Kant e a hermenêutica moderna
A mesma interlocução permanente com a obra kantiana que tem permitido ao longo
do tempo a explicitação do sentido e da relevância de tantas teses kantianas
teve como resultado também o encobrimento de outras tantas, cujo destino parece
ser o esquecimento histórico. É o caso, por exemplo, das teses propriamente
hermenêuticas de Kant, que têm sido sistematicamente ignoradas por aquela linha
de desenvolvimento que culminou na elevação da hermenêutica a procedimento
metodológico fundamental do pensamento filosófico e, por conseguinte, do
pensamento em geral.
O presente trabalho visa contribuir para a recuperação da memória do papel que
as teses hermenêuticas de Kant desempenharam na constituição da hermenêutica
moderna, partindo para tanto, do seu esquecimento generalizado nos trabalhos
dos representantes mais significativos dessa hermenêutica, apresentando, em
seguida, os traços essenciais das teses hermenêuticas de Kant e de sua
aplicação na interpretação de textos bíblicos, para concluir com a indicação,
em linhas gerais, do lugar que deve ser atribuído a Kant na história da
hermenêutica moderna.
1 A difícil recepção das teses hermenêuticas de Kant no contexto da
hermenêutica moderna
A ideia de uma hermenêutica universal, portanto, capaz de abranger
metodologicamente o conjunto dos problemas relevantes do pensamento filosófico,
foi lançada pelos primeiros românticos alemães, particularmente por Friedrich
Schlegel, de quem é largamente tributário Friedrich Schleiermacher, considerado
em geral o fundador da hermenêutica moderna. Ora, o programa filosófico dos
primeiros românticos alemães situa-se precisamente no contexto das tentativas
de superação da filosofia crítica kantiana, superabundantes na última década do
século XVIII. Em sua origem, portanto, o programa de uma hermenêutica
universal, que se desenvolveria no século XX a partir da proposta de uma
"hermenêutica da facticidade" na obra de Heidegger, remonta a um momento
histórico em que começa a resistência ao pensamento crítico kantiano, podendo-
se considerar o método hermenêutico universalizado como um substituto do método
crítico universalmente empregado por Kant.
Tendo sua origem no afã de suplantar a filosofia kantiana, a hermenêutica
moderna sempre se pôs em cena como tendo definitivamente deixado para trás o
pensamento kantiano, o que teve como consequência o quase total esquecimento
das teses hermenêuticas espalhadas pelas obras de Kant. Tanto isso é verdade
que o resgate de uma possível hermenêutica em perspectiva crítica, a ser feito
aqui em seguida, acaba tendo algo de arqueológico. Trata-se de mostrar que Kant
lançou os fundamentos também de uma hermenêutica futura que pudesse ser
sustentada nos limites de uma filosofia crítica, e que hoje nos aparece como
mais um destes projetos de futuro agora passados de que está cheio o século
XVIII.
Como tese geral, entretanto, a importância de Kant para o desenvolvimento da
hermenêutica moderna foi reconhecida por alguns de seus representantes mais
clássicos, como Dilthey, Heidegger e Gadamer. Dilthey foi o primeiro a
registrar a presença da filosofia kantiana no espaço de fundação da
hermenêutica moderna. Em sua biografia de Schleiermacher, de 1860, Dilthey
recapitula os estágios que levam de Kant a Schleiermacher, enfatizando a
importância de alguns aspectos do texto A religião nos limites da simples razão
para os desenvolvimentos subsequentes. Para ele, o escrito de Kant sobre a
religião é um marco na história da exegese bíblica e, por conseguinte, da
hermenêutica: "Este escrito de Kant constitui uma virada decisiva da
compreensão da Sagrada Escritura. O fato, o dogma, o artigo de fé não são nada
como tais; eles apenas são algo na medida em que aparece neles a idéia moral-
religiosa. Levando-se rigorosamente a sério este princípio, também o conteúdo
da Bíblia só pode ter seu valor nesta relação. A tarefa do doutrinário da
religião é, portanto, relacionar cada passagem àquela idéia; ela tem de ganhar
essa relação. Ao ganhá-la, entretanto, na medida em que o mais poderoso
espírito desde Leibniz luta com o cabedal de idéias da Escritura, levanta-se
aqui pela primeira vez desde a Reforma uma intuição básica da Escritura, a
teologia bíblica do idealismo, com base na contraposição do mal radical e da
santidade da lei moral."2 Como relevante para o desenvolvimento da
hermenêutica, entretanto, Dilthey considera, não tanto a proposta kantiana de
uma interpretação moral das narrativas bíblicas, portanto o conteúdo da
inovação introduzida pela filosofia crítica, mas antes a simples renovação
formal da ideia de uma interpretação unitária dos textos bíblicos: "Pela
primeira vez, volta-se a interpretar o todo da Escritura a partir de um único
espírito que permeia o todo. Esta orientação da exegese, entretanto, no sentido
de compreender a Escritura como um todo orgânico que cresce de uma substância
unitária se coloca como segunda e igualmente digna orientação ao lado daquela
voltada para o tratamento filológico dos textos singulares. E como renovador
desta orientação, não como o autor daquela infeliz assim chamada 'interpretação
moral', Kant ocupa uma posição que fez época na história da hermenêutica."3 Em
sua biografia de Schleiermacher, então, Dilthey expõe o desenvolvimento
consequente desta ideia de uma interpretação unitária na hermenêutica
schleiermacheriana, deixando patente a importância da filosofia kantiana para a
constituição de uma hermenêutica moderna.4
Apesar de em sua biografia de Schleiermacher ter registrado a posição de Kant
no desenvolvimento da hermenêutica moderna, Dilthey acabou posteriormente
enquadrando a filosofia crítica kantiana num esquema que mostra a influência do
neokantismo: o essencial da contribuição de Kant é sua crítica da razão pura,
cujo núcleo duro seria a crítica ou a teoria do conhecimento das ciências
naturais. Recapitulando o desenvolvimento da hermenêutica moderna, Gadamer
apontava para esta limitação da leitura que Dilthey faz de Kant em sua obra
madura: "A ambição de Dilthey de colocar a crítica da razão histórica ao lado
da crítica kantiana e a teoria neokantiana de Windelband e Rickert de um
conhecimento histórico sob a idéia sistemática de um reino dos valores
testemunham à sua maneira a supremacia da crítica kantiana. Mas estão longe de
corresponder à autocompreensão de Kant segundo a qual ele teria indicado os
limites do saber para ganhar lugar para a fé."5 Enquadrando Kant no cenário da
disputa entre ciências naturais e históricas do lado dos pensadores dos
fundamentos da ciência natural, Dilthey desperdiça a oportunidade de situá-lo
no contexto mais amplo do desenvolvimento da nova hermenêutica. O dito kantiano
de que foi necessário determinar os limites do conhecimento para deixar um
lugar para a fé diz respeito precisamente à intenção sistemática mais
abrangente de Kant, cuja envergadura não se deixa visualizar na Crítica da
razão pura, mas que se mostra decisiva nas obras posteriores voltadas para a
filosofia prática e a estética. É neste contexto mais amplo, geralmente
ignorado pelo neokantismo do séc. XIX, que se encontram as bases daquela
proposta de interpretação de textos bíblicos em termos da moralidade, cuja
intenção unitária foi devidamente identificada como um marco histórico do
desenvolvimento da hermenêutica pelo jovem Dilthey.
Ainda em sua última obra, A construção do mundo histórico nas ciências do
espírito, de 1910, Dilthey situa a realização de Kant sobretudo na análise dos
fundamentos da ciência da natureza, apesar de registrar en passant também a
importância da filosofia kantiana para o desenvolvimento da consciência
histórica: "A nova teoria da história teve naturalmente seu duplo ponto de
partida no idealismo filosófico alemão e na revolução da ciência histórica.
Comecemos pelo primeiro. Tinha sido o problema de Kant saber como se poderia
encontrar no transcurso histórico um encadeamento unitário, "uma marcha
regular". Ele não pergunta, à maneira da teoria do conhecimento, pelas
condições do encadeamento existente na ciência dada, mas sua pergunta vai no
sentido de saber como se poderia derivar a priori da lei moral, a que está
submetido todo agir, princípios para a concepção do material histórico.6
Dilthey reconhece assim, não só a importância da filosofia da história de Kant
para o desenvolvimento da subsequente teoria da história, mas inclusive o
princípio que norteia uma investigação kantiana naqueles âmbitos que não se
deixam reduzir à ciência físico-matemática, a saber, o princípio da moralidade.
Com isto, entretanto, é reconhecido que Kant inaugura na verdade um
desenvolvimento ainda em curso na época de Dilthey: "A importância de Kant
neste domínio consiste, portanto, inicialmente em ter aplicado o ponto de vista
da filosofia transcendental à história, inaugurando assim uma concepção
duradoura da história cuja essência consiste no estabelecimento de um critério
absoluto fundamentado na essência da própria razão, de um incondicionado como
valor ou norma."7 Para precisar o lugar de Kant no desenvolvimento da
consciência histórica, esse reconhecimento da importância da exigência kantiana
de um tratamento unitário do material sob o critério da lei moral deveria ter
fornecido o fio condutor da investigação de Dilthey. Em vez disto, no entanto,
Dilthey se atém no resto do texto à sua correlação entre ciências naturais,
para as quais Kant teria estabelecido os princípios a priori, e ciências
históricas, nas quais a revolução deveria vir de Dilthey: "Kant partiu dos
fundamentos que se encontram na lógica formal e na matemática para o tratamento
do problema do conhecimento. [...] A grandeza de sua realização consistiu numa
análise completa do conhecimento matemático e das ciências naturais. Mas a
questão é se uma teoria do conhecimento da história, que ele próprio não
forneceu, é possível nos moldes de seus conceitos."8 A resposta de Dilthey a
essa última questão naturalmente continua negativa, o que desloca, contudo, o
lugar adequado para a investigação. Pois a questão não deveria ser se é
possível uma teoria do conhecimento histórico nos moldes da filosofia crítica
kantiana, mas em que medida a exigência de um tratamento unitário do material
histórico formulada por Kant influenciou o desenvolvimento da filosofia e, por
fim, da teoria da história.
Como lembrava ainda Gadamer, a redescoberta de uma intenção mais profunda ou
mais abrangente da filosofia kantiana veio com o programa heideggeriano de uma
hermenêutica da facticidade, que, dando novo alento à tradição hermenêutica,
acabaria surpreendentemente resgatando um Kant até então ignorado: "Entretanto
a intenção própria de Heidegger, que acompanhava sua retomada da problemática
hermenêutica das ciências teológicas e históricas, haveria de se impor
rapidamente e, assim, despertar de maneira surpreendente para uma nova
atualidade o Kant originário contra seus sucessores especulativos."9 O que a
recepção de Kant por seus sucessores e pelo neokantismo ajudou a encobrir se
encontra no cerne da filosofia transcendental kantiana, a saber, a necessária
referência do entendimento ou da razão à intuição no caso de pretender chegar
ao conhecimento de seu objeto. Essa necessária referência constitui já em Kant
o fator principal de uma limitação de toda pretensão cognitiva ao âmbito da
experiência. Heidegger retoma esta tese kantiana no intuito de reforçar sua
filosofia da finitude, que encontra na hermenêutica da facticidade seu
arcabouço metodológico apropriado. Pode, assim, avançar decisivamente além
daquilo que se pretendia saber de Kant até o neokantismo: "No caminho de seu
aprofundamento ontológico do programa da filosofia da vida e em meio a toda a
crítica da filosofia da consciência da modernidade, Heidegger descobre então
repentinamente Kant. E, na verdade, justamente aquilo em Kant que o neokantismo
e seu acabamento fenomenológico tinham encoberto: a dependência do dado.
Justamente porque a existência humana não é um autoprojeto livre, uma auto-
realização do espírito, mas ser para a morte, e isso significa essencialmente
finita, Heidegger pode reconhecer na doutrina kantiana da inter-relação de
intuição e entendimento e da limitação um prenúncio de suas próprias idéias."10
A leitura inicial que Heidegger faz de Kant, em particular da Crítica da razão
pura, é marcada precisamente por este propósito de mostrar, contra o
neokantismo oitocentista, que a filosofia transcendental confere um certo
primado ao elemento intuitivo. A tendência fundamental da leitura neokantista
de Marburgo, que constitui o alvo principal da crítica de Heidegger, é a
redução da intuição ao pensamento puro, tendência muito forte particularmente
em Cohen e Natorp. Heidegger entra na discussão defendendo precisamente o
contrário: "o segundo elemento, o pensamento puro, ocupa em relação à intuição
essencialmente uma posição de serviço. Ao pensamento puro pertence, pois,
essencialmente, e não acidentalmente e por acréscimo, a dependência em relação
à intuição pura."11 Marcando na crítica kantiana o momento da essencial
finitude das pretensões cognitivas de todo o nosso pensamento, a tese da
necessária referência do pensamento à intuição na constituição do conhecimento
objetivo é resgatada por Heidegger como princípio de sua interpretação do
projeto kantiano tanto em Kant e o problema da metafísica, publicado em 1929,
quanto em A interpretação fenomenológica da Crítica da razão pura de Kant,
lições publicadas apenas postumamente, em 1977, mas proferidas no semestre de
inverno entre 1927 e 1928.12 Em ambas as exposições, Heidegger acompanha Kant
até o capítulo do esquematismo transcendental, para mostrar até que ponto a
filosofia transcendental chegou à consciência da essencial temporalidade de
nosso conhecimento ao expor os esquemas da imaginação transcendental ou da
intuição pura.
O resgate da tese capital da filosofia transcendental kantiana, a saber, da
necessária inter-relação entre entendimento e intuição, como prenúncio da nova
hermenêutica da facticidade constitui certamente um capítulo importante na
ampliação da compreensão da filosofia kantiana como um todo, mas não leva a
suplantar o encobrimento da relação histórica original entre a crítica kantiana
e a hermenêutica moderna, pois não chega sequer a descortinar o horizonte
prático em que se situam as teses propriamente hermenêuticas de Kant. Tal como
ocorre em Dilthey, também Heidegger retoma o projeto da crítica kantiana no
domínio teórico, superando sem dúvida a estreiteza da interpretação
neokantista, mas sem abandonar a limitação da análise a um âmbito que não
permite ainda situar o que Kant dizia a propósito da interpretação. A filosofia
transcendental kantiana pode aparecer, assim, como precursora em certa medida
daquilo que Heidegger pretende realizar em termos de conteúdo, a saber,
recuperar a questão central de uma ontologia fundamental acerca do ser do ente,
ficando inteiramente esquecido o lugar que as teses hermenêuticas de Kant
ocupam na história daquele desenvolvimento da consciência do problema
metodológico colocado pelo saber histórico, no fim do qual a hermenêutica pode
adquirir o status de procedimento metodológico fundamental.13 A contribuição da
crítica kantiana na constituição de uma hermenêutica moderna que culminaria no
projeto heideggeriano de uma hermenêutica da facticidade permanece, assim,
inteiramente encoberta e esquecida.
Representantes tardios da nova hermenêutica, como Gadamer e Ricoeur, apenas
repetem, no concernente ao tópico aqui abordado, a linha de leitura introduzida
por Dilthey e Heidegger, podendo ser constatado que na historiografia da
hermenêutica moderna os textos em que Kant apresenta suas teses propriamente
hermenêuticas e mostra como podem ser aplicadas são ignorados, voltando-se
sempre à ideia diltheiana de que Kant realizou uma revolução na compreensão das
ciências naturais que deve ser complementada por uma revolução semelhante na
compreensão das ciências históricas e do espírito, para a qual, entretanto,
Kant não teria contribuído em nada.
O resgate das teses hermenêuticas de Kant e sua colocação no contexto
constitutivo da nova hermenêutica levam, contudo, à conclusão oposta, tratando-
se em seguida de apontar para este cenário em que se descortina uma outra
versão da história da hermenêutica moderna.
2 Interpretação <Auslegung, Deutung> em Kant
Como já apresentei em outro lugar o essencial da hermenêutica crítica
kantiana,14 limito-me neste tópico a retomar o que foi dito lá a propósito da
interpretação propriamente dita. As formulações mais gerais de Kant sobre
interpretação, exegese e hermenêutica são encontradas em seu opúsculo O
conflito das faculdades, publicado em 1798. Tratando de delimitar as
competências respectivas da faculdade de Filosofia e das faculdades superiores
de Teologia, Direito e Medicina, Kant explicita em relação à Teologia o que
constitui a contribuição específica da Filosofia para a interpretação de textos
religiosos, defendendo o procedimento que adotara em seu texto de 1793 sobre A
religião nos limites da simples razão. Diante da tradição teológica, trata-se,
portanto, para o filósofo, de estabelecer "princípios filosóficos da
interpretação da Escritura" (AA VII, 38),15 formulando-se a "regra suprema da
interpretação <Interpretation" (AA VII, 41) nos seguintes termos: "Passagens
que contêm certas doutrinas teóricas, anunciadas como sagradas, mas que
ultrapassam todo conceito racional (até mesmo o prático) podem, aquelas
passagens, entretanto, que contêm proposições que contradizem à razão prática
devem ser interpretadas em favor da última" (Der Streit der Fakultåten, AA VII,
38). Essa regra formula a pretensão da razão a se constituir como autoridade
suprema também no âmbito da interpretação de textos religiosos, desdobrando-se
em duas partes. Com a primeira parte da regra, concernente àquelas narrativas
cujo sentido literal ultrapassa os limites da razão sem, no entanto, entrar em
contradição com os princípios racionais, torna-se disponível para a
interpretação racional o conjunto dos textos sagrados, seja aqueles que já se
atêm ao "conceito racional", seja aqueles que o ultrapassam, exigindo assim uma
interpretação racional. Com a parte final da regra, concernente àquelas
narrativas que entram em contradição com a razão, é mesmo formulado um
princípio de intervenção no âmbito das interpretações religiosas, devendo ser
combatido o desdobramento irracional e sugerida uma interpretação racional
dessas narrativas.
Apesar do enorme desafio que um tal princípio racional de interpretação
constitui para uma teologia tradicional e dogmática, Kant acredita poder contar
com o apoio de uma faculdade teológica esclarecida, pois mesmo os teólogos
concederiam, ao distinguir entre expressão humana e sentido divino, que "a
razão é, em matérias religiosas, a intérprete <Auslegerin> suprema da
Escritura" (AA VII, 41). Esta expectativa de Kant só se justifica diante do
desenvolvimento que a teologia protestante sofreu desde a Reforma até a Época
das Luzes, dando margem à esperança de que um dia a própria teologia se
harmonizaria plenamente com a razão. No contexto da proibição de se manifestar
sobre assuntos religiosos, sofrida por Kant em 1794, trata-se aqui, não de uma
ingenuidade, mas de uma expectativa motivada pela própria razão.
Em termos de técnica interpretativa, a regra mencionada pressupõe a distinção
entre o sentido literal de uma narrativa e o sentido que se estabelece pela
interpretação.16 Assim, as narrativas bíblicas podem ser "tomadas como
verdadeiras literalmente <buchståblich für wahr gehalten" ou "interpretadas de
certa maneira <doch so ausgelegt" (Der Streit der Fakultåten, AA VII, 41). Ao
"sentido literal <der buchståbliche Sinn" (AA VII, 41) podem ser contrapostos
sentidos estabelecidos por interpretação, por exemplo, mediante "a idéia de uma
interpretação filosófica da Escritura" (AA VII, 44). Assim, a interpretação que
Kant sugeriu em A religião nos limites da simples razão é uma aplicação dessa
ideia de uma interpretação filosófica da Escritura, tendo como fio condutor o
princípio da moralidade. O sentido literal é designado também "a letra",
contrapondo-se-lhe "o espírito" (Cf. AA VII, 64), que na interpretação kantiana
é o sentido moral. A crença no sentido literal ou na mera letra da narrativa "é
morta em si mesma" (AA VII, 66), enquanto só o espírito ou a crença no sentido
moral vivifica e torna bem-aventurado (Cf. AA VII, 67).
Abrindo os textos bíblicos para o campo das interpretações, a regra da
interpretabilidade dos textos e discursos religiosos leva naturalmente ao
desenvolvimento de uma técnica da interpretação, a fim de suplantar a total
arbitrariedade que se estabeleceria com interpretações sem nenhum critério.
Esta técnica é a hermenêutica, cujo desenvolvimento inicial se dá como "arte/
técnica da interpretação <Auslegungskunst> bíblica (hermenêutica sacra)" (AA
VII, 66). A hermenêutica pode tomar o texto sagrado como autêntico, quer dizer,
como expressando a intenção do autor, caso em que "a interpretação tem de ser
adequada literalmente (filologicamente) ao sentido do autor" (AA VII, 66), ou
então em sentido doutrinal, quando o intérprete "tem a liberdade de atribuir à
passagem (filosoficamente) aquele sentido que ela adquire na exegese em
perspectiva prático-moral" (AA VII, 66). Ora, tão somente a interpretação
doutrinal adota como critério o progresso moral dos povos, enquanto a
interpretação literal se aferra ao sentido literal das narrativas,
menosprezando mesmo a possibilidade de que seus autores tenham se equivocado ou
representem um estágio pouco desenvolvido do conhecimento e da moralidade:
"Portanto o único método bíblico-evangélico de instruir o povo na verdadeira
religião interior e universal é tão-somente aquela interpretação doutrinal que
não exige conhecer (empiricamente) qual sentido o autor sagrado pode ter dado a
suas palavras, mas qual doutrina a razão pode ocasionalmente atribuir (a
priori) a um trecho da Bíblia em perspectiva prática" (Der Streit der
Fakultåten, AA VII, 67).
O conflito das faculdades explicita, assim, os princípios filosóficos da
interpretação de narrativas religiosas, fornecendo finalmente o fundamento da
interpretação filosófica de algumas dessas narrativas apresentada por Kant em A
religião nos limites da simples razão. Essa obra visa uma interpretação
unitária das narrativas bíblicas sob o princípio único da moralidade. A
filosofia moral kantiana abriu também espaço para uma religião racional ou uma
fé moral, na perspectiva da complementação das exigências rigorosas da razão
prática pura num ser limitado e mesclado com elementos sensíveis como é o ser
humano. A Crítica da razão prática reconhece a necessidade de um ser racional
finito acreditar na existência de Deus, introduzindo-a como um postulado da
razão prática e autorizando, assim, a crença religiosa e o cultivo de uma
religião racional em perspectiva moral. Ora, historicamente seres racionais
finitos como os homens sempre já se deparam com crenças empiricamente
constituídas, nas quais os povos satisfazem aquela "necessidade natural de
todos os homens de obter para os supremos conceitos e fundamentos racionais
sempre algo sensivelmente seguro, uma confirmação qualquer da experiência etc."
(Die Religion, AA VI, 110). Historicamente, portanto, a autorização do cultivo
da religião racional visando a complementação sensível das exigências da razão
leva à necessidade de harmonizar aquelas crenças empíricas com o fundamento da
fé moral, tornando indispensável a hermenêutica, pois "para tanto é exigida uma
interpretação <Auslegung> da revelação que chegou até nós, i. é, uma completa
interpretação <Deutung> da mesma em um sentido que concorda com as regras
práticas universais de uma religião racional" (Die Religion, AA VI, 110). Está
respondida assim a questão que Kant formula em nota: "pergunto se a moral deve
ser interpretada segundo a Bíblia ou antes a Bíblia deve ser interpretada
segundo a moral" (Die Religion, AA VI, 110 nota). Sendo o fim de toda atividade
racional a promoção da moralidade, a complementação sensível que a razão
prática pura encontra nas narrativas bíblicas só será autorizada segundo o
princípio da própria moralidade: "Uma vez que o aprimoramento moral do homem
constitui propriamente o fim de toda religião racional, essa conterá também o
princípio supremo de toda interpretação da Escritura" (Die Religion, AA VI,
112).
O princípio da moralidade constitui, portanto, o critério de uma interpretação
unitária das narrativas bíblicas com a qual Kant marca presença na história da
exegese bíblica e da hermenêutica em geral. Pois este procedimento
interpretativo com base em um critério único suplanta a arbitrarieridade e a
aleatoriedade que o princípio da interpretabilidade das narrativas traz
consigo. A hermenêutica kantiana opera segundo um princípio que lhe permite
determinar de maneira unificada "o sentido que damos aos símbolos da fé popular
ou também dos livros sagrados" (Die Religion, AA VI, 111). Os símbolos da
crença popular são produtos da fantasia ou imaginação dos povos, tendo em geral
um sentido literal na própria representação popular. Na medida em que "a
religião racional pura tem de ser a intérprete" (Die Religion, AA VI, 160)
desses símbolos para que sejam adequados à simbolização dos conceitos da razão
prática pura, ela não pode se ater ao sentido literal que a crença popular
geralmente lhes confere, mas também não pode simplesmente ignorar a
representação dos povos, tratando-se de lhe "atribuir um sentido espiritual
[...] sem entrar em conflito com o sentido literal da fé popular" (Die
Religion, AA VI, 111).
As narrativas religiosas, os símbolos da crença popular, constituem em geral
"artigos de fé <Glaubensmeinungen> [...] nas quais não se consegue alcançar de
forma alguma qualquer concordância se não se apela para a razão pura como
intérprete" (Die Religion, AA VI, 130). Ao longo do texto sobre a religião,
quando a razão pura opera como intérprete, encontra-se explicitado este
procedimento interpretativo em formulações como "dar-lhe a última
interpretação" (AA VI, 113) ou "isto pode certamente ser interpretado assim"
(AA VI, 121 nota) ou ainda: "pode-se interpretá-lo como uma representação
puramente simbólica" (AA VI, 134). Em todos estes casos, a interpretação
consiste em conferir um sentido moral ou puramente racional àqueles produtos da
fantasia popular que constituem as narrativas religiosas.
3 O lugar de Kant na história da hermenêutica moderna
Desde os pioneiros trabalhos de Dilthey sobre Schleiermacher, reconhece-se a
importância de Kant na constituição da hermenêutica moderna, mas não se lhe
confere o lugar devido em sua história. Como apontou Dilthey, o propósito
kantiano de interpretar segundo um princípio único os textos sagrados
descortinou o horizonte daquilo que viria a constituir a nova hermenêutica,
chamando a atenção em pleno final de Século XVIII para a importância e as
potencialidades contidas em narrativas religiosas e mitológicas. O que na
perspectiva do esclarecimento setecentista tendia a ser reduzido a um material
histórico morto e improfícuo, quando não pernicioso, volta a ganhar relevância
e a constituir ponto de partida de uma elaboração viva do espírito, desde que
submetido ao princípio da interpretabilidade que animará a nova hermenêutica.
Viu-se na seção anterior com que empenho e coerência Kant defendeu esse
princípio.
Situando-se o ato fundador da hermenêutica moderna no primeiro romantismo
alemão, com referência particularmente em Fr. Schlegel e Schleiermacher, pode-
se mostrar, entretanto, que a influência de Kant neste contexto vai além de uma
mera inspiração longínqua, como sugere o enquadramento proposto por Dilthey. Na
verdade, teses kantianas fundamentais neste âmbito entraram para o cabedal
definitivo da hermenêutica através de Schlegel e Schleiermacher, ambos leitores
assíduos de Kant na época em que firmaram os princípios de sua hermenêutica
(1797-1799). Uma lista completa dessas teses incorporadas ainda está por ser
estabelecida, mas duas delas adquiriram tal proeminência, que é difícil ignorar
sua presença nos textos de Kant. Trata-se da tese de que a tradição exegética
pode basear-se num mal-entendido, portanto, da tese da possibilidade do erro, e
da tese de que é possível entender um autor melhor do que ele próprio se
entendia. Nos textos de Schlegel e Schleiermacher sobre hermenêutica, as duas
teses são desenvolvidas nas mais variadas formulações, tratando-se aqui de
mostrar sua origem no texto kantiano.
Antes disto, entretanto, será interessante ainda apontar para um terceiro tema
caro à hermenêutica e que encontra em Kant igualmente algumas indicações
relevantes. Trata-se neste caso da relação entre o princípio da interpretação e
a filologia. Apesar de Kant sugerir em várias passagens que o aspecto histórico
das narrativas interpretadas é indiferente para a interpretação racional,
encontram-se também trechos que reconhecem a importância do conhecimento do
sentido literal dos textos interpretados. Na perspectiva do princípio da
interpretabilidade, ou seja, para a simples interpretação moral dos textos
sagrados, não é necessário mostrar que seus autores tenham tido essa intenção,
mas é suficiente "admitir tão-somente a possibilidade de entender desta maneira
os autores dos mesmos" (Die Religion, AA VI, 111). Pois o objetivo da leitura e
da interpretação destes textos deve ser sempre tornar os homens melhores, sendo
de menor importância os detalhes históricos: "a leitura destes textos sagrados
ou a investigação de seu conteúdo tem por intenção última fazer homens
melhores; mas o histórico que não contribui para tanto é algo em si totalmente
indiferente, que se pode tomar como se quiser" (Die Religion, AA VI, 111).
Apesar de o princípio da interpretabilidade dos textos sagrados constituir,
assim, o princípio supremo da leitura e do estudo destes textos, parecendo
dispensar completamente a informação histórica e filológica, Kant admite a
importância também da crítica histórica e da filologia para a interpretação dos
textos, incluindo o conhecimento das respectivas línguas: "Pois como o inculto
que só os pode ler em traduções quer ter certeza do sentido dos mesmos? Por
isto, o intérprete, que também domina a língua original, tem de possuir ainda
vasto conhecimento histórico e crítica para retirar do estado, dos costumes e
das opiniões (da fé popular) daquele tempo os meios com os quais pode ser
aberto o entendimento da comunidade" (Die Religion, AA VI, 112). Ao intérprete
racional, portanto, "junta-se ainda um outro, mas subordinado, a saber, o
filólogo <Schriftgelehrte" (Die Religion, AA VI, 112), cabendo a ambos a tarefa
de cuidar dos textos sagrados: "Religião racional e filologia
<Schriftgelehrsamkeit> são, portanto, os verdadeiros intérpretes e depositários
de um documento sagrado" (Die Religion, AA VI, 113).
Na Antropologia, concede-se mesmo a necessidade de interpretar literalmente os
autores quando se trata de investigar a intenção que possam ter tido na redação
de seus textos. O princípio da interpretação racional não é comprometido com
isso, tratando-se sempre de alcançar o sentido racional e moral que os textos
comportam: "Constitui esclarecimento distinguir, na apresentação dos conceitos
pertencentes à moralidade que perfaz a essência de toda religião, portanto dos
conceitos pertencentes à razão pura (chamados idéias), o simbólico do
intelectual (culto divino de religião), a roupagem, por algum tempo útil e
necessária, da própria coisa; pois do contrário um ideal (da razão prática
pura) seria trocado por um ídolo, frustrando-se o fim último. - Não há dúvida
de que todos os povos da Terra começaram com essa troca e que, tratando-se
daquilo que seus doutrinadores realmente pensaram na redação de seus textos
sagrados, não se deve interpretá-los simbolicamente, mas literalmente, pois
seria desonesto torcer suas palavras. Tratando-se, no entanto, não apenas da
veracidade do doutrinador, mas também e essencialmente da verdade da doutrina,
pode-se e deve-se interpretá-los como modo de representação meramente simbólico
[...]; pois do contrário seria perdido o sentido intelectual que constitui o
fim último" (Anthrop. § 39, AA VI, 192). Para o desenvolvimento subsequente da
hermenêutica, tanto a dimensão da veracidade dos autores quanto a da verdade de
seus textos, a filologia e a interpretação racional, constituem partes
indispensáveis de um mesmo projeto hermenêutico, aprofundando-se ao mesmo tempo
a investigação filológica, que acarreta o desenvolvimento da crítica histórica
e filológica, e a interpretação em vista de uma unidade superior.
Voltando-nos, finalmente, para aquelas teses repercutidas incessantemente pela
hermenêutica moderna, vemos Kant insistir na possibilidade de um mal-entendido
na interpretação tradicional dos textos sagrados, o que retira o fundamento da
certeza numa fé baseada meramente na tradição histórica. Por mais que o crente
viva na convicção de que os dogmas de sua crença são oriundos de uma revelação
divina, ele não pode ter certeza disso, pois seu conhecimento a respeito se
baseia numa cadeia histórica: "A revelação chegou até ele tão-somente através
de homens e por eles interpretada [...] sendo ao menos possível que se imponha
aqui um erro" (Die Religion, AA VI, 187). Assim, toda fé baseada meramente na
tradição e no legado histórico está exposta ao princípio da incerteza que
decorre do fato de "que sempre resta a possibilidade de que se encontre nisso
um erro" (Die Religion, AA VI, 187). Enquanto a convicção do crente não tem
outro fundamento a não ser as demonstrações históricas, não pode ser obrigado
nem deve querer obrigar os outros a admitir dogmas cujo único fundamento é a
tradição histórica, pois isso implicaria uma limitação do juízo imposta num
caso em que não há razão suficiente para a certeza, visto que "sempre resta a
absoluta possibilidade de um erro cometido em sua interpretação clássica" (Die
Religion, AA VI, 187). Ora, um erro de interpretação constitui bem um mal-
entendido (Missveståndnis) e interpretar um texto erroneamente é simplesmente
entendê-lo mal (missvestehen). Quando Schlegel e, mais tarde, Schleiermacher
partem do princípio de que é preciso primeiramente desfazer os mal-entendidos
tradicionais, estão de fato reverberando uma tese kantiana no âmbito da
hermenêutica.
O mesmo acontece com a paradoxal tese de que é possível entender um autor
melhor do que ele próprio se entendia. Em Schlegel, por exemplo, a tese é
variada e sofisticada, como no fragmento 401 da série publicada na revista
Athåneum: "Para entender alguém, temos de ser, em primeiro lugar, mais esperto
do que ele, em seguida, igualmente esperto, e então também igualmente burro.
Não basta que se entenda o sentido próprio de uma obra confusa melhor do que o
autor a entendeu. É preciso conhecer também a própria confusão até os
princípios e saber caracterizá-la e mesmo construí-la."17 Nos apontamentos de
Schlegel por ocasião de suas leituras de Kant nos anos 1790, encontram-se
diversas formulações que operam com a possibilidade de ir além do próprio autor
na compreensão de um texto. A inspiração kantiana dessas formulações é
inequívoca e, levando em consideração o lugar proeminente que a tese ocupa na
Crítica da razão pura, também compreensível. Pois Kant a introduz no momento em
que passa a investigar as ideias da razão, procurando inicialmente um termo
adequado para dar expressão aos conceitos próprios da razão. Ou seja, a tese é
proposta num preâmbulo metodológico que diz respeito simplesmente ao sentido
geral daquelas representações que constituem o alvo primordial dos
desenvolvimentos filosóficos pós-kantianos tanto no romantismo quanto no
idealismo alemães, a saber, os conceitos ou ideias da razão em contraposição
aos meros conceitos da experiência ou do entendimento. Kant lembra neste
contexto que Platão se valera da expressão 'ideia' para caracterizar, segundo a
compreensão de Kant, um pensamento que ultrapassa os conceitos do entendimento
a ponto de não ser possível encontrar na experiência algo que lhe corresponda.
Parecendo-lhe adequada a expressão, Kant a adota para designar os conceitos
puros da razão, sendo-lhe indiferente, entretanto, se foi esse o sentido que
Platão de fato lhe deu. Assim como na interpretação de narrativas religiosas,
Kant faz valer também em relação a textos filosóficos o princípio da
interpretabilidade, chegando a sugerir que é mesmo possível entender um autor
melhor do que ele próprio se entendia: "Não quero aqui me enredar numa
investigação literária para estabelecer o sentido que o sublime filósofo ligou
à sua expressão. Apenas observo que não é nada incomum, tanto na conversa
ordinária quanto em textos, através da comparação dos pensamentos que um autor
externa sobre seu objeto, entendê-lo mesmo melhor do que ele próprio se
entendeu, na medida em que não determinou suficientemente seu conceito e,
assim, por vezes falou ou também pensou contra sua própria intenção" (KrV,
A313-4/B370). Kant não aplica a Platão, entretanto, a tese introduzida neste
contexto, limitando-se a registrar a proveniência platônica do termo 'ideia'
que passa a empregar para designar os conceitos da razão. A elaboração e a
aplicação da tese de que é possível entender um autor melhor do que ele mesmo
se entendia será uma tarefa importante da geração seguinte, constituindo
elementos fundamentais da nova hermenêutica.
A aplicação do princípio da interpretabilidade a textos ou discursos
filosóficos é feita por Kant em outra ocasião, tratando-se da defesa de um
autor contra os mal-entendidos propostos por seus intérpretes tradicionais,
algo que também será prática comum na nova crítica que se estabelece com o
primeiro romantismo alemão. Respondendo a ataques de Eberhard contra a crítica
da razão pura, Kant defende Leibniz das distorções inconsequentes a que seu
pensamento é submetido na interpretação do wolffiano Eberhard. Numa estratégia
de defesa surpreendente, Kant se recusa a tomar a interpretação eberhardiana
(e, portanto, wolffiana) do pensamento de Leibniz como adequada, uma vez que
levaria a lhe atribuir uma falta de coerência que, na verdade, compromete
apenas a interpretação. Na defesa da filosofia crítica contra os ataques dos
leibnizo-wolffianos, Kant desloca, assim, o debate para a arena dos conflitos
de interpretações, sugerindo mesmo que a crítica da razão pura permite colocar
numa luz mais favorável o pensamento de Leibniz e de outros antigos, ao removê-
los do contexto das interpretações banais e interpretá-los a partir da única
fonte disponível na compreensão filosófica: "Assim, pois, a crítica da razão
pura bem poderia ser a verdadeira apologia do próprio Leibniz, contra seus
adeptos que o enaltecem com elogios nada honrosos; como ela pode, aliás, ser
também para vários filósofos mais antigos, aos quais muito historiador da
filosofia, apesar de todo o louvor que recebem, faz dizer disparates cuja
intenção não adivinha, descuidando a chave de todas as interpretações de
produtos da razão pura com base em meros conceitos, qual seja, a própria
crítica da razão (como a fonte comum de todos), e deixando de ver, de tanto
investigar literalmente o que aqueles disseram, aquilo que queriam dizer" (Über
eine Entdeckung, AA VIII, 250-1). Anuncia-se, neste procedimento de defesa de
um clássico da filosofia moderna, uma nova perspectiva no âmbito da
interpretação dos textos filosóficos, uma perspectiva que será amplamente
explorada pelos românticos e pelos idealistas alemães, culminando então na
grande síntese de Hegel. O afã dos posteriores de se anunciarem como os arautos
do novíssimo pensamento levou sempre ao esquecimento da origem próxima dos
procedimentos de interpretação filosófica, que tão profícuos se mostraram para
o próprio pensamento filosófico. Ao historiador da filosofia compete corrigir
estas injustiças históricas.
Para concluir, pode-se dizer que a contribuição mais importante de Kant para o
desenvolvimento posterior de uma hermenêutica moderna consiste em ter deslocado
o alvo dos procedimentos de interpretação do tradicional estabelecimento de uma
suposta verdade contida na letra dos textos (o que Kant chama sua veracidade)
para a articulação do sentido que constitui aquele mesmo que interpreta.18 No
texto sobre a religião, Kant explicita esta dimensão da apropriação
interpretativa de narrativas religiosas citando uma bem conhecida passagem das
Sátiras de Horácio: "Mutato nomine de te fabula narratur."19 (Die Religion, AA
VI, 42). Sob os mais diversos nomes e as mais diversas roupagens, o que está em
jogo na interpretação racional das narrativas é o próprio ser racional que se
põe a interpretar para chegar a uma representação mais clara e intuitiva de
seus conceitos puramente racionais. Na roupagem sensível das narrativas
religiosas adquire densidade intuitiva a ideia personificada que "tem sua
realidade em relação prática completamente em si mesma, pois se encontra em
nossa razão moralmente legisladora" (Die Religion, AA VI, 62). A imagem
originária (Urbild) que orienta a interpretação racional daquelas narrativas se
encontra na própria razão, "devendo sempre ser buscada em nós mesmos" ou "em
nenhum outro lugar a não ser em nossa razão" (Die Religion, AA VI, 63). Ora, ao
deslocar o escopo da interpretação para o âmbito da sensificação das ideias da
razão, portanto para a esfera da articulação do sentido, Kant dá o passo
decisivo, do ponto de vista metodológico, para a constituição de uma nova
hermenêutica que acabaria reivindicando em seu desenvolvimento histórico o
status de procedimento metodológico fundamental da própria filosofia, como se
vê em Heidegger. Em vez de tentar escamotear esta importância originária da
contribuição kantiana, insistindo num suposto comprometimento de suas ideias
com uma filosofia do sujeito que lhe é atribuída com base num mal-entendido
muitas vezes proposital, caberia antes à história da hermenêutica moderna
recuperar essa sua origem, sem dúvida das mais nobres.
1 O presente trabalho foi apresentado por partes em dois eventos consecutivos,
a saber, as seções 2 e 3 no IV Congresso Kant Internacional, Porto Alegre (RS),
maio de 2008, e a primeira seção no XIII Encontro Nacional de Pós-Graduação em
Filosofia da ANPOF, Canela (RS), outubro de 2008.
2 DILTHEY, W. Gesammelte Schriften XIV/2 (Leben Schleiermacher, Bd. 2).
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966. p. 651-652.
3 DILTHEY, W. Gesammelte Schriften XIV/2 (Leben Schleiermacher, Bd. 2), p. 652.
4 Na pesquisa mais recente do contexto de constituição da hermenêutica moderna
em torno de Schleiermacher, estabeleceu-se finalmente a importância de Fr.
Schlegel como elo intermediário entre Kant e Schleiermacher, podendo-se mesmo
mostrar que as teses mais fundamentais da hermenêutica schleiermacheriana
remontam a elaborações de Schlegel, tendo sido transmitidas nos anos de sua
amizade em Berlim no fim do séc. XVIII. Reservo para uma outra ocasião a
reconstituição dos desenvolvimentos que levam das teses embrionárias de Kant,
por intermédio de Fichte e sobretudo de Fr. Schlegel, até Schleiermacher, do
qual se disse com razão que "vale como o pai da hermenêutica moderma e do
movimento hermenêutico" (MUßNER, Franz. Geschichte der Hermeneutik: Von
Schleiermacher bis zur Gegenwart, Freiburg/Basel/Wien, Herder, 1976, p. 4.).
5 GADAMER, H.-G. Kant und die philosophische Hermeneutik. Kant-Studien, 66, p.
396, 1975.
6 DILTHEY, W. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften.
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1981. p. 126.
7 DILTHEY, W. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften,
p. 127.
8 DILTHEY, W. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften,
p. 236.
9 GADAMER, H.-G. Kant und die philosophische Hermeneutik, p. 398.
10 GADAMER, H.-G. Kant und die philosophische Hermeneutik, p. 401.
11 HEIDEGGER, M. Kant und das Problem der Metaphysik. Frankfurt a. M.: V.
Klostermann, 1951. p. 57.
12 Na altura em que Heidegger profere estas lições, sua concepção da
fenomenologia já superou aquela desenvolvida por Husserl e sua escola, tendo em
Ser e tempo redefinido os conceitos de fenômeno e fenomenologia e indicado como
sentido metodológico da descrição fenomenológica a interpretação, com o que a
própria fenomenologia aparece como hermenêutica: "Fenomenologia do ser-aí é
hermenêutica no sentido original da palavra em que designa o ofício da
interpretação" (HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen: Niemeyer, 1986. p. 37).
A interpretação fenomenológica do projeto crítico kantiano proposta por
Heidegger constitui, portanto, propriamente o prospecto de uma interpretação
hermenêutica da Crítica da razão pura.
13 Cf. Sein und Zeit, § 7, item C. A preservação do jargão fenomenológico na
primeira fase da obra de Heidegger dificulta a percepção de que ele constitui o
ponto culminante do desenvolvimento da hermenêutica moderna. Já em Ser e tempo
a hermenêutica é anunciada como o procedimento metodológico característico da
filosofia: "Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas distintas
pertencentes à filosofia ao lado de outras. Os dois títulos caracterizam a
própria filosofia segundo o objeto e o procedimento. Filosofia é ontologia
fenomenológica universal partindo da hermenêutica do ser-aí, que como analítica
da existência fixou o fim do fio condutor de toda interrogação filosófica lá
onde ela se origina e para onde retorna." (Sein und Zeit, p. 38).
14 Ver A interpretação de narrativas religiosas e sua relação com a semântica
de conceitos da razão prática pura. In: COLÓQUIO KANT: PROBLEMAS SEMÂNTICOS NA
DOUTRINA KANTIANA DA RELIGIÃO, 8., 2006, Campinas. Trabalho apresentado.
Campinas: UNICAMP, 2006, e publicado em Kant e-prints, Campinas, v. 2, n. 2.
15 Citações de textos de Kant são referidas como de praxe pela edição da
Academia, abreviada para AA, seguido de volume em número romano e página em
número arábico.
16 A rigor, o sentido literal de um discurso qualquer ou de um texto tem de ser
estabelecido também por uma interpretação, no caso fornecida pela própria
linguagem.
17 Fr. SCHLEGEL, KA XVIII, 63 = Athåneum-Fragment 401.
18 Se se quisesse estender o termo 'transcendental' para além do contexto
ontológico, poder-se-ia caracterizar este deslocamento como a inflexão
transcendental na história da hermenêutica, semelhante àquela realizada pela
revolução copernicana que deslocou o pensamento ontológico da esfera do objeto
para a do sujeito transcendental. A importância desta inflexão se torna patente
no movimento do primeiro romantismo, que dela parte e dá uma primeira
demonstração de sua proficuidade.
19 HORÁCIO. Satirae I, 1: "Trocado o nome, é de ti que se fala na fábula."