Habermas, pragmatismo e direito
Em entrevista a Mithchell Aboulafia (2002), o filósofo alemão Jürgen Habermas
conta-nos que a influência do pragmatismo em seu desenvolvimento intelectual se
deu em três domínios. Em primeiro lugar, na epistemologia, com Charles Sanders
Peirce; em segundo, na teoria social, com George-Herbert Mead; e, em terceiro,
na teoria política, com os estudos de John Dewey sobre a "Grande Comunidade".
Habermas vislumbra no mais conhecido escrito sobre política de Dewey, O público
e seus problemas (1927), uma antecipação dos argumentos expostos em sua tese de
doutorado, A transformação estrutural da esfera pública (1962).
Neste ensaio, gostaríamos de acrescentar mais um domínio do desenvolvimento
intelectual de Habermas no qual igualmente se poderia supor a influência do
pensamento pragmatista: a filosofia do direito. Se grande parte de sua produção
intelectual tenha sido animada pelo espírito evolucionista dos pragmatistas
clássicos, como Peirce, Mead e Dewey, o que dizer de sua aposta mais recente no
campo da filosofia do direito? Não obstante a omissão do autor a esse respeito,
poder-se-ia dizer que a filosofia do direito proposta por Habermas no livro
Entre fatos e normas: contribuições para uma teoria do discurso do direito e da
democracia (1996) a qual apresenta uma compreensão procedimentalista do
direito, atribuindo a legitimidade jurídica à existência de condições
constitucionalmente asseguradas para a emergência de um "poder comunicativo"
estaria ancorada no conceito de "comunidade de investigadores" de Peirce? (CP,
5.407).1
A questão que se coloca é a seguinte: tendo como referência a tradição
filosófica do pragmatismo clássico norte-americano, enquanto importante ponto
de inferência do arcabouço teórico habermasiano, qual relação se poderia
estabelecer entre os elementos distintivos daquela metodologia e as categorias
centrais de sua filosofia do direito? Caso venhamos a dizer que Habermas é sim
animado por um espírito pragmatista também no campo do direito, como localizar
o seu programa de pesquisa discursivo-procedimental no quadro teórico composto
pelos principais projetos do pragmatismo jurídico hoje, como o movimento Law
and Economics, capitaneado por Richard Posner (cf. 2007) ou a mais recente
démarche do "neoclássico pragmatismo jurídico" de Susan Haack (2006)? E o que
dizer, ainda, de sua relação com os pragmatistas jurídicos da antiga tradição
clássica, como Oliver Wendell Holmes Jr.? Talvez possamos nos valer aqui de
antemão da provocação do velho filósofo pragmatista britânico Ferdinand Canning
Scott Schiller (1906): existem, na filosofia, tantos "pragmatismos" quanto há
pragmatistas que assim se autointitulam. No mesmo sentido, o historiador
americano Arthur O. Lovejoy, em 1908, partindo da controvérsia sobre que tipo
de filosofia o pragmatismo implica, na medida em que diversas doutrinas lógicas
já haviam sido unificadas sob o mesmo discurso, identifica treze tipos
logicamente independentes. "Poderíamos sem inconsistência aceitar qualquer um
deles e rejeitar todos os outros" (LOVEJOY, 1963, p. 2). Segundo Lovejoy (1963,
p. 29), "o que o movimento assim comumente chamado mais precisa é de uma
clarificação de suas fórmulas e a discriminação de certas ideias de pano de
fundo importantes e bem fundadas, com relação a certas outras ideias que são
bem fundadas, mas não são importantes; e outras que seriam importantes se ao
menos não fossem mal fundadas".
Daí explica-se por que, para alguns, a tentativa de enquadrar a filosofia do
direito de Habermas na abordagem pragmatista pode parecer estranha, sobretudo
quando se tem em mente a posição favorável do filósofo alemão acerca dos
universais. A tradição do pragmatismo tem sido frequentemente associada a
opções epistemológicas céticas, relativistas, irrealistas e irracionalistas.
Nessa esteira, o pragmatismo não demonstraria qualquer preocupação com questões
epistêmicas em geral, como o tema da verdade. Contudo, tal estranhamento pode
ser afastado quando levamos em conta o fato de que o pragmatismo tem sofrido um
processo de "vulgarização" em seu caráter evolucionista, científico e realista.
Para Haack (1998, p. 25), o grande responsável por esse "sequestro intelectual"
do pragmatismo fora Richard Rorty, com o renascimento da filosofia pragmatista
liderada por ele na década de 1970.2
A exposição a seguir desenvolve-se em duas partes. Na primeira, considerando-se
os três domínios intelectuais em que Habermas confessa ter sido influenciado
pelo espírito do pragmatismo, focalizaremos especificamente as contribuições
epistemológicas de Charles Sanders Peirce (1839-1914), pois é na semiótica
deste autor que Habermas vai buscar a base da sua teoria da racionalidade
comunicativa que orienta todas as suas posteriores intervenções. Na segunda,
teceremos algumas considerações sobre as influências do pragmatismo de Peirce
em sua teoria discursivo-procedimental do direito. Apresentaremos a proposta
pragmatista de Karl-Otto Apel como contraponto heurístico. As contribuições de
Habermas e Apel para a filosofia do direito, embora ambas descendam da
epistemologia pragmatista de Peirce, divergem no tocante a pontos cruciais. O
tema a ser explorado é a possibilidade de se enquadrar a filosofia do direito
de Habermas na tradição crítico-realista do pragmatismo que descende de Peirce,
em franca oposição às demais abordagens pragmatistas que hoje presenciamos no
campo do direito.3
1
A agenda de pesquisa de Peirce abriu um novo horizonte para as investigações
epistemológicas de Habermas. Foi o tratamento semiótico-pragmatista do
"significado", inaugurado por Peirce, quando aplicado ao tema epistemológico da
"verdade", postulando a intersubjetividade como critério de significação, que
permitiu a Habermas propor sua teoria da racionalidade comunicativa. O novo
horizonte descortinado por Peirce permitiu que Habermas, por um lado,
formulasse uma teoria do conhecimento capaz de salvar os insights de Kant sobre
a razão humana embora a tenha colocado definitivamente sob novas bases; por
outro, o veio evolucionista de Peirce também franqueou a Habermas conectar a
sua teoria crítica da sociedade com o modelo evolucionista de Charles Darwin e,
posteriormente, a psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget e Lawrence
Kohlberg. Tanto Peirce quanto Habermas veem no progresso científico e no
desenvolvimento da racionalidade humana um genuíno processo evolutivo de
aprendizado da espécie, direcionado sempre para a verdade e o conhecimento real
sobre o universo. Peirce oferecia a Habermas, acima de tudo, a possibilidade de
um encontro intelectual entre as correntes alemãs e anglo-saxônicas da
filosofia moderna.
A partir do século XX, os ataques à filosofia cartesiana centrada na ideia de
um sujeito com conhecimento intuitivo passaram a se articular em torno de dois
grandes movimentos que têm suas origens no pragmatismo de Peirce afirma
Habermas (1981): o behaviorismo da psicologia social de George-Herbert Mead; e
a teoria dos "atos de fala" da filosofia analítica da linguagem de John L.
Austin. "Apesar de suas origens comuns no pragmatismo de Charles Sanders
Peirce, essas duas abordagens à crítica do conhecimento centrado no sujeito
percorreram caminhos separados e tiveram, em suas formas radicais,
desenvolvimento independente entre si" (1981, p. 3). Habermas, no curso de seu
desenvolvimento intelectual, toma emprestados conceitos centrais (como a noção
psicológica de adoção ideal de papéis e a teoria dos atos performativos) desses
dois movimentos paralelos que descendem de Peirce para a elaboração de sua
ética do discurso [discourse ethics]. Ambos defendem uma epistemologia
pragmatista em que o processo cognitivo é assumido como sendo discursivo em
todas as etapas. Desse modo, não pode haver conhecimento intuitivo, como
prescrevia Descartes; isto é, conhecimento que não tenha sido mediado por um
conhecimento prévio. Não há princípios fundamentais ou últimos que possam
servir de base para o raciocínio, pois este se dá sempre em cadeia, sendo
impossível encontrar o início e o fim de sua linha de continuidade (1968, p.
97).
O primeiro trabalho de Habermas sobre a epistemologia de Peirce fora elaborado
em 1963, por ocasião de uma palestra proferida pelo autor em Heidelberg. Logo
depois, ao publicar Conhecimento e interesse (1968), Habermas dedica-se a
escrever um capítulo sobre Peirce e outro sobre a crítica do pragmatismo à
teoria do significado. Na oportunidade, o autor assevera que o primeiro
filósofo moderno a postular uma dimensão autorreflexiva para a filosofia da
ciência fora Charles Sanders Peirce. Habermas assinala que aquilo que distingue
Peirce dos demais é o entendimento de que "a missão da metodologia não é
clarificar a estrutura lógica de teorias científicas", como pretendia o
positivismo lógico, "mas a lógica do procedimento mediante o qual podemos obter
teorias científicas" (1968, p. 91). Daí resulta que o sentido da experiência do
progresso científico é apropriado por Peirce de maneira inovadora: o
pragmatismo peirciano sublinha a estrutura de todo raciocínio que se pretende
científico o seu significado formal (ou procedimental), em oposição às
abordagens metodológicas de tipo semântico, focalizadas na dimensão substancial
do significado de uma proposição científica qualquer. A partir de Peirce, "nós
denominamos que uma informação é científica se e somente se um consenso
permanente e não forçado pode ser obtido com relação à sua validade. Este
consenso não precisa ser definitivo, mas deve ter o acordo definido como seu
objetivo" (1968, p. 91).
Da "arquitetura filosófica" de Peirce, Habermas extrai um conceito-guia
fundamental: a ideia de uma "Opinião Final" a ser alcançada por meio de um
acordo indefinido e não forçado de uma "comunidade de investigadores" ampliada
idealmente no tempo e no espaço. O conceito-guia de "Opinião Final" como
resultado de uma investigação ampla da "comunidade de investigadores" encontra-
se ligado, por sua vez, aos conceitos de "realidade" e "verdade" para Peirce:
O real, portanto, é aquilo em que, mais cedo ou mais tarde, a
informação e a racionalidade acabarão definitivamente resultando, e
que, portanto, é independente da minha e da sua vontade. Portanto, a
origem mesma do conceito de realidade mostra que este conceito
implica essencialmente a noção de uma comunidade sem limites
definidos e capaz de um indefinido aumento do conhecimento (CP,
5.311).
Dentro do paradigma epistemológico que emerge do giro pragmatista-semiótico, os
temas da "verdade" e da "realidade" de um signo qualquer passam a não depender
de sua correspondência direta a um objeto externo, mas de sua correspondência
ou referência a um signo como objeto externo mediante razões internas que
possam ser aceitas por uma comunidade de investigadores. Surge, assim, a
categoria do "interpretante" enquanto elemento central na semiótica peirciana:
"Uma coisa não pode estar para algo sem estar para algo por algo" (HABERMAS,
1989, p. 39). Enquanto no antigo quadro teórico da filosofia da consciência o
conhecimento baseava-se numa relação direta entre sujeito e objeto uma
relação de tipo diádica, cujo resultado seria mera "cópia" da realidade , a
filosofia semiótica de Peirce fundamenta-se numa relação triádica entre
"sujeito", "objeto" e "interpretante". Assim é que o critério para se
determinar o conhecimento deixa de ser a certeza privada de um sujeito no curso
de suas investigações e passa a localizar-se nas práticas públicas de
justificação perante uma "comunidade de investigadores". Habermas afirma: "a
'verdade' se torna um conceito de validade triplamente localizado. A validade
de proposições que são, em princípio, falíveis é mostrada como sendo uma
validade que é justificada para um público" (2000, p. 39). O lugar da
subjetividade na epistemologia cartesiana passa a ser ocupado pelo "espaço
público" da intersubjetividade na epistemologia peirciana; o conhecimento passa
a ser determinado pela comunicação mediada por argumentos capazes de conseguir
o assentimento de todos os participantes: o "eu cogito" é substituído pelo "eu
argumento".
Toda a discussão epistemológica de Peirce acerca da "Opinião Final" só pode ser
entendida tendo como pano de fundo a complexa arquitetônica filosófica do
autor. Com efeito, a noção de uma "Opinião Final" que se identificaria com a
"verdade" e a "realidade" encaixa-se no projeto maior de uma "metafísica
científica" e "reformada", fundamentada em uma ordem cosmológica evolucionista.
Neste projeto, Peirce destaca o princípio do "agapismo", ou a doutrina do "amor
evolucionário", em oposição ao princípio do "tiquismo", que representa a
doutrina, por ele também aceita, de que a chance absoluta é um fator presente
no universo. O autor defende a ocorrência de uma evolução desde o caos inicial
para uma ordem final pautada pelo princípio do "amor criativo". O mecanismo
central que direciona o "agapismo" é, por sua vez, o famoso princípio do
"sinequismo" ou a "Lei da Mente", mobilizada por Peirce pela primeira vez no
artigo "The Law of Mind" (1892). Com a defesa do princípio do "sinequismo", o
autor sugere que há uma continuidade entre os conceitos intelectuais no mundo.
O "sinequismo" é visto como um princípio lógico diretivo do raciocínio, o qual
descreve o tipo de hipótese que se poderia investigar e sobre a qual se poderia
discorrer com sucesso. O "sinequismo" estabelece a preferência lógica por
hipóteses que sugerem a existência de continuidades em vez de rupturas ou
disjunções entre significados. A ideia, segundo Haack (2006b, p. 142),
significa que "devemos procurar continuidades subjacentes, e reconhecer que
distinções supostamente rígidas podem ser mais bem concebidas como linhas de
demarcação desenhadas em algum ponto do continuum".
A hipótese agapista e sinequista é apresentada por Peirce como aplicável tanto
à evolução da "Mente" (enquanto logos do universo) como ao movimento das
"mentes" humanas (enquanto cérebro que busca entender os objetos no mundo).
Sugere-se uma harmonização entre as "mentes" humanas, com toda a sua
plasticidade e adaptabilidade, e a "Mente" do universo, em toda a sua
perfeição. Abstraindo-se das indagações típicas da filosofia da mente norte-
americana cujas investigações são, no mínimo, intrigantes , é curioso
sublinhar aqui que a autoridade epistêmica da filosofia do pragmatismo, capaz
de nos dizer como se constituem a verdade e a realidade, provém da "Opinião
Final" das mentes humanas treinadas em sua investigação indefinida na
comunidade. Ora, além de ser realista, no sentido de que há entidades gerais e
universais independentes do que possam conceber as mentes humanas, a filosofia
de Peirce é também idealista, pois consagra a existência de uma realidade
objetiva que é, ao mesmo tempo, configurada na "comunidade de investigadores".
A conjugação de "realismo" e "idealismo", normalmente contrapostos em
filosofia, torna-se possível em virtude do princípio do "sinequismo": os
conceitos são internos à idealização das mentes, mas também são contínuos com
os demais princípios da realidade (se é que esses princípios são reais de
alguma maneira).
É oportuno destacar aqui a ideia de "realismo inocente", defendida por Haack em
Reflexions on Relativism (1998, p. 156). Apropriando-se da ideia de "realismo"
de Peirce o qual, por sua vez, valeu-se dos ensinamentos de John Duns Scotus
, Haack pretende, mediante a defesa de um "realismo inocente", construir a
ideia de real em contraste com a ideia de que o mundo possa vir a ser uma
ficção, pois a verdade não é somente uma questão de convenção científica; há
também um elemento de base objetiva. O grande problema consiste na
possibilidade de se articular o "realismo inocente" sem ter de endossar um
realismo metafísico de tipo platônico; sem apelarmos a uma totalidade fixa de
objetos independentes da mente, afirma Haack (1998, p. 157). Como articular
esta forma de realismo de modo a dar conta também do pluralismo conceitual e da
mudança conceitual?
Haack destaca uma diferença entre o que é externo e o que é interno na
categoria do "real". No primeiro caso, trata-se de algo que é independente não
somente do que qualquer pessoa possa vir a pensar, como também do que nós
possamos vir a pensar no curso de nossas investigações falíveis; já na segunda
hipótese, trata-se de algo que é independente do que qualquer pessoa possa vir
a pensar, mas não do que nós pensamos. Assim, o termo "independente da mente"
possui uma interpretação forte (independente do que nós podemos vir a pensar) e
uma interpretação fraca (dependente do que pensamos) os elementos externos e
internos do real, respectivamente. Essa distinção ganha destaque quando
apreciamos a categoria da "verdade" como fonte da Opinião Final em Peirce.
"Pois a concepção de Peirce sobre a realidade possui dois aspectos (...). A
verdade, ele sustenta, embora independa do que eu ou você ou qualquer outra
pessoa pense que ela seja, é aquilo que está representado na opinião final"
(HAACK, 1998, p. 163). Ora, a verdade, embora tenha um caráter real externo,
porque independente do que eu ou você ou qualquer pessoa venha a pensar no
curso da investigação humana, depende também do pensamento humano.
Daí decorre que, embora o autor defenda uma epistemologia por meio da qual o
conhecimento esteja situado na comunidade e visto como um processo idealmente
ampliado no tempo e no espaço, a "verdade" e a "realidade" não têm nada a ver
com standards culturais ou convenções comunitárias instransponíveis. Para
Peirce, "o pensamento, controlado por uma lógica racional experimental, tende à
fixação de certas opiniões, igualmente destinadas, cuja natureza será a mesma
no final, embora a perversidade do pensamento de toda uma geração possa causar
a prorrogação da fixação última" (CP, 5.430). Neste ponto, Habermas é incisivo:
"A compreensão contextualista da virada lingüística, da qual esse anti-realismo
emerge [aqui o autor tem como mirada o neopragmatismo de Rorty], remete a uma
concepção anterior, da ascensão e queda dos paradigmas, que exclui a
continuidade de temas entre paradigmas, bem como de processos de aprendizagem
que se estendem de um paradigma a outros" (HABERMAS, 2000, p. 38).
A questão que se coloca é a seguinte: se a "realidade" e a "verdade", para
Peirce da mesma forma que a "justificação", para Habermas , devem ser
definidas pela totalidade das crenças aceitas pela "comunidade de
investigadores" idealmente ampliada no tempo e no espaço, por que não podemos
dizer que a própria estrutura da realidade que os autores afirmam existir não é
(ela mesma) elucidada em termos de linguagem? Peirce e Habermas continuam a
enfrentar velhas questões epistemológicas: como é possível a objetividade do
conhecimento se temos de nos conformar ao círculo de discursos e práticas (cf.
APEL, 1973)? Como sair da linguagem usando a linguagem? Como fazer valer a
ideia de uma realidade independente de nós, se a "verdade" é sempre
determinada, em última instância, pela "Opinião Final" de uma comunidade? Será
que não estaríamos simplesmente recolocando, agora sob nova roupagem, o
problema epistêmico clássico que marca a velha tradição da metafísica cuja
filosofia transcendental Peirce e Habermas buscaram superar?
No trecho que expomos a seguir, Habermas expressa a sua visão da
transcendentalidade que emerge "a partir de dentro" da comunidade:
Como não podemos sair da esfera da linguagem e da argumentação, a
referência à realidade (...) só pode se estabelecer se projetarmos
uma "transcendência a partir de dentro". Para isso serve o conceito
contrafático de Opinião Final ou de um consenso alcançado em
condições ideais. A aceitabilidade racional, e com ela a verdade de
uma afirmação, Peirce faz depender de um acordo que se pudesse
alcançar sob condições de comunicação de uma comunidade de
investigadores idealmente ampliada no espaço social e no tempo
histórico. Se entendermos a realidade como a soma de todas as
afirmações verdadeiras neste sentido, pode-se ter em conta sua
transcendência sem necessidade de abandonar a conexão entre
objetividade do conhecimento e intersubjetividade do entendimento.
(HABERMAS, 1989, p. 51)
De modo semelhante, Peirce defende o seu argumento a favor da objetividade do
real por meio da ideia de "idealismo condicional", afirmando que a verdade
consiste no fato de que todo investigador sincero será levado a abraçá-la "e
se ele não for sincero, os efeitos irresistíveis da investigação à luz da
experiência o farão ser". "Esta doutrina parece ser para mim", afirma Peirce,
"um corolário do pragmatismo. Eu chamo essa forma de 'idealismo condicional'"
(CP, 5.494). A "realidade" e a "verdade", embora essas duas ideias existam
somente ao redor da "Opinião Final" de uma "comunidade de investigadores" que
sobre tais assuntos resolveu concordar em determinado tempo e lugar, não podem
ser arbitrárias. Certamente, "todo pensamento humano e opinião contêm um
elemento arbitrário, acidental, dependente das limitações das circunstâncias,
do poder, e da inclinação do indivíduo; um elemento de erro, em suma" (PEIRCE
apud HABERMAS, 1968, p. 93). "Mas a opinião humana tende universalmente no
longo caminho a uma forma definida, que é a verdade" (Ibidem), porque a
"realidade" e a "verdade" representam aquele consenso que será sempre mantido
em condições favoráveis pela "comunidade de investigadores" até a consagração
da "Opinião Final". Nas palavras de Peirce:
Deixe qualquer ser humano ter informações suficientes e exercer
pensamento suficiente sobre qualquer questão, e o resultado será que
ele chegará a certa conclusão definida, a qual é a mesma que qualquer
outra mente chegará sob condições suficientemente favoráveis...
Existe... para cada questão, uma resposta verdadeira, uma conclusão
final, em relação à qual a opinião de todo homem está constantemente
gravitando. (Apud HABERMAS, 1968, p. 93).
Na esteira do pragmatismo de inspiração crítico-realista de Peirce, Habermas
afirma que "a virada pragmática não deixa espaço para dúvidas quanto à
existência de um mundo independente de nossas descrições". Muito pelo
contrário, diz ele, "desde Peirce a Wittgenstein, a ociosa dúvida cartesiana
foi rejeitada como uma contradição performativa 'se você tentasse duvidar de
tudo, você não chegaria a duvidar de nada'. O jogo de duvidar em si pressupõe a
certeza" (2000, p. 39).
Do quadro exposto nesta primeira parte do trabalho, identifica-se a existência
de uma tensão no interior da própria epistemologia de Peirce. Afinal, como
pretender atribuir autoridade epistêmica à opinião de uma comunidade de homens
investigadores? A seguir, pretendemos abordar de que maneira essa tensão se
materializa na filosofia do direito de Habermas. A tentativa deste autor de
construir uma sociologia do direito situada na "eticidade" do mundo da vida
conflita com a sua proposta no campo da filosofia do direito de buscar
enfrentar o desafio universalista e realista no campo das normas jurídicas.4
Quando Habermas incorpora a autoridade epistêmica da "comunidade de
investigação" no direito, realiza uma transposição, para o sistema jurídico, da
tensão entre fatos e valores inerente à epistemologia do pragmatismo
críticorealista de Peirce. Interessa-nos analisar o modo como Habermas
solucionará esta tensão, quando analisado comparativamente com a orientação de
Karl-Otto Apel.
2
Em Entre fatos e normas: contribuições para uma teoria do discurso do direito e
da democracia (1996), Habermas apresenta, pela primeira vez, a sua filosofia do
direito. Nesta obra, o autor retoma a sua teoria da ação comunicativa como
particularmente apropriada para enfrentar a tensão que, segundo ele, tem
marcado historicamente todas as teorias modernas no campo da filosofia do
direito. A tensão reside na relação aparentemente contraditória entre a
"faticidade" de um sistema jurídico cuja existência deve ser encarada de modo
empírico-sociológico e a "validade" abstrata das pretensões normativas
sustentadas no direito positivo. Na medida em que a autoridade epistêmica de
uma "Opinião Final" da comunidade é assumida como um conceito-guia contrafático
por Habermas para se determinar também a autoridade epistêmica no campo do
direito (e da política), quer dizer, como critério de validade das normas de um
Estado democrático de direito, a filosofia do direito habermasiana incorpora no
seu âmago a tensão identificada na epistemologia pragmatista de Peirce. Podemos
recuperar, portanto, na própria epistemologia pragmatista de Peirce, a tensão
entre fatos e normas, o mote da obra monumental de Habermas no campo da
filosofia do direito.
Segundo Habermas, em face da virada pragmático-linguística, a busca pela
legitimidade do direito já não pode mais recorrer às teorias do direito natural
ou às propostas positivistas que prescrevem a gênese sociológica do direito.
Com efeito, o que se impõe é uma teoria discursiva do direito e da democracia.
Esta teoria contém uma tensão conceitual que lhe é implícita: como explicar o
fato de que uma "comunidade de investigadores" (Peirce) ou uma "comunidade da
comunicação" (Apel) ou o que é o mesmo os participantes de um discurso
conformado por uma "situação ideal de fala" (Habermas) possam, não obstante a
sua inserção fática em um contexto histórico-cultural determinado, pretender
alcançar a verdade última de uma "Opinião Final" no que diz respeito às normas
universalmente válidas no direito a "normatividade"?
Mais propriamente, não se trata de uma tensão localizada em algum ponto
específico da filosofia do direito de Habermas, mas que se manifesta em
diversos níveis de sua análise como nas relações de tensão entre autonomia
pública e autonomia privada; soberania popular e direitos humanos; legalidade e
legitimidade; entre outras. Habermas objetiva dar conta de todas essas tensões
por meio de uma proposta que, paradoxalmente, estabelece a ideia de
"cooriginalidade" (ou de "equiprimordialidade") entre os pontos que
supostamente se encontravam em oposição. A "cooriginalidade" entre os pontos
dantes em tensão decorre do fato de que um é condição de possibilidade para a
existência do outro. Não temos o objetivo de entrar nos pormenores destetópico.
É suficiente salientar que a perspectiva conciliadora de Habermas evita uma
recaída nas clivagens que têm tradicionalmente marcado a teoria política
moderna. Entre teorias "comunitárias", que privilegiam a importância da
autonomia pública e da soberania popular, e teorias "liberais", que sublinham a
superioridade da autonomia privada, o autor posiciona-se no meio deste
conflito, reconciliando a tensão entre liberais e republicanos ao propor um
horizonte político-jurídico baseado na estrutura da comunicação determinada de
modo formal-pragmático (e, de acordo com ele, neutro) em função de uma "ética
do discurso".
Assim é que a solução de Habermas para todas essas tensões assinaladas
encontra-se na análise dos pressupostos que sempre e desde já [always already]
mostram-se necessários para a prática da ação comunicativamente orientada. Tais
pressupostos foram formulados inicialmente pelo programa de pesquisa conduzido
por Apel e Habermas, intitulado "Pragmática Universal". Na década de 1970, os
dois autores assumiram em conjunto a tarefa de construção da chamada "ética do
discurso" [discourse ethics], cujo programa de pesquisa fora denominado
"Pragmática Universal". Este programa de pesquisa tinha como objetivo
"identificar e reconstruir as condições universais de possibilidade do
entendimento mútuo" (HABERMAS, 1976, p. 21) entre os participantes do discurso
na "comunidade de investigadores" concebida por Peirce. Os autores buscavam
explicar o ponto de vista a partir do qual normas de ação em geral poderiam ser
justificadas perante uma comunidade universal. Apel e Habermas concluem que o
critério de justificação encontrar-se-ia nos pressupostos comunicativos capazes
de encetar a busca pelo acordo. Para alcançarmos este acordo, é preciso que
sejamos capazes de imaginar contrafaticamente aqueles pressupostos discursivos
procedimentais implicados no processo argumentativo (como as noções de verdade,
correção normativa, autenticidade e sinceridade). Quando os indivíduos resolvem
dar início a uma discussão e performar posições ideais de falante e ouvinte no
discurso prático, há um comprometimento ético-procedimental recíproco que
constitui as pressuposições necessárias de toda ação comunicativa. Assim, a
proposta de uma "ética do discurso" encontra seu fundamento numa determinada
forma que representa a estrutura de qualquer processo de argumentação. No livro
Entre fatos e normas, Habermas faz uma recapitulação de sua teoria do discurso
mediante a análise da teoria da argumentação, atribuindo centralidade ao papel
do direito como médium privilegiado para a institucionalização, por meio de um
"sistema de direitos", das condições gerais necessárias à emergência do acordo
e da própria legitimidade do direito. O movimento do constitucionalismo na
teoria do Estado permitiu a institucionalização, no médium do direito, dos
procedimentos formais para o exercício da argumentação na comunidade.
Contudo, embora ambos compartilhem do mesmo interesse, marcado pela construção
de uma filosofia crítica da sociedade, diferenças importantes no que diz
respeito às estratégias conceituais empreendidas por esses dois autores
resultaram em duas proposições teóricas distintas, as quais refletem, hoje,
duas concepções diferentes no quadro da filosofia do direito que descende do
pragmatismo de Peirce. Segundo Apel, o ponto de divergência entre ele e
Habermas decorre de uma suposta incoerência e inconsistência na reformulação do
projeto levada a cabo por este último. Antes do rompimento com Apel, Habermas
entendia que, "se os limites da semiótica significam os limites do mundo, então
o sistema de signos e a comunicação entre os usuários de signos passam a
ocupar, por assim dizer, uma posição transcendental" (1989, p. 54). A partir da
publicação de sua obra dedicada à filosofia do direito, Habermas pretende
sustentar a possibilidade de universalização de pleitos normativos (como
aqueles relativos à internacionalização dos direitos humanos), sem assumir,
como contrapartida necessária, a ideia pressuposta nessa sua pretensão
universalista de que o direito per se depende normativamente de um argumento de
natureza moral. Apel acredita que, para se proceder à identificação das
condições universais de possibilidade do entendimento mútuo, é preciso buscar
aqueles constrangimentos "transcendentais" (porque normativamente necessários)
que sempre e desde já pressupomos com relação a nós mesmos e aos demais
participantes. Ao negar o estado "transcendente" desses pressupostos, Habermas
cometeria uma petitio principii, afirma Apel. Melhor dizendo, Habermas
cometeria uma "contradição performativa". Valendo-se da teoria dos atos
performativos, Apel é levado a afirmar que as pressuposições necessárias para
que não entremos em "contradição performativa" no discurso transcendem o mundo
empírico da comunicação, impondo-se externamente, de maneira absolutamente
necessária, sobre a comunidade que queira se orientar comunicativamente. Ao
longo do tempo, as pressuposições nunca mudaram, nunca mudam e nunca mudarão. E
é por isso que não podemos vê-las a partir de uma perspectiva histórico-
sociológica, como decorrentes da "eticidade" do mundo da vida, como quer
Habermas.
Foi a tematização do problema transcendental a partir de Peirce o ponto de
desengate entre Habermas e Apel. Enquanto Apel insiste na ideia de uma
filosofia pós-metafísica, que é, todavia, "transcendental", Habermas tem como
objetivo salvar uma noção compreensiva da racionalidade humana sem ter de
recorrer ao que "transcende" o mundo empírico de nossos contextos sociais, pois
isso significaria um retorno à velha tradição do direito natural. As pretensões
de validade necessariamente presentes na prática comunicativa encontram-se
situadas em contextos sociológicos do mundo empírico. Apel deu um passo a mais
ao introduzir o tema "prope-metafísico" da filosofia transcendental no projeto
da "Pragmática Universal" que ambos construíram em conjunto. Explicam-se, dessa
forma, as terminologias distintas que passaram a ser adotadas pelos dois
autores: Habermas prefere falar em "Pragmática Formal", ao passo que Apel faz
referência à "Pragmática Transcendental".5
A transcendência é projetada por Apel a partir da comunidade de investigação;
trata-se de uma transcendência que, quando bem compreendida, parte do interior
do próprio processo discursivo. Assim é que a "comunidade da comunicação", para
Apel, pode ser pensada como sendo a priori. Habermas adentra o campo "prope-
metafísico" com mais cautela: a comunidade de investigadores é, para ele,
quasi-transcendental. "Quasi" porque, não obstante a sua condição necessária e
pressuposta, a comunidade precisa concretizar-se sob condições que são
empíricas, estando sempre situada em contextos espaciais e históricos. A recusa
de Habermas em transcendentalizar a filosofia está marcada, também, pela defesa
de um pensamento que se diz "pós-metafísico" embora a sua pós-metafísica nada
tenha de "antimetafísica"; constitui, arrisca-se dizer, uma forma de pensamento
em muitos aspectos parecida com a proposta de Peirce de uma "metafísica
científica" ou "reformada".
A crítica de Apel refere-se à diferenciação que Habermas pretende estabelecer,
notadamente no terceiro capítulo de Entre fatos e normas, entre o "princípio da
moral" e o "princípio do direito". Habermas quer evitar uma subordinação do
direito positivo a uma norma de direito natural ou à moralidade. O autor supõe
que, "no nível pós-metafísico de justificação, regras jurídicas e morais
diferenciam-se simultaneamente da vida ética tradicional e aparecem lado a lado
como dois tipos de norma de ação diferentes, mas mutuamente complementares"
(1996, p. 105). A racionalidade prática que Habermas pretende recuperar a todo
custo assumiria significados diferentes de acordo com a norma de ação a
demandar justificação. Em se tratando de justificar uma norma de ação
pertencente ao campo da moral, aplicar-se-ia o "princípio da moral" na forma
de um "princípio de universalização (U)"; em contrapartida, em se tratando de
uma norma de ação pertencente ao campo do direito, aplicar-se-ia o "princípio
do direito" na forma de um "princípio da democracia". Embora ambos os
princípios possam ser reconduzidos à máxima inscrita no "princípio do
discurso", formulado de maneira formal-pragmática, refletindo "aquelas relações
simétricas de reconhecimento construídas a partir de formas de vida
estruturadas comunicativamente" (1996, p. 109), expressando exigências pós-
convencionais de justificação, os campos da moral e do direito não podem ser
equiparados, embora possam ser, de fato, complementares. "Apesar de seu
conteúdo normativo, ele [o princípio do discurso] reside em um nível que é
ainda neutro com relação à moralidade e ao direito, pois se refere a normas de
ação em geral (HABERMAS, 1996, p. 107). Significa dizer: "o direito não imita a
moral":
Essa construção é guiada pela intuição platônica de que a ordem
jurídica imita a ordem noumênica de um "reino de fins" e, ao mesmo
tempo, a corporifica no mundo fenomênico. Mais especificamente, o
legado platônico ainda vive na duplicação do direito em direito
positivo e direito natural. Com isso, quero dizer a intuição de que
uma comunidade ideal de sujeitos morais responsáveis a comunidade
da comunicação ilimitada de C. S. Peirce a Josiah Royce a Karl-Otto
Apel entra pelo médium do direito na arena do tempo histórico e do
espaço social e adquire a forma concreta, situada temporal e
espacialmente, de uma comunidade legal. Essa intuição não é
inteiramente falsa, pois uma ordem legal só pode ser legítima quando
não contradiz princípios morais básicos. Em virtude dos componentes
de legitimidade da validade jurídica, o direito positivo tem uma
referência à moralidade que está inscrita nele. Mas essa referência
moral não pode nos conduzir a posicionar a moralidade acima do
direito, como se houvesse uma hierarquia de normas. (HABERMAS, 2006,
p. 106)
Habermas prefere recorrer à ideia de "eticidade" do mundo da vida para
determinar o "princípio do discurso" e a própria co-originalidade entre direito
e moral, ao passo que Apel supõe a necessidade de uma fundação tomada a priori
(1998, p. 75). Para Habermas, a duplicação na concepção do direito em, de um
lado, o direito moralmente válido e, de outro, o direito moralmente inválido é
não só implausível em termos sociológicos como acarreta consequências
normativas aberrantes. Do ponto de vista sociológico, embora a moral e o
direito tenham nascido simultaneamente de forma co-originária, portanto ,
com o rompimento da visão platônica do mundo ocorreu um processo de
diferenciação entre questões jurídicas e questões morais. Hoje, ainda que o
direito e a moral façam igualmente referência ao problema da conduta, referem-
se ao tema de forma diferente.
Gostaria de encerrar este ensaio sobre a possibilidade de "rotularmos" a
filosofia do direito de Habermas no quadro referencial do pragmatismo peirciano
recorrendo a algumas considerações acerca de uma pretensa relação de semelhança
que podemos entrever entre o "princípio do discurso" e a "Máxima Pragmática" de
Peirce. Sabemos, de antemão, que esses dois postulados formularam-se tendo em
vista propósitos diferentes: o primeiro tem como objetivo explicar o ponto de
vista a partir do qual "normas de ação" podem ser justificadas; o segundo
pretendia estipular a maneira correta para se determinar o verdadeiro
significado de um conceito, que se manifesta concebivelmente na conduta
humana.6 Em última instância, contudo, ambos os postulados referem-se, sob
diferentes roupagens, a certa forma de raciocínio capaz de determinar a
"correção" de uma norma de ação.
O "princípio do discurso (D)" impõe a sua lógica ao precisar que "somente são
válidas aquelas normas de ação com as quais todas as pessoas possivelmente
afetadas poderiam concordar como participantes em discursos racionais". E mais,
é preciso que todos os participantes e possíveis afetados possam aceitar as
consequências e os efeitos colaterais que resultariam da observação geral da
norma para a satisfação do interesse de todos; e que essas consequências e
efeitos colaterais resultantes da observância geral da norma sejam preferidos
às demais possibilidades alternativas conhecidas para a regulação daquela
conduta. Podemos inferir uma semelhança entre o "princípio do discurso" de
Habermas e a "Máxima Pragmática" de Peirce. Recordemos esta última: "Considere
quais efeitos, que possam concebivelmente ter implicações práticas, nós
concebemos ter o objeto de nossa concepção. Então, nossa concepção sobre tais
efeitos é o todo da nossa concepção sobre o objeto" (CP, 5.402). Ambos
depositam a força da validade (de uma norma de ação, no caso de Habermas; e do
significado de um conceito, que se traduz em uma norma de ação concebida, no
caso de Peirce) nas consequências. Em Habermas, são aquelas consequências que
podem ser "antecipadas"; em Peirce, são os efeitos que podem ser "concebidos".
Acredito que a filosofia do direito de Habermas sustenta-se na intuição
metodológica de Peirce, a qual ganha expressão pragmática no "princípio do
discurso", orientador do "princípio do direito" e do "princípio da moral". A
própria concepção filosófica do direito de Habermas parece ser, ela mesma,
pragmática: o significado racional (entendido como validade jurídica) de uma
norma reside exclusivamente na sua implicação (concebível) sobre a conduta. A
definição do "princípio do discurso", portanto, formula-se de modo pragmático.
Ao longo deste artigo, pretendemos argumentar que a filosofia do direito de
Habermas foi também animada, em aspectos fundamentais, pelo espírito
pragmatista norte-americano. A confirmação da influência do espírito
pragmatista na teoria do discurso do direito e da democracia de Habermas
possibilita compatibilizar a sua reflexão no campo do direito com a arquitetura
maior que sustenta seu pensamento nos demais domínios por onde se aventurou: a
epistemologia, a teoria social e a teoria política. Todavia, como sublinhamos,
existem muitos pragmatismos, tanto na filosofia como no direito. Na verdade, o
que parece estar implicado é a ambivalência semântica do termo pragmatismo em
si, a qual extrapola discussões disciplinares e alcança em seu âmago o próprio
significado deste conceito. Neste momento, cabe-nos somente salientar,
ironicamente, a ubiquidade do termo ora, como se sabe, o principal objetivo
da Máxima de Peirce era tornar nossas ideias mais claras; formular um método
seguro para a determinação de conceitos intelectuais, institutos e categorias.
Talvez seja o momento de indagarmos acerca da possibilidade de se vindicar a
versão peirciana do pragmatismo clássico como pano de fundo para a filosofia do
direito de Habermas. Nessa perspectiva, o direito seria encarado como o médium
propício à concretização da "comunidade de investigadores" de Peirce.
Certamente, a defesa de uma perspectiva filosófica realista no plano da
validade normativa coloca o quadro teórico-filosófico dos dois autores em linha
de continuidade e, ao mesmo tempo, em contraposição às propostas pragmatistas
que hoje identificamos na epistemologia e no direito. Se Habermas é mesmo um
intelectual animado pelo espírito pragmatista em todos os domínios de sua
intervenção intelectual, tal espírito formou-se sob a influência da tradição
clássica do pragmatismo norte-americano, cuja proposta nada tem a ver com a
versão renovada ou renascida que domina no cenário filosófico contemporâneo. A
identificação de Habermas com esta escola de pensamento pretendeu enquadrar o
autor na linha da tradição clássica, em franca oposição ao neopragmatismo de
Rorty e Posner, cujas teses dominam os discursos pragmatistas contemporâneos.
Habermas, nesse quadro, poderia sim ser visto como um pragmatista, mas um
pragmatista que é mais afeito ao estilo clássico desta escola de pensamento;
como diria Haack, um pragmatista de estilo neoclássico.