Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas: modelo teórico e
discursos críticos
1 A concepção de democracia deliberativa
Na obra de Habermas Faktizitåt und Geltung,1 os desdobramentos acerca da
concepção de democracia recebem um detalhamento mais apurado do papel da esfera
pública e sua penetração mais efetiva sobre o político, traduzido numa ênfase
na institucionalização. O exame dos processos institucionais também é uma
investigação mais sistemática acerca do potencial político do discurso, e uma
outra tentativa, mais realista, de responder a questão sobre a ação recíproca
entre solidariedade sociointegrativa do mundo da vida com os procedimentos no
nível político e administrativo. Esta investigação mais sistemática é também
uma estratégia habermasiana de responder às críticas e mostrar que a Theorie
des kommunikativen Handelns2 não é cega para a realidade das instituições.3 A
reformulação da relação entre sistema e mundo da vida prepara o caminho para um
novo modelo de circulação do poder político (1.1) que tem como central a
concepção procedimental deliberativa de democracia (1.2).
1.1 Mundo da vida e sistema: novo modelo de circulação do poder
As críticas à imprecisão das implicações institucionais da concepção
habermasiana de esfera pública da Theorie... levam Habermas a sinalizar para
uma reformulação da relação sistema-mundo da vida, com a necessidade de um
"duplo fluxo", capaz de revigorar as instituições. A ideia de "sitiamento"
fragiliza a concepção de política que resulta do quadro teórico da Theorie. A
concepção de política que resulta da obra sobre a ação comunicativa não
permitia uma autodemocratização interna do sistema. Por isso, a pergunta-chave
aqui para Habermas é: "quem revigora as instituições?" Impasse conceitual que
obriga Habermas a repensar a articulação entre espontaneidade social e
complexidade funcional, o nexo entre poder comunicativo gerado
comunicativamente e o poder administrativo formalmente organizado no sistema
político.
A partir da segunda metade da década de 80, Habermas introduz mudanças
significativas no curso de suas investigações sobre a esfera pública ao voltar
a colocar ênfase na questão da institucionalização.4 Nesse caminho, reformula a
relação sistema-mundo da vida e altera as características da esfera pública,
redimensionando-a dentro de um sistema de "eclusas". Em Theorie des
kommunikativen Handelns, Habermas tematiza a esfera pública como constitutiva
do mundo da vida, responsável por garantir sua autonomia e protegê-lo frente ao
sistema administrado. Uma esfera de caráter "defensivo" que, no máximo, poderia
"sitiar" o sistema, mas sem grandes pretensões de conquista. Já em Faktizitåt
und Geltung, Habermas confere à esfera pública um caráter mais "ofensivo",
abandona a metáfora do "sitiamento" e a substitui adotando o modelo das
"eclusas".5 Ao reformular a relação entre sistema e mundo da vida, acaba também
modificando, não tanto a posição, mas o caráter ofensivo da esfera pública.
Sendo assim, onde se localiza e que função desempenha a esfera pública
modificada nesse novo modo de ver a ação recíproca entre sistema e mundo da
vida?
Na contrapartida ofensiva do novo modelo de circulação do poder político, a
categoria de esfera pública é redimensionada dentro deste novo modelo de
eclusas e assume um papel mais amplo e mais ativo junto aos processos formais
mediados institucionalmente. Com o novo modelo de acoplamento, os processos de
comunicação e decisão do sistema político são estruturados através de um
sistema de eclusas, no qual os processos de comunicação e decisão já estão
ancorados no mundo da vida por uma "abertura estrutural", permitida por uma
esfera pública sensível, permeável, capaz de introduzir no sistema político os
conflitos existentes na periferia. Agora, o sistema político já não é mais
pensado autopoiéticamente, mas constitui um centro poliárquico. Aqui, Habermas
reconhece que a imagem de uma fortaleza sitiada democraticamente que aplicou ao
Estado nos anos 80 na Theorie... pode induzir ao erro, pois ela não permite uma
autodemocratização interna do sistema.6 A seguinte passagem deixa claro o
abandono da tese do desacoplamento entre sistema e mundo da vida e a formulação
de uma concepção diferente de poder e de sistema político em Faktizitåt und
Geltung:
O núcleo do sistema político é formado pelos seguintes complexos
institucionais, já conhecidos: a administração (incluindo o governo),
o judiciário e a formação democrática da opinião e da vontade
(incluindo as corporações parlamentares, eleições políticas,
concorrência entre partidos, etc). Portanto, esse centro, que se
perfila perante uma periferia ramificada, através de competências
formais de decisão e de prerrogativas reais, é formado de modo
"poliárquico". No interior do núcleo, a "capacidade de ação" varia,
dependendo da "densidade" da complexidade organizatória. O complexo
parlamentar é o que se encontra mais aberto para a percepção e a
tematização dos problemas sociais [...] Nas margens da administração
forma-se uma espécie de periferia interna, que abrange instituições
variadas, dotadas de tipos diferentes de direitos de auto-
administração ou de funções estatais delegadas, de controle ou de
soberania (universidades, sistemas de seguros, representações de
corporações, câmaras, associações beneficentes, fundações, etc.).
Tomado em seu conjunto, o núcleo possui uma periferia exterior, a
qual se bifurca, grosso modo, em compradores e fornecedores.7
A contrapartida ofensiva da esfera pública sobre o político assenta na ênfase
nos processos de institucionalização. Para Habermas, tal desencadeamento está
amarrado a um processo de normatização, que se inicia pela formação da opinião
e da vontade nas esferas públicas informais, acaba desaguando, pelo caminho
procedimental, nas instâncias formais de deliberação e decisão. Este processo
de "abertura" para a institucionalização está ancorado num amplo conceito de
democracia procedimental e deliberativa.
1.2 Democracia deliberativa
Habermas pode não ter sido o primeiro a escrever sobre "deliberação",8 mas
talvez seja o mais proeminente defensor da teoria deliberativa de democracia.9
Na década de 90, Habermas coloca forte peso na questão da
"institucionalização". Em Faktizitåt und Geltung, formula um projeto de
institucionalização que se orienta pelo paradigma procedimental de democracia.
Com isso, quer resolver o problema de como a formação discursiva da opinião e
da vontade pode ser institucionalizada, da ação recíproca entre as esferas
informais do mundo da vida com as esferas formais dos processos de tomadas de
decisão institucionalizados, de como transformar poder comunicativo em poder
administrativo. O pensamento político habermasiano dirige-se a uma teoria da
democracia, agora pensada em termos institucionais. Por isso, a atenção com os
pressupostos, os arranjos institucionais, os mecanismos de controle político.
Para tanto, Habermas elabora uma teoria da democracia procedimental e
deliberativa, a partir do modelo das "eclusas".
A concepção de política deliberativa é uma tentativa de formular uma teoria da
democracia a partir de duas tradições teórico-políticas: a concepção de
autonomia pública da teoria política republicana (vontade geral, soberania
popular), com a concepção de autonomia privada da teoria política liberal
(interesses particulares, liberdades individuais). Ela pode ser concebida,
simultaneamente, como um meio-termo e uma alternativa aos modelos republicano e
liberal.10 No entanto, embora o tema geral seja o mesmo, há diferentes visões
de democracia deliberativa, que conferem diferentes níveis dos processos
democráticos, e modos diferentes de compreender as fronteiras entre a autonomia
privada e autonomia pública. Embora não possamos prestar contas aqui das
diferenciações internas pormenorizadas dessas diferentes compreensões, há, por
um lado, autores que buscam reformular internamente elementos do modelo liberal
de democracia, e por outro lado, há aqueles que refutam o paradigma liberal
apresentando novas alternativas.11 Mas, diferentemente de quem rejeita
veementemente a tradição liberal, Habermas ainda busca conciliar as tradições
liberal e republicana. No entanto, se a teoria deliberativa é uma alternativa
frente aos modelos liberal e republicano, o que ela introduz de novo? O modelo
deliberativo pode "fazer a diferença"?12
"Deliberação" é uma categoria normativa que sublinha uma concepção
procedimental de legitimidade democrática, segundo Habermas. Esta concepção
normativa gera uma matriz conceitual diferente para definir a natureza do
processo democrático,13 sob os aspectos regulativos (ou exigências normativas)
da publicidade, racionalidade e igualdade.14 Embora também tenha um caráter
empírico-explicativo, a ênfase da concepção habermasiana de democracia
procedimental assenta no caráter crítico-normativo. A concepção procedimental
de democracia é uma concepção formal e assenta nas exigências normativas da
ampliação da participação dos indivíduos nos processos de deliberação e decisão
e no fomento de uma cultura política democrática. Por ser assim, esta concepção
está centrada nos procedimentos formais que indicam "quem" participa, e "como"
fazê-lo (ou está legitimado a participar ou fazê-lo), mas não diz nada sobre "o
que" deve ser decidido. Ou seja, as regras do jogo democrático (eleições
regulares, princípio da maioria, sufrágio universal, alternância de poder) não
fornecem nenhuma orientação nem podem garantir o "conteúdo" das deliberações e
decisões.
Para Habermas, dois modelos normativos de democracia dominaram o debate até
aqui, o liberal e o republicano. Diante destes, propõe um modelo alternativo, o
procedimental.15 A dimensão política comparativa tomada pelo autor é a formação
democrática da opinião e da vontade.16 Além disso, o entendimento distinto do
processo democrático carrega também compreensões normativas distintas de estado
e sociedade, e para a compreensão da legitimidade e da soberania popular.
No modelo liberal, o processo democrático tem por objetivo intermediar a
sociedade (um sistema estruturado segundo as leis do mercado, interesses
privados) e o Estado (como aparato da administração pública). Nesta
perspectiva, a política tem a função de agregar interesses sociais e os impor
ao aparato estatal; é essencialmente uma luta por posições que permitam dispor
de poder administrativo, uma autorização para que se ocupem posições de poder.
O processo de formação da vontade e da opinião política é determinado pela
concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente em manter ou
conquistar posições de poder. Por esse modo, esta compreensão de política opera
com um conceito de sociedade centrado no Estado (como cerne do poder político).
Como não é possível eliminar a separação entre Estado e sociedade, visa-se
superá-la apenas via processo democrático. No entanto, a conotação normativa de
equilíbrio de poder e interesses é frágil e precisa ser complementada estatal e
juridicamente. Mas ela se orienta pelo lado output da avaliação dos resultados
da atividade estatal. O êxito em tal processo é medido pela concordância dos
cidadãos em relação a pessoas e programas, quantificado em votos.17
No modelo republicano, o processo democrático vai além dessa função mediadora.
Apresenta a necessidade de uma formação da opinião e da vontade e da
solidariedade social que resulte da reflexão e conscientização dos atores
sociais livres e iguais. Nessa perspectiva, a política não obedece aos
procedimentos do mercado, mas às estruturas de comunicação pública orientada
pelo entendimento mútuo, configuradas num espaço público. Este exercício de
auto-organização da sociedade pelos cidadãos por via coletiva seria capaz de
emprestar força legitimadora ao processo político. Por esse viés, da auto-
organização política da sociedade, esta compreensão de política republicana
opera com um conceito de sociedade direcionado contra o Estado (sociedade é o
cerne da política). Orienta-se pelo input de uma formação da vontade
política.18
O modelo deliberativo, por sua vez, acolhe elementos de ambos os lados e os
integra de uma maneira nova e distinta num conceito de procedimento ideal para
deliberações e tomadas de decisão. Esta compreensão do processo democrático tem
conotações normativas mais fortes que o modelo liberal, mas menos normativas do
que o modelo republicano. Como o republicanismo, a teoria discursiva da
democracia reserva uma posição central ao processo político de formação da
opinião e da vontade, entretanto sem entender como algo secundário à
constituição jurídico-estatal.19 Como o modelo liberal, também na teoria
discursiva da democracia os limites entre Estado e sociedade são respeitados.
Todavia, aqui, a sociedade civil, como base social das opiniões públicas
autônomas, distingue-se tanto dos sistemas de ação econômicos quanto da
administração pública. Dessa compreensão do procedimento democrático resulta
normativamente a exigência de um deslocamento dos pesos que se aplicam a cada
um dos elementos na relação entre os três recursos, a saber, dinheiro, poder
administrativo e solidariedade, a partir das quais as sociedades modernas
preenchem sua necessidade de integração e de regulação. As implicações
normativas são evidentes: a força sociointegrativa da solidariedade, que não
pode mais ser obtida, mas ser extraída apenas das fontes da ação comunicativa,
precisa desenvolver-se em espaços públicos autônomos diversos e procedimentos
de formação democrática da opinião e da vontade política institucionalizados
jurídico-estatalmente; e ser capaz de se afirmar contra os outros dois poderes,
dinheiro e poder administrativo.20
O princípio procedimental da democracia visa amarrar um procedimento de
normatização (o que significa: um processo de institucionalização da formação
racional da opinião e da vontade), através do caráter procedimental, que
garante formalmente igual participação em processos de formação discursiva da
opinião e da vontade e estabelece, com isso, um procedimento legítimo de
normatização. Nesse caminho via procedimento e deliberação, que constitui o
cerne do processo democrático, pressupostos comunicativos de formação da
opinião e da vontade funcionam como a "eclusa" mais importante para a
racionalização discursiva das decisões no âmbito institucional. Procedimentos
democráticos proporcionam resultados racionais na medida em que a formação da
opinião e da vontade institucionalizada é sensível aos resultados de sua
formação informal da opinião que resulta das esferas públicas autônomas e que
se formam ao seu redor. As comunicações públicas, oriundas das redes
periféricas, são captadas e filtradas por associações, partidos e meios de
comunicação, e canalizadas para os foros institucionais de resolução e tomadas
de decisão:
A chave da concepção procedimental de democracia consiste
precisamente no fato de que o processo democrático institucionaliza
discursos e negociações com o auxílio de formas de comunicação às
quais devem fundamentar a suposição de racionalidade para todos os
resultados obtidos conforme o processo.21
Como se vê nessa passagem, do ponto de vista normativo, o que empresta força
legitimadora ao "procedimento" é justamente o percurso ou a base argumentativa
de fundamentação discursiva que se desenrola na esfera pública. Este percurso
visa garantir o uso equitativo das liberdades comunicativas, conferindo por
esse modo também força legitimadora ao processo de normatização. Ou seja, a
compreensão procedimental de democracia tenta mostrar que os pressupostos
comunicativos e as condições do processo de formação da opinião são a única
fonte de legitimação; que a formação democrática da opinião e da vontade tira
sua força legitimadora dos pressupostos comunicativos e dos procedimentos
democráticos. Procedimentos que fundamentam uma medida para a legitimidade da
influência exercida por opiniões públicas sobre a esfera formal do sistema
político. Para serem legítimas, as decisões têm que ser reguladas por fluxos
comunicativos que partem da periferia e atravessam as comportas dos
procedimentos próprios à democracia. A própria pressão da esfera pública
consegue forçar a elaboração de questões e, com isso, atualizar sensibilidades
em relação às responsabilidades políticas.22
Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que
reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, ela não pode
limitar-se a percebê-los, e a identificá-los, devendo, além disso,
tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e
eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo
parlamentar.23
2 A concepção de esfera pública deliberativa
Não há dúvidas de que a concepção normativa da esfera pública "deliberativa"
formulada em Faktizitåt und Geltung (1992) significa uma reorientação do foco
teórico em relação às formulações anteriores, especialmente em Strukturwandel
der Öffentlichkeit (1962), Theorie des Kommunikativen Handelns (1982), e no
"prefácio" à nova edição de Strukturwandel der Öffentlichkeit (publicada em
1990). O novo papel da esfera pública dentro de uma teoria deliberativa da
democracia enfatiza ainda mais a ampliação da categoria esfera pública, já
esboçada no "prefácio" de 1990, mas agora com uma influência mais efetiva nos
contextos formais e institucionalizados de deliberação e decisão políticos.24 O
que interessa esclarecer aqui é: qual a especificidade da categoria de esfera
pública em Faktizitåt und Geltung?
Na linguagem habermasiana, o procedimento da democracia deliberativa constitui
o âmago do processo democrático.25 A esfera pública, por sua vez, é a categoria
normativa chave do processo político deliberativo habermasiano. A esfera
pública é uma "estrutura intermediária" que faz a mediação entre o Estado e o
sistema político e os setores privados do mundo da vida.26 Uma "estrutura
comunicativa", um centro potencial de comunicação pública, que revela um
raciocínio de natureza pública, de formação da opinião e da vontade política,
enraizada no mundo da vida através da sociedade civil. A esfera pública tem a
ver com o "espaço social" do qual pode emergir uma formação discursiva da
opinião e da vontade política.27 No seu bojo colidem os conflitos em torno do
controle dos fluxos comunicativos que percorrem o limiar entre o mundo da vida
e a sociedade civil e o sistema político e administrativo. A esfera pública
constitui uma "caixa de ressonância",28 dotada de um sistema de sensores
sensíveis ao âmbito de toda sociedade,29 e tem a função de filtrar e sintetizar
temas, argumentos e contribuições, e transportá-los para o nível dos processos
institucionalizados de resolução e decisão, de introduzir no sistema político
os conflitos existentes na sociedade civil, a fim de exercer influência e
direcionar os processos de regulação e circulação do poder do sistema
político,30 através de uma abertura estrutural, sensível e porosa, ancorada no
mundo da vida.31
Esfera ou espaço público é um fenômeno social elementar do mesmo modo
que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é
arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a
ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma
instituição, nem como uma organização, pois ela constitui uma
estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis,
nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela
constitui um sistema, pois mesmo que seja possível delinear seus
limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de
horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. A esfera pública pode
ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,
tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicativos são
filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões
públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo
da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do
agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem
natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da
prática comunicativa cotidiana. Descobrimos que o mundo da vida é um
reservatório para intenções simples; e os sistemas de ação e de saber
especializados, que se formam no interior do mundo da vida, continuam
vinculados a ele. Eles se ligam a funções gerais de reprodução do
mundo da vida (como é o caso da religião, da escola e da família), ou
a diferentes aspectos de validade do saber comunicado através da
linguagem comum (como é o caso da ciência, da moral e da arte).
Todavia, a esfera pública não se especializa em nenhuma destas
direções; por isso, quando abrange questões politicamente relevantes,
ela deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada. A
esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicativa do
agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço
social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os
conteúdos da comunicação cotidiana.32
No entanto, apesar dessa definição mais geral, como determinar qual a sua
especificidade, fixar a extensão ou os limites internos e externos, estabelecer
o que está dentro e o que está fora? Senão vejamos essa outra passagem:
Ela [a esfera pública] representa uma rede supercomplexa que se
ramifica num sem número de arenas internacionais, nacionais,
regionais, comunais e sub-culturais, que se sobrepõem umas às outras;
essa rede se articula objetivamente de acordo com pontos de vista
funcionais, temas círculos, etc., assumindo a forma de esferas
públicas mais ou menos especializadas, porém, ainda acessíveis a um
público de leigos (por exemplo, esferas públicas literárias,
eclesiásticas, artísticas, feministas, ou ainda, esferas públicas
"alternativas" da política de saúde, da ciência e de outras); além
disso, ela se diferencia por níveis, de acordo com a densidade da
comunicação, da complexidade organizacional e do alcance, formando
três tipos de esfera pública: esfera pública episódica (bares, cafés,
encontros de rua), esfera pública da presença organizada (encontros
de pais, público que freqüenta teatro, concertos de rock, reuniões de
partidos ou congressos de igrejas) e esfera pública abstrata,
produzida pela mídia (leitores, ouvintes e espectadores singulares e
espalhados globalmente). Apesar dessas diferenciações, as esferas
públicas parciais, constituídas através da linguagem comum ordinária,
são porosas, permitindo a ligação entre elas. Limites sociais
internos decompõem o "texto" da esfera pública, que se estende
radicalmente em todas as direções [...] No interior da esfera pública
geral, definida através de sua relação com o sistema político, as
fronteiras não são rígidas em princípio.33
Estas duas passagens acima são elucidativas aqui e sintetizam o estatuto
normativo da categoria de esfera pública deliberativa, formulado na obra sobre
direito e democracia. A esfera pública tem como característica elementar ser um
espaço irrestrito de comunicação e deliberação pública, que não pode ser
anteriormente estabelecido, limitado ou restringido, os elementos constitutivos
não podem ser antecipados. Em princípio, está aberta para todo âmbito social.
Não existem temas ou contribuições a priori englobados ou excluídos. A esfera
pública é sempre indeterminada quanto aos conteúdos da agenda política e aos
indivíduos e grupos que nela podem figurar. É por isso que Habermas não quer
(nem pode) descrever, precisamente, quais as linhas internas e externas, quais
as fronteiras da esfera pública, embora necessite, por outro lado, de certa
autolimitação, para, por exemplo, não ficar a mercê de toda e qualquer forma de
manifestação pública (como formas de comunicação estratégicas). Esse é o duplo
caráter constitutivo da esfera pública, pelo qual ela acaba oscilando entre a
exigência de livre participação e circulação de temas e contribuições e certa
autolimitação.34 Para tanto, Habermas propõe a adoção da ideia procedimental de
deliberação pública, pela qual os "contornos" da esfera pública se forjam
durante os processos de identificação, filtragem e interpretação acerca de
temas e contribuições que emergem das esferas públicas autônomas e são
conduzidos para os foros formais e institucionalizados do sistema político e
administrativo.35 É nesse caráter procedimental de justificação da legitimidade
que se realiza a normatividade da esfera pública.36 É da inter-relação entre as
esferas públicas informais e a esfera pública formal - qual seja, dos fluxos
comunicativos e influências públicas que emergem das esferas públicas
informais, autônomas, e são transformados em poder comunicativo e transportados
para a esfera formal -, que deriva a expectativa normativa da esfera pública.
A expectativa normativa [...] se funda no jogo que se estabelece
entre a formação política da vontade, constituída institucionalmente,
e os fluxos comunicativos espontâneos de uma esfera pública não
organizada e não programada para tomar decisões, os quais não são
absorvidos pelo poder. Neste contexto, a esfera pública funciona como
uma categoria normativa.37
Mas como se dá especificamente esse engate das esferas públicas informais com a
esfera pública formal? Segundo Habermas, através de diferentes níveis da esfera
pública, como a formação informal da opinião nas esferas públicas informais,
nas associações, no interior dos partidos, participação em eleições gerais,
corporações parlamentares e governo.38 Para tanto, há uma necessidade de
complementar a formação da opinião e da vontade parlamentar e dos partidos,
através de uma formação informal da opinião e da vontade na esfera pública.
Mas, apesar de possuir este aspecto formal, de conduzir à institucionalização
via partidos, eleições e outros foros, a esfera pública não é
institucionalizada, nem é sistêmica: "A esfera pública não pode ser entendida
como uma instituição [...] Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que
seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza
através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis".39
No entanto, se a esfera pública política é a categoria central da compreensão
habermasiana do procedimento político deliberativo, não o é, entretanto, no seu
todo. O conteúdo normativo da esfera pública não se restringe aos arranjos
institucionais, depende também das esferas públicas informais. - E aqui se vê
claramente o papel dos fóruns informais integrantes da esfera pública que já se
encontravam presentes na Theorie -. Embora as tomadas de decisão e a filtragem
das razões via procedimento formal parlamentar ainda permanecem tarefas da
esfera pública formal, são as esferas informais que têm a responsabilidade de
identificar e interpretar os problemas sociais. Vê-se certa hierarquização que
segue dois caminhos de formação da opinião e da vontade: o informal e o
institucionalizado. O caminho procedimental da institucionalização da prática
da autodeterminação da sociedade civil segue da socialização horizontal para
formas verticais de filtragem e organização de temas relevantes.40
Até aqui vimos que a concepção de política deliberativa é abordada
principalmente sob o aspecto da legitimação.41 Vimos também que a noção de
"procedimento" da política deliberativa é o cerne do processo democrático
habermasiano. Ao ser forjado na esfera pública, o procedimento (e o que dele
resulta) fornece a base elementar de medida da legitimidade, e, nesse sentido,
também o fundamento ou a justificação normativa. O sentido normativo da esfera
pública é conferir força legitimadora ao procedimento da política deliberativa;
o sentido normativo reside na força legitimadora do processo de discussão e
deliberação que se desenrola no seu interior. O processo democrático da
deliberação carrega o fardo da legitimação.42 E daqui brota o "poder
comunicativo". O poder comunicativo é o "poder" que resulta do procedimento
deliberativo de discussão e deliberação, que toma forma na esfera pública e que
geralmente é contraposto à esfera do poder político-administrativo.43 No
entanto, em Faktizitåt..., a esfera pública não exerce poder, mas influência.
Esta é a diferença em relação à ideia de "sitiamento" da Theorie. A figuração
na esfera pública não pretende o (nem o conflito gira mais em torno do)
sitiamento, mas os diferentes tipos de influência. É essa influência que
precisa ser mediada. Para tanto, é fundamental o princípio da soberania popular
como procedimento.44
A política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de
um processo público de formação da opinião e da vontade política, a qual
preenche sua função social integradora graças à expectativa da qualidade
racional de seus resultados. Para tanto, o nível discursivo das comunicações
políticas observáveis pode ser tomado como medida para avaliar a eficácia da
razão procedimentalizada.45 Por isso, o nível discursivo do debate público
constitui a variável mais importante.46 Mas, como se mede a qualidade e o nível
discursivo das formas de comunicação públicas? Para o autor, a "influência da
maioria" fornece aqui uma alternativa e constitui uma grandeza empírica.47
3 Discursos críticos
Para explicar a concepção de democracia procedimental deliberativa, Habermas
serve-se de uma concepção normativa de discurso racional. No entanto, esta
concepção não é entendida como um ideal filosófico; ela tem um caráter
reconstrutivo: de uma sociologia procedimental reconstrutiva, com o objetivo de
elucidar nas práticas políticas elementos incorporados, mesmo que distorcidos,
da razão existente.48 Com esta proposta deliberativa de democracia, vemos uma
opção explícita de Habermas: a descrição do procedimento deliberativo serve
como pano de fundo para a proposta de circulação e implantação do poder
comunicativo, ancorado num sistema de eclusas. Os fluxos comunicativos podem
migrar tanto do centro para a periferia quanto da periferia para o centro,
dependendo de quem determina ou controla a orientação dos fluxos de
comunicação. Mas, apesar desses dois modos de elaborar temas, questões e
problemas, interessa a Habermas o caminho que culmina no tratamento formal de
temas novos e politicamente relevantes que emergem do mundo da vida e da esfera
privada da sociedade civil, e que migram da periferia ao centro: "A idéia de
democracia repousa, em última instância, no fato de que os processos políticos
de formação da vontade, que no esquema aqui delineado tem um status periférico
ou intermediário, devem ser decisivos para o desenvolvimento político".49
No entanto, os argumentos a favor da concepção deliberativa de esfera pública e
de política têm sido alvo de muitas críticas. Muitos teóricos que se ocupam com
teorias democráticas têm questionado as assunções básicas da teoria política
deliberativa que resulta da obra sobre direito e democracia, apontando vários
pontos frágeis: o seu incansável procedimentalismo; o caráter idealista; de que
a proposta de uma reforma democrática das instituições não seria tão radical
assim; a incapacidade de fornecer princípios substantivos de justiça social; de
que, apesar da intencionalidade prática, Habermas não explicita nenhum
destinatário em particular (a quem ele se endereça?), que as características ou
pressupostos deliberativos se manifestam apenas em formas específicas e
restritas; entre outros.50
Não podemos acompanhar aqui em sua amplitude a bibliografia crítica sobre
esfera pública e democracia deliberativa e, portanto, não vamos reproduzir de
modo mais detalhado as discussões e controvérsias sobre o tema - o debate de
Habermas com as abordagens filosófico-normativas e sociológico-observadoras,
entre liberais, comunitaristas e procedimentalistas, permanecem incompletas.51
Para nossos propósitos, vamos aqui nos limitar apenas a alguns comentários
sobre deliberação, especialmente aqueles envolvendo a esfera pública
deliberativa.
A introdução do princípio da legitimidade deliberativa no processo democrático
significa o reconhecimento, por parte dos atores, de que os motivos
introduzidos no procedimento de discussão e deliberação e de que o resultado
alcançado deu-se sob os holofotes normativos. No entanto, as dúvidas que surgem
são: os procedimentos deliberativos são apenas procedimentos de argumentação
racional ou também remetem a considerações racionais substantivas? A ênfase da
deliberação é nos elementos normativos e consensuais do modelo deliberativo ou
é uma ênfase realista nos interesses e no potencial de conflito neles contido?
Os mecanismos procedimentais deliberativos realmente conseguem proteger a
formação política da opinião e da vontade das influências? O modelo
deliberativo consegue neutralizar e suspender disparidades econômicas, sociais,
culturais, cognitivas, entre outras, e promover um resultado satisfatório, de
igualdade e justiça? Seu aspecto cognitivo realmente introduz uma gradual
abolição destas desigualdades e disparidades, promove igualdade e produz
resultados políticos justos? Enfim, trata-se de processos de deliberação ideal
ou de deliberação efetiva?
As expectativas políticas de uma esfera pública normativa estão depositadas na
força crítica do modelo deliberativo de comunicação pública e de circulação do
poder. Mas, embora este modo de comunicação pública carregue fortes
expectativas normativas de entendimento e de consenso, as limitações para a
realização de tais condições de comunicação são bem conhecidas. Há exemplos,
observáveis na bibliografia, de pressupostos limitadores, internos e externos.
Dissensos, formas não-discursivas de comunicação pública, desigualdades,
assimetrias, estratificação social, estruturas de poder, fragmentação do
universo simbólico, diversidade de modos de vida cultural, pluralismo das
visões de mundo, convicções religiosas, temas controversos, os efeitos de
certas formas de comunicação estratégica, ou interesses específicos
relacionados a classes, grupos, comunidades étnicas, comunidades religiosas, ou
sub-culturas com orientações específicas ou alternativas.
Para autores como John Dryzek, James Bohman e Mark Warren, o modelo de
democracia deliberativa que se assenta no princípio procedimental de soberania
popular está muito concentrado, ou direcionado por demais, na arquitetônica
institucional. Em contrapartida, tais autores têm em comum a tentativa de
desenvolver modelos de democracia que se ocupam com um conceito pós-
habermasiano de soberania popular. Um conceito de democracia que, embora
articulado na sociedade civil e na esfera pública, seja, no entanto, mais amplo
e mais descentrado dos liames institucionais.52
Para Simone Chambers, embora Habermas seja um radical democrata procedimental,
não é, no entanto, um radical democrata social, e, por isso, é incapaz de
fornecer princípios substantivos de justiça social.53 Para Kenneth Baynes, o
modelo deliberativo não pode ignorar completamente princípios substantivos de
justiça.54 Parece-nos que é nesse sentido que emergem as objeções mais
contundentes à concepção deliberativa de esfera pública e de política
habermasiana.
Para William Scheuerman, Habermas teria falhado em não encarar de modo
suficiente o potencial radical da democracia deliberativa (democracia radical).
Por exemplo, desigualdades sociais seriam barreiras para que os membros de uma
comunidade política sejam aptos a participar da geração da legitimidade do
poder. As condições materiais das sociedades globalizadas, com suas dinâmicas
complexas, suas condições internas (poder, consumismo, mídia, por exemplo)
acabam privando a autêntica participação democrática. Segundo o autor,
interações exigem um certo nível, têm que se dar sob certas condições, sem
coações externas (econômicas ou de poder, por exemplo). Por isso, tornam-se
necessários certos níveis de igualdade e respeito entre os participantes da
comunicação pública; mecanismos capazes de evitar as influências das desiguais
condições socioeconômicas. Para o autor, o modelo deliberativo não consegue
fornecer condições estruturais de comunicação pública isentas de certos tipos
de influência que desvirtuam ou afetam a qualidade e o resultado do processo
deliberativo. O modelo deliberativo não consegue cumprir todas as exigências
normativas da publicidade, racionalidade e igualdade nos mais diferentes níveis
e arenas da esfera pública.55
A concepção deliberativa da democracia considera a participação dos cidadãos
nas deliberações e nas tomadas de decisão o elemento central da compreensão do
processo democrático. Nesse sentido, focaliza os elementos formais e
normativos, como a exigência do aumento da participação dos cidadãos nos
processos de deliberação e decisão e o fomento de uma cultura política
democrática. O procedimento da deliberação não é apenas uma etapa de discussão
que antecede a tomada de decisão. Mais do que isso, ela tem o objetivo de
justificar as decisões a partir de razões que todos poderiam aceitar. Esse é o
procedimento deliberativo da razão pública: fornecer um espectro de razões que
poderiam ser aceitas por todos os possíveis atingidos, ainda que nem todos
compartilhem com o tema ou assunto em questão, ou com a mesma filosofia de
vida. Segundo Marcos Nobre:
O procedimento, para Habermas, é "formal", mas não em oposição a
conteúdos determinados, de que ele seria a abstração, ou em relação
aos quais ele seria "vazio", mas o processo capaz de permitir o
surgimento do maior número possível de vozes, de alternativas de ação
e de formas de vida, garantindo seu direito de expressão e de
participação. Ele é formal também no sentido de que o processo de
deliberação política não pode ser orientado por nenhuma forma de vida
determinada, por nenhum modelo concreto do que deva ser a sociedade
ou os cidadãos que vivem em um Estado Democrático de Direito.56
Como podemos ver, a deliberação é um procedimento que indica quem deve
participar e como, mas não tem nada a dizer sobre o preenchimento dos conteúdos
normativos. Por esse modo, o princípio formal da deliberação democrática não
pode ser confundido ou reduzido a outros bens, também valiosos, como "justiça
social", "Estado de direito", "direitos sociais" e "direitos culturais", mais
próximos das teorias explicativas da democracia, fundados nos interesses e nas
preferências dos indivíduos (preferências e interesses substantivos: ou
sociais, ou materiais, ou culturais, ou ainda outros). Os procedimentos
deliberativos escapam das restrições de uma única dimensão da razão prática,
seja moral, ética ou pragmática.57 Nesse sentido, os aspectos procedimentais do
uso público da razão, ao confiarem mais no procedimento deliberativo de uma
formação da opinião e da vontade, podem deixar questões em aberto.
A concepção procedimental de democracia carrega no seu bojo uma "tensão" entre
facticidade e validade. Esta relação entre ambas constitui-se numa constante
tensão encontrada nos pressupostos pragmáticos contrafactuais que, mesmo
carregado de pressupostos idealizadores, têm que ser admitidos factualmente por
todos os participantes quando estes desejam participar de uma argumentação
discursiva a fim de justificar ou negar pretensões de validade. Os
"pressupostos idealizadores" - de inclusão, acesso universal, direitos
comunicativos iguais, participação sob igualdade de direitos, igualdade de
chances para todas as contribuições, ausência de coações - apenas têm o caráter
de garantir formalmente uma pressuposição fática para gozar chances iguais.58
Para Habermas, esta tensão é desconsiderada pelas teorias normativistas (que
correm o risco de perder o contato com a realidade social) e as teorias
objetivistas (que correm o risco de serem incapazes de focalizar normas).59
A tensão, o conflito, a disputa política que se desenrola nas esferas públicas
são inerentes ao próprio procedimento, um "jogo" no qual já sempre estamos
envolvidos como participantes quando pretendemos discutir, justificar ou negar
pretensões de validade. Este conflito se alimenta de um jogo que envolve uma
esfera pública ancorada na sociedade civil e a formação institucionalizada no
complexo parlamentar, um jogo que envolve a formação da vontade formal e
institucionalizada e a formação informal da opinião.60 A tensão gira em torno
dos fluxos comunicativos, ou melhor, de quem determina o sentido dos fluxos de
comunicação e que elaboram pretensões normativas na sociedade e no sistema
político. Uma tensão entre o poder comunicativo gerado na base social do mundo
da vida e o poder administrativo gerado no sistema político.
A própria esfera pública é entendida, por característica, como um espaço
irrestrito de comunicação pública. Nada pode ser estabelecido ou restringido de
antemão. Qualquer assunto ou questão problematizável pode ser tematizado
publicamente, no qual os contornos da esfera pública vão sendo forjados nos
processos de escolha, circulação e proposta de temas, e os conteúdos normativos
vão sendo preenchidos dependendo de quem controla ou orienta os fluxos de
comunicação que figuram na esfera pública.61 A qualidade da deliberação que se
configura na esfera pública depende de um procedimento no qual os cidadãos
disputam interpretações de contribuições por tanto tempo até que cada um esteja
convencido de que foram empregados os melhores argumentos. Este processo é
garantido pelo caráter procedimental da deliberação. No entanto, o resultado
desse processo permanece "provisório". Isso significa: caso sejam encontrados
argumentos melhores, o procedimento de crítica pública pode ser reaberto. Esse
é o caráter reflexivo (e crítico) da esfera pública deliberativa. Segundo
Nobre:
Se a deliberação e a participação devem encontrar seu lugar no Estado
Democrático de Direito, será necessário aceitar um jogo entre, de um
lado, os espaços públicos autônomos e as novas formas de
institucionalidade que projetam, e, de outro, macroestruturas
definidoras do regime democrático, que serão cada vez mais testadas
em seus limites e suas configurações presentes. Entretanto [acentua
Nobre], não se trata de um "livre jogo" entre os dois pólos, mas uma
disputa política que só mostrará avanços emancipatórios se for capaz
de afastar, a cada vez, em cada conflito concreto, o jugo
determinante do dinheiro e poder administrativo.62
Esta compreensão falível do paradigma procedimental tem implicações sobre a
compreensão da justiça e o sentido da igualdade. Em primeiro lugar, uma esfera
pública, ou de modo mais abrangente, um mundo da vida racionalizado, exige uma
base social material e simbólica por meio da superação das barreiras criadas
pela estratificação social e pela exploração sistemática. E aqui nos parece
claro que a ênfase da teoria democrática habermasiana gira em torno não apenas
da democracia política (os pressupostos formais, como direitos de cidadania,
participação, e outros), mas também reivindica democracia social.63
Em segundo lugar, a intenção de Habermas não é fornecer um princípio
"substantivo" de justiça, como já vimos. Pelo contrário, os esforços empregados
em Faktizitåt und Geltung visam justamente abolir princípios substantivos, em
favor de "procedimentos deliberativos", e mostrar a correlação equilibrada
entre a compreensão da autonomia pública e autonomia privada. Para Habermas,
"essa concatenação interna (e recíproca) entre autonomia privada e pública,
quando a entendemos corretamente, constitui o âmago normativo do paradigma
procedimental".64
Em terceiro lugar, esta crítica habermasiana visa explicitar as debilidades
normativas dos modelos liberal e republicano, que, por exemplo, fixam de
antemão a escolha sobre o sentido da igualdade jurídica; ou fixam de antemão
quais assuntos são privados e quais são públicos. Com o paradigma
procedimental, a determinação do sentido da igualdade é lançada no campo
político de comunicação pública. O conteúdo da igualdade jurídica deve ser
considerado objeto de uma disputa política. Um conflito no qual o sentido da
igualdade é decidido num processo de comunicação pública, conduzido pelos
próprios participantes e possíveis afetados por meio do exercício público de
formação democrática da opinião e da vontade. O modelo deliberativo considera
os próprios concernidos como responsáveis pela definição dos critérios de
igualdade a serem aplicadas ao sistema de direitos.
Com isso, a fundamentação de igualdades materiais é incorporada na teoria
democrática como uma disputa política em torno do que precisa ser reconhecido.
Uma luta pelo reconhecimento jurídico de necessidades e exigências normativas
peculiares em relação ao conjunto de toda a comunidade jurídica, na qual os
grupos interessados procuram apresentar aos demais as experiências particulares
de exclusão social, discriminação e carências em vista do convencimento sobre a
necessidade de um tratamento jurídico formalmente diferenciado. Segundo o
princípio amplo da igualdade do conteúdo do direito, aquilo que é igual sob
aspectos relevantes deve ser tratado de modo igual, e aquilo que é diferente
deve ser tratado de modo diferente.65
Esta perspectiva procedimental abre a possibilidade de avaliação motivada pela
própria experiência sofrida com a não realização de direitos, das alternativas
existentes em relação à permanência no paradigma social ou um retorno ao
paradigma liberal. Nesse sentido, Habermas encontra a emergência do paradigma
procedimental já enraizada em algumas vertentes da prática jurídica
contemporânea, que se vê encurralada entre a crítica ao modelo social e a
rejeição do retorno ao modelo liberal.66 No entanto, é em certos
desenvolvimentos de movimentos feministas de esquerda norte-americanos que
Habermas encontra a melhor expressão das exigências normativas, da necessidade
de uma orientação procedimentalista da prática jurídica contemporânea: o
movimento feminista, ao ter experimentado as limitações específicas de ambos os
paradigmas anteriores, estaria agora em condições de negar a cegueira em
relação às desigualdades factuais do modelo paternalista social. Nesse caso, as
diferentes interpretações sobre a identidade dos sexos e suas relações mútuas
têm de se submeter a discussões públicas constantes, no qual as próprias
concernidas podem reformular o tema ou assunto em questão a ser reconhecido, e
elas mesmas decidirem quais as necessidades que precisam ser corrigidas pelo
medium do direito.67
As reformulações da década de 90 tomadas como ponto de partida e como fio
condutor da investigação habermasiana são um passo importante na readequação da
categoria de esfera pública às novas questões e problemáticas que vão sendo
incorporadas na discussão sobre o tema da esfera pública, suas características,
suas funções, seus portadores, suas articulações com outras esferas e
instâncias mediadoras. A reformulação da categoria de esfera pública no
"prefácio" de 1990 a Strukturwandel der Öffentlichkeit, e em Faktizitåt und
Geltung (com uma ênfase maior sobre o institucional, e a reformulação da noção
de sistema político, mais aberto e mais poroso), é uma tentativa de melhor
contextualizar e compreender as novas articulações mediadoras que emergiram
entre as esferas do mundo da vida e da sociedade civil, e as esferas
institucionais do sistema político e administrativo. Trata-se de reavaliar os
mecanismos de participação democrática, os elementos argumentativos e o peso
que exercem nos processos de formação da opinião e da vontade e nos novos
arranjos institucionais. Nesse sentido, Habermas pode não ter explicitado
nenhum destinatário em particular, mas as reformulações da esfera pública da
década de 90 resgatam a importância e o papel da sociedade civil, outorgando-
lhe o direito à participação e argumentação, ao impacto crescente da
reflexividade e à democracia formal. No entanto, é a partir deste cenário
teórico da nova compreensão da circulação do poder político, da concepção
deliberativa de esfera pública e de política, que também emergem as objeções
críticas mais contundentes sobre as implicações práticas, possibilidades de
efetividade e influência na institucionalização de reivindicações que emergem
das mais diversas organizações da sociedade civil, e que sejam capazes de
promover mudanças no sistema político. Vejam-se as controvérsias sobre as
possibilidades de uma esfera pública pós-nacional.
Nos "Estudos Preliminares e Complementos" e no "Posfácio" à quarta edição de
Faktizitåt und Geltung,68 na entrevista "Faktizitåt und Geltung. Ein Gespråch
über Fragen der politischen Theorie",69 e no "Apêndice a 'Faktizitåt und
Geltung'",70 Habermas retoma e busca elucidar as controvérsias acerca da esfera
pública e da política deliberativa, a relação entre esferas informais do mundo
da vida e as esferas formais do sistema político institucionalizado, e o modo
como no seu bojo se articula essa mediação. No entanto, parece-nos que esta
tentativa de melhor esclarecer a articulação entre a autocompreensão normativa
do estado de direito e a facticidade dos processos políticos já se movimenta
sob um modificado pano de fundo teórico da esfera pública. Depois da obra
Faktizitåt und Geltung, as discussões habermasianas sobre as possibilidades
práticas do modelo deliberativo de esfera pública foram aos poucos sendo
aplicadas para o campo político pós-nacional. Especialmente a partir de Die
Einbeziehung des Anderen (1996), são tematizadas novas questões e problemas
envolvendo a esfera pública, mas já pensadas e empregadas num contexto mais
amplo e vinculadas a temas como multiculturalismo, tolerância, reconhecimento,
redistribuição, fundamentalismo, secularização, entre outros.71 Mas, como
entender esse deslocamento? Seria uma nova reformulação? Seria uma
transferência? Ou seria um outro campo de aplicação? Ou como entendê-lo?
Parece-nos que a categoria de esfera pública e questões como a relação entre
autonomia pública e privada, entre soberania popular e direitos humanos, entre
democracia e Estado de direito, são pensadas num contexto aplicativo
modificado, o âmbito internacional (de uma esfera pública pós-nacional e de uma
teoria política universalista). Mas, isso precisa ser melhor investigado.
As recentes transformações nos panoramas social, político, econômico, cultural
e religioso, refletem uma nova dinâmica envolvendo estados nacionais que se
juntam em comunidades regionais e supranacionais, de sociedades pluralistas nas
quais a intolerância multicultural se agudiza, e na qual os cidadãos estão
sendo empurrados e incorporados involuntariamente numa sociedade mundial, e
classificados em centro e periferia. A expansão do debate sobre a esfera
pública para um âmbito global (Weltöffentlichkeit) significa que o contexto
teórico específico que até aqui serviu de base para a discussão e descrição das
possibilidades de uma esfera pública (cultura política comum engenhada no
âmbito territorial nacional, Estado-nação ou a autoridade do Estado como
endereço político do público, soberania popular, estado democrático de direito,
constituição, direito), já não seria mais suficiente para compreender a nova
dinâmica engendrada pelo processo de globalização do capital e da política em
termos internacionais, ou as repercussões em escala mundial como a queda do
socialismo de estado nos países do leste europeu que engendraram novas
experiências de democratização, o movimento feminista crescente em termos
mundiais, e os movimentos de democratização na China72 e na África.73 A
reorientação habermasiana para um âmbito temático pós-nacional visa discutir as
possibilidades e formas de um projeto constitucional de um estado democrático e
de democracia deliberativa que envolvam a esfera pública no nível global.
Habermas parte do princípio de que os estados nacionais não conseguem mais dar
conta dos problemas de legitimação da política, (ou dos efeitos colaterais de
outras esferas de ação, como a economia), decorrentes da movimentação
transnacional, e que acaba afetando, de uma forma ou de outra, os mecanismos de
legitimação institucionalizados nos estados nacionais. Nesta perspectiva, a
estrutura teórica de base da esfera pública formulada em Faktizitåt und Geltung
já necessitaria de uma outra reformulação: ser compreendida e aplicada nos
contextos europeu e global. Uma esfera pública deliberativa pós-nacional, de
dimensões ampliadas, seria uma arena mais adequada para a tematização de
problemas relevantes comuns, e para fornecer uma melhor solução aos atuais
problemas de legitimação enfrentados pelas instâncias normativas legais
internacionais institucionalizadas. A tese geral de Habermas é a compreensão de
uma esfera pública global como sendo uma extensão das características de uma
cultura política nacional, no entanto, apenas aplicadas para os níveis europeu
e mundial, respectivamente.
Desde a metade dos anos 90, Habermas e os teóricos da deliberação têm se
ocupado com as possibilidades e dificuldades de procedimentos deliberativos nas
arenas internacionais da esfera pública e da política. Por um lado, estudos
indicam que a categoria de esfera pública deliberativa provê uma perspectiva
analítica apropriada para analisar procedimentos deliberativos em pequenos
grupos; que questões de participação e deliberação funcionam melhor em
interações locais, conferindo modos mais efetivos de participação
democrática.74 Por outro lado, estudos indicam que há evidências de que a
concepção de esfera pública deliberativa provê uma perspectiva analítica
apropriada para analisar também procedimentos deliberativos nas esferas
nacionais e internacionais - embora nesse nível haja também falhas evidentes
nos procedimentos deliberativos de uma esfera pública política dominada por uma
comunicação pública mediada pelos meios de comunicação de massa e estruturas de
poder, pois as dinâmicas de comunicação de massa são dirigidas pelo poder
seletivo da mídia e pelo uso estratégico do poder social e político para
influenciar a triagem e o estabelecer da agenda dos assuntos públicos.75
Sendo assim, como os teóricos lidam com procedimentos deliberativos que se
estendem para além das interações simples e se configuram num contexto de
aplicação mais amplo, mais complexo e mais pluralista? Como conciliar a
necessidade de participação e de procedimentos deliberativos em contextos de
interação social que exibem um incremento impressionante no volume da
comunicação política, e que precisa lidar com dimensões tão ampliadas? Como são
pensadas a participação e a deliberação democrática no nível global? Como é
pensada a interconexão entre as esferas do mundo da vida situadas localmente
com processos de comunicação pública no nível global? Como poderia dar-se essa
conexão? Ao tematizar a Weltöffentlichkeit, Habermas ainda se move na chave
teórica da teoria dual da sociedade como sistema e mundo da vida? Embora
Habermas afirme que a deliberação na esfera pública, como um mecanismo de
solução de problemas e resolução de conflitos, ainda está fracamente
institucionalizada nesse nível, esta é uma outra questão que permanece aqui em
aberto e precisa ser melhor investigada.76