O lirismo em György Lukács
Um dos temas que cativam e, ao mesmo tempo, dificultam o acesso à obra estética
do jovem Lukács é o do emudecimento (Verstummung), conceito que designa a perda
da palavra. Mas, diante de um autor tão prolixo e de uma obra tão vasta, que
silêncio é este? Trata-se de um silêncio da alma ou da forma? De um sintoma
psicológico ou de um signo da modernidade? Com efeito, poder-se-ia pensar
tratar-se do seu próprio mutismo que consistia ora em uma reserva e embaraço
diante de um outro, ora, em seus termos, em "forte repugnância em falar", ao
não se sentir escutado; ao perceber-se sujeito de uma fala vã, e na constatação
amarga de que em quase toda sua vida, especialmente na juventude, "não havia
conseguido estreitar laços com as pessoas que lhe erammais importantes", como
Endre Ady ou Bela Bartók (LUKÁCS, 1986, p. 51-52). Nos textos, contudo,
paradoxalmente, o embaraço pessoal dissipa-se e confunde-se com o tema de um
emudecimento geral que remete diretamente para a impossibilidade mais aguda da
própria forma, vista como um sintoma da modernidade. Mas, estamos diante da
constatação da impossibilidade da própria poesia, que outrora podia dizer o
essencial e que agora suspira pela palavra poética reparadora, que vá restituir
a consistência originária perdida? Ou, inversamente, estamos na direção de uma
"estética do silêncio", silêncio-pausa que se abre como vazio e pura forma,
como ato originário criativo, permitindo à linguagem dizer o que ainda não foi
dito?
Certamente no jovem Lukács o silêncio não decorre de uma incomunicabilidade
positivada, signo de uma modernidade transgressiva e que busca dizer o
inefável. Tampouco o mutismo pode ser explicado ao acaso, psicologicamente, por
meio de motivações pessoais: o plano subjetivo é insuficiente, pois unívoco e
parcial apesar de ele ser legítimo e sempre um lado essencial do problema,
afinal é sempre da vida vivida individualmente que se trata. Não se trata,
pois, de uma situação contingente, mas nem por isso estamos diante de uma
necessidade imposta por alguma lei universal; de um silêncio que apontaria para
uma "dor inexprimível" que, por exemplo, nos termos de Schopenhauer, teria
raízes na natureza do homem. Assim, encontramo-nos diante de uma condição
existencial e temporal que aponta para um quadro geral de incomunicabilidade e
que conduz a uma obscuridade na e pela linguagem e a uma impossibilidade do
sentido. Precisamente, estamos diante de uma fratura ocorrida no campo da arte,
pois algo foi perdido na relação entre arte e vida, já que "a arte se tornou
estrangeira em relação às suas origens" (Ursprung- Fremden aufgewachsen sind)
(LUKÁCS, 1974, p. 188). Para entender o emudecimento como um sintoma geral da
modernidade e não pessoal de algo que se perdeu, é fundamental para o jovem
Lukács articular as relações entre a alma e as formas. Ora, o que a forma tem a
ver com este silêncio? Como a obra de arte, particularmente a poesia lírica,
pode ser uma maneira de violar o mutismo?
Em suas obras iniciais o quadro "pré-existencial" desenhado é bastante sombrio,
mas também crítico: se não podemos na contemporaneidade conhecer
definitivamente o mundo, o "destino" na linguagem de Lukács, eivado de acasos e
em constante transformação, podemos menos ainda conhecer os homens, seus
desejos e ações. O mutismo corresponde à dissonância, conceito que caracteriza
os equívocos interpretativos, jogos de ilusão e desilusão que definem a
modernidade: "Tudo que podemos saber sobre um outro é que ele é apenas espera e
possibilidade"; na infinidade das múltiplas possibilidades, "tudo é possível,
mas nada é certo e tudo se confunde" (idem, p. 180). Para Lukács, tal
constatação separa o "mundo da compreensão" do "mundo da vida", abrindo-se
então uma fissura na qual a própria existência é apresentada por meio da
metáfora do abismo: imagem figurada como uma subida ao topo de uma montanha que
acaba em precipício. Os poucos que atingem o topo podem vislumbrar por um
instante as múltiplas possibilidades e caminhos que se abrem, mas a reação
diante do ilimitado e do abismo que separa o pico da base é a sensação de
vertigem e, consequentemente, a constatação do estado de solidão e o
emudecimento. E não a reação sugerida por Kant, no sublimematemático diante do
absolutamente grande, isto é, a de uma "comovedora complacência que tem seu
fundamento em idéias morais (...) e que desperta o sentimento de uma faculdade
supra-sensível em nós" (KANT, 1993, p. 96).
Ao situar a cisão entre entendimento e vida como o problema contemporâneo da
arte, Lukács articula uma Estética a partir de pares de opostos: forma viva e
forma abstrata; forma autêntica e inautêntica; Vida e vida; e lirismo antigo e
lirismo novo. De modo que há nos conceitos desta fase da produção lukácsiana
uma reflexão estética, segundo Lucien Goldmann, pautada por uma "síntese entre
um estruturalismo mais ou menos fenomenológico de matriz husserliana e um
kantismo trágico". Da primeira corrente fenomenológica, tendência marcante na
escola de Freiburg-im-Breisgau, que influenciara Lukács, sobressai o conceito
de "essência como estrutura significativa" ou de "forma significativa". Do
kantismo conflui o método, na medida em que a reflexão conceitual do autor
parte do procedimento crítico, ou seja, de uma consciência que pensa os limites
do conhecimento, e, radicalizando, afirma a solidão e a impossibilidade de
dizer uma verdade absoluta sobre o mundo. Da confluência entre estas duas
tendências desponta uma Estética que parte da consideração de uma obra
particular, tomada como necessária, ou seja, à qual é atribuído um valor
universal: a obra é um julgamento de valor, uma escolha ética, isto é, a busca
de uma ordem e de uma harmonia em uma forma, a partir de uma subjetividade. O
trágico, portanto, resultaria de uma verdade instável fundada a partir destas
formas particulares, problemáticas e dissonantes, e, no entanto, formas
significativas, pois apontavam dialeticamente para essa ruptura insuperável
entre o homem e o mundo.1
É o que se pode constatar, sobretudo, em A alma e as formas (1910), obra
central das primeiras incursões de Lukács no campo da Estética. Ali a questão
da forma já ganhava alguns poucos contornos históricos, indicando a direção da
historicização que ocorrerá com mais força a partir de A teoria do romance
(1916). No ensaio "A nova solidão e seu lirismo: Stefan George", o jovem Lukács
enfrenta o tema da poesia contemporânea, isto é, do início do século XX,
considerada pela crítica literária da época estetizante, fria, hermética e
distante. Investigando a pertinência de tais predicados, Lukács vai além,
perscrutando e explicitando o significado desta frieza e impassibilidade, pois
elas apontavam não só para uma crise na poesia, mas para o surgimento de um
novo lirismo.2 O diagnóstico é ainda indefinido, mas incontornável: o fato de
que uma poesia seja considerada obscura e não comunique mais alguma coisa a um
público não depende apenas da crise da poesia, mas do ordenamento de uma
situação histórico-cultural; hoje, diz Lukács, "as formas não se desenvolvem
mais a partir da vida, ou elas são abstratas ou inexistentes"(LUKÁCS, 1974, p.
189).
No que consiste a crise, e o hermetismo de George, pergunta Lukács? Seria um
novo classicismo, que se apresentaria após o esgotamento do fluxo romântico? Do
ponto de vista da história da arte, ainda influenciada por uma reflexão
romântica, como a de Friedrich Schlegel, seria uma interpretação plausível, na
medida em que nesta os conceitos de clássico e romântico flutuam, obedecendo a
uma dialética antitética, na qual o excesso de subjetividade do período
anterior é suplantado e encontra sua solução na objetividade da fase posterior.
Ora, Lukács confronta Schlegel ao afirmar que os conceitos de "objetividade e
subjetividade são categorias da evolução e da história, mas não da estética"
(p. 134); são categorias de uma história da recepção do leitor que, diante de
uma obra poética, busca uma relação de causalidade, de identidade e semelhança;
versos que eram lidos como objetivos, frios e clássicos podem ser vistos anos
depois como subjetivos, quentes e líricos. Ou seja, nada que diga respeito ao
"valor da obra", mas a sua posição social num contexto histórico, pois
especificamente elas sinalizam as mudanças sentimentais que ocorrem no tempo.3
Mas, do ponto de vista da estética, trata-se de enfrentar o lado mais complexo
do problema, afirma Lukács, que é o de compreender o valor de uma obra,
entendê-la como "estrutura significativa," superando, assim, a vacuidade e a
instabilidade dos conceitos de objetividade e subjetividade. A Estética deve
enfrentar os problemas formais internos de uma obra de arte, e no caso
especialmente da lírica de Stefan George, levar em conta, como propusera
Goethe, que "o lírico moderno é um poeta de ocasião, que se angustia diante do
gênero literário sem saber o que fazer", mesmo sabendo que seus versos provêm
da "influência recíproca da individualidade do poeta e das circunstâncias de
seu tempo" (p. 135).
De modo que, se George é um esteta, considerado frio e hermético, ele o é na
condição de moderno: aquele que cria sua própria forma a partir de si mesmo;
pois já não se satisfaz com as formas do lirismo habitual. Contudo, o esteta
não resulta apenas de um voltar-se para uma interioridade rica e livre, mas
igualmente de uma reação diante de uma "época não artística", caracterizada por
uma "incapacidade de leitura do leitor contemporâneo"; trata-se de uma forma do
poema que exige um "leitor estrangeiro, ideal, que não existe em parte alguma".
Nos seus termos, "esteta é aquele que nasceu em uma época na qual o sentimento
racional da forma desapareceu (rationelle Formgefühl ausgestorben ist), que não
se resigna diante das formas convencionais, transmitidas historicamente, como
resíduos mortos (...) e que, ao contrário, na medida das suas possibilidades,
constrói em si mesmo suas determinações específicas e cria a partir de si mesmo
as circunstâncias que determinam seu talento" (p. 136). Ele ainda pretende
dizer alguma coisa, em uma época na qual o lirismo habitual não tem mais nenhum
papel na vida corrente.
Assim, paradoxalmente, tais formas são abstratas e significativas pois são
artificiais e negativas: formas de resistência ao tempo. A partir delas o autor
pode elaborar uma reflexão original sobre os gêneros, e aqui, em particular,
sobre a poesia lírica, localizar uma novidade, "o lirismo pudico (keusche
Lyrik)", e pensar a partir desse referencial artístico o "problema espiritual
(seelisch) do homem contemporâneo". Curiosamente, não é a forma nomeada de
"intelectualmente moderna" que permite ao autor investigar as marcas do
contemporâneo, mas uma outra forma, paralela, também experimental, mais
clássica, nomeada de "a nova poesia da palavra" (der neuen Wortdichtung). Tal
contexto assinala para o autor o declínio da tradição do canto popular e a
ascensão do lirismo musical de formato inglês o qual de certa forma o maduro
Goethe já antecipara o quadro e Stefan George, o discípulo alemão de Mallarmé,
será o principal nome deste novo lirismo. Vejamos um exemplo deste movimento no
poema de George, intitulado "Nietzsche":
Escuras nuvens avançam sobre a montanha
Gélidas tempestades fustigam ainda meio outono
Meio primavera... Eis a muralha
Que encarcerou o Trovejador era o único
Entre os milhares de pó e névoa ao seu redor?
Ali lançou seus últimos relâmpagos rebotos
Sobre planícies e cidades extintas
Transpondo a longa noite para a noite eterna.
Crassa trota abaixo a massa não a espantem!
Seria ferir a medusa ceifar erva!
Em instantes impera o silêncio celestial (...)
Tu redentor! De todos o mais infeliz
Marcado pelo destino atroz
Nunca viste a sede da saudade sorrir?
Criaste deuses para logo despedaçá-los
Nunca uma obra te deu alegria ou alívio?
Aniquilaste em ti próprio o próximo
E ao sentires sua falta na absoluta solidão
Soltaste um grito de dor e desespero
Tarde demais chegou o suplicante para revelar-te:
Não existem caminhos sobre cimos nevados
E pássaros apavorados ouviste na miséria:
Exilado no círculo onde o amor inexiste.
E quando a implacável e atormentada voz
Soa como canto de louvor em soturnas noites
De luar assim lamenta-se: devia ter cantado
Essa nova alma e a palavra evitado!
(GEORGE, 2000, p. 99)
A oposição entre cantar e falar assinala o sinal dos tempos, o elemento trágico
da solidão e do isolamento. Ao enfrentar o problema espiritual da
contemporaneidade, qual seja, o da proximidade e do afastamento da arte em
relação à vida e que se traduz na opacidade da palavra, Stefan George constata,
nesse poema, que a "muralha que encarcerou o trovejador" e que exilou o
filósofo no "círculo onde o amor inexiste" está prestes a provocar o "silêncio
celestial", enquanto "crassa trota abaixo a massa". Não há reconciliação
possível entre o poeta que é o "único" e os "milhares de pó e névoa",
habitantes de "cidades extintas"; não há também redenção pela palavra, que tão
somente é "voz atormentada", pois não alivia nem dá alegria.É uma poesia que
chega tarde demais, sem nostalgia, lamentando-se não pelo tempo passado, mas
pelo instante do presente que acabou de ser perdido e que se esvai. Seu lirismo
marca uma literatura que se constitui, portanto, a partir de uma distância
radical. Uma literatura do distanciamento e da solidão, e não da aproximação e
da comunhão.
Por que tal forma é para Lukács significativa? De um lado, o fazer do poeta
aponta para a noção de intencionalidade, de resistência formal: a linguagem
oscila, aproxima-se e afasta-se das coisas, sem abandonar o sensível, visando
tornar-se estrangeira, sugerindo uma comunicação interrompida ou perturbada. De
outro, a linguagem abre mão de referir-se às coisas absolutamente, mas não abre
mão do absoluto, entendido como o essencial, evitando, assim, o risco de a
forma apontar apenas para o que é casual, vulgar, para aquilo que é
inteiramente singular e, portanto, inessencial. Uma combinação inusitada, uma
beleza intrigante: tal forma é original e exige uma teoria correspondente,
sustenta Lukács. Pois aqui não se trata nem de uma "metafísica imanente", como
em Schopenhauer, para quem o "poeta idealiza a natureza", na medida em que o
que é significativo é em si mesmo e não pelas relações que estabelece, de modo
que o poeta "constrói a priori aquelas proporções numa intuição pura, não
empírica, estabelecendo-as, portanto, não como elas se encontram efetivamente
nas figuras assinaladas, mas como são na idéia" (SCHOPENHAUER, 2003, p. 208). E
nem da estética hegeliana e da definição da lírica como a expressão de um
sujeito que fala a si mesmo, apesar de o jovem Lukács estar bastante próximo do
idealismo hegeliano: "O que conduz à poesia épica, diz Hegel, é a necessidade
de ouvir a coisa a qual desdobra diante do sujeito a totalidade fechada por si
mesma como uma totalidade objetiva em si mesma; na lírica, ao contrário, se
satisfaz a necessidade inversa de se expressar a si e de perceber o ânimo na
exteriorização de si mesmo" (HEGEL, 2004, v. 4, p. 157). Ou, nos termos mais
claros dos cadernos de Kehler: "O objeto da poesia lírica é o interior em seu
modo de sentimento, no modo de elaborar em si mesmo e produzindo representações
que não se mostram em conexões com as ações".4 Ou seja, o lírico é um momento
de emancipação do eu, da efusão (Erguss) da subjetividade, na qual figura "o
espírito que não deve ser libertado do sentimento, mas no sentimento". Aliás,
no sistema geral da Estética de Hegel a poesia é o momento de maior abstração,
com quase nenhuma presença de matéria sensível.
Ou seja, um Lukács estritamente hegeliano deveria enfrentar se não muitos, pelo
menos os problemas inerentes ao polêmico tema do fim da arte, enunciado por
Hegel: "Por esta razão, o estado de coisas da nossa época não é favorável à
arte"5 (HEGEL, 1999, p. 35). O primeiro seria o de enfrentar o diagnóstico
histórico de que se trata de uma transformação na "natureza de toda a cultura
espiritual" e que nenhum artista pode escapar a essa situação, "e formar uma
solidão particular restauradora do que se perdeu" (idem). O segundo, de que a
solidão do poeta é também, na Estética de Hegel, interiorização, positividade,
representação, pois é um momento no curso do espírito no mundo, isto é, uma
figura do espírito, que se situa entre um momento anterior no qual predominou a
objetividade do épico e em um posterior, no qual se dará a síntese no drama.
Ora, o tema do fim da arte está presente em A alma e as formas, mas só será
desenvolvido plenamente em A teoria do romance.
Em A alma e as formas, o que possibilita o surgimento de uma nova lírica é o
isolamento, o afastamento da "cultura espiritual" de sua época, provocado pela
reação diante de "um tempo que não é favorável à poesia"; é a impossibilidade
de uma "cultura pública", de "uma alma e uma voz nacionais", no sentido antigo,
ou seja, a solidão do "homem arrancado de todos os laços sociais", mas que não
cessa de desejar alguma forma de pertencimento. Poderíamos dizer que há,
portanto, uma inversão: é do exterior que parte o solo propício para a nova
lírica e não do "ânimo", da vocação, da interioridade. O que Goethe já havia de
certa forma percebido e operado dialeticamente: "pois as determinações
específicas (da poesia moderna) deveriam, se não me equivoco, vir do exterior,
e as circunstâncias determinar o talento", sublinha Lukács (LUKÁCS, 1974, p.
136). Se o elemento externo se apresenta determinante, cujo conteúdo é um puro
desinteresse em relação à arte, em que medida a poesia de George afirmaria a
autonomia da arte, seu momento emancipatório?
O conceito de autonomia ganha nos ensaios de A alma e as formas uma tradução
desencantada. O que significa que Lukács leva realmente a sério a ideia
hegeliana de que uma subjetividade não pode saltar, por seus próprios meios,
por cima do seu tempo. E o tempo é o da dissonância, da nostalgia, da
impossibilidade da essência, da ausência de sentimentos comuns, enfim, da busca
infeliz. Se, ainda em Hegel, Schiller marcava o momento mais "agudo" da lírica,
pois "ele não canta silenciosamente em si mesmo" (HEGEL, 2004, v. 4, p. 190),
para o jovem Lukács não há reconciliação possível pois a solidão de George
remete a uma ausência que assinala uma nostalgia de formato clássico "ninguém
tem necessidade de suas lieder" que permite uma configuração sensível da
intimidade, um mergulho na interioridade sem precedentes, um devotamento aos
seus "cursos interiores", àquilo que na sua experiência é o mais pessoal. Mas a
exigência de intimidade resulta em perda, em distanciamento em relação à vida.
De modo que, negativamente, tal mergulho "não anuncia nada de verdadeiramente
decisivo sobre seu verdadeiro ser", diz Lukács, enquanto para Hegel o poeta
lírico assinalaria um momento de conscientização e de exteriorização do
percebido, um momento no qual o poeta "expõe a si mesmo", "a totalidade de um
indivíduo segundo o seu movimento poético interior" (HEGEL, 2004, v. 4, p.
175). Em George, tal lirismo que se atém ao que é mais pessoal adota um tom de
despistamento, de forte inspiração de seu predecessor Mallarmé, como se
procurasse dissimular os elementos confessionais, evitando, assim, qualquer
identificação e reconhecimento por parte do leitor. Lukács demonstra que o
procedimento, se não resulta como em Mallarmé no aniquilamento da realidade,
decorre de um afastamento de toda a realidade empírica, portanto, de um lirismo
que negativa e intencionalmente se afasta de qualquer comunhão com o leitor.
Lirismo "simbólico", "universal", mas, principalmente, "pudico" (Keusche),
"enigmático". Procedimento que coloca o poeta cada vez mais solitário e
afastado da vida.
A mudança é percebida principalmente no plano formal e exige uma reformulação
na poética dos gêneros. Pois o lirismo antigo era, diz Lukács, uma poesia de
circunstância, destinada a um leitor geral, simples, pouco informado, mas
conhecedor do sentido existente, das oposições que localizavam uma aventura ou
um ato heroico. De modo que tais versos eram destinados a ser posteriormente
cantados, em uma música própria para vozes coletivas. Ou seja, o poema
efetivava-se no canto. No lirismo moderno, ocorre o fim do acompanhamento
musical, do canto, não só pelo declínio da experiência comunitária que engendra
o canto, mas porque a poesia já é nela mesma música, "ao mesmo tempo texto e
entonação, melodia e acompanhamento"(LUKÁCS, 1974, p. 142); evocação das
tonalidades da alma, apenas por meio da sonoridade das palavras, ritmo que
resulta da alternância entre sons e silêncio. Ou seja, estamos diante das
condições formais que possibilitam a autonomia da obra de arte.
Do ponto de vista técnico, o procedimento consiste em uma inversão notável, diz
Lukács: "se em Heine, Byron e no jovem Goethe, a experiência vivida era
concreta e o poema consistia em torná-la típica, elevando-a ao símbolo", em
George, ao contrário, é a experiência vivida nos seus mínimos detalhes e
percepções casuais que é elevada ao típico (typisiert das Erlebnis) e a poesia
revela apenas as modulações das emoções, tornadas enigmáticas e sem
significação imediata, impedindo a simbolização. "Naturalmente, ele (George)
fala sempre de si mesmo, contando tudo aquilo que para ele é mais profundo,
mais dissimulado, e a cada confissão ele torna-se mais enigmático, fechando-se
cada vez com mais força em sua solidão" (LUKÁCS, 1974, p. 138).6 Trata-se,
nomeia Lukács, do "impressionismo do típico", de versos feitos de alusões,
imprecisões, detalhes; coloridos e sons que se perdem, transformam-se uns nos
outros, deslocam-se, mas que mantêm o "poeta permanentemente afastado de nós,
leitores" (idem, p. 139). Eles são íntimos demais, impedindo uma significação
clara, simples e, portanto, universal. Encontramos apenas uma "atmosfera", diz
ele, que permite que o visível surja entre as coisas, "no reflexo cintilante de
suas superfícies e na indefinição de seus contornos", de modo que o
inexprimível possa permanecer como inexprimível (LUKÁCS, 1974, p. 172).
Posteriormente Adorno dirá que não há comunhão possível entre o leitor e os
versos de George, pois "são poemas que não permitem intimidades" (ADORNO, 1998,
p. 206).7
Os versos de George falam de olhares que não foram percebidos, palavras não
ditas ou não compreendidas, de instantes e transições. Para Lukács, a novidade
que o lirismo de George anunciava, e que já estava prenunciada como vimos no
maduro Goethe, consistia em demonstrar que no mundo contemporâneo predomina
cada vez mais um estranhamento, e que o desejo de pertencimento e de comunhão
só podia ser enunciado por um murmúrio e negativamente. Eis a técnica do recuo,
da relação recíproca entre aproximação e afastamento, que é na verdade a outra
face da tensão entre o que pode ser narrado e aquilo que não encontra palavras
para ser dito. Para o jovem Lukács, no mundo contemporâneo, isto é, na
modernidade, a proximidade tornou-se tão intensa, de modo que tudo parece
passível de ser narrado, o que não significa um acesso mais amplo ao que
importa, ao essencial. Ou seja, é diante da mais absoluta proximidade que
reside a mais terrível obscuridade; na compreensão de tudo, a mais absoluta
incompreensibilidade. Diante da impossibilidade de conhecer o mundo das coisas,
há um burburinho interminável, sons que se cruzam, preenchendo todos os
espaços, confundindo os tempos. Mas ao poeta ainda resta insistir na forma, nem
que seja só para enunciar a incomunicabilidade do tempo presente.
O ensaísta francês Charles Andler (1866-1933) no ensaio, de 1912, sobre a
recepção ocorrida na França à publicação de A alma e as formas, demonstra que
uma das novidades dos ensaios de Lukács consiste na "orientação filosófica das
pesquisas sobre os gêneros literários". Para Andler, Lukács, este "platônico
moderno", é original pois começa a trabalhar justamente ali onde o historiador
encerrou sua pesquisa; ali onde a forma é interrogada na sua relação com a
vida, isto é, como abertura para a "exploração do possível" e para a "emigração
da alma". Entre outras coisas, o ensaio de Lukács sobre o lírico possibilita
enunciar o moderno, isto é, perceber com agudeza que a nossa sensibilidade
mudou, que a poesia não pode mais ser a generalização de uma experiência
interior, uma vez que não nos conhecemos mais com profundidade, não podemos
mais desenhar uma "silhueta". Portanto, hoje o lirismo apenas produz "uma
imagem não desenhada". Ele vasculha nossa "vida obscura"; e "sabe contemplar
este mundo invisível dos sentimentos obscuros". "Se não conhecemos ao fundo
nenhuma alma, sabemos melhor que nossos antecessores as emoções miúdas vividas
por elas em suas profundezas inacessíveis. Nós sabemos mais sobre as regiões
fronteiriças nas quais vivem almas delicadas, abaladas, graciosas e, portanto,
significativas. Em gestos raros, olhares dificilmente captados e palavras
enigmáticas, podemos atravessar uma atmosfera tênue e penetrar sem dúvida até o
mais íntimo, mas não as podemos seguir mais" (...). "Sobre sombras de azul, de
malva e de esmeralda, depreende-se uma imagem não desenhada para o olhar que a
cria. Das modulações do acompanhamento emerge uma melodia, que parece navegar
em uma onda, mergulhar e não existir mais. Assim, o lirismo contemporâneo nos
mostra como uma vida superior surge espontaneamente de uma torrente vital e nos
atravessa, o mais das vezes obscuramente, iluminadora de instantes decisivos de
uma viva e fugidia luz interior" (ANDLER, 1988, p. 374-375).
De maneira ambiciosa, o jovem filósofo húngaro complementa a crítica estética
com pistas históricas ao propor aos alemães um roteiro para uma nova História
da Literatura Alemã. Assim, a evolução da poesia lírica burguesa alemã que
desemboca em George teria sua origem no canto popular que começa com Günther,
desenvolvendo-se com o jovem Goethe, atingindo seu melhor momento romântico com
Novalis, depois com Heine e Mörike, terminando no lirismo de Theodor Storm, o
último poeta lírico burguês. Portanto, antes de George a lírica antiga afirma-
se com Storm em uma poesia do desaparecimento (Poesie des Vergehens). Os versos
de Storm são os últimos que ainda podem ser cantados, pois a experiência vivida
é afirmada neles em toda sua força, simplicidade e calma. Contudo à medida que
este mundo antigo burguês começa a desmoronar e o moderno se afirmar, os versos
tornam-se anacrônicos, pois continuam calmos, com uma tonalidade "morna e
monótona". No artigo "O espírito burguês e a arte pela arte", de A alma e as
formas, Lukács elege a literatura de Storm como estrutura significativa para
pensar os paradoxos de uma arte que, ao obedecer a suas próprias leis, acaba se
afastando da vida, ou seja, de uma literatura que inconscientemente é adaptação
e renúncia. Theodor Storm procura ingenuamente por meio de sua literatura ainda
conciliar o trabalho artístico, fortemente influenciado pela "arte pela arte"
dos estetas alemães (o "saber-fazer do artesão") com a maneira burguesa de
viver. O resultado, contudo, é a forte presença da resignação, de uma renúncia
diante do poder das coisas, visível no único prazer aceitável, que é o de
realizar bem o dever e o trabalho. Como tema central, a literatura de Storm
aborda apenas "aquilo que acontece aos homens, não o que fazem", isto é, a
forma como os homens reagem diante dos acontecimentos que os dominam, em uma
estrutura na qual sobressai uma força calma e controlada, pois nenhum
acontecimento terá lugar nela, ou se tiver será acessório e não decisivo. O
destino em Storm vem do exterior, e a força interior é impotente diante dele.
Só o acaso, isto é, o encadeamento contingente de circunstâncias contingentes
determina a vida de um homem. Assim, não há nada a fazer, é necessário se
acomodar, renunciar a toda resistência, e experimentar o crescimento da riqueza
adquirido com sacrifício, como enriquecimento da interioridade. O cotidiano
acaba sendo sacralizado, afirma Lukács, pois visto como uma força mecânica que
age sem o arbítrio humano.
Assim, em linhas gerais, Lukács apresenta o primeiro diagnóstico da "grandeza e
tragédia da cultura alemã" outros virão ainda mais contundentes nos escritos
futuros , um racionalismo poderoso, mas que se afirma no vazio diante de uma
cultura que é apenas "via interior" e "revolução do espírito". Enquanto na
França os homens se tornam heróis trágicos, a Alemanha torna-se uma "potência
da interioridade", um país de poetas e pensadores; diante da impossibilidade de
uma "revolução real", todas as energias se orientam para a vida interior.
Ao afirmar que o lirismo de George é o ponto de partida do moderno, Lukács
pensa o novo não no "sentido superficial da palavra que apontaria para um
lirismo intelectual", mas como lucidez e resistência contra o fatalismo da "via
interior"; como "pura aspiração", "um lirismo das relações humanas", mesmo
sabendo tratar-se de uma "sociabilidade interior", nos termos de George
(LUKÁCS, 1974, p. 145). Ou seja, o poeta não renuncia à configuração, não se
abandona ao mundo da exterioridade, como em Storm, nem aos estados de alma,
como os românticos, mas busca uma forma mediadora, que vislumbre uma relação à
essência, ao universal, a uma pátria; e para tal elabora uma técnica de recuo
diante do empírico mediante um ritmo que "produz uma alternância entre
narrativa e silêncio" (idem, p. 143). Se George é considerado, entre os
simbolistas ou neorromânticos, um dos mentores da Dinggedicht, da poesia-coisa
rilkeana, dos objetos tornados poéticos, com uma palavra ao mesmo tempo exata e
densa, ele ostenta, para Lukács, também uma poesia crítica que coloca em
suspensão tanto o mundo contemporâneo quanto o mundo histórico.
Se em Stefan George temos a busca, com poucos meios, pela forma simples,
rigorosa, em uma espécie de pré-rafaelismo, diz Lukács, o outro lado, do "amor
pela forma", pode ser percebido na poesia e nas novelas do vienense Richard
Beer-Hofmann, outro autor pouco conhecido que Lukács elege como forma
significativa, na qual temos uma escritura construída por meio da "técnica dos
grandes instantes".
Por meio dos versos líricos de ambos, o filósofo afirma a forma e a sua
necessidade. Em George, a forma é o que possibilita ao poeta "olhar a vida nos
olhos", apenas para constatar que os "homens estão sós na natureza, em uma
solidão mortal e sem remédio" (p. 145). Em Beer-Hofmann, a forma é o que
permite um "face a face trágico", abrindo um acesso ao instante como potência
soberana e simbólica (p. 196). Os instantes líricos refazem em outros termos a
relação entre alma e natureza, na medida em que são "arrebatados à duração que
flui indiscriminadamente, destacados da multiplicidade turvamente condicionada
das coisas", permitindo à subjetividade destacar-se do tempo em nome de uma
forma simbólica. O primado do instante não significa que a consciência,
libertada do peso do presente e da presença dos acontecimentos externos, pode
agora movimentar-se livremente em direção ao passado ou ao futuro, mas que,
tragicamente, o instante é um momento de lucidez máxima no qual o sujeito
confronta sua impotência diante do mundo reificado. O instante é concentração,
ao preço de um esvaziamento do conteúdo externo. No lirismo novo temos esse
instante criador de símbolos, que são "lampejos repentinos de sentido".8
Em ambos, o sentimento mais profundo da forma é "conduzir ao grande instante de
emudecimento, ao "grande mutismo", e figurar a variedade da vida que se
precipita, como se fosse movida apenas por estes instantes". A forma é o que
possibilita a enunciação do instante de abertura para as
múltiplaspossibilidades e a descoberta da arbitrariedade, do acaso e das
contingências. É de uma relação lúcida com a vida, e não da impossibilidade
total de compreensão, que surge a percepção do abismo intransponível, e a
solidão mais intensa; é no instante de compreensão mais profundo que se
descobre a solidão e o poder doacaso. É o que Lukács nomeia de atração ao
precipício, vertigem: o instante de lucidez, antes de cair na resignação e na
renúncia às coisas.
Sabe-se que o jovem Adorno foi fortemente influenciado pelo jovem Lukács, e que
diferenças significativas entre as duas trajetórias os afastaram
definitivamente.9 Mas, no artigo "Lírica e sociedade", escrito por Adorno em
1950, também a propósito da lírica de George, encontramos a mesma dialética
entre a linguagem e o silêncio, compreensivelmente ainda mais radical: "Para
que o sujeito, aqui, contraponha-se verdadeiramente, em solidão, à
coisificação, ele nem deve tentar recolher-se ao próprio como à sua propriedade
(...): é preciso que o sujeito saia de si, através do calar-se. É preciso que
ele faça de si como que o recipiente para a idéia de uma linguagem pura. É o
salvamento desta que visam os grandes poemas de George" (ADORNO, 1980, p. 207).
Em "George e Hofmannsthal: correspondência: 1891-1906", escrito entre 1939 e
1940, Adorno já anotava o radicalismo destes poetas ditos "conservadores", sem
se deixar enganar pelo caráter esnobe e de falso aristocratismo, atribuído aos
seus "círculos exclusivos", o que assinalava, para ele, o contexto de uma
sociedade concorrencial e individualista. Mas, a despeito disso, Adorno
observava que neles não havia fuga da realidade, nem abrigo em uma
interioridade mística; em outros termos, o formalismo técnico resultava da
percepção do "declínio da linguagem"; enfrentavam com a poesia os limites da
matéria sensível, ao fazer explodir seus significados tradicionais, elaborando
uma interpretação, um saber que ultrapassava, sem sucumbir aos momentos
sensuais do objeto (ADORNO, p. 1998, p. 216).
Para o jovem Lukács, no princípio do século XX, contudo, o problema da arte era
essencialmente o do distanciamento da vida, tornada banal, prosaica,
inessencial. Em outros termos, o problema da forma era o da inscrição na vida:
por isso ela se tornara problemática. A crise apontava para o desejo de
pertencer a algum lugar e para a constatação de que não era possível pertencer
a nenhum lugar; pois "não havia mais sentimentos comuns". Por outro lado, o
racionalismo vigente apresentava-se para Lukács cada vez mais perigoso e
diluidor, pois, diante de uma massa crescente de informações e conhecimentos
novos, predominava uma obscura profundidade. Narramos tudo, menos o essencial;
observamos múltiplas relações, mas não apreendemos uma relaçãoreal, diz ele. É
porque nos aproximamos demais, com um tipo de olhar epidérmico, que não podemos
entender o que vemos, desenhar sua silhueta, introduzir uma ordem. Se não há
mais uma experiência comum, o desejo de completude é uma mera quimera, à qual o
homem contemporâneo se agarra como o último reduto de sentido. No jovem Lukács,
é recorrente o tema de que o essencial, e com ele a possibilidade de apreensão
da realidade, está definitivamente perdido. Contra a "sentimentalidade" e sua
promessa de uma pacificação idílica, a forma moderna de George ultrapassa a
fácil simpatia (Mitgefühl) e não dissolve o real em "tonalidades da alma", mas
caminha narealidade corporal e indiferente (LUKÁCS, 1974, p. 172).
Os temas do distanciamento e da frieza dos poemas de George remetem para outro
paradoxo presente na obra de Lukács que é o da relação entre forma necessária e
forma utópica. Se não há leitores, nem necessidade, por que insistem os poetas?
Como situar uma forma em um período "não artístico"? Como pura teimosia, nos
termos de Adorno? Ora, o vocabulário conceitual do jovem Lukács apresenta um
encadeamento circular, que por vezes parece apenas perpetuar e ampliar o
impasse: a necessidade da arte decorre do "princípio formador", daquilo que é
autenticamente artístico, o que remete a uma "linguagem natural da
manifestação", a uma "forma que é uma necessidade natural", uma "energia
imediata das emoções palpitantes" e, ao fim e ao cabo, a uma "feliz
coincidência entre a vida e a forma".
Em A filosofia da arte (1912-1914), Lukács sustenta que o princípio formador
decorre do ímpeto criador, sobretudo de um sentimento atemporal, mas que atua
no tempo: uma vontade de criar uma realidade diferente da empírica. Uma
realidade absoluta, não contingente, nomeada de realidade utópica. O que
significa que o ato criador decorre necessariamente de um distanciamento da
realidade empírica, que é mobilizado conjuntamente por um impulso racional de
ordenação e também por um outro irracional, quase mágico, que continua
postulando uma relação à essência. O caminho da figuração resultaria, assim, de
uma necessidade histórica, mas também de algo misterioso, platônico, fatalmente
nostálgico. Como então é possível falar em épocas artísticas e em outras não
artísticas? O artista não buscaria sempre algo em si como elemento irredutível
para a realização de sua obra?
O problema da forma artística é resolvido no jovem Lukács sempre em um
raciocínio circular, que oscila entre os conceitos de necessidade e utopia.
Toda obra compõe um sistema fechado, dotado de racionalidade, leis, harmonia
interna, etc. Um sistema que "decorre do livre jogo entre as leis e as coisas,
das coisas liberadas, tornadas jogo e dança, em suas relaçõesrecíprocas"
(LUKÁCS, 1981, p. 102). Ela é em sua autonomia um dado, que permanece
irredutivelmente como dado. Contudo, a arte busca transformar o dado em
necessidade, ou, em outros termos, ganhar alguma inteligibilidade; se a arte
busca nas palavras de Novalis "um impulso em direção à pátria", trata-se de uma
"pátria ornamental", acrescentará Lukács, isto é, um movimentocorretivo
inverso: da representação da realidade para a forma pura. "É assim que o
paradiso terrestre torna-se o paraíso perdido e procurado da arte: toda arte
figurativa, criando uma realidade, procura esta pátria ornamental que é a sua,
que ele abandonou por causa da realidade, e procura encontrá-la após
teratingido a realidade, nela e para ela" (LUKÁCS, 1981, p. 103).
Ora, afirmar que o artista, entendido aqui como gênio, caracteriza-se pela
aspiração em direção à pátria significa para Lukács que o "signo essencial do
gênio não é força e originalidade de visão, nem grandeza e profundidade de uma
visão particular, mas a aliança entre estas qualidades de visão e as formas
técnicas: a experiência que ganha expressão em uma forma determinada;
atransformação de uma visão de mundo em visão do artista" (LUKÁCS, 1981, p.
134). Dito de outro modo, significa que a obra não desfaz os elementos dados,
nem procura atacar as coisas: ela não é uma pura abstração. Mas busca uma
"fraternidade entre as coisas, uma aliança entre elas, de modo que elas
regressem para elas mesmas, para a sua existência simples e imanente". Há uma
necessidade da obra, um a priori, apontando para uma "compleição universal" que
é o impulso, a aspiração a um acabamento utópico (idem, p. 134-135). O que
significa para Lukács que a obra relaciona-se com o presente em sua
materialidade, ou seja, com a "hora de despertar do sono" em que as coisas
regressam para elas mesmas.
Entre necessidade e utopia, o moderno afirma-se para o autor de A alma e as
formas não por meio dos "detalhes superficiais do quotidiano" (os "objetos" em
Mallarmé?), nem pelo meramente "efêmero e transitório" baudelairianos, mas pela
busca trágica pela forma, "o amor pela forma", que se desenvolve a partir de
uma interioridade insatisfeita; o fato de que não se renuncia ao papel
configurador demonstra que não há uma fuga romântica do presente, mas uma
renúncia consciente, pois a "necessidade de se afastar da vida é o dilema
trágico da modernidade" e a única atitude autêntica possível; pois "nossa
maneira especificamente contemporânea de sentir, de amar e de pensar busca
desenvolver seu tempo, sua configuração e sua melodia em formas, se unir em
formas, se desenvolver até a forma" (LUKÁCS, 1974, p. 196). Eis o "estilo
moderno": "uma questão, e em torno dela a vida; um mutismo e em torno dele, o
murmúrio, o barulho, a música, o canto do todo (der Allgesang): tal é a forma"
(idem, p. 188). Sempre a alternância entre o silêncio e a narrativa, jamais o
domínio de um só. De modo que aqui não estamos diante do nada radical
malarmeano, de um nada puro, abstrato, linguagem-pura. Mas de uma estética que
tenta sem muito sucesso desembaraçar-se dos resquícios românticos.
Mas George não foi um discípulo de Mallarmé? Se em Mallarmé ou Rimbaud, por
exemplo, encontramos um procedimento que cada vez mais renuncia aos meios de
conexão, separando com radicalidade as coisas que se apresentam como
conectadas, até que elas percam todo o contato, tornando-se puro estranhamento
uma espécie de desrealização da realidade sensível, ou de evasão das ordens
ditas reais, como "estilhaços chegados até nós de outro mundo, por acaso"
(FRIEDRICH, 1978, p. 83), em George a forma ainda nostálgica aponta o elo
rompido, denuncia a realidade aniquilada, sem superá-la plenamente.
Assim, neste artigo sobre George, Lukács já antecipa o tema da forma moderna
problemática, desenvolvido, depois, em 1916, emAteoria do romance. As canções
de George são estações de uma grande viagem infinita, "que tem um alvo preciso,
que não leva a nenhuma parte. Juntas, elas constituem um grande ciclo, um
grande romance, completando-se mutuamente, explicando-se mutuamente,
reforçando-se, serenando-se, medindo seu valor e purificando-se, umas diante
das outras. São os cursos vagabundos do Wilhelm Meister com talvez algo de
L'Éducation sentimentale mas construídos totalmente do interior, de uma forma
totalmente lírica, sem nenhuma aventura, nenhum acontecimento" (LUKÁCS, 1974,
p. 137). Se em A alma e as formas o amor pela forma, o lirismo novo, era uma
resistência, em A teoria do romance a tendência lírica torna-se uma fatalidade,
pois Lukács radicaliza a ideia de que a "unidade foi rompida, e que não há mais
totalidade espontânea do ser": o mundo esfacelado não é mais dado de forma
imediata, de modo que as formasdevem ser produtivas, criar a partir de suas
próprias condições (LUKÁCS, 2000, p. 36). O que resulta na necessidade de uma
reconsideração dos gêneros artísticos que perdem uma filosofia da história, ou
seja, uma "periodicidade filosófica: aqui, os gêneros se cruzam num emaranhado
inextrincável, como indício da busca autêntica ou inautêntica pelo objetivo que
não é mais dado de modo claro evidente (...) o sentido histórico-filosófico da
periodicidade nunca mais se concentrará nos gêneros erigidos em símbolos"
(idem, p. 38).
O que acontecerá com os gêneros, então? Grosso modo, a tragédia que fala da
essência afastada da vida permanece ativa até os nossos dias, embora
transformada pois o drama moderno acaba se aproximando das formas épicas; a
epopéia desapareceu e dá lugar a uma forma nova, o romance; e o lírico aparece
híbrido e exorbitado tanto no drama como na épica: tornando-se a lírica da
alma. No caso do drama, cada dramatis personae terá de se unir somente por seu
próprio fio ao destino por ela engendrado (...) e precipitar-se no derradeiro e
trágico isolamento (idem, p. 43-44). No caso da épica, o lírico penetra no
épico alterando sua função, pois o recorte operado pelo escritor da vida
empírica é de natureza lírica: "sempre é a subjetividade que arranca um pedaço
da imensa infinidade dos sucessos do mundo, empresta-lhe uma vida autônoma e
permite que o todo do qual ele foi retirado fulgure no universo da obra apenas
como sensação e pensamento dos personagens, apenas como o desfiar involuntário
de séries causais interrompidas, apenas como espelhamento de uma realidade que
existe por si mesma" (LUKÁCS, 2000, p. 48). "O ato pelo qual o sujeito confere
forma, configuração e limite, essa soberania na criação dominante do objeto, é
a lírica das formas épicas sem totalidade. Essa lírica é aqui a unidade épica
última" (idem, p. 49). Há, contudo, nuances nos casos do idílio e da novela,
nos quais a "realidade do real, o elemento exterior não é dissolvido" (idem, p.
50).
Em todo caso, o lírico é, antes de tudo, exacerbado, ou seja, torna-se um
"poder": "quando uma alma é o herói e a sua aspiração o enredo". Mas um poder
esvaziado, dessacralizado, "pois o círculo que ele traça ao redor daquilo que
seleciona e circunscreve como mundo indica somente o limite do sujeito, e não o
de um cosmos de algum modo completo em si mesmo" (idem, p. 52). Ele pode
produzir unidades de composição, mas não a verdadeira totalidade. Na tipologia
realizada em A teoria do romance, na tendência nomeada de romance de desilusão,
Lukács localiza a maior penetração do lírico, a maior inadequação entre a alma
e a realidade, pois a "alma é mais ampla e mais vasta que os destinos que a
vida é capaz de lhe oferecer". O mesmo é sustentado, posteriormente: "pois
também a subjetividade lírica conquista para os seus símbolos o mundo externo,
ainda que este seja auto-criado, ele é o único possível, e ela, como
interioridade, jamais se opõe de maneira polêmicarepreensiva ao mundo exterior
que lhe é designado, jamais se refugia em si mesmo para esquecê-lo, mas antes,
conquistando arbitrariamente, colhe os fragmentos deste caos atomizado e os
funde fazendo esquecer todas asorigens no recém-surgido cosmos lírico da
pura interioridade" (LUKÁCS, 2000, p. 120).
A exacerbação e fatalidade do lirismo apontam para a solidão e não para alguma
forma de redenção. A solidão como a verdadeira essência do trágico, "pois a
alma que se fez a si mesma destino pode ter irmãos nas estrelas,mas jamais
parceiros" (LUKÁCS, 2000, p. 43). Uma solidão teatralizada, dirá Adorno anos
mais tarde, a propósito de George e, especialmente, de Hofmannsthal, pois gesto
consciente do poeta moderno que sabe os limites da narração na sociedade
administrada, e que a busca pela linguagem pura é realizada em chave irônica,
como "teimosia" diante da "linguagem reificada e banal das mercadorias"; o
poeta do moderno deixa-se submeter pelo poder das coisas: "em vez de as coisas
se apresentarem como símbolos da subjetividade, esta se apresenta como símbolo
das coisas, pronto a petrificar-se em coisa, na qual de todo modo já foi
transformada pela sociedade" (ADORNO, 1998, p. 219). Contudo, o poeta ganha
também o pressentimento do seu contrário. Eis o prêmio por sua "afetação
estética: ele representa a utopia de não ser ele mesmo", ou seja, significa
aquilo que a dialética do jovem Lukács intuía tristemente: o esteta rompe com
seu "barulho silencioso", o "contrato social da felicidade" (idem, p. 220-221).
No que diz respeito ao lírico, a relação entre Lukács e Adorno foi
especiosamente bem apontada por F. Jameson: A teoria do romance é uma chave
teórica para Adorno, pois aponta para o esfacelamento da realidade, percebida
agora apenas por meio de fragmentos de consciência, isto é, do ponto de vista
dos gêneros, o elemento lírico penetrou no romance, alterando a função e o
sentido do épico: doravante, isto é, na modernidade, o narrador só pode
enunciar um conteúdo que foi transformado pela subjetividade (JAMESON, 1997, p.
268-269). Só há o monólogo, mesmo que o discurso comunicativo procure ocultar.
As diferenças entre Lukács e Adorno são, contudo, marcantes e apontam para uma
exacerbação do referencial histórico em Adorno. Para o primeiro, a obra de arte
foi e permanecerá sendo um momento de configuração de um sentido utópico, para
o último, elas só podem ser "signos de interrogação". Para Adorno, a obra
enquanto enigma exige distância e permanência do caráter enigmático, não há uma
experiência imanente que dê conta de sua significação: "O conteúdo de verdade
das obras de arte é a resolução objetiva do enigma de cada uma delas, afirma
Adorno. Ao reclamar uma solução, o enigma remete ao conteúdo de verdade. Este
só se pode obter mediante a reflexão filosófica. Eis o que justifica a
estética" (ADORNO, 2004, p. 174).