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BrBRHUHu0100-512X2009000100006

BrBRHUHu0100-512X2009000100006

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0100-512X
Year2009
Issue0001
Article number00006

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As criações do gênio: Ambivalências da "metafísica da arte" nietzschiana

O Nascimento da tragédia é ainda hoje uma obra de difícil compreensão, apesar dos esforços críticos do próprio Nietzsche e das pesquisas filosóficas, críticas e históricas das últimas décadas. É muito elucidativo o posfácio de G.

Colli ao Nascimento da tragédia, à medida que aponta para a incompatibilidade presente na obra, a saber, de utilizar a linguagem do classicismo alemão para tentar expressar temas "místicos", que exigem um tipo singular de consagração: "Num certo sentido, o Nascimento da tragédia é a obra mais 'mística' de Nietzsche, à medida que ela exige uma consagração. níveis que se deve atingir e ultrapassar, para poder penetrar no mundo visionário do Nascimento da tragédia: uma consagração literária, bem entendido, em que o ritual dos mistérios é substituído pela palavra impressa. Desse modo, o Nascimento da tragédia é também a obra mais difícil de Nietzsche, pois em tudo o mistagogo assume a linguagem da razão e com isso ingressa, passo a passo, num mundo que ele se esforça por esclarecer".1 Não se pode, desse modo, pretender eliminar o caráter "místico" do Nascimento juntamente com os pressupostos metafísicos, pessimistas e românticos, simplesmente por se tratar de um equívoco ou precipitação de Nietzsche: o recurso aos "mistérios" está no centro das reflexões da metafísica da arte.

Bastante esclarecedora também é a análise de Barbara von Reibnitz, para quem o Nascimento da tragédia, no seu todo, "é apresentado como um texto de iniciação, por meio de uma retórica abarcante do mistério. Por meio do uso freqüente do pronome pessoal 'nós', Nietzsche busca criar para si uma 'comunidade' de leitores, que ele introduz como 'mistagogo' nos 'contextos mais secretos', nos 'abismos do conhecimento', e também na esfera do 'consolo metafísico' a leitura se torna iniciação".2 A dificuldade, admitida por Nietzsche, deve-se sobretudo à ambiciosa tentativa de articular uma tese metafísica com a filologia e a música: "Temo ainda que os filólogos, por causa da música, os músicos por causa da filologia, e os filósofos por causa da música e da filologia não queiram ler este livro (...)".3 O modo original e complexo de abordar esses temas incide na dupla tarefa da obra, a saber, de provar que a tragédia originou-se do gênio (dionisíaco) da música e de criar condições para o renascimento da tragédia no século XIX, a partir do "gênio" da música de Wagner. Para atingir essa meta, Nietzsche se agarrou firmemente à filosofia metafísica e pessimista de Schopenhauer. Não é apenas o filósofo-filólogo- músico que fala, mas um ser entusiasmado, que exige consagração e o ingresso na esfera do mistério.

A "metafísica da arte"4 de Nietzsche vincula-se explicitamente à oposição schopenhaueriana da coisa em si e do fenômeno. Outras fontes e influências importantes do romantismo alemão não são mencionadas. Não , contudo, uma correspondência total do dionisíaco com a coisa em si (vontade), e do apolíneo com o fenômeno. No Nascimento da tragédia,5 nos escritos preparatórios, nos fragmentos póstumos e textos da época podemos perceber as oscilações e rupturas em relação a Schopenhauer. Num primeiro momento, mostraremos a importância da compreensão de gênio para a metafísica da arte. Além dos impulsos artísticos apolíneo e dionisíaco (e da união de ambos na tragédia), Nietzsche procura incorporar outros aspectos na constituição do gênio, como o conhecimento trágico e a "santidade". Com isso, buscaremos mostrar que com a compreensão de gênio está no centro das oposições e das ambiguidades da metafísica de artista.

Além disso, o projeto de criação do gênio marca um afastamento decisivo em relação a Schopenhauer, e do mesmo modo em relação ao romantismo, apesar da adesão inicial. É necessário também investigar as implicações do procedimento nietzschiano, que assume explicitamente a filiação ao pessimismo de Schopenhauer e à música de Wagner, e omite influências determinantes de literatos e pensadores românticos, como F. Schlegel, F. Schelling,6 F.

Hölderlin e F. Creuzer.

Não nenhuma menção direta ao Romantismo na primeira edição do Nascimento da tragédia, seja ela afirmativa ou negativa. Nietzsche quer consumar o salto prodigioso da época trágica dos gregos para a sua época, afirmando o renascimento do gênio que outrora engendrou a tragédia grega. Desse modo, a tragédia renasceria no espírito da música alemã (do gênio de Wagner).7 Que um projeto estético semelhante tenha sido anteriormente proposto, no Romantismo alemão, especialmente no Primeiro Romantismo (Frühromantik), não é tematizado explicitamente. As poucas menções aos românticos e clássicos alemães, como os irmãos Schlegel, Goethe, Schiller, Winckelmann, ocorrem em aspectos pontuais, como a interpretação do poeta lírico e do coro trágico. Entretanto, na tentativa de autocrítica (1886), Nietzsche se pergunta: " Mas, meu senhor, o que é romântico no mundo, se seu livro não é romântico? É possível levar mais longe o ódio profundo em relação a 'atualidade', 'realidade' e 'ideias modernas' do que aconteceu na sua metafísica de artistas? Que prefere acreditar no nada, no diabo, a acreditar no 'agora'?" (GT, Tentativa de autocrítica, 7, p. 21). Ele critica em si mesmo o pendor pessimista por consolos metafísicos, que se manifestou também nos jovens românticos e ainda no "velho" Wagner. Nessa ótica, a obscura música romântica de Wagner,8 a que ele devotou sua obra das primícias, seria o que de mais pessimista, niilista em suas últimas consequências.

A opção metodológica de Nietzsche de não citar fontes e influências na sua "obra de primícias" é questionável, e ofusca a originalidade de suas teses, p.

ex., a descoberta do dionisíaco.9 Não é suficiente apontar uma ou duas citações10 dos fragmentos póstumos de 1870-1871 para ratificar a separação definitiva do Romantismo na época do Nascimento da tragédia, como o póstumo: "Os românticos carecem de instinto" (VII, 5(45)). Nietzsche não aceita simplesmente a contraposição clássico - romântico (sadio - doentio) do Goethe tardio: "O romantismo não se contrapõe a Goethe e a Schiller, mas a Nikolai e a todo o Iluminismo. Schiller e Goethe estão muito além dessa contraposição" (VII, 9(71)).

Por viver e escrever numa época em que o Romantismo havia se esgotado muito como movimento,11 Nietzsche não aprofunda a investigação acerca da valorização romântica da criação do gênio (por exemplo), mas se limita a reformular clichês das discussões filosófico-literárias de seu tempo.12 Nesse sentido, como bem mostrou E. Behler, é preciso mostrar a estreiteza da compreensão nietzschiana de Romantismo: "A Inglaterra quase não é considerada, porque ela não se encaixa na concepção musical e pessimista que Nietzsche tem do Romantismo. Autores como Shelley, Stendhal, Leopardi, Heine, Emerson, que nós consideramos como representantes eminentes do Romantismo, não foram vistos por Nietzsche como românticos. Byron foi mencionado por ele até mesmo com orgulho como principal testemunha contra o 'falso sistema' do Romantismo.

Estranha nessa imagem é também a posição especial que Nietzsche como antes dele Heine e depois dele Georg Brandes atribui ao romantismo francês, como a 'sede da cultura mais espiritual e refinada da Europa, (...) como um fervor à 'forma', para o qual se inventou a expressão l'art pour l'art, entre outras mil'".13 A fixação monótona na oposição clássico - romântico, ascendência - decadência, que marca a crítica nietzschiana posterior ao romantismo, não contribui para o esclarecimento da afirmação trágico-dionisíaca.

Procuraremos responder à pergunta acerca do que é romântico no Nascimento da tragédia a partir de dois movimentos: a valorização do gênio dionisíaco e da tentativa de criar uma nova mitologia. Esses elementos românticos estão no centro da metafísica da arte e são desenvolvidos na perspectiva de um novo simbolismo (Symbolik) e da primazia do gênio no processo de criação artística.

Não é nossa intenção enumerar as semelhanças dos projetos estéticos desses pensadores com os de Nietzsche, para depois contrabalançá-las com as profundas divergências que sobressaem no Nascimento da tragédia. Nossa perspectiva é a de analisar as novas configurações do gênio criador artístico do Romantismo na metafísica da arte de Nietzsche.

1 Metafísica da arte - Metafísica de artistas São muitas as influências e pensamentos que levaram à colocação da tese da "metafísica da arte" (Metaphysik der Kunst). É inevitável, no entanto, recorrer à duplicidade apolíneo-dionisíaco, como o centro para onde convergem os projetos estéticos do jovem Nietzsche. Para esclarecer a relação entre os dois impulsos ou gênios artísticos, partiremos da compreensão do dionisíaco (de seu primado metafísico em relação ao apolíneo) não enquanto arte, mas como sabedoria, conhecimento, verdade. Em que consiste a "sabedoria" dionisíaca? Inicialmente, Nietzsche refere-se à sabedoria popular, a mitos do mundo antigo, especialmente dos gregos, para elucidar o abismo de onde brotam as belas aparências. Essa sabedoria se revela no mito do "sábio" Sileno, na resposta dada por este à insistente interrogação do rei Midas acerca do que é mais desejável ao homem (cf. GT 3, p. 35).14 Logo em seguida, ele expõe como o grego se relacionava com essa sabedoria pessimista: "O grego conheceu e sentiu os horrores e terrores da existência: para poder de algum modo viver, teve de colocar diante de si a reluzente criação dos deuses olímpicos" (GT, p. 35). São muitas as ilustrações (simbolizações) da sabedoria dionisíaca ao longo da obra: os poderes titânicos da natureza, a Moira, o destino cruel dosheróis, titãs antigos, como Prometeu, Édipo, e de figuras modernas, como Hamlet. A "verdade", portanto, é o desmedido (das Übermaass) (GT 4, p. 41), no sentido de que o indivíduo é efêmero, fugaz e ilusório perante o "misterioso Uno-Primordial". A individuação não é a causa de todos os sofrimentos, mas é o reflexo de uma dor primordial (Urschmerz). Em que pese a divergência em relação a Schopenhauer,15 a tese de Nietzsche aponta para um obscuro princípio metafísico, do qual ele não fornece provas.

O Uno-Primordial (das Ur-Eine)16 é a chave para compreender o vínculo íntimo entre prazer e dor, entre a arte apolínea e a dionisíaca, entre o gênio apolíneo e o dionisíaco. Para o jovem Nietzsche, o Uno-Primordial é "o eterno padecente e pleno de contradição" (das ewig Leidende und Widerspruchsvolle)17 (GT, p. 38). Não ainda um avanço na elucidação do tema, pois o Uno- Primordial é "misterioso", inacessível ao homem (cf. VII, 7(170)). Além disso, não é dada nenhuma explicação de como uma "unidade originária" pode ser, ao mesmo tempo, dor e contradição originárias. De onde provém a dor? De que contradição se trata? O termo, a nosso ver, é inapropriado para expressar aquilo que Nietzsche entende ser o "ser verdadeiro", o fundamento do mundo. Não nenhuma unidade no fundamento, mas "a dor, a nostalgia, a falta como fonte primordial das coisas" (VII, 7(165)). O autor do Nascimento da tragédia ingressa no domínio da teodiceia, ao buscar justificar o sofrimento e a existência do mundo. Existem dois mundos nessa formulação metafísica: a dor e a contradição do Ser verdadeiro e o mundo da aparência, do prazer e da harmonia.

Visto que o fundamento é somente dor e contradição, a superação da dor pode acontecer no mundo das aparências: "No vir-a-ser deve repousar o segredo da dor" (idem). Entretanto, o dionisíaco (das Dionysische) também é identificado ao Uno-Primordial, como prazer primordial (Urlust) em engendrar aparências.

Não podemos afastar as dificuldades que esse caráter substancial e misterioso do Uno-Primordial acarreta na elaboração da metafísica da arte nietzschiana. O ponto de partida, o fundamento primordial (Urgrund) é declaradamente pessimista, de modo que Nietzsche não hesita em lançar mão de uma teodiceia para superá-lo. O conhecimento (identificado à sabedoria e à verdade) dionisíaco é pessimista em suas raízes: "O dionisíaco como mãe dos mistérios, da tragédia, do pessimismo" (VII, 9(61)).

A teodiceia presente no Nascimento da tragédia consiste na afirmação da "Vontade" como sujeito e objeto do processo do vir-a-ser do mundo. Os gregos são o "meio", o instrumento, através do qual a Vontade vida à arte, que é o espelho transfigurador de sua dor primordial: "Nos gregos a 'vontade'18 queria contemplar a si mesma, na transfiguração do gênio e do mundo da arte; para se autoglorificar, suas criaturas precisavam sentir-se como dignas de glorificação, elas tinham de se ver novamente numa esfera superior (...)" (GT, 3, p. 37).

A "teodiceia dionisíaca" presente no pensamento da juventude de Nietzsche, segundo Georges Goedert, visa principalmente à superação do pessimismo schopenhaueriano. Nessa teodiceia não seria afirmado somente o prazer panteísta (die pantheistische Mitfreudigkeit), mas também o sofrimento e a compaixão. A compaixão dionisíaca se manifestaria no modo como o indivíduo afirma seu próprio sofrimento, como parte da fatalidade dionisíaca da vida.19 Na obra Nietzsche der Überwinder Schopenhauers und des Mitleids, Goedert desenvolve esse confronto a partir da compaixão. Enquanto que para Schopenhauer a compaixão é a salvação, a cura de todos os males da existência, a única forma possível e praticável da ética, Nietzsche nela o "maior perigo", a última tentação de Zaratustra.20 A posição positiva de Nietzsche em relação ao sofrimento, seja no Nascimento da tragédia ou no Zaratustra, marca seu afastamento do pessimismo schopenhaueriano, o que não implica uma ruptura total, visto que ele afinidades entre budismo e cristianismo. Mesmo nas críticas tardias, afirma Goedert, ainda permanece a influência de Schopenhauer, de sua compreensão do cristianismo como uma afloração do budismo, que teria em comum com aquele o caráter exclusivamente moral e niilista. Além disso, ambos os pensadores identificariam o amor cristão com a compaixão.21 Questionamos a interpretação de Goedert acerca do sofrimento no Nascimento da tragédia. Segundo ele, Nietzsche caracterizaria o sofrimento de modo metafísico (o dionisíaco Uno-Primordial é o eterno sofredor), e de modo religioso, à medida que Dioniso-Zagreu é o símbolo para o estado da individuação, dos sofrimentos a ela inerentes. Os dois aspectos aparecem unidos, pois essa metafísica seria desenvolvida pelos gregos nos mistérios que celebravam os sofrimentos de Dioniso.22 A nosso ver, Nietzsche não explicita o estatuto metafísico dos mistérios (cf. VII, 7(121)): na ordem dionisíaca dos mistérios, essa sabedoria e seus símbolos seriam acessíveis somente aos iniciados, aos epoptas. Assim, a remissão do segredo da união entre o apolíneo e o dionisíaco aos mistérios não fornece uma chave para compreender o sofrimento, e sua relação com o prazer e com a compaixão. A causa do sofrimento não é a mesma: para Schopenhauer, a individuação é a causa do sofrimento: "Essa autocisão que se efetua no mundo da individuação é remetida a um misterioso pecado original, que põe fim à unidade originária e harmônica da vontade consigo mesma".23 Para o jovem Nietzsche, o Uno-Primordial é causa das dores do mundo da individuação.

Em comum a depreciação da individuação no processo de redenção que a arte ou a renúncia ascética acarretam. No Zaratustra, contudo, uma valorização do indivíduo singular24 no processo de criação e de "redenção", o que é decisivo para o afastamento do pessimismo de Schopenhauer.

Ao propor esta teodiceia singular,25 Nietzsche equipara a Vontade ao Uno- Primordial, que é compreendido como Dioniso, o deus-símbolo da irrestrita afirmação do mundo.26 A oposição em relação à metafísica de Schopenhauer é evidente. O valor da arte, para Schopenhauer, consiste em ser um calmante (Quietiv) para o querer. Através do gênio, sujeito puro do conhecimento, a vontade toma consciência de suas cisões e contradições imanentes, de onde se abre a possibilidade da negação do querer viver, através da contemplação estética e, num nível mais profundo, da ascese.27 Nietzsche, ao contrário, afirma que a arte é o triunfo contínuo do prazer da aparência e da ilusão sobre a verdade dionisíaca terrível.

, entretanto, uma diferença decisiva entre Schopenhauer e Nietzsche no modo de compreender o Uno-Primordial. Em Parerga e Paralipomena (II), Schopenhauer afirma ser algo a priori que "aquilo que criou este mundo seria capaz também de não fazê-lo", ou seja, a liberdade metafísica da vontade consiste em proceder à negação de si mesma (enquanto vontade de vida), após percorrer todos os graus de sua afirmação. Na filosofia "imanente" de Schopenhauer, muitas questões de cunho transcendente ficam sem resposta, por exemplo: "De onde proveio essa Vontade, que é livre para afirmar-se, originando assim o fenômeno do mundo, ou para negar-se, cujo fenômeno não conhecemos?" ou também: "O que pode ter levado a Vontade a abandonar o repouso infinitamente preferível do nada bem- aventurado?".28 São problemas insolúveis, que fogem absolutamente da investigação filosófica, e que o filósofo pessimista assume como uma fatalidade (trágica), embora as religiões os tratem como "mistérios". Apesar disso, a afirmação e negação da vontade são a base não esclarecida de sua filosofia pessimista e metafísica.

Além de não problematizar essa passagem obscura de Schopenhauer, Nietzsche leva ainda mais longe o delírio metafísico de seu mestre, ao afirmar que o Uno- Primordial é dor e contradição primordiais, eternas. O que permanece "mistério" em Schopenhauer é metamorfoseado na teodiceia sui generis, e também contraditória, na qual o Uno-Primordial é o padecente que, ao mesmo tempo, é sujeito, o único Eu (Ichheit) verdadeiramente existente. Nesse sentido, o dionisíaco Uno-Primordial cria o mundo da arte, da aparência e da individuação para livrar-se das contradições nele concentradas. (Isso foi reconhecido "tardiamente" por Nietzsche, no Zaratustra (na seção Dos ultramundanos) e na "Tentativa de autocrítica"). Mas, ao mesmo tempo, a criação dionisíaca é vista como expressão de um prazer primordial (Urlust)em criar aparências. É contraditório afirmar que existe um prazer primordial inerente ao Uno- Primordial, uma vez que o prazer é justamente uma decorrência da fuga, do sair fora de si. O próprio Nietzsche admite que por meio de ilusões prazer, que "o prazer é possível no fenômeno e na visão (Anschauung) (VII, 7 (172)).29 Essa teodiceia e a tese metafísica a ela ligada aparecem como evidentes no escrito "A visão dionisíaca do mundo" e na obra das primícias. Inicialmente, Nietzsche trata o Uno-Primordial como um "mistério", que seria revelado a poucos: àqueles que conseguirem ir além das formas conceituais do conhecimento, para intuir esse saber dionisíaco de caráter esotérico.30 A vinculação do Uno- Primordial aos mistérios dionisíacos permanece obscura nos escritos de juventude de Nietzsche, apesar do caráter positivo a eles atribuído. Schelling, no entanto, na sua obra tardia Filosofia da mitologia31 afirma que o espírito absoluto teria se manifestado no mundo pré-cristão em três estágios dialéticos, ligados a Dioniso: 1) Dioniso-Zagreus é a primeira manifestação, selvagem, do espírito fora de si mesmo; 2) com Dioniso-Bakchos,32 enquanto deus do vinho e da alegria, haveria a superação do caráter selvático-natural do primeiro Dioniso; e 3) em Dioniso-Iakchos, cultuado e simbolizado nos mistérios, manifesta-se o estágio superior e espiritual, ao qual ele liga a figura de Jesus.33 Entendemos que essa despreocupação de Nietzsche em explicitar o estatuto filosófico, metafísico e misteriosófico do Uno-Primordial expressa sua decisão irrevogável em instituir a arte como a "única" forma de afirmação e justificação do mundo (e da existência humana). Ele passa por cima, ou melhor, não percebe as contradições de sua metafísica e teodiceia, pois está obcecado em atingir o alvo supremo, a saber, a geração do gênio, do gênio como "cume de encantamento do mundo" (Verzückungsspitze der Welt) (cf. VII, 7(157)). Se, no início do Nascimento da tragédia, a preocupação central está em mostrar como nos gregos o gênio transfigurou a dor primordial da Vontade/Uno-Primordial na tragédia grega, o foco posterior da obra está na geração do gênio, em meio à cultura e à arte alemãs (especialmente no gênio da música de R. Wagner), ou seja, no renascimento da tragédia.

A "teodiceia" nietzschiana está intimamente ligada à metafísica da arte, na medida em que Nietzsche compreende o apolíneo e o dionisíaco como gênios.

Embora não haja referências explícitas ao Romantismo alemão (no procedimento nietzschiano de priorizar a discussão com Schopenhauer e Wagner), pode-se perceber a influência das leituras de autores como F. Schlegel, F. Creuzer, F.

Hölderlin,34 Jean Paul, e de outras obras e comentários lidos por ele no período de Schulpforta, de Leipzig e da Basiléia. O significado dessas fontes de Nietzsche foi investigado por intérpretes como E. Behler, M. Baeumer e T.

Brobjer, cujos principais resultados e críticas procuraremos discutir.

Mostraremos ao longo do texto pontos de contato fundamentais da compreensão nietzschiana do gênio com a dos românticos mencionados, enfatizando o modo próprio com que Nietzsche se apropria e desenvolve a compreensão romântica do gênio.

2 A preponderância do gênio artístico-apolíneo sobre a sabedoria dionisíaca Um modo específico de relacionar dionisíaco e apolíneo pode ser encontrado em fragmentos póstumos (final de 1870-abril de 1871) e no início do Nascimento da tragédia. Nietzsche ensaia um modo de compreender a relação entre os dois impulsos fundamentais, no qual o dionisíaco é visto apenas como conhecimento das dores a que o Uno-Primordial está submetido, na forma com que seu sofrimento se reflete nos horrores da existência individual. Apolo triunfa sobre as potências originárias dionisíacas, visto que, através da arte, ele consegue glorificar a vontade nas suas manifestações individuais, belas e aparentes (cf. VII, 7(18)). O apolíneo não é, no entanto, expressão da autonomia e da liberdade dos gregos para criar uma nova forma de vida; ele é um dos meios da Vontade (helênica) para "atingir seu alvo, o gênio" (cf. VII, 6 (18)). A arte surge como "meio de cura do conhecimento" (VII, 7(152)). Para a sua redenção, o Uno-Primordial precisa da aparência, da arte, portanto. Do ponto de vista de cada indivíduo, a vida pode ser suportada e afirmada através das ilusões artísticas, do prazer apolíneo nas aparências (cf. VII, 7 (152) e 7(154)). Nesse contexto, Nietzsche afirma: "Minha filosofia, um platonismo invertido: quanto mais afastado do ser verdadeiro, tão mais puro e belo ele é. A vida na aparência como meta" (VII, 7(156)).

Esse processo de transfiguração estética se manifestou no triunfo do gênio apolíneo sobre os horrores do conhecimento dionisíaco (das titanomaquias, p.

ex.). O mundo homérico e sua criação onírica dos deuses olímpicos são amaterialização do impulso apolíneo à beleza. É Apolo quem conduz Homero, o artista ingênuo, para a glorificação do prazer da aparência. A superestimação do sonho tem a função de mostrar o abismo entre a aparência e o Uno-Primordial.

Por isso, Apolo é a "divinização da individuação" (GT 4), a "imagem divina (Götterbild) do principium individuationis", o "prazer, a sabedoria da aparência", que prevalece também no mundo interior da imaginação e no sonho.

Isso não impede Apolo de ser também uma divindade ética, que possibilita ao indivíduo conduzir sua existência nos limites e na moderação. Entretanto, Apolo não é o "protoartista", o verdadeiro sujeito criador da arte. Esse status Nietzsche atribui, nos primeiros capítulos do Nascimento da tragédia, ao Uno- Primordial, à Vontade (helênica) e a Dioniso, entre os quais ele não distingue explicitamente. É a Vontade mesma que quer contemplar a si mesma "na transfiguração do gênio": por isso, Nietzsche menciona várias vezes a "vontade helênica" como sujeito desse processo, e não Homero, Hesíodo ou outro artista.

Ou, como ele expressa em outras formulações: "O verdadeiro existente necessita igualmente da aparência prazerosa para sua constante redenção"; "A meta do Uno- Primordial é a sua redenção através da aparência" (GT, p. 38-39).

Enquanto a existência empírica de cada ser humano é aparência, representação do Uno-Primordial, o sonho seria a aparência da aparência (Schein des Scheins), o prazer mais puro de um novo mundo da aparência, como é figurado na Transfiguration, de Rafael (cf. GT 4, p. 39). Com tais artes, os gregos do mundo homérico conseguiram inverter a sabedoria de Sileno, de modo que o mais desejável seria continuar vivendo, sonhando, ansiando pela aparência e pelas transfigurações da arte. Não podemos esquecer das "fantásticas" propriedades que Nietzsche atribui ao Uno-Primordial. Apesar disso, se seguirmos as suas ponderações, surge uma dúvida: por que o mundo homérico e os rebentos da arte do gênio apolíneo não representam a vitória contínua sobre o fundo dionisíaco da dor e da contradição? A nosso ver, uma hesitação em relação ao estatuto da arte apolínea, principalmente nos escritos preparatórios ao Nascimento da tragédia. Se a meta é viver na aparência, se o Uno-Primordial atinge no gênio a contemplação sem dor, o gozo estético, então não seria necessária (e nem compreensível) a arte dionisíaca, nem sequer a tragédia, e seu prazer trágico (cf. VII, 7(157) e 7(174)). Constatamos, assim, uma assimetria na construção da arte apolínea em relação à arte dionisíaca.35 Na estética nietzschiana, o dionisíaco (como estado natural e psicológico da embriaguez) assume nos gregos um caráter idealizador, transfigurador; mas não fica claro o estatuto da arte (música) e do artista dionisíaco, nem em sua pouco investigada remissão aos mistérios.

Todas as criações do gênio são espelhamentos, representações, que constituem "os mais puros momentos de repouso do ser". A obra de arte, nesse sentido, é o verdadeiro não existente, visto que o mundo da arte, da aparência (Nietzsche simplesmente identifica aparência e aparência artística, sem analisar as implicações metafísicas) é o oposto do mundo do Uno-Primordial (VII, 7(174)).

Nessa oposição, contudo, ele atinge sua meta: "O Ser se satisfaz na completa aparência" (VII, 7(157)). Se o gênio (apolíneo, nesse caso) é o "cume de encantamento" do mundo,36 não haveria uma solução para o enigma da dor e da contradição do Uno-Primordial? Por que Nietzsche não as criações do gênio apolíneo como o triunfo definitivo sobre a dor primordial, na forma de uma existência afirmativa, imersa na aparência, no vir-a-ser e na ilusão?

3 O gênio apolíneo e o poder da ilusão O gênio artístico apolíneo está intrinsecamente ligado à aparência. Nisso ele se diferencia do gênio de Schopenhauer, que nos seus instantes de contemplação pura se arranca ao mundo do vir-a-ser e das ilusões: "O gênio tem a força de envolver o mundo com uma nova rede de ilusões. A educação para o gênio consiste em tornar necessária a rede de ilusões, por meio da zelosa consideração da contradição" (VII, 6(4)).

Seguindo essas considerações, podemos concluir que o prazer supremo (para os mortais e para o misterioso Uno-Primordial) reside na imersão total na aparência artística, nas ilusões do gênio. uma completa identificação do mundo do vir-a-ser com o mundo da arte, da aparência e da ilusão. Esse procedimento, contudo, acarreta uma depreciação das aparências e, consequentemente, dos indivíduos, que são apenas aparência (cf. VII, 7(170) e 7 (174)). Isso porque as ilusões artísticas não são ações individuais: é a ilusão descomunal de "que a natureza tão regularmente se serve para atingir seus objetivos. O alvo verdadeiro é recoberto com uma imagem ilusória. A esta ilusão estendemos as mãos, enquanto a natureza atinge aquele alvo através do engano" (DW 2).

O que no fundo importa nesse processo descomunal que a metafísica da arte (e a teodiceia a ela inerente) descreve é a meta a ser atingida pela vontade, qual seja, a contemplação de si mesma na transfiguração das obras de arte, no gênio (cf. DW 2 e GT 3, p. 37). Os indivíduos seriam somente joguetes e instrumentos, que a todo-poderosa vontade emprega para atingir sua meta, ou melhor, para redimir-se das dores e contradições primordiais. A arte bela não teria valor em si mesma, pois as aparências e todas as ilusões artísticas inclusive as do gênio devem servir apenas para a autoglorificação da vontade.

Se Nietzsche levasse essa argumentação até suas últimas consequências, ele teria de abandonar o discurso acerca da verdade, em suas raízes dionisíacas. A vontade "esconderia" de todos os homens e gênios a verdadeira meta, através das ilusões que seduzem à vida. Assim, mesmo o conhecimento de natureza apolínea seria uma forma de ilusão e medida, para a afirmação da vida individual, ou melhor, para a autoglorificação da vontade. Parece que novamente Nietzsche se serve de uma passagem obscura de Schopenhauer, para torná-la ainda mais obscura. Segundo Schopenhauer, todas as formas de conhecimento humanas estão a serviço da Vontade. Entretanto, quando a Vontade atinge os graus mais elevados de sua objetivação, no gênio, o conhecimento se volta contra ela, e aponta para a autocisão e contradição nas suas manifestações. Essa seria a própria "intenção" da vontade. Schopenhauer não explica por que toda essa cadeia é necessária, nem justifica essa teleologia inconsciente da Vontade.

A obra do gênio é tanto o cume do prazer e do encantamento da Vontade, quanto o "processo originário" de projeção de aparências. Nesse sentido, Dioniso, e não Apolo, é considerado o proto-artista (Urkünstler), que se serve do gênio apolíneo para atingir seus "propósitos". Assim sendo, haveria prazer por meio das ilusões.37 O gênio apenas as aparências como aparências; ele mesmo é aparência (Erscheinung); suas criações são apenas representações (cf. VII, 7 (157)). Com isso, apenas a reafirmação dos interesses da Vontade em obter, através do gênio artístico, a "contemplação sem dor", o puro gozo estético.

Assim sendo, o termo "metafísica de artistas" (Artisten-Metaphysik) é mais apropriado do que "metafísica da arte" (Metaphysik der Kunst), pois Nietzsche tem como principal foco de sua estética o processo de criação genial. No 'cume do encantamento do mundo', "a dor primordial é completamente dominada pelo prazer da contemplação" (7(175)).

Não chegaríamos assim, para utilizar uma expressão de Peter Heller,38 ao pan- ilusionismo (Pan-Illusionismus) da filosofia nietzschiana, ao triunfo derradeiro das ilusões e aparências sobre a verdade de fundo, a contradição primordial e seu esfacelamento em indivíduos? Não é esse o caminho que ele segue na época do Nascimento da tragédia. O cume do encantamento do mundo no gênio é um limite, um estado provisório. Esse é o processo de autoaniquilamento do gênio apolíneo: "O gênio é a aparência que aniquila a si mesma. Serpens nisi serpentem comedirit non fit draco" (VII, 7(160)).39 O gênio é, ao mesmo tempo, cume e autodestruição do mundo das aparências.

Nesse momento crucial, em que as aparências se autodestroem e retornam ao fundo primordial, Nietzsche busca "revelar" o mistério da união entre os gênios apolíneo e dionisíaco e, de certo modo, esclarecer o nascimento da tragédia. O gênio apolíneo é apenas um momento da Vontade, a saber, quando ela atinge sua completa exteriorização. A Vontade não é apenas "encantamento supremo", mas também "dor suprema". A chave para compreender a relação entre dor e prazer, entre vida e morte está no gênio. Nietzsche se enreda em uma vasta série de argumentos, exemplos e análises para tentar provar que uma dupla manifestação do gênio. Além de ser uma aparência apolínea, o gênio é "espelhamento da contradição e a imagem da dor", à medida que ele é "espelhamento adequado do Uno-Primordial" (VII, 7(157)). Também o gênio dionisíaco está imerso no mundo das aparências, mas carregando em si as projeções da dor primordial: "Toda aparência é, ao mesmo tempo, o Uno- Primordial mesmo: todo sofrimento, sensação é sofrimento primordial, apenas visto, localizado na rede do tempo" (ibidem).

A tese da metafísica de artista: "somente como fenômeno estético a existência e o mundo podem ser justificados eternamente" (GT, p. 47) não diz respeito apenas à arte e ao gênio apolíneos. Também a arte dionisíaca mostraria que a vida é digna de ser vivida, apesar dos sofrimentos. A nosso ver, a afirmação da arte e do gênio dionisíaco face a suas contrapartes apolíneas é fundamental para compreender o afastamento de Nietzsche emrelação a Schopenhauer. É também decisiva para sustentar a tese da "origem" da tragédia, mas o que está em jogo, no fundo, é o estabelecimento da arte, da arte do gênio, como único poder afirmador da vida.

O que move Nietzsche a passar, sem fornecer uma ligação interna, da sabedoria dionisíaca pessimista para a arte dionisíaca? Aparentemente, não nenhuma ligação imediata entre a "sabedoria" do deus Silvano e a música dionisíaca. No Nascimento da tragédia, a sabedoria de Sileno é ligada com a embriaguez extática do Dioniso asiático, sem explicitar que forma de arte está em questão.

O dionisismo oriental seria um impulso da natureza, mas a própria natureza original seria dotada de poderosos impulsos artísticos, e teria, assim, um vínculo com a verdade: "a arte, que em sua embriaguez extática fala a verdade, a sabedoria de Sileno" (GT 4, p. 41).40 Essa verdade, como vimos, é "o desmedido da natureza", expresso na arte dionisíaca como "prazer, sofrimento e conhecimento". Em que sentido se pode falar aqui de arte? Foi essa ameaça dionisíaca que elevou o apolíneo a uma nova configuração artística: "a sublime obra de arte da tragédia grega e do ditirambo dramático" (GT 4, p. 41).

4 O gênio dionisíaco grego O apolíneo e o dionisíaco são, numa primeira afloração, "estados", "potências artísticas da natureza", que se expressam no homem através do sonho e da embriaguez (cf. GT 1 e DW 1). Em relação ao dionisíaco, a forma imediata e natural de sua manifestação é o êxtase das orgias dionisíacas asiáticas,41 em especial as sáceas babilônicas, que teriam a duração de cinco dias. Até aqui não nenhuma mediação do artista (como indivíduo humano), mas somente a poderosa manifestação da natureza "na embriaguez dionisíaca, no delírio tempestuoso de todas as escalas da alma, através de excitações narcóticas ou no desencadeamento dos impulsos primaveris" (DW 1, p. 41). Assim, a música dionisíaca é o simbolismo universal da Vontade, na "violência comovedora do som" e na sua harmonia (idem). Apesar disso, a unificação do indivíduo com o "fundo íntimo do mundo",42 o esquecimento de si, não constitui ainda nos bárbaros dionisíacos um fenômeno estético. Isso ocorre somente nos gregos. Por isso, o gênio artístico dionisíaco é uma "criação" grega, ou melhor, da Vontade grega, de seu impulso transfigurador, no qual as orgias dionisíacas têm o sentido de "festas de redenção do mundo e dias de transfiguração" (GT 1, p.

33).

O gênio dionisíaco abarca o prazer e a dor de um modo bem diferente da transfiguração apolínea. A dor primordial não é simplesmente mascarada: ela se repete nas dores da existência do indivíduo submetido ao encantamento dionisíaco. Nietzsche tem dificuldades consideráveis em expor a arte dionisíaca, visto que toda "arte" está vinculada à aparência, ao vir-a-ser. Por isso, mesmo que ele mencione em alguns momentos o caráter puro da música dionisíaca,43 a embriaguez musical dionisíaca necessita dos poderes transfiguradores de Apolo, ou seja, pode revelar-se simbolicamente por meio da "imagem onírica" (cf.GT 2, p. 31). É a célebre duplicidade do apolíneo- dionisíaco. Até esse ponto, pode-se notar mais uma inconsistência na obra de Nietzsche. O recurso a algumas imagens e "experiências" não esclarece o fenômeno fundamental da dor e sua reversão em prazer. No entusiasta dionisíaco uma "duplicidade", uma confusão de afetos, que apontam para o fenômeno em que "dores despertam prazer" e "o júbilo arranca do peito sons dolorosos" (GT 2, p. 33).44 Para esclarecer essa duplicidade, Nietzsche ressalta o "poder idealizador" da vontade dionisíaca grega, no fenômeno do gênio lírico de Arquíloco. Se num primeiro momento ele aponta para o "mistério" da união entre os gênios apolíneo e dionisíaco, a tarefa consistirá em revelar o "segredo", o caráter íntimo dessa união. Por isso, Nietzsche tenta ir além da inserção de imagens e alusões, para compreender o processo estético dessa união. O gênio lírico é "artista dionisíaco";45 nele está a chave para compreender o processo artístico dionisíaco, como a fusão com o Uno-Primordial é prazerosa e como se descarrega numa profusão de símbolos: ele (o gênio lírico-dionisíaco) "unificou-se completamente com o Uno-Primordial, com sua dor e contradição, e produz a imagem (Abbild) do Uno-Primordial como música" (GT 5, p. 43).

Não se trata aqui da música absoluta, completamente dionisíaca e afigural, visto que o lírico pode relacionar-se "simbolicamente" com a dor primordial (cf. GT 6, p. 51). Com isso, Nietzsche quer assegurar o caráter próprio do simbolismo dionisíaco. Enquanto a linguagem (da palavra e do conceito) de Apolo é símbolo das aparências, o "simbolismo universal da música" emana diretamente do Uno-Primordial. O resultado disso é a depreciação da criação artística do gênio individual, que é apenas imitação dos majestosos poderes artísticos da natureza dionisíaca. Comparado com a noção de gênio artístico de Kant e de Hegel, o indivíduo genial dionisíaco ocupa uma posição bem mais modesta e periférica no ato da criação, visto ser apenas um pálido reflexo, um "segundo espelhamento", uma réplica da dor e contradição primordiais (cf. GT 5, p. 44).

Não nenhuma subjetividade individual em ação: é Dioniso, o "Eu verdadeiramente existente e eterno", o verdadeiro sujeito da arte. Nesse sentido, o gênio lírico (Arquíloco como modelo exemplar) é "somente uma visão do gênio universal (Weltgenius), que expressa simbolicamente sua dor primordial naqueles símbolos (Gleichnisse) do homem Arquíloco" (GT 5, p. 47).46 Assim, o indivíduo dionisíaco genial deve fundir-se "no ato da geração artística" com o proto-artista do mundo. Essa seria a culminância da criação dionisíaca, de sua pujança e autossuficiência, na qual a existência é afirmada e destruída como fenômeno estético. Ocorre, no entanto, que o proto-artista do mundo descarrega, através dos gênios e artistas individuais, seu ímpeto e prazer em gerar aparências. Ele não se expressa apenas no simbolismo universal da música, mas necessita do gênio apolíneo para aparecer. Desse modo, a música relaciona-se com a poesia e com a palavra. O gênio lírico dionisíaco interpreta a música através da imagem da Vontade; com isso, ele precisa se transformar em gênio apolíneo (cf. GT 6, p. 51); ao mesmo tempo que permanece "puro e imperturbável olho solar". É um processo sem dúvida "misterioso", o da descarga da música em imagens. A música, que em si é uma disposição isenta de Vontade, aparece, necessita aparecer como vontade. Enquanto no Nascimento da tragédia Nietzsche afirma que "toda aparência é apenas símbolo (Gleichniss)" (GT 6, p. 51), num póstumo de 1870 ele afirma ser um Mysterion a existência de "um outro poder, inteiramente passivo" o da aparência (Schein) , ao lado do ser eterno. No ser eterno, uno, não haveria Vontade, visto que a Vontade é múltipla. Para justificar as aparências, ele recorre ao simbolismo (Symbolik): "A aparência é um constante simbolizar da Vontade" (VII, 5(80)); e o homem é somente um "simbolismo dos fenômenos" (VII, 5(81)). Confrontamo-nos aqui com outra inconsistência do livro sobre a tragédia: em muitos momentos, a Vontade é identificada ao Uno-Primordial; em outros ela é uma espécie de reino intermediário (a forma universal dos fenômenos).

As ambivalências e inconsistências do Nascimento da tragédia, que procuramos analisar, podem lançar uma nova luz para o que de propriamente criativo na "metafísica da arte". Nietzsche procurou, com toda dedicação e "consagração" de sua juventude, investigar (ou melhor, imergir em) o "maravilhoso fenômeno dionisíaco dos gregos". A resposta que ele forneceu à pergunta "o que é dionisíaco" de modo algum é unívoca e clara, pois as análises estéticas e filológicas estão mescladas com uma certa retórica dos mistérios, e com o teor metafísico do pensamento schopenhaueriano. Além disso, as "esperanças apressadas" que ele depositou em R. Wagner são um sintoma de seu forte vínculo (pouco esclarecido e reconhecido) com o Romantismo alemão, com a recepção romântica de Dioniso e do "dionisíaco". Em meio às obscuridades da estética do jovem Nietzsche, veio à luz um projeto que assumiu sempre mais um caráter próprio em seu pensamento: o projeto de criação do gênio. A tentativa de unir o apolíneo, o dionisíaco e certos traços "românticos" do santo nas criações do gênio estético não recebe uma configuração definitiva na sua obra das primícias. Mas ela ainda atravessa o período de ceticismo e de "cura do Romantismo", para renascer em Zaratustra, que se tornará o arauto das mais elevadas esperanças do último "discípulo e iniciado" do deus-artista Dioniso.


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