comunicacional de relações de mútua
dependência e complementaridade. Pois, ao contrário, talvez Hegel queira
mostrar que os processos de interação e socialização são mediados por um desejo
cuja opacidade e negatividade problematiza de maneira decisiva a
intersubjetividade primária do amor.15 Desejo que só poderá ser satisfeito ao
reconhecer-se em uma individualidade onde o Eu sempre vai estar, de uma certa
forma, irredutivelmente fora de si; desejo cuja satisfação nos leva, inclusive,
ao abandono do Eu como forma altamente individuada.
É certo que o desejo enquanto relação negativa para com o objeto exige ser
superado. No entanto, tal superação não implica recuperar alguma forma de
interação recíproca entre sujeitos fortemente individualizados e determinados,
muito menos procurar pôr processos de indiferenciação simbiótica pré-pessoais
como horizonte de desenvolvimento de relações sociais. Como gostaria de
mostrar, a experiência da negatividade do desejo será, de certa maneira,
conservada como base para a reconstrução dos modos de relação a si e ao outro.
Isto obrigará, no limite, à problematização de todo conceito de amor ligado a
formas de paradigmas comunicacionais.16
Se voltarmos ao texto da Fenomenologia, veremos que o desejo aparece pela
primeira vez em um contexto esclarecedor. Trata-se de uma discussão a respeito
das condições para a realização da unidade entre consciência-de-si e
consciência de objeto. Ao lembrar que a noção de "fenômeno", enquanto
"diferença que não tem em si nenhum ser" (já que é apenas o aparecer para-um-
Outro) não era figura da unidade da consciência-de-si consigo mesma, mas, ao
contrário, era a própria clivagem (já que a essencialidade está sempre em um
Outro inacessível ao saber: a coisa-em-si), Hegel afirma: "Essa unidade [da
consciência-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a
consciência-de-si é desejo em geral (Begierde überhaupt)".17
O que significa esta introdução do que Hegel chama aqui de "desejo em geral",
ou seja, não desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido
geral, como modo de relação entre sujeito e objeto? A partir do contexto,
podemos compreender que a unidade da consciência-de-si com o que havia se
alojado no "interior das Coisas" como essência para além dos fenômenos, unidade
entre o saber e a determinação essencial dos objetos, só será possível a partir
do momento em que compreendermos as relações entre sujeito e objeto não apenas
como relações de conhecimento, mas primeiramente como relações de desejo e
satisfação.
A princípio, uma afirmação desta natureza parece algo totalmente temerário.
Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que
submete as expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas? Ou estaria
ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche e
Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é
racional e legítimo) através dos interesses postos na realização de fins
práticos, interesses que nos levam a recuperar a dignidade filosófica da
categoria de "desejo"?
De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso. Neste sentido, podemos
seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: "Hegel parece
estar dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar
como uma reivindicação objetiva é o problema de satisfação do desejo, que a
'verdade' é totalmente relativizada por fins pragmáticos [...] Tudo se passa
como se Hegel estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos séculos XIX e
XX, que o que conta como explicações bem-sucedidas dependem de quais problemas
práticos queremos resolver [...] que o conhecimento é uma função de interesses
humanos".18
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em alguma
forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade à
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não
ser que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados
pelo particularismo de apetites e inclinações, mas que, ao se engajar na
dimensão prática tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos
realizam necessariamente as aspirações universalizantes da razão. Lembremos
ainda que, por não admitir distinções estritas entre empírico e transcendental,
Hegel não está disposto a operar rupturas entre desejo patológico e vontade
livre cujo reconhecimento seria o fundamento para a constituição do universo
dos direitos. Há algo da universalidade da vontade livre que já se manifesta no
interior do desejo.
Colocações desta natureza parecem ir na contramão de tendências hegemônicas do
pensamento crítico do século XX. Basta lembrar, por exemplo, desta questão
sempre posta por teóricos da Escola de Frankfurt, questão animada pela
psicanálise freudiana com sua descrição da natureza conflitual dos processos de
socialização no interior da família e de internalização da Lei social: o que é
necessário perder para se conformar às exigências de racionalidade e
universalidade presentes em processos hegemônicos de socialização do desejo? Ou
ainda: qual é o preço a pagar a fim de viabilizar tais exigências? Quanto
devemos pagar para sustentar afirmações como: "A verdadeira liberdade é,
enquanto eticidade, o fato de a vontade não ter finalidades subjetivas, ou
seja, egoístas, mas um conteúdo universal"?19 Como disse Adorno, não estaríamos
aí diante da tentativa de "psicologizar o direito da humanidade como se fosse
narcisismo"?
Tais questões têm conseqüências maiores. Tomemos, por exemplo, o caso de
Adorno, para quem os modos de organização da realidade no capitalismo avançado,
assim como os regimes de funcionamento de suas dinâmicas de interação social,
de seus núcleos de socialização, eram dependentes da implementação de uma
metafísica da identidade. Uma metafísica que guiaria a ontogênese das
capacidades prático-cognitivas dos sujeitos através da internalização de
exigências de unidade que orientam a formação do Eu e reprimem o que é da ordem
do corpo, das pulsões e da sexualidade (em suma, do desejo). Assim, se Adorno
pode dizer que: "identidade de si e alienação de si estão juntas desde o
início",20 é principalmente porque a socialização que visa constituir
individualidades segue a lógica da internalização de uma Lei repressiva da
identidade. Daí afirmações como: "A consciência nascente da liberdade alimenta-
se da memória (Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, não ainda guiado por um
Eu sólido. Quanto mais o Eu restringe (zügeln) tal impulso, mais a liberdade
primitiva (vorzeitlich) lhe parece suspeita pois caótica".21 Afirmações que
demonstram como análise da realidade social, crítica da metafísica da
identidade e crítica da ontogênese das capacidades prático-cognitivas estariam
absolutamente vinculadas. Um vínculo que legitimaria Adorno a voltar-se contra
Hegel, o mesmo Hegel que não teria compreendido que a violência do Universal
realizando-se não é idêntica à essência dos indivíduos, mas contrária.
No entanto, devemos insistir que Hegel é sensível àquilo que não se determina
integralmente de maneira positiva através de processos de socialização e
individuação. Ele sabe que há um caminho complexo até a realização da
possibilidade de tais processos preencherem exigências universalizantes. Por
isso, em Hegel, a ontogênese do sujeito é o reconhecimento de uma anterioridade
ontológica do conflito que se manifesta nesta ligação necessária entre
subjetividade e negatividade.
Sobre tal anterioridade ontológica, lembremos como Hegel chega a "naturalizar a
noção de conflito" através de sua filosofia da natureza, isto ao instaurá-lo no
interior de seu conceito de "vida". Vida cujo movimento será recuperado de
maneira reflexiva no interior da determinação da consciência-de-si. Ou seja,
vida que fornecerá o modelo do processo reflexivo de autoposição próprio à
consciência-de-si. Insistir nesta complementaridade é inclusive maneira de
lembrar que aquilo que se manifesta inicialmente como exterioridade em relação
à consciência-de-si (a natureza, a mesma na qual Adorno verá o signo da
emancipação do sujeito através da suspensão de sua dominação pela razão)
fornecerá o modelo de constituição do conceito de individualidade.
A fluidez absoluta da vida
Sabemos como, para a geração de Hegel, a filosofia moderna deveria ultrapassar
um sistema de dicotomias que encontrara sua figura mais bem acabada na maneira
kantiana de definir o primado da faculdade do entendimento na orientação da
capacidade cognitiva da consciência. Hegel partilha o diagnóstico de pós-
kantianos como Fichte e Schelling para quem, na filosofia kantiana, o primado
da reflexão e do entendimento produziu cisões irreparáveis. Daí porque "o único
interesse da razão é o de suspender antíteses rígidas",22 como aquelas que
orientam as distinções entre sujeito e objeto, forma e matéria, receptividade e
espontaneidade, natureza e subjetividade.
Em Hegel, uma das primeiras maneiras de definir o modo de anulação de tais
dicotomias foi a tematização de uma espécie de solo comum, de fundamento
primeiro, a partir do qual sujeito e objeto se extrairiam, na mais clara
tradição schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Daí porque Hegel
poderá afirmar, na juventude: "Pensar a pura vida, eis a tarefa", já que "A
consciência desta pura vida seria a consciência do que o homem é".23 Neste
sentido, ter a vida por objeto do desejo é reconhecer, no próprio objeto, a
substância que forma consciências-de-si. Não é por outra razão que Hegel
apresenta a vida logo na entrada da seção dedicada à consciência-de-si, na
Fenomenologia do Espírito. Enquanto consciência que reconhece as dicotomias nas
quais uma razão compreendida a partir da confrontação entre sujeito e objeto se
enredara, a consciência-de-si procura um background normativo
intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interação
entre sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este
background.
No entanto, a vida é ainda uma figura incompleta porque seu movimento não é
para-si, ou seja, não é reflexivamente posto e apreendido. Não se trata aqui de
simplesmente negar, através de uma negação simples, o que a reflexão sobre a
vida traz. De fato, há uma certa continuidade entre a vida e a consciência-de-
si claramente posta por Hegel nos seguintes termos: "A consciência-de-si é a
unidade para a qual é a infinita unidade das diferenças, mas a vida é apenas
essa unidade mesma, de tal forma que não é ao mesmo tempo para si mesma".24 Ou
seja, a diferença entre consciência-de-si e vida é afirmada sobre um fundo de
semelhanças.
Mas como Hegel compreende a vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira
esquemática, podemos dizer que a vida é fundamentalmente compreendida a partir
da tensão entre a universalidade da substância que define o vivente e a
particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora das formas
viventes (espécies). Esta tensão entre unidade e indivíduo produz uma forma de
oposição que Hegel havia chamado, em Diferença sobre os sistemas de Fichte e
Schelling,de "o fator da vida" (Faktor des Lebens), para descrever o motor de
um movimento no interior da vida que visa a superação de tal oposição. Por
tender em direção a esta superação, a vida pode aparecer como primeira figura
da infinitude. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao apresentar o
conceito de infinitude no capítulo sobre o entendimento, na Fenomenologia do
espírito: "Essa infinitude simples ' ou o conceito absoluto ' deve-se chamar a
essência simples da vida, a lama do mundo, o sangue universal".25 Hegel
descreve assim o ciclo da vida:
Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A essência é a
infinitude, como ser-superado de todas as diferenças [a vida é o que
retorna sempre a si na multiplicidade de diferenças do vivente], o
puro movimento de rotação, a quietude de si mesma como infinitude
absolutamente inquieta, a independência mesma em que se dissolvem as
diferenças do movimento; a essência simples do tempo que tem, nessa
igualdade-consigo-mesma, a figura sólida do espaço. Porém, nesse meio
simples e universal, as diferenças também estão como diferenças, pois
essa fluidez universal (allgemeine Flüssigkeit) [da vida como
unidade] só possui sua natureza negativa enquanto é um superar das
mesmas, mas não pode superar as diferenças se essas não têm um
subsistir.26
Este ciclo demonstra como há uma cisão (Entzweiung) no interior da vida. Hegel
chega a falar que a vida conhece apenas uma unidade negativa absoluta (absolut
negative Einheit) consigo mesma. Isto significa que, por um lado, ela é
substância universal que passa por todos os viventes. Daí o uso importante de
uma metáfora como "fluidez" que indica o que não pode se estabilizar em uma
determinidade fixa, o que tendencialmente se manifesta como princípio de
indeterminação. Mas, por outro, ela é tendência a diferenciações cada vez mais
visíveis que recebem formasindependentes (selbstståndigen Gestalten) cada vez
mais determinadas. Como vemos, há um conflito interno à vida entre
indeterminação e determinação. Conflito que faz com que a posição da
individualidade seja a divisão de uma fluidez indiferenciada (unterschiedslosen
Flüssigkeit) que, por sua vez, só pode ser posta através da dissolução da
própria individualidade. É pensando em tal conflito que Hegel dirá:
A inadequação (Unangemessenheit) do animal à universalidade [da vida]
é sua doença original e o germe interno de sua morte. A superação
desta inadequação é ela mesma a execução deste destino [...] [já que]
na natureza, a universalidade só acede ao fenômeno desta maneira
negativa que consiste em superar a subjetividade.27
Hegel quer insistir que, na natureza, a vida só pode alcançar a universalidade,
esta fluidez fundamental, através da dissolução da individualidade, daí porque
o organismo morre de uma causa interna, ele não pode se reconciliar com a
universalidade. É por não ser capaz de reconciliar a individualidade com o
universal que a natureza é uma figura imperfeita do Espírito. Ela chega a
desenvolver uma certa reconciliação, ela também imperfeita: o gênero (Gattung).
Mas, do ponto de vista do gênero, todos os indivíduos já estão mortos. Ou seja,
a assunção de si como gênero apenas é uma reconciliação que, mais uma vez,
opera uma negação simples da individualidade. Daí porque: "O objetivo da
natureza é matar-se a si mesma e quebrar sua casca, esta do imediato, do
sensível, queimar-se como fênix para emergir desta exterioridade rejuvenescida
como espírito".28 O que leva Hegel a afirmar, ao final, que a vida: "é o todo
que se desenvolve, que dissolve seu desenvolvimento e que se conserva simples
nesse movimento".29
Podemos mesmo dizer que a consciência-de-si será capaz de experimentar este
conflito presente no interior da vida, mas sem se dissolver como
individualidade. Ela terá a experiência da universalidade negativa, da fluidez
absoluta, mas tal experiência será um tremor diante da morte que terá função
formadora. No entanto, está é uma maneira mais nebulosa de dizer que o
movimento próprio à consciência-de-si já está, de certa forma, presente na
natureza. Um pouco como se o movimento que anima o meio no qual a consciência-
de-si age (a história) já estivesse em germe na natureza. O que não poderia ser
diferente para alguém que afirmou: "O espírito proveio (hervorgegangen) da
natureza".30 Um provir que não o impede de dizer que o espírito estava, de
certo modo, antes da natureza (já que ele se confunde com seu movimento).
De maneira peculiar, Hegel está dizendo que entre natureza e história não há
uma completa ruptura, há apenas o aprofundamento reflexivo de um movimento
partilhado, o que complexifica as dicotomias modernas entre natureza e
liberdade.31 Movimento marcado principalmente pelas noções de conflito e de
luta. Não uma luta darwiniana entre espécies, mas uma luta no interior de cada
individualidade biológica, no interior de cada singularidade natural, entre
determinação e indeterminação.32 Todo o esforço de Hegel consiste em mostrar
como a singularidade natural já é, desde sempre, campo de trabalho do negativo,
e não realidade que se determina de maneira imanente. Por isso, a superação da
singularidade natural é, no fundo, a realização "natural" de seu destino.
Isto pode nos ajudar a compreender porque o movimento do Espírito parece seguir
de perto esta dissolução das determinidades e manifestação da fluidez que anima
a natureza, já que o Espírito é tanto sua inscrição em uma figura finita quanto
o desaparecimento incessante de tal figuração.33 Gerard Lebrun percebeu
claramente esta natureza do Espírito ao afirmar: "Se somos assegurados de que o
progresso não é repetitivo, mas explicitador, é porque o Espírito não se produz
produzindo suas formações finitas mas, ao contrário, em recusando-as uma após
outra. Não é a potência dos impérios, mas sua morte que dá à História 'razão'".
Ou ainda: "O único tipo de devir que o movimento do Conceito esposa nada tem em
comum com a transição indiferente de uma forma à outra. Ele só pode ser um
devir que sanciona a instabilidade da figura que vem de ser transgredida, um
devir expressamente nadificador".34 Por sinal, não é por outra razão que tanto
a vida quanto o espírito serão animados pela mesma "fluidez universal", pela
mesma "inquietude" (Unruhe).
Por fim, devemos dizer que esta tensão no interior das individualidades
biológicas aparecerá de maneira reflexiva no movimento de reconhecimento que
orienta processos de socialização e individuação. O que nos explica porque, no
texto da Fenomenologia, as considerações sobre a estrutura das dinâmicas
sociais de reconhecimento são antecedidas pela descrição do ciclo da vida. Se a
vida é o primeiro objeto do desejo da consciência-de-si, é porque a verdade do
desejo, sua satisfação, só pode se dar lá onde ele se confrontar com um objeto
marcado pela fluidez universal. Ou seja, se a verdade do desejo é realizar as
aspirações universalizantes da razão, é porque convergem para a noção hegeliana
de universal experiências de indeterminação. Neste sentido, voltemos os olhos
para o desejo hegeliano.
O que realmente falta ao desejo?
Para Hegel, o desejo (Begierde) é a maneira através da qual a consciência-de-si
aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido, ele é, ao mesmo
tempo, modo de interação social e modo de relação ao objeto. Além do desejo,
Hegel apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de determinação da
consciência-de-si: o trabalho e a linguagem. Estes três operadores tecem entre
si articulações profundas, já que o trabalho é "desejo refreado" e a linguagem
obedece à mesma dinâmica de relação à expressão que o trabalho.
Lembremos inicialmente como Hegel parece vincular-se a uma longa tradição que
remonta a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta. Vejamos, por
exemplo, um trecho maior da Enciclopédia. Lá, ao falar sobre o desejo, Hegel
afirma:
O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria
unilateralidade ' ele vê no objeto algo que pertence à sua própria
essência e que, no entanto, lhe falta. A consciência-de-si pode
suprimir esta contradição por não ser um ser, mas uma atividade
absoluta.35
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isso, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o
objeto) é uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser
exatamente um ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que,
por ser posicional, toma a si mesma por objeto e, neste mesmo movimento,
assimila o objeto a si. Esta experiência da falta é tão central para Hegel que
ele chega a definir a especificidade do vivente (Lebendiges) através da sua
capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação (Erregung) que o leva à
necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito como aquele que tem
a capacidade de suportar (ertragen) a contradição de si mesmo (Widerspruch
seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito no
objeto. Hegel acredita que a falta é tão definidora da condição de sujeito que
ele chega a afirmar:
A falta da cadeira, quando ela tem três pés, está em nós [pois é
falta em relação ao conceito de cadeira]; mas a própria falta está na
vida, já que a vida a conhece como limitação, ainda que ela também
esteja superada. É pois um privilégio das naturezas superiores sentir
dor; quanto mais elevada a natureza, mais infeliz ela se sente. Os
grandes homens têm uma grande necessidade e o impulso (Trieb) a
superá-la. Grandes ações vêm apenas de profunda dor da alma
(Gemütes); a origem do mal etc. tem aqui sua dissolução.36
Mas dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que,
na consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, não
é isto o que ocorre:
O desejo e a certeza de si mesma alcançada na satisfação do desejo
[notemos esta articulação fundamental: a certeza de si mesmo é
estritamente vinculada aos modos de satisfação do desejo] são
condicionados pelo objeto, pois a satisfação ocorre através do
suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A
consciência-de-si não pode assim suprimir o objeto através de sua
relação negativa para com ele, pois essa relação antes reproduz o
objeto, assim como o desejo.37
A contradição encontra-se aqui na seguinte operação: o desejo não é apenas uma
função intencional ligada à satisfação da necessidade animal, como se a falta
fosse vinculada à positividade de um objeto natural. Ele é operação de
autoposição da consciência: através do desejo a consciência procura se intuir
no objeto, tomar a si mesma como objeto e este é o verdadeiro motor da
satisfação. Através do desejo, na verdade, a consciência procura a si mesma.
Até porque, devemos ter clareza a este respeito, a falta é um modo de ser da
consciência, modo de ser de uma consciência que insiste que as determinações
estão sempre em falta em relação ao ser.
Como sabemos, esta proposição do desejo como falta foi, nas últimas décadas,
objeto de críticas virulentas vindas principalmente de autores como Gilles
Deleuze e Félix Guattari. Seu alvo não era apenas a apropriação do conceito
hegeliano feita pela psicanálise lacaniana, mas também a metafísica da
negatividade presente no conceito hegeliano de desejo. Pois a maneira com que a
psicanálise procura socializar o desejo produziriaum desejo marcado pela
negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta que nos remete,
afinal de contas, a Hegel. No entanto, "Nada falta ao desejo", dirão os dois,
"ele não está em falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é o sujeito que
está em falta com o desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há
sujeito fixo graças à repressão".38 Neste caso, tratava-se de insistir que a
afirmação do desejo como falta não poderia ser outra coisa que fruto de uma
ilusão metafísica a respeito da realidade do negativo. Ilusão animada por uma
teologia negativa que sequer tem medo de dizer seu nome.
A este respeito, lembremos que há três maneiras de compreender a proposição de
que a essência do desejo é falta. Primeiro, a falta pode ser simples
manifestação da carência, da privação de um objeto determinado da necessidade.
Esta claramente não é a posição hegeliana, já que implicaria uma naturalização
de sistemas de necessidades estranha a uma filosofia que não compreende a
natureza como sistema fechado de leis.
Segundo, podemos dizer que a falta é um modo de ser da consciência porque ela
indica a transcendência do desejo em relação aos objetos empíricos, seguindo
aqui uma via aberta por Platão.
Sabemos como Platão faz Sócrates afirmar, em O banquete: "Desejamos aquilo do
qual somos desprovidos"39 ou aquilo que não está presente ou aquilo que
pessoalmente não sou. Daí porque Eros é o intermediário entre dois contrários:
ele manifesta a falta de coisas belas e boas que impelem o desejo (epithumia),
coisas a respeito das quais tenho um certo saber. Ou seja, o objeto do desejo é
aquilo que, ao mesmo tempo, não tenho e está em mim. Este caráter intermediário
entre presença e ausência fica visível a partir do momento em que Eros é
compreendido através da perspectiva do amante (erastes), e não do amado
(eromenos).
No entanto, esta falta que mobiliza o desejo não está exatamente ligada à
dimensão dos objetos sensíveis. Pois: "a beleza que existe em tal ou tal corpo
é irmã da beleza que reside em outro e, se devemos perseguir o belo em sua
forma sensível, seria uma insígnia desrazão não julgar una e idêntica a beleza
que reside em todos os corpos".40 Esta desqualificação do sensível permite a
abertura a uma série de asceses que nos levará à "essência mesma do belo" para
além do que é mortal e corruptível. Uma essência cuja visão implicaria liberar
o belo em sua pureza, abrir espaço para sua manifestação sem misturas na
unicidade de sua natureza formal. Poderíamos mesmo afirmar que, nesta ascese:
"a pessoa deixa sua particularidade para trás",41 como se fosse questão de
negar a essencialidade do que é da ordem da natureza mortal, isto em prol da
essencialidade de algo que: "de alguma forma lhe pertence, mas que não lhe é
imediatamente disponível".42 Assim, a negatividade do desejo seria, no fundo,
manifestação intencional da transcendência inesgotável do ser em relação à
empiricidade.
É pensando nesta vertente que Deleuze e Guattari desenvolvem sua crítica ao
desejo como falta. Tudo se passaria como se Hegel se apropriasse deste esquema
de transcendência para colocá-lo em operação no interior de uma certa teologia
negativa onde não é mais a transcendência da Idéia que produz a desqualificação
de todo sensível, mas a "pura negatividade" que só aparece através da
reiteração infinita da ultrapassagem da determinação finita sensível, do
sacrifício infinito de uma determinação finita que precisa continuar a
desaparecer, permanecer desaparecendo, a fim de que a negatividade tenha
realidade.
No entanto, podemos dizer que não é essa a questão que está em jogo na
definição hegeliana do desejo em sua negatividade. Pois a negatividade do
desejo não vem exatamente da pressão negadora da transcendência, como queria
alguém como Kojève (no fundo, a referência maior de Deleuze em sua leitura de
Hegel).43 Por sinal, este apelo irrestrito à transcendência seria estranho para
um autor, como Hegel, que compreende o saber absoluto como reconciliação com
uma dimensão renovada do empírico. A este respeito, basta lembrar como, ao
falar sobre a reconciliação produzida pelo saber absoluto, Hegel apresenta um
julgamento infinito (unendlichen Urteil) capaz de produzir a síntese da cisão
entre sujeito e objeto. Trata-se da afirmação: "o ser do eu é uma coisa (das
Sein des Ich ein Ding ist); e precisamente uma coisa sensível e imediata (ein
sinnliches unmittelbares Ding)". Dessa afirmação, segue-se um comentário: "Este
julgamento, tomado assim como imediatamente soa, é carente-de-espírito, ou
melhor, é a própria carência-de-espírito", pois, se compreendemos a coisa
sensível como uma predicação simples do eu, então o eu desaparece na
empiricidade da coisa ' o predicado põe o sujeito: "mas quanto ao seu conceito,
é de fato o mais rico-de-espírito".44 Pois seu conceito nos leva a uma
recompreensão da dimensão do sensível para além da sua domesticação pelas
estruturas identitárias e finitas da estética transcendental.
Na verdade, para entender o que Hegel tem em vista na sua noção de desejo como
falta, não devemos compreender a falta como privação, como carência ou
simplesmente como transcendência, mas como manifestação da infinitude.Esta
infinitude pode ser ruim,se a satisfação do desejo for vista como consumo
reiterado de objetos que produzem um gozo (Genuss) que é apenas submissão
narcísica (ou "egoísta", se quisermos usar um termo hegeliano) do outro ao Eu.
Mas ela será infinitude verdadeiraquando se confrontar com objetos liberados de
determinações finitas.
Lembremos inicialmente que, para Hegel, a falta aparece como modo de ser da
consciência em um contexto histórico preciso. Contexto marcado pela
problematização do que serve de fundamento às formas de vida da modernidade.
Hegel compreende a modernidade como o momento histórico no qual o espírito
"perdeu" a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais
como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as várias
esferas sociais de valores.45 Daí diagnósticos clássicos de época como: "[Nos
tempos modernos] Não somente está perdida para ele [o espírito] sua vida
essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo.
[Como o filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção
e maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o saber do que
ele é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do
ser [que tinha perdido]".46
Décadas depois de Hegel, a sociologia de Durkheim e Max Weber constituirão
quadros convergentes de caracterização da modernidade como era própria a um
certo sentimento subjetivo de indeterminação resultante da perda de horizontes
estáveis de socialização. A autonomização das esferas sociais de valores na
vida moderna, assim como a erosão da autoridade tradicional sedimentada em
costumes e hábitos ritualizados, teria produzido uma perda de referências nos
modos de estruturação das relações a si, uma problematização sem volta da
espontaneidade de sujeitos agentes.47 A partir de então, o sujeito só pode
aparecer como: "esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade
desta noite, uma riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas,
nenhuma das quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como
efetivamente presentes [...] É esta noite que descobrimos quando olhamos um
homem nos olhos, uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se
avança diante de nós".48
No entanto, Hegel não está disposto a se contentar com diagnósticos sócio-
históricos. Ele quer fornecer o fundamento ontológico da situação histórica
própria à modernidade, como se tal perda de horizontes estáveis não fosse
apenas o resultado da contingência de processos históricos, mas fosse a
realização de um destino marcado com a necessidade do que tem dignidade
ontológica. Para tanto, Hegel precisa de uma noção de individualidade como
aquilo que é habitado por uma potência de indeterminação, como aquilo que não
se submete integralmente à determinação identitária da unidade sintética de um
Eu. A teoria do desejo como falta, ou ainda, como negatividade que impulsiona o
agir, forneceria a Hegel este fundamento ontológico procurado. Ou seja, a falta
aqui é, na verdade, o modo de descrição de uma potência de indeterminação e de
despersonalização que habita todo sujeito.
Por sua vez, esta potência de indeterminação é um outro nome possível para
aquilo que Hegel compreende por infinitude, já que o infinito é o que demonstra
a instabilidade e a inadequação de toda determinação finita. O que não poderia
ser diferente, pois, para Hegel, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua
própria negação e que, ao invés de se autodestruir, conserva-se em uma
determinidade que nada mais é que a figura da instabilidade de toda
determinidade. Daí porque ele podia afirmar, em uma frase-chave: "A infinitude,
ou essa inquietação absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o
que é determinado de qualquer modo ' por exemplo, como ser ' seja antes o
contrário dessa determinidade".49
Percebe-se claramente aqui que o conceito de infinitude é construído a partir
da noção de contradição. Lembremos da definição de contradição fornecida por
Kant: "O objeto de um conceito que se contradiz a si mesmo é nada, porque o
conceito nada é o impossível, como, por exemplo, a figura retilínea de dois
lados (nihil negativum)".50 Ou seja, a contradição é um objeto vazio sem
conceito, já que não há representação possível quando tenho duas proposições
contrárias aplicadas ao mesmo objeto, como no caso de uma figura que, ao mesmo
tempo, é retilínea e tem dois lados. Hegel não quer pensar uma figura retilínea
de dois lados, mas quer insistir que há objetos que só podem ser apreendidos
através da aplicação de duas proposições contrárias, de duas séries
divergentes. Isto talvez nos demonstre como a infinitude não é simplesmente uma
estratégia astuta de desqualificação do sensível, mas é o fundamento que
permite a crítica da submissão do sensível à gramática da finitude.
No entanto, como o sujeito é essencialmente locus de manifestação da
infinitude, podemos dizer que o vocabulário da negatividade do desejo serve
para salientar a natureza de inadequação entre as expectativas de
reconhecimento de sujeitos e as possibilidades disponíveis de determinação
social de si.51 Pois se trata de afirmar que a positividade da realidade
reificada com suas representações finitas estabeleceu-se de maneira tão forte
como "representação natural do pensar" que apenas um esforço de negação pode
romper tal círculo de alienação. Ou seja, o vocabulário da negatividade nada
tem a ver com formas de julgamento resignado da vida, como se a vida precisasse
ser desvalorizada enquanto espaço da finitude, como quer Lebrun.52 Ao
contrário, ele é fruto da consciência do descompasso entre modos de
determinação da vida sociale as potencialidades da vida que realizou seu
destino como Espírito.
De qualquer forma, Hegel acharia simplesmente incorreta esta maneira tão
própria a nós, contemporâneos do pós-estruturalismo, de contrapor a
negatividade do desejo à positividade de uma potência que se expressa de
maneira imanente, tal como a relação entre a substância spinozista e seus
modos. Pois, de uma certa perspectiva, o desejo é sempre destrutivo (ele sempre
afirma sua inadequação em relação às determinações finitas) e, de outra, ele
sempre é produtivo (sua verdade é afirmar-se como vontade livre que constitui
quadros institucionais para seu reconhecimento através da relações de trabalho
e linguagem). Hegel era tão cônscio dessa imbricação entre negatividade e
produtividade que, ao falar da necessidade do terror revolucionário enquanto
experiência histórica de internalização da negatividade que devasta toda
determinação fenomenal, escreverá:
Mas, por isso mesmo, a vontade universal forma imediatamente uma
unidade com a consciência-de-si, ou seja, é o puramente positivo
porque é o puramente negativo; e a morte sem sentido, a negatividade
do Si não-preenchido, transforma-se no conceito interior, em absoluta
positividade.53
O caráter formador do "puro terror do negativo"
Este é o pano de fundo adequado para a reflexão sobre a confrontação com a
morte no trajeto de formação da consciência-de-si. Notemos, inicialmente, uma
conseqüência maior. Se é verdade que Hegel é animado por uma teoria do desejo
dessa natureza, então o conflito produzido pelo desejo, conflito que aparece
enquanto motor da DSE, não pode ser a mera colisão entre sistemas particulares
de interesses de duas consciências distintas, como querem comentadores como
Terry Pinkard e Jürgen Habermas.54 Conflito através do qual Eu procuro dominar
o outro através da submissão do seu sistema de valoração e interesse à
perspectiva própria ao meu sistema, onde Eu procuro submeter o desejo do outro
ao meu desejo. Ao contrário, se Hegel pode afirmar que a formação para a
vontade livre e universal passa pela submissão a um senhor, é porque este
senhor não pode simplesmente representar uma outra determinação particular de
interesse.
Se voltarmos os olhos à DSE, veremos Hegel insistindo que, após a luta por
reconhecimento, a essencialidade do escravo parece estar depositada no senhor.
É ele quem domina o seu fazer consumindo o objeto de seu trabalho. O escravo vê
assim seu fazer como algo estranho. No entanto, Hegel insiste que este
estranhamento pode significar elevação para além da particularidade, já que:
"Enquanto o escravo trabalha para o senhor, ou seja, não no interesse exclusivo
da sua própria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude que consiste em
não ser apenas o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um
outro".55 Ter seu desejo vinculado ao desejo de um outro, entretanto, não nos
fornece a universalidade do reconhecimento almejado pela consciência. Para que
esse vínculo não seja simples submissão, faz-se necessário que esse outro tenha
algo da universalidade incondicional do que é essencial, que ele seja um
"senhor absoluto", cuja internalização me leva a ser reconhecido para além de
todo e qualquer contexto. É tendo esse problema em vista que devemos
interpretar a afirmação central:
Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade se conquista e se
prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo
imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida,
mas que nada há para a consciência que não seja para ela momento
evanescente (verschwindendes Moment); que ela é somente puro ser-
para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode ser bem reconhecido
como pessoa (Person), mas não alcançou a verdade desse reconhecimento
como uma consciência-de-si independente.56
Se a confrontação com a morte é condição para a conquista da liberdade, é
porque a morte é figura privilegiada desta universalidade incondicional e
absoluta que, por ser incondicional e absoluta, manifesta-se como negação de
tudo o que é condicionado e finito. Devemos levar isso em conta quando
encontramos Hegel dizendo:
A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da
verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da
vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o hábito da obediência
(Gehorsams) é um momento necessário da formação de todo homem. Sem
ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra a vontade própria
(Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto a comandar. E
para advir livre, para adquirir a aptidão de se auto-governar, todos
os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da submissão a um
senhor.57
Afirmações desta natureza servem a vários mal-entendidos. Hegel não está
dizendo que a liberdade é apenas o nome que damos para uma vontade construída a
partir da internalização de "dispositivos disciplinares" travestidos de
práticas de autocontrole. Não é qualquer submissão a um senhor que produz a
liberdade, mas apenas a um senhor que seja capaz de realizar exigências
incondicionais de universalidade. Isto nos explica porque, para Hegel, as
grandes individualidades capazes de submeter um povo produzem, necessariamente,
o sentimento de que o trabalho do Espírito é sem medida comum com toda e
qualquer política finita, com todo cálculo utilitarista baseado em "meu"
sistema de interesses egoístas. Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste
exatamente em ver na crítica hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de
esvaziamento do particular. Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma
individualidade neste "ego", já que não há nada de individual no interior de um
sistema de interesses construído, na verdade, a partir de identificações e
internalização de princípios de conduta vindos de uma outra consciência
determinada.58 Por isso, a "dissolução da singularidade da vontade" pode
aparecer como "liberação".
Lebrun serve-se dessas características da filosofia hegeliana para afirmar que
a formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo definido
como o que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente. Pois:
"ganhar uma determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença que me
individualizava, advir um pouco mais meu ser verdadeiro na medida em que sou um
pouco menos meu ego".59 Neste sentido, tremer diante do mestre absoluto seria
tomar consciência da impotência de princípio que representa a singularidade
natural. Como se a liberação hegeliana fosse um passe de mágica no qual o
sentimento de fraqueza se transforma em legitimação da incapacidade de
resistir. Assim: "em troca de seus sofrimentos, é o gozo do universal que se
oferece à consciência ' belo presente ...".60 Não estamos muito longe de
Deleuze vendo a dialética hegeliana como "idéia do valor do sofrimento e da
tristeza, valorização das 'paixões tristes' como princípio prático que se
manifesta na cisão, no dilaceramento".61
No entanto, podemos fornecer uma interpretação diferente. Basta estarmos mais
atentos para o sentido que Hegel dá a esta despossessão de si produzida pela
internalização da morte como senhor absoluto. Neste contexto, a morte não é
destruição simples da consciência, não é um simples despedaçar-se (zugrunde
gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen). Pois a confrontação
com a morte é experiência fenomenológica que visa exprimir o acesso ao caráter
inicialmente indeterminado do fundamento, que visa exprimir como: "A essência,
enquanto se determina como fundamento, determina-se como o não-determinado
(Nichtbestimmte) e é apenas a superação (Aufheben) de seu ser determinado
(Bestimmtseins) que é seu determinar".62 O que pode ser entendido da seguinte
maneira: a indeterminação do fundamento vem do fato de ele servir de substrato
comum entre determinações opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o
fundamento implica a unidade entre a identidade e a diferença (die Einheit der
Identitåt und des Unterschiedes). Mas sendo o Eu o princípio sintético que
fornece o fundamento da experiência, assim como o princípio de ligação e
unidade que determina o modo de articulação entre o fundamento e aquilo que ele
funda, então pensar a verdadeira essência do fundamento como o que tem seu ser
em um outro (sein Sein in einen Anderen hat) exige a confrontação com um estado
de diferenças não submetidas à forma do Eu.63
Demoremo-nos um pouco mais neste ponto. Sabemos que fundar é determinar o
existente através da sua relação a um padrão que me permite orientar no
pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como a
causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenômenos,
determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como fundamento,
posso garantir o critério do verdadeiro e do falso, do correto e do incorreto,
do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas estruturas aos
fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre princípios lógicos
gerais de ligação e unidade capazes de constituir objetos da experiência e
fundar proposições de identidade e diferença. Esses princípios de ligação
(Verbindung) e unidade são derivados do Eu como unidade sintética de
apercepções, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das determinações.
No entanto, a problematização de tais princípios é o verdadeiro objeto da
dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um witz ao dizer que, para a
consciência, "o ser tem a significação do seu" (das Sein die Bedeutung das
Seinen hat),64 ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência
significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade
que é modo de a consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir
de sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções
kantianas entre receptividade e espontaneidade.
A dialética precisa, pois, aceder a um fundamento não mais dependente da forma
auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação dos modos
naturalizados de determinação, através da fragilização das imagens de mundo que
orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências. Tal fragilização
é descrita fenomenologicamente por Hegel através da angústia e da confrontação
com a morte.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-si
compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma
potência do pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive,
recompreender o que vem a ser a diferença. A diferença não será aquilo que
determina a distinção entre entidades conceitualmente articuladas, como Deleuze
imputa a Hegel. A diferença em Hegel é esta potência interna da in-diferença
que corrói toda determinação. Ela será esta expressão do ser que nos leva a
afirmar, com Scott Fitzgerald, que: "toda vida é um processo de demolição".
Demolição que ocorre quando desvelamos esta "franja de indeterminação da qual
goza todo indivíduo".65 Não se trata exatamente de um ganho de determinação e
positividade, mas da assunção de um risco vinculado à confrontação com aquilo
que se coloca enquanto puramente indeterminado. Nestas condições, submeter-se a
um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo que parecia fixo e determinado nada
tem a ver com uma dinâmica psicológica da resignação, do ressentimento ou da
necessidade da repressão.
A determinação pelo trabalho
Para finalizar, devemos comentar o ponto essencial que irá estabilizar esta
dialética. Pois a angústia sentida pela consciência escrava não fica apenas em
uma:
universal dissolução em geral, mas ela se implementa efetivamente no
servir (Dienen). Servindo, suprime (hebt) em todos os momentos tal
aderência ao Dasein natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o
sentimento da potência absoluta em geral, e em particular o do
serviço, é apenas a dissolução em si e embora o temor do senhor seja,
sem dúvida, o início da sabedoria, a consciência aí é para ela mesma,
mas não é ainda o ser para-si; ela porém encontra-se a si mesma por
meio do trabalho.66
Hegel fará então uma gradação extremamente significativa que diz respeito ao
agir da consciência nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do serviço
(Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta tríade marca uma
realização progressiva das possibilidades de autoposição da consciência no
objeto do seu agir. O serviço é apenas a dissolução em si (Auflösung an sich)
no sentido da completa alienação de si no interior do agir, que aparece como
puro agir-para-um-outro e como-um-outro. O trabalho implica uma autoposição
reflexiva de si. No entanto, sabemos que Hegel não opera com uma noção
expressivista de trabalho que veria sua realização mais perfeita em uma certa
compreensão do fazer estético como manifestação das capacidades expressivas dos
sujeitos. A consciência que trabalha não expressa a positividade de seus afetos
em um objeto que circulará no tecido social. O trabalho não é a simples
tradução da interioridade na exterioridade. De uma certa forma, a categoria
hegeliana de trabalho é inicialmente uma defesa contra a angústia diante da
negatividade da morte ou, ainda, uma superação dialética da angústia, já que
ele é autoposição de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de todo vínculo
imediato ao Daseinnatural, que sentiu o tremor da dissolução de si. Lembremos
desta afirmação central de Hegel:
O trabalho é desejo refreado (gehemmte Begierde), um desvanecer
contido, ou seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o
objeto toma a forma do objeto e permanece, porque justamente o objeto
tem independência para o trabalhador. Esse meio-termo negativo ou
agir formativo é, ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro-ser-
para-si da consciência que agora no trabalho se transfere para fora
de si no elemento do permanecer; a consciência trabalhadora chega
assim à intuição do ser independente como intuição de si mesma [...]
no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua própria
negatividade.67
Por refrear o impulso destrutivo do desejo em seu consumo do objeto, o trabalho
forma, no sentido de permitir a auto-objetivação da estrutura da consciência-
de-si em um objeto que é sua duplicação. Sua função será, pois, realizar, ainda
que de maneira imperfeita, o que o desejo não era capaz de fazer, ou seja,
permitir a autoposição da consciência-de-si em suas exigências de
universalidade, já que o trabalho está organicamente vinculado a modos de
interação social e de reconhecimento.
O giro dialético consiste em dizer que a alienação no trabalho, a confrontação
tanto com o agir enquanto uma essência estranha, enquanto agir para-um-Outro
absoluto, quanto com o objeto enquanto aquilo que resiste ao meu projeto
(experiência de resistência que será fundamental para alguém como Adorno
desenvolver a idéia de dialética como primado do objeto) tem caráter formador
por abrir a consciência à experiência de uma alteridade interna como momento
fundamental para a posição da identidade. Daí porque Hegel afirma que tanto o
medo quanto o formar são dois momentos necessários para este modo de reflexão
que é o trabalho. Hegel não teme afirmar que o formar sem o medo absoluto
fornece apenas um sentido vazio, pois sua forma ou negatividade não é "a
negatividade em si" (Negativitåt an sich). Através do trabalho, o lugar do
sujeito como fundamento pode ser compreendido como negação em si: conseqüência
necessária de uma filosofia do sujeito onde "sujeito" não é mais do que o nome
do caráter negativo do fundamento.
Afirmar que há um caráter negativo do fundamento significa, entre outras
coisas, que a relação ao existente não é a repetição do que está potencialmente
posto no fundamento, mas que a própria determinação do existente não pode mais
ser pensada a partir do paradigma da subsunção simples do caso à norma. Ela
exige compreender que não há determinação completa no sentido de identidade
completa entre a determinação e o fundamento.É isto que a consciência-de-si
descobrirá pelas vias do trabalho.
Notemos, por fim, que temos uma explicação para o fato de, na Fenomenologia do
Espírito,o trabalho não nos colocar no caminho da "institucionalização da
identidade do Eu".68 Ou seja, contrariando o que poderíamos esperar, o trabalho
não abre uma dinâmica de reconhecimento que se realizará na regulação jurídica
das minhas relações com o outro através da assunção de meus direitos como
sujeito que colabora com a riqueza (Vermögen) social. Ou ainda, ele faz isto,
mas à condição de recomprendermos completamente o que entendíamos por
"identidade", "direitos", "sujeito". Isto porque Hegel está mais interessado no
fato de o trabalho aparecer como modo de posição de uma negatividade com a qual
o sujeito se confrontou ao ir em direção a uma potência de indeterminação cuja
assunção é condição para a consciência-de-si "viver no universal". Daí podemos
derivar o problema maior da modernidade, ao menos segundo Hegel; problema este
que está na base da sua filosofia do direito, a saber, como viabilizar o
reconhecimento institucional de sujeitos pensados enquanto modos singulares de
confrontação com o que se oferece como indeterminado? Pois não é a
indeterminação que produz sofrimento social, mas a incapacidade de as
estruturas institucionais e os processos de interação social reconhecerem sua
realidade fundadora da condição existencial de todo e qualquer sujeito. Se tais
estruturas forem capazes de fornecer o delineamento de processos de
reconhecimento da potência de indeterminação que habita todo sujeito, então
talvez possamos encontrar o caminho para recuperar um conceito renovado de amor
enquanto horizonte regulador de práticas de interação social. Mas, de uma
maneira que ainda não está clara, este amor deverá portar experiências de
despersonalização e infinitude que Hegel vincula inicialmente à confrontação
com a morte. Por isso, não seria apenas licença poética dizer, parafraseando
Fassbinder, que ele é a promessa de um amor mais frio que a morte.