Política e linguagem em Rousseau e Condillac
A relação de Rousseau com Condillac foi, desde o início, bastante amistosa,
apesar das divergências teóricas que podem ser percebidas entre os dois. Tais
divergências, que se dão sobretudo no que diz respeito à origem e função da
linguagem, nunca teve nada de traumático, diferentemente do que se deu com
Diderot, Grimm e os demais enciclopedistas. Tal fato pode ser explicado,
talvez, em função do temperamento do abade, bastante circunspeto e pouco afeito
a contendas. Rousseau descreve no capítulo sete das Confissõesalgumas passagens
desta relação de amizade e de convívio filosófico numa época em que tanto ele
quanto Condillac gozavam ainda de um tranquilo anonimato. Vejamos nas próprias
palavras do autor, a descrição retrospectiva do período em questão:
Ligara-me também com o abade de Condillac, que, como eu, nada era
então na literatura, mas que estava marcado para se tornar o que é
hoje. Fui eu o primeiro, talvez, que lhe conheci as capacidades e as
estimei no que valiam. Ele também parecia que gostava da minha
companhia, e quando, trancado no meu quarto da rua Jean Saint-Denis,
eu trabalhava no meu ato de Hesíodo, ele às vezes vinha jantar
comigo, só nós dois em piquenique. Trabalhava ele então num 'Ensaio
Sobre a Origem dos Conhecimentos do Homem' que é a sua primeira
obra".2
Após a descrição que retrata os momentos iniciais da relação entre os
filósofos, Rousseau menciona ainda o fato de ter sido ele o responsável
indireto pela publicação do Essaide Condillac, dado o fato de ter apresentado o
abade à Diderot na intenção de encontrar um editor para o livro, após este ter
sido terminado. Foi justamente em função do Essaide Condillac que teve início
suas discussões acerca da origem e função da linguagem.
Se observarmos o verbete Linguagem, presente no Dictionnaire de
Rousseau,veremos que "as concepções linguísticas" do cidadão de Genebra são
tratadas essencialmente3 nestas três obras: O segundo Discurso, o Ensaio sobre
a origem das línguase no Emílio4. Em todas elas podemos perceber traços
marcantes da presença das ideias Condillaquianas.
Contudo, mesmo afirmando ter sido O Essaide Condillac a primeira fonte de suas
ideias acerca da origem e dos progressos da linguagem, Rousseau não deixa de
assinalar as profundas divergências percebidas entre suas concepções. Ele
insiste sobre as dificuldades inerentes às pesquisas em questão e esmiúça em
detalhe os momentos iniciais desta Instituição humana fundamentalque é a
linguagem, responsável em última instância, pelos progressos, pelas mazelas e,
talvez, pelas fracas possibilidades de redução do mal-estar vivenciado pelo
homem em sociedade.
Ainda na primeira parte do segundo Discurso, após ter tratado das descrições do
homem natural, sob o ponto de vista de sua constituição física, Rousseau
analisa o homem, sob o ponto de vista de sua constituição 'metafísica ou
moral'.5Para tanto ele passa a investigar as condições em que se deram os
primeiros progressos do espírito humano e as faculdades necessárias para que se
desencadeasse tal processo. Após admitir ' em conformidade com Condillac6 e em
contrariedade com Buffon7 - que mesmo os animais possuem um certo grau de
entendimento e que a diferença com relação ao entendimento humano é apenas de
proporção, Rousseau dedica-se a reconstituir a história hipotética da linguagem
e da sociedade a partir das faculdades características do homem, tais como a
liberdade, a piedade (pitié) e a perfectibilidade . Faculdades estas que
possibilitam à espécie humana a superação do próprio instinto, que até então a
governava, e através do estabelecimento da comunicação, permitem sua saída
deste estado de animalidade e de estupidez,8 no qual pouco se diferencia das
demais bestas; possibilitando assim, a entrada em uma nova fase de sua
história9.
Rousseau insiste nas dificuldades e nos entraves que marcam essa passagem e
aponta para a ausência de comunicação como sendo a principal responsável pela
estagnação da espécie humana.
Que se imagine quantas ideias devemos ao uso da palavra; o quanto a
gramática exerce e facilita as operações do espírito, que se pense
nos trabalhos inconcebíveis e no tempo infinito que deve haver
custado a primeira invenção das línguas; que se acrescentem essas
reflexões às precedentes e se calculará quantos séculos foram
necessários para desenvolver sucessivamente no espírito humano as
operações de que era capaz.10
Além da passagem acima, outras confirmam a ideia segundo a qual houve um longo
período no qual a espécie humana, espalhada em meio a natureza, pouco
progrediu. E tal fato, conforme Rousseau insistirá, se deveu em grande parte à
ausência de vínculos estabelecidos entre os homens e principalmente à ausência
de uma linguagem suficiente para comunicar aos outros membros da espécie as
descobertas que porventura fossem feitas. É o que se verifica na sequência do
texto, onde o autor escreve:
Concluamos que, estando nas florestas, sem trabalho, sem palavra, sem
domicilio, sem guerra, e sem laços (...) o homem selvagem, sujeito a
poucas paixões, e bastando a si mesmo, possuía apenas os sentimentos
e os conhecimentos próprios desse estado (...) e sua inteligência não
se desenvolvia mais que sua vaidade. Se por acaso fizesse alguma
descoberta, não conhecendo nem mesmo os próprios filhos, não poderia
transmiti-la. A arte perecia com seu inventor. Não havia nem
educação, nem progresso, as gerações se multiplicavam inutilmente; e
cada um partindo sempre do mesmo ponto, os séculos escoavam em toda a
rusticidade dos primeiros tempos; a espécie já era velha, e o homem
permanecia ainda criança.11
Ao insistir na morosidade desse processo, Rousseau marca a distinção entre seu
posicionamento e o de Condillac12 que, no Ensaio sobre a origem dos
conhecimentos humanos,elabora uma explicação hipotética acerca do surgimento e
dos progressos da linguagem de forma bem mais abreviada e rápida do que
Rousseau a imagina. O que se evidencia aqui é a intenção de Rousseau em
ressaltar o caráter de independência do homem antes que este estabelecesse
qualquer tipo de vínculo com seus semelhantes, marcando assim, a distância
existente entre o puro estado de natureza e o estado de sociedade. A
contraposição, mas também a filiação às ideias condillaquianas a esse respeito
é evidenciada pelo próprio autor do segundo Discurso. Vejamos a passagem que
descreve o que acabamos de afirmar e que justifica a investigação e o
estabelecimento do contraponto entre o Essaide Condillac e os estudos de
Rousseau acerca da linguagem.
Seja-me permitido considerar, por um instante, a confusa origem das
línguas. Poderia contentar-me em citar ou repetir aqui as pesquisas
que o Senhor Abade de Condillac realizou sobre esse assunto, as quais
confirmam inteiramente minhas impressões e talvez me tenham fornecido
a primeira ideia. Mas, pela maneira como esse filósofo resolve as
dificuldades que cria para si mesmo sobre a origem dos sinais
instituídos, mostrando que supõe o mesmo que eu questiono, ou seja,
um tipo de sociedade já estabelecida entre os inventores da
linguagem, creio, voltando às suas reflexões, dever acrescentar-lhes
as minhas, para expor à luz as mesmas dificuldades que convêm ao meu
tema.13
Apesar do respeito pelo autor do Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos, Rousseau deixa clara sua posição e ressalta que o problema aí
encontrado é justamente o fato de Condillac supor em seu Ensaiouma espécie de
sociedade já estabelecida entre os inventores da primeira língua. A crítica de
Rousseau a Condillac sobre as condições do surgimento da linguagem nos parece
semelhante àquela realizada por ele, com relação a Hobbes no que concerne às
características atribuídas ao homem natural, ou seja: Rousseau pretende que
lhes falta radicalidade14. É importante explicitar aqui em que sentido estamos
empregando o termo radicalidade. Nos parece que, ao afirmar que Condillac dá
por suposto o que ele mesmo (Rousseau) questiona, o genebrino estaria indicando
que o abade não recuara suficientemente a ponto de explicar as condições
prévias para que se desse a emergência de uma linguagem artificial. Ele critica
justamente a existência do que Condillac supõe como axioma fundador de sua
teoria, ou seja: a proto-comunidade estabelecida entre duas crianças pós-
diluvianas ou a sociedade familiar desde sempre reunida.15 Rousseau dirá que
seu dever seria "cavar até a raiz"16 para tentar extirpar antigos preconceitos
arraigados, tais como aqueles que supunham a sociedade familiar desde sempre
reunida ou a existência de uma linguagem adâmica original. Rousseau procura
explicitar quais paixões ou necessidades levaram homens isolados e
independentes a buscarem os meios de exprimir seus pensamentos, sentimentos e
intenções. Tais condições seriam exatamente aquelas que puderam emergir de um
"verdadeiro estado de natureza" contrárias a uma pretensa repetição de
características desenvolvidas em sociedade. Condillac ao tratar da linguagem,
assim como Hobbes ao abordar as características inerentes a natureza humana,
teria ficado a meio caminho, na superfície da análise. Isto é, faltou "escavar
mais fundo", dito de outro modo, faltou "radicalidade" na sua análise.
Há que se ressaltar aqui as profundas divergências apresentadas por Rousseau no
que diz respeito à sociabilidade natural que contrariam a longa tradição que
remonta a Aristóteles e que são apresentadas com o auxílio das descrições
hipotéticas do Estado de Natureza elaboradas por ele no segundo Discurso. Sobre
essa questão importa ler as páginas sobre o Entendimento e Linguagempresentes
no livro Anthropologie et Politique: Les principes du système de Rousseau, de
Goldschmidt, onde o autor afirma que "a intenção crítica face à questão do
direito natural" que permeia todo o segundo Discurso"junta-se aqui a uma tese
complexa, aceita ao mesmo tempo pelos jus naturalistas e pelos philosophes,
onde se combinam ideias de sociabilidade, de razão e subsidiariamente aquelas
de linguagem e de civilização." Ainda segundo o autor, "esta tese, de origem
aristotélica e estoicista, define o homem como um ser sociável e racional; ela
é reafirmada por Grotius, Cumberland, Pufendorf, Burlamaqui; e é aceita por
Diderot, Condillac e a Enciclopédia"17.
Sobre o tipo de dificuldades percebidas por Rousseau no que concerne ao
surgimento das línguas, e mencionadas na passagem do segundo Discurso, acima
citada, ele esclarece: "a primeira que se apresenta é imaginar como elas (as
línguas) se tornaram necessárias; pois, os homens não tendo nenhuma comunicação
entre si, não se concebe a necessidade dessa invenção, nem sua possibilidade
(...)"18.Nesse estado puro de natureza, suposto por Rousseau, onde o homem é
descrito como um ser isolado sem relação com seus semelhantes, nem mesmo
reconhecendo-os enquanto tal, é difícil conceber a maneira como se tornaram
necessárias estas primeiras instituições humanas.
Após enfatizar as dificuldades inerentes a essa condição, o autor escreve:
"Suponhamos essa primeira dificuldade superada; transponhamos por um momento o
imenso espaço que sem dúvida existiu entre o estado de natureza puro e a
necessidade das línguas; e procuremos, supondo-as necessárias, como puderam
elas começar a estabelecer-se".19Outra dificuldade se apresenta, que segundo
Rousseau seria "ainda maior do que a precedente".Trata-se de saber o que foi
mais necessário, se "a palavra para aprender a pensar" ou "saber pensar para
encontrar a arte da palavra"20."Quaisquer que sejam estas origens", insiste o
autor, "vê-se, pelo menos o pouco cuidado que tomou a natureza em aproximar os
homens" e em "facilitar-lhes o uso da palavra".21Ao negarem a concepção das
ideias inatas bem como a ideia da existência de uma língua mãe a partir da qual
derivar-seiam as demais línguas históricas22 tanto Rousseau quanto Condillac
vêem-se na necessidade de explicar, - ou como no caso de Rousseau, em salientar
as dificuldades inerentes a este processo de geração - esses complexos
primórdios e os necessários encadeamentos entre o surgimento das ideias e a
constituição da linguagem. Ambos farão uso da hipótese de uma linguagem
natural, puramente instintiva, pouco distinta da linguagem animal, mas
principalmente para Rousseau, bastante diversa das línguas instituídas.
A primeira linguagem do homem, a mais universal, a mais enérgica, a
única de que precisou antes de dever persuadir homens reunidos, foi o
grito da natureza. Como esse grito era arrancado apenas de uma
espécie de instinto nas ocasiões mais prementes para implorar socorro
quando de grandes perigos, ou alívio nas dores violentas, ele não era
de grande utilidade ao curso habitual da vida, quando imperam os
sentimentos mais moderados.23
Essa primeira linguagem, que Rousseau denomina 'natural', composta basicamente
de gritos puramente instintivos e de gestos, era a única disponível antes de os
homens estabelecerem relações mais permanentes. O fato é que Condillac faz
derivar imediatamente dessa linguagem natural nascida das necessidades, sem
grandes diferenças, a linguagem instituída. Tal derivação é expressa no Essai
sur l'origine des connaissances humainesatravés da teoria dos signos e também
em algumas de suas obras ulteriores.
No capítulo IV da primeira parte do Essaio autor distingue três espécies de
signos: em primeiro lugar estariam "os signos acidentais, ou os objetos que as
circunstâncias particulares ligaram a algumas de nossas ideias e que servem
para relembrá-las"; em segundo lugar "os signos naturais, ou os gritos que a
natureza estabeleceu para os sentimentos de alegria, de medo, de dor etc...."
e, em terceiro lugar, "os signos de instituição, ou aqueles que nós mesmos
escolhemos e que têm apenas uma relação arbitrária com nossas ideias"24.
Na sequência do EssaiCondillac explica como se deu a passagem dos gritos
naturais ou do que ele chama de 'linguagem de ação', que seria um composto de
gritos e de gestos e pouco distinta da linguagem dos animais, aos sinais
instituídos e à formação do entendimento e da linguagem; fazendo derivar esta
última das necessidades naturais do homem, sem nenhuma diferença ou corte
radical entre esta linguagem instintiva e a linguagem humana articulada e
instituída. No Traité des animaux, que será publicado no ano de 1755 ele
repetirá que "a linguagem de ação prepara a dos sons articulados".25Cabe
ressaltar que o surgimento e o aperfeiçoamento da linguagem só se torna
possível em sociedade, pois a passagem dos signos naturais aos signos
instituídos, supõe o papel determinante do auditor e não somente do emissor do
signo.26 Afinal, se o objetivo da fala ou da linguagem é se fazer entender, ao
se passar uma mensagem, evidenciar uma intenção ou paixão, o receptor deveria
compreender a mensagem.
O texto de Jean Morel intitulado "Les sources du Deuxième Discours", publicado
em 1909 nos Annales J.-J. Rousseaué outra fonte que pode ser consultada no que
diz respeito especificamente às contribuições de Condillac no que concerne a
escrita do Segundo Discursoe, sobretudo, no que se refere às questões
linguísticas. Neste Longo artigo de quase oitenta páginas o autor examina em
detalhe as inúmeras fontes presentes na escrita do Discurso sobre a
Desigualdade.Após afirmar já na primeira página, que Diderot e Condillac são,
no momento em que Rousseau escreve o Discurso, os escritores mais ligados a
ele, e que mais o influenciaram27, desenvolve a partir da página 143 uma
análise precisa da influência condilaquiana sobre o genebrino.
Nas quase dezoito páginas seguintes o autor compara as teorias linguísticas e
antropológicas dos pensadores examinando às confluências e às peculiaridades de
ambos. Partindo da ideia condilaquiana, plenamente aceita por Rousseau, segundo
a qual o homem não nasce como um ser racional, mas torna-se racional a partir
das experiências propiciadas pelas sensações, Morel ressalta a importância das
palavras para a formação do pensamento e da razão ao mostrar a raiz da primeira
língua artificial articulada. Trata-se de uma espécie de "linguagem natural
instintiva" que aliada à "linguagem de ação", composta de gritos e gestos,
auxilia os primeiros homens na construção do artifício linguístico que lhes
possibilitará saírem da animalidade e tornaremse homens propriamente. Não nos
aprofundaremos aqui nos detalhes mais técnicos da linguagem, da formação das
ideias gerais, dos primeiros tempos verbais criados pelos homens, etc., nos
contentamos em remeter o leitor ao artigo supracitado.
Sobre essa língua natural ou substrato pré-reflexivo auxiliar, responsável
pelos primórdios da reflexão, Condillac, não satisfeito com as explicações
fornecidas no Essai,e motivado também pelas críticas apontadas por rousseau,28
empreenderá novas tentativas de precisar tais noções, o que ocorrerá
principalmente em sua Grammairee na Logique,chegando a afirmar nesta última, a
existência de uma lógica natural29 anterior ao estabelecimento da linguagem.
Entretanto, apesar destas tentativas de precisar e aprofundar sua teoria
linguística, a postura Condilaquiana manterá certa constância entre seus
diversos escritos.30 O fato é que esse estudo das mudanças sofridas na teoria
da linguagem de Condillac em suas obras mais maduras, tais como a Grammairee a
Logique' que mereceriam uma investigação mais aprofundada - ultrapassa o
objetivo da análise prevista para esse trabalho, mesmo porque, tendo sido
publicadas respectivamente nos anos de 1775 e 1780, não poderiam ter influído
na construção da teoria linguística Rousseauniana pelo simples fato de que
Rousseau morre no ano de 1778.
Ainda no tocante à questão da 'linguagem natural', e principalmente no que
concerne à teoria de Condillac, cabe lembrar conforme Bertrand, que "ela
somente poderia ser qualificada de 'linguagem'por extensão"; ela é utilizada de
forma imprópria "para designar o conjunto dos elementos inatos permitindo à
comunicação de se instaurar. Em sentido estrito, somente a linguagem de ação e
a linguagem dos sons articulados podem ser consideradas como as espécies de
linguagem que pertencem verdadeiramente à categoria das artes"31.Para Rousseau
também, esta linguagem somente poderia ser chamada como tal, de modo impróprio,
dado que ela será modificada desde seus primórdios pelas condições particulares
das línguas instituídas. Mesmo os gritos naturais, mudariam, segundo Rousseau,
em função do clima ou mesmo do tipo de fauna presente em cada região, dado que,
muitas das primeiras palavras e nomes proviriam da imitação dos gritos dos
animais que habitam as diferentes partes do globo e que ajudariam na
constituição das diversas onomatopéias32 que estão na origem das línguas
instituídas.
Rousseau insiste no tempo e nas dificuldades que precisaram ser vencidas para
que se pudesse aperfeiçoar a linguagem, desenvolver as ideias abstratas, as
noções de números, verbos, partículas, sintaxe e "formar toda a lógica do
discurso".33 E resolve a situação pela negativa, abandonando-a, e deixando a
questão acerca dessa aporia insolúvel em aberto. Vejamos: "Quanto a mim,
assustado com as dificuldades que se multiplicam e convencido da
impossibilidade quase comprovada de que as línguas tenham podido se estabelecer
por meios puramente humanos, deixo a quem queira empreender a discussão desse
difícil problema: o qual foi o mais necessário, à sociedade já formada, quando
da instituição das línguas ou das línguas já inventadas, quando do
estabelecimento da sociedade".34
Cabe ressaltar aqui a importância e as implicações políticas e religiosas que
permeiam o debate acerca do surgimento da linguagem, ocorridas a partir desta
época e que continuaram a repercutir até a época da Revolução Francesa e a
partir daí espalhando-se pelo mundo principalmente no tocante ao surgimento das
primeiras instituições humanas e à dessacralização da ordem social. Por isso
explica-se a precaução de Condillac em afirmar que suas pesquisas são puramente
hipotéticas e só dizem respeito ao tipo de linguagem que pode ter sido
produzida pelos homens após o dilúvio. Desta forma, Condillac pretende se
isentar de qualquer tipo de acusação de heresia, no sentido de que, esta língua
instituída contraria os dogmas da revelação cristã e da língua adâmica
transmitida diretamente por Deus. No entanto, apesar das precauções tomadas,
Condillac não deixará de ser considerado um dos inimigos mais virulentos da
religião cristã em função de sua teoria materialista acerca do surgimento das
instituições humanas35. Conforme salienta Ricken: "Toda teoria sobre a origem
da linguagem implica de alguma maneira uma teoria sobre a origem da sociedade,
ao menos no que diz respeito à preexistência ou não da sociedade à linguagem; e
também no que diz respeito ao tipo de ser humano que existia no ponto de
partida da história da sociedade."36
Ainda seguindo o comentador: "um dos primeiros a tirar consequências políticas
desta hipótese de a sociedade, a linguagem e o pensamento serem produtos da
história, foi justamente Rousseau, com sua interpretação radicalizada da
comunicação social exposta no Discurso sobre a origem da desigualdade (1756)",
e em seu Ensaio sobre a origem das línguas, inspirado pela hipótese da origem
da linguagem desenvolvida no Essai sur l'origine des connaissances
humaines"Rousseau atribui à linguagem um papel essencial na origem e na
evolução da sociedade e mesmo do gênero humano, assim como na origem e
manutenção da desigualdade social"37.
Realmente, o uso da linguagem possui papel determinante na constituição das
sociedades. No Ensaio sobre a origem das línguasRousseau responderá à questão
exposta, e deixada em aberto no segundo Discurso, -qual teria sido mais
necessária, se a linguagem para a formação da sociedade ou a sociedade para a
instituição da linguagem ' afirmando ter sido a linguagem a primeira
instituição social38. Entretanto, neste escrito a distância com relação ao
sensualismo condillaquiano aparece de forma nítida. Nele Rousseau afirma
claramente que a palavra deriva das paixões morais e não das necessidades, tal
como afirmara Condillac em seu Ensaio39.este período da história da humanidade,
no qual se deu o surgimento da palavra, fruto de um relacionamento mais
estreito entre os homens, é localizado por Rousseau na 'idade das cabanas' ou
no segundo estado de natureza, aquele que antecede imediatamente o
estabelecimento da propriedade e do contrato.
Apesar das divergências, Rousseau aceita a ideia da existência dos gritos
naturais e da linguagem de ação40, composta por estes gritos e complementada
com gestos. Entretanto, conforme afirmamos anteriormente, tal linguagem seria
suficiente apenas para atender às necessidades físicas, mas seria incapaz de
dar conta das necessidades oriundas das paixões morais e nascidas do convívio
mais estreito entre os homens ou da vida propriamente social41. estas só
poderiam ser satisfeitas através do uso da fala ou da linguagem dos sons
articulados. Nesse sentido Rousseau escreverá no Ensaio sobre a origem das
línguas:
Inclino-me (...) a pensar que, se sempre conhecêssemos tão só
necessidades físicas, bem poderíamos jamais ter falado, e entender-
nos-íamos perfeitamente apenas pela linguagem dos gestos. Poderíamos
ter estabelecido sociedades, pouco diversas do que são hoje, ou que
alcançassem até melhor o seu objetivo. Teríamos podido instituir
leis, escolher chefes, inventar artes, estabelecer o comércio e, numa
palavra, fazer quase tantas coisas quantas fazemos com o auxílio da
palavra.42
Fica claramente expressa a distinção e o corte radical entre a linguagem dos
gestos, ou mesmo da linguagem de ação, fruto das necessidades físicas, que
pode, em certa medida, ser partilhada também pelos animais e a linguagem dos
sons articulados ou da voz, (parole) que é "arrancada pelas paixões"43.Esta
linguagem convencional, fruto das paixões morais do homem é o que o diferencia
dos demais animais. Tal ideia é expressa claramente no início do primeiro
capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas, onde rousseau afirma que "a
palavra distingue o homem dentre os animais: a linguagem distingue as nações
entre si"44 e completada ainda no final do mesmo capítulo onde o autor insiste
que "a língua de convenção pertence somente ao homem" e este é o motivo pelo
qual o homem progride "tanto no bem quanto no mal, e porque os animais não o
fazem"45.
O que se percebe aqui, como Rousseau afirmará também no Emílio, é a profunda
ligação entre a ética, a moral e as questões políticas. Para o "cidadão de
Genebra", como sabemos, é indesejável e ineficaz tratar isoladamente tais
questões. "É preciso estudar a sociedade pelos homens e os homens pela
sociedade, quem quiser tratar separadamente a política e a moral nada entenderá
de nenhuma das duas"46.Cada sociedade, dependendo de seus costumes, terá uma
política especificamente adequada para ela e somente para ela. Dito de outra
maneiras, as mudanças políticas, temporalmente condicionadas, interferem na
moral, na conduta ética e nas próprias características da linguagem.
Como podemos notar, é a partir das elaborações e das relações vivenciadas na e
pela língua de convenção que o homem pode progredir, seja para o bem ou para o
mal. A língua sofre as influências do clima e das condições nas quais ela nasce
e se ressente das mudanças sofridas pelo governo e pelas contingências
históricas do povo que a fala. As línguas guardam as particularidades dos povos
que as falam e se alteram de acordo com as mudanças ocorridas nos povos
falantes. Essa relação intrínseca entre o caráter das línguas e dos povos é
apresentada tanto por Condillac quanto por Rousseau, apesar das diferenças que
podem aí ser percebidas.
Segundo o abade o caráter do povo, da língua por ele falada e o seu modo de
governo estão intimamente relacionados. No capítulo XV da segunda parte do
Essai, ao tratar Du Génie des Langues,o autor salienta que "duas coisas
concorrem para formar o caráter dos povos: o clima e o governo. O clima confere
mais vivacidade ou mais fleuma e dessa maneira dispõe mais a uma forma de
governo do que a outra; mas estas disposições se alteram por mil
circunstâncias"47.Apesar de mencionar o clima como sendo um dos fatores que
influi sobre o caráter do povos, Condillac considera que esta primeira
influência cede lugar ao caráter do governo e que "o caráter de um povo sofre
praticamente as mesmas variações que seu governo e não se fixa enquanto este
não tenha assumido uma forma constante".48 Por sua vez, o governo, influindo
sobre o caráter dos povos, influi também sobre o caráter das línguas, e este
será finalmente consolidado de forma mais ou menos estável através do gênio dos
grandes escritores. Vejamos:
Assim, o governo influi sobre o caráter dos povos, o
caráter dos povos influi sobre o das línguas. É natural que
os homens, sempre apressados pelas necessidades e agitados
por paixões, não falem das coisas sem fazer conhecer o
interesse que eles tomam por elas. É preciso que eles
juntem gradualmente às palavras ideias acessórias que
marcam a maneira pela qual eles são por elas afetados e os
julgamentos que eles lhes conferem. É uma observação fácil
de fazer, pois não existe quase ninguém cujo discurso não
desvele o verdadeiro caráter, mesmo nos momentos onde ele
toma mais precauções para escondê-lo. É suficiente estudar
um homem por algum tempo para aprender sua linguagem; eu
digo sua linguagem, pois cada um tem a sua segundo suas
paixões. 49
Se, como podemos verificar, o caráter de um particular é facilmente observado
através de seu discurso, o caráter dos povos "se mostra ainda mais abertamente
que o dos particulares. Uma multidão não saberia agir em concerto para esconder
suas paixões. Além disso, nós não imaginaríamos a necessidade de fazer mistério
de nossos gostos, quando eles são comuns aos nossos compatriotas." Nesse
sentido, continua Condillac, "tudo confirma então, que cada língua exprime o
caráter do povo que a fala" 50. Influência decisiva, ao menos para fixar o
caráter de um povo em uma determinada língua, são os grandes escritores. Estes
lhes conferem uma sólida estabilidade, capaz inclusive de fazer face, segundo o
autor, às mudanças ocorridas nos costumes51.
Nesse sentido, as regras da moral podem ser apreendidas e percebidas através do
estudo e da aprendizagem da língua. Conforme afirma Tiellet, em um dos
pouquíssimos trabalhos acadêmicos escritos sobre Condillac no Brasil, "a regra
da língua é a regra da moral; o estabelecimento da moralidade pública passa,
antes de tudo, pela instância dos saberes que se opera na língua. (...) O
manejo da língua, então, aparece como uma tarefa ética. Estabelecidas as formas
básicas das construções arquetípicas do discurso moral e suas zonas individuais
de desregramento, cabe ver o andamento social da língua e o que suscita o seu
desenvolvimento na história"52.
Esta íntima relação entre ética, moral e linguagem, se apresenta de maneira
matizada por Condillac que -provavelmente em função de sua notável prudência 53
- a expõe através de argumentos linguísticos ou de sua teoria do conhecimento.
Muitos dos problemas verificados em sociedade têm suas causas atribuídas por
ele ao mau uso da linguagem e da maneira como apreendemos na e pela língua, as
noções morais. "O que acostuma nosso espírito a essa inexatidão" dirá
Condillac, "é a maneira como nos formamos na linguagem"54.Conforme Claudine
Tiercelin, é em função do fato de fazermos uso da palavra muito tempo antes de
atingirmos a idade da razão que cometemos tantos erros55. Este acesso tardio à
idade da razão e todos os descaminhos que seguimos na tarefa de aprendizagem da
língua são os responsáveis, em boa medida, pelos insucessos presenciados em
sociedade.
Para Condillac é a "razão que coroa todo o entendimento"; ela é o último degrau
a ser atingido no processo de aprendizagem sendo a responsável por nossa boa ou
má conduta no plano das ações sociais. Nesse sentido justifica-se a ideia,
exposta acima, de que o bom uso da linguagem tem implicações éticas e políticas
evidentes. Leiamos nas próprias palavras do autor a ideia exposta ainda na
primeira parte do Essai:
De todas as operações que descrevemos, resulta uma que, por assim
dizer, coroa todo o entendimento: é a razão. Qualquer ideia que
possamos fazer, todo mundo concordará que não é, senão através dela,
que podemos nos conduzir sabiamente nas questões civis e fazer
progressos na busca da verdade. É preciso concluir então, que ela não
é outra coisa senão o conhecimento da maneira como devemos reger as
operações de nossa alma56.
Rousseau, no livro II do Emílio, designará a razão em termos praticamente
idênticos aos utilizados por Condillac. Vejamos: "De todas as faculdades do
homem, a razão, que não é por assim dizer senão um composto de todas as outras,
é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente"57. Cabe
ressaltar que as semelhanças percebidas entre as concepções de educação e de
construção do conhecimento não param por aqui. Se Condillac, na esteira de
Locke, acentua o papel dos sentidos na aquisição das ideias e,
consequentemente, acaba por invalidar a teoria das ideias inatas, Rousseau, por
sua vez, afirmará em uníssono que nós "nascemos capazes de aprender, mas sem
nada saber e nada conhecendo"
58
.Em função da atenção concedida ao processo de construção e de ensino que se
opera na e pela língua é que tanto Condillac quanto Rousseau concederão tamanha
atenção ao método utilizado para ensinar às crianças ' afinal, conforme dirá
Condillac, "é na infância que nós somos imbuídos de preconceitos que retardam
os progressos dos nossos conhecimentos e que nos fazem mergulhar no erro"59-
e alertarão para os perigos de um processo prematuro de ensino que não atente
para as especificidades da idade dos alunos nem tampouco para o tipo de
conteúdo a ser tratado com estes60. Entretanto notamos aqui mais uma diferença
importante no papel atribuído à razão. Para Condillac, é somente através dela
que podemos agir bem em sociedade, ao passo que, para Rousseau, não é a razão,
mas "a consciência (...) o mais esclarecido dos filósofos; e nós não precisamos
saber o De Officii de Cícero para sermos homens de bem".61
Seguindo-se este processo lento, mas preciso, de aprendizagem, onde as palavras
ensinadas não são meras palavras a serem decoradas, mas vêm sempre acompanhadas
de ideias nítidas, talvez não se formem pequenos 'prodígios', mas se evite que
estes se tornem, no futuro, verdadeiros pedantes sobrecarregados de palavras
vãs e de uma linguagem estéril. "Os primeiros progressos desta educação seriam
bem lentos, é verdade", confirma Condillac; e "não veríamos prodígios
prematuros de sapiência que se tornam, após alguns anos, prodígios de
estupidez; mas veríamos uma razão livre de erros e capaz, por consequência, de
se alçar a amplos conhecimentos"62.rousseau, no livro II do Emílio, ressaltando
as vantagens de seu próprio método, ' que ademais não difere muito do método
Condillaquiano ' dirá: "É verdade que este método não forma pequenos prodígios
e não faz com que os preceptores e os professores brilhem, mas forma homens
judiciosos, robustos, sãos de corpo e de entendimento, que, sem se terem feito
admirar quando jovens, far-se-ão honrar quando adultos".63
Peter Jimack, em artigo no qual trata das influências de Condillac, Buffon e
Helvetius na escrita do Emílio,salientará o que diz Condillac acerca da
educação das crianças sobre "a maneira como se deve formar o espírito delas é
perfeitamente análoga àquela exposta nos três primeiros livros do Emílio"64,
além de lembrar ainda que, a "dita educação negativa", que ocupa os dois
primeiros livros da mesma obra "não é outra coisa senão a educação
perfeitamente positiva dos sentidos" e que " o estudo sucessivo e metódico de
cada sentido, exposto por Rousseau, lembra o método do tratado das sensações de
Condillac"65.
Se rousseau insiste em se separar das concepções sensualistas e em demarcar a
distância entre esta e as suas próprias, isso se dá, em grande medida, em
função do fato delas se parecerem muito. No entender de Jimack, principalmente
no que concerne ao método fundado na observação que podemos encontrar no
Emílio,as "diferenças que ele (Rousseau) estabelece entre suas próprias
doutrinas e aquelas dos sensualistas restam bem menos numerosas do que as
semelhanças"66.Tais constatações levam o autor a afirmar que "apesar das
invectivas contra os 'philosophes', apesar da Profissão de fé do vigário de
Sabóia, apesar do estreito parentesco que o liga a Plutarco e aos antigos, o
autor do Emílio se mantém completamente imbuído do espírito filosófico e
sensualista de seu século"67.
Voltemos à questão das línguas e de como estas se relacionam e se alteram de
acordo com as mudanças sofridas nos costumes e nos governos. Rousseau no livro
II do Emílioirá expor nos seguintes termos a relação entre a língua e os
costumes de uma nação: "As cabeças formam-se sobre as linguagens, os
pensamentos tomam o aspecto dos idiomas. Só a razão é comum, o espírito em cada
língua tem sua forma particular, diferença esta que bem poderia ser em parte a
causa ou o efeito dos temperamentos nacionais, e o que parece confirmar esta
conjectura é que em todas as nações do mundo a língua segue as vicissitudes dos
costumes e se altera ou se conserva com eles"68. Seguindo de perto a ideia
final da passagem acima, Rousseau, no capítulo XIX do Essai sur l'origine de
langues,tomando como exemplo as mudanças verificadas na língua grega em função
dos rumos conferidos à sua política lembrará que, "a Grécia sob grilhões perdeu
aquele fogo que só anima as almas livres e não encontrou mais, para louvar seus
tiranos, o acento com o qual cantara seus heróis"69.
Se a dependência entre língua, costumes e Governo é necessária, como Rousseau
insistirá em várias de suas obras, a relação entre as línguas e o clima70 não
deixará de ser analisada por ele. Este (o clima) será considerado pelo autor
como um fator ainda mais relevante e decisivo do que havia sido considerado
pelo abade. Isso porque, sendo a língua a primeira "instituição social, só às
causas naturais" ela "deve sua forma"71. Bento Prado em Jean ' Jacques Rousseau
entre as flores e as palavras, lembra que o autor do Ensaio sobre a origem das
línguas"se recusa a deduzir a linguagem de uma espécie de sociabilidade muda, à
maneira de Condillac", e que "sendo a primeira instituição social e não podendo
assim mergulhar suas 'raízes' no solo do social, a língua deve enraizar-se
diretamente na natureza", de maneira que "nenhuma análise puramente 'interna'
poderia dar conta da estrutura de uma língua".72
Esta terá sua construção e desenvolvimento, profundamente marcados pelo aspecto
geográfico e climático que a envolve. Sem esquecer a influência da fauna de
cada região, que ajudará os homens a formarem as onomatopéias que estarão na
base das diversas línguas particulares. Dessa maneira, antes mesmo de serem
estabelecidas relações propriamente sociais, o clima interferirá no tipo de
acento que impregnará as línguas nascentes diferenciando-as das demais e
conferindo a cada língua e, consequentemente, a cada povo, uma especificidade
sui generis.Esta noção é expressa de maneira veemente em L'origine de la
melodie,onde o autor afirma que "nós ignoramos tão completamente o estado
natural do homem a ponto de não sabermos nem mesmo se existe um tipo de grito
que lhe seja próprio", por outro lado, em função do fato de ser um animal
imitador ele "poderá então, de início, imitar os gritos daqueles que lhe
cercam, e segundo as diversas espécies que habitam cada rincão(contrée), os
homens, antes mesmo de possuírem línguas puderam ter gritos diferentes de um
país a outro. Além disso, os órgãos estavam mais ou menos (...) flexíveis
segundo a temperatura dos climas, que aí já se apresenta a origem do acento
nacional mesmo antes da formação da linguagem"73.A recusa em admitir qualquer
espécie de "língua mãe" original que pudesse homogeneizar o gênero humano é
evidente. Rousseau insiste no caráter peculiar de cada povo e na autonomia dos
costumes e das linguagens que foram se constituindo em cada rincão do globo. O
desenvolvimento do argumento mesológico que já aparece de forma evidente no
manuscrito acima citado, será desenvolvido nos capítulos VIII, IX, X e XI do
Essai,onde nosso autor afirmará que mesmo as "línguas modernas, centenas de
vezes misturadas e refundidas, ainda conservam alguma coisa dessas
diferenças".74
A profunda dependência percebida entre o caráter das línguas e as
transformações operadas nos povos, pelos governos e pelos hábitos sociais é
ressaltada por ambos os autores. Tanto o abade quanto Rousseau mencionam o fato
de que as línguas, nascidas de um desejo de transparência e instituídas em
função do desejo de transmitir ideias e sentimentos, acabam, com o passar do
tempo, transformando-se em objeto de mistério e engodo, ou de florilégios
excessivos que prejudicam a transparência das mesmas. Nesse sentido, podemos
ler no primeiro Discurso:
Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a
falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram rústicos , mas
naturais, e a diferença dos procedimentos denunciava, à primeira
vista, a dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor,
mas os homens encontravam sua segurança na facilidade para se
penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de cujo valor não temos
mais noção, poupava-lhes muitos vícios.75
De maneira semelhante Condillac já havia exposto, na segunda parte de seu
Essai, a ideia, segundo a qual, a linguagem surge eivada de uma intenção de
clareza que na sequência de seu desenvolvimento acaba tornando-se objeto de
obscurecimento em função do espírito de facção e em um terceiro momento
impregna-se do desejo de embelezamento e de florilégios. De maneira que,
segundo o autor,"o que devia sua origem à necessidade" e que "tinha sido
inventada para a clareza" foi "convertida em mistérios" e "cultivada em função
do ornamento".76Já no capítulo XI, ao tratar da significação das palavras,
Condillac havia escrito: "Enfim chegou o tempo de homens que, compondo sua
linguagem do jargão de todas as seitas, sustentaram o pró e o contra sobre
todos os tipos de matéria ' talento que nós admiramos e que talvez admiremos
ainda, mas que trataríamos com um soberano desprezo se apreciássemos melhor as
coisas"77.Condillac, em referência óbvia aos sofistas e ao caráter ambíguo dos
discursos a eles atribuídos, manifesta seu desprezo por este caráter
intencionalmente dúbio utilizado na construção dos discursos. Além disso,
Condillac partilha também da crítica ao uso, excessivamente florido78 da
linguagem, devido à sua concomitante falta de precisão79.
O abade defende que é possível construir línguas de forma clara e precisa onde
as ideias sejam expressas de forma evidente. Esta língua teria de ser feita e
apreendida sob o método analítico e deveria ser construída a partir de ideias
simples. Mesmo as ideias arquetípicas (archétypes) aquelas de justiça,
liberdade etc., deveriam ser compostas de um certo número de ideias simples80.
Condillac supõe dois modelos distintos de línguas que expressariam, de maneira
diametralmente oposta, o excesso de imaginação ou o de precisão geométrica.
Vejamos nas próprias palavras do autor seu pensamento expresso no capítulo XV
da segunda parte do Essai:
Seria preciso, a fim de fixar nossas ideias, imaginar duas línguas:
uma que conferisse tanto exercício à imaginação que os homens que a
falassem divagariam sem cessar e outra que , ao contrário, exercesse
tão fortemente a análise que os homens aos quais ela fosse natural se
conduziriam, até mesmo em seus prazeres, como geômetras que buscam a
solução de um problema. Entre estas duas extremidades, nós poderíamos
representar todas as línguas possíveis, ver-lhes tomar caracteres
diferentes conforme a extremidade da qual se aproximassem, e se
compensarem das vantagens que elas perderiam de um lado pelas que
ganhariam de outro. A mais perfeita ocuparia o meio e o povo que a
falasse seria um povo de grandes homens81.
Como podemos perceber, para o abade, não se trata apenas de precisão, há que se
atingir um equilíbrio entre a imaginação e a beleza de um lado, e a precisão e
a clareza de outro. Ele aposta na justa medida, no meio termo. Labarriére, ao
tratar dessa questão alerta para o risco de "cedermos ao imperialismo da
razão", o que nos conduziria ' como mostrou o abade ' a nos comportarmos como
geômetras mesmo em nossos prazeres (o que não é desejado) e lembra que, para
Condillac, "uma bela língua se mantém como uma boa língua"82 desde que atinja
um meio termo ideal.
Tanto Rousseau quanto Condillac concordam ainda que as línguas primevas
possuíam um caráter bastante figurado e impreciso, porém, mais vivo que o das
línguas modernas83, e que eram dotadas de imagens fortes, mas bastante
imperfeitas que possuíam caracteres que as aproximavam muito mais do canto84 do
que da prosa. Dado o fato de que a esses homens, ainda bastante embrutecidos,
era muito mais simples variarem as mesmas palavras segundo diferentes
entonações do que inventarem novos vocábulos.85 Ambos os autores vêem ainda nas
línguas grega e romana exemplos marcantes desses primeiros tempos onde os
acentos que possuíam mantinham papéis preponderantes. Essas línguas,
extremamente acentuadas e de caracter 'público',86 próprias para serem
utilizadas a "céu aberto", diferiam profundamente das nossas, bem mais simples
e indicadas somente aos ambientes fechados e restritos. Vejamos o que diz
Condillac ao analisar a prosódia das línguas antigas (grega e romana
principalmente):
Eu percebo ainda na prosódia dos antigos a razão de um fato que
ninguém, creio eu, tenha explicado. Trata-se de saber como os
oradores romanos que arengavam na praça pública podiam ser ouvidos
por todo o povo. Os sons de nossa voz chegam facilmente às
extremidades de uma praça de razoável extensão; toda a dificuldade é
de impedir que os confundamos, mas esta dificuldade deve ser menor na
proporção que, pelo caráter da prosódia de uma língua, as sílabas de
cada palavra se distinguem de maneira mais sensível. No latim, elas
diferiam pela qualidade do som, pelo acento que, independentemente do
sentido, exigia que a voz se elevasse ou se abaixasse, e pela
quantidade ; faltam-nos acentos, nossa língua praticamente não possui
quantidade, e muitas de nossas sílabas são mudas. Um romano podia
então, se fazer compreender distintamente em uma praça onde um
francês não o poderia senão dificilmente ou , talvez, de maneira
nenhuma.87
Este elogio do caráter público das línguas antigas em contraposição ao caráter
privado das nossas é apresentado também por Rousseau, principalmente no último
capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas,onde, ao tratar da relação
existente entre as línguas e os governos, ele salienta, em termos bastante
próximos dos utilizados por Condillac, o caráter enfraquecido das línguas
modernas, principalmente se comparadas às antigas. Entre os antigos, escreve
Rousseau, "era possível fazer-se ouvir na praça pública; falavase o dia inteiro
sem dificuldade. Os generais arengavam suas tropas, eram compreendidos e
absolutamente não se cansavam." Em contraposição, o genebrino supõe um homem
arengando em francês diante do povo de Paris reunido em uma pequena praça:
"pode gritar a mais não poder, ouvir-se-ão seus gritos, não se distinguirá nem
uma palavra. Heródoto lia sua história aos povos da Grécia reunidos ao ar livre
e tudo ressoava com aplausos. Hoje, o acadêmico que lê uma memória, num dia de
assembléia pública, mal é ouvido no fundo da sala"88.
A diferença entre as posturas de ambos os autores se apresenta, entretanto, no
que concerne aos "progressos" posteriores, verificados nas línguas, na medida
em que estas se aperfeiçoam. Para o abade, as línguas perdem em sentimento e
imaginação, mas por outro lado ganham em precisão e clareza; fato considerado
positivo, sobretudo no que diz respeito à construção e à exposição analítica
dos conhecimentos. Apesar de admitir que as línguas antigas eram mais vivas e
eloquentes, Condillac afirma que a língua francesa compensa esta perda, em
função de sua simplicidade e clareza, características que a tornam mais exata,
mais própria à grande ligação de ideias e, nesse sentido, superior às línguas
grega e romana
89
. Já no entender de Rousseau, à medida que a linguagem se "aperfeiçoa" ela
"torna-se mais justa e menos apaixonada, substitui os sentimentos pela ideias,
não fala mais ao coração, senão à razão. Por isso mesmo, o acento se extingue e
a articulação progride; a língua fica mais exata, mais clara, porém mais
morosa, mais surda e mais fria"90.O que, ao fim e ao cabo, fará com que estas
percam toda e qualquer possibilidade de despertar as paixões, motivar ações
políticas e a participação efetiva nos assuntos públicos.
É preciso salientar que as concepções de Rousseau acerca da origem, dos
progressos e da decadência das línguas e as implicações políticas e morais daí
decorrentes, tiveram em Condillac uma fonte substancial de inspiração. É certo
que Rousseau se diferencia em muitos e importantes pontos da teoria
condilaquiana, sobretudo no que diz respeito ao fato de a palavra ter surgido
em função das paixões morais e não das necessidades físicas, assim como, no que
concerne aos rumos e aos desdobramentos verificados nas línguas com o passar do
tempo. O que para Condillac parece indicar uma evolução, principalmente se
forem levadas em consideração a construção dos conhecimentos e as implicações
diretas na vida civil dos homens, para Rousseau corresponde a uma nítida
decadência, dado que a linguagem perde em capacidade de convencimento e de
motivação de ações políticas à medida que ganha em precisão e clareza. O fato é
que, apesar das profundas divergências, sempre se entenderá menos completamente
a teoria política e linguística de Rousseau se não tivermos em mente a
importância que exerceu a teoria condilaquiana para a construção da teoria
político-linguística do cidadão de Genebra.
Entretanto, este autor, que marcou tão profundamente a filosofia das luzes e
que contribuiu de forma substancial para a construção das teorias linguísticas
de Rousseau e de Diderot91 e de tantos outros autores do período ' e que
estudos recentes revelam ser a verdadeira origem de inúmeras ideias atribuídas
a linguistas e antropólogos da atualidade 92, acabou, por uma série de
contingências, ficando um tanto apagado na História da Filosofia, sobretudo no
Brasil, onde, até hoje, poucas são as pesquisas sobre ele.