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BrBRHUHu0100-512X2012000200003

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National varietyBr
Year2012
SourceScielo

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O contexto religioso-político da contraposição entre pirronismo e academia na "Apologia de Raymond Sebond"

A contraposição entre pirronismo e academia na Apologia incide especificamente sobre a doutrina carneadiana do pithanon, traduzida por Cícero como probabile e verisimile. Montaigne reproduz uma crítica tradicional ao ceticismo acadêmico, largamente difundida por Agostinho. A crítica se vale desta segunda tradução ciceroniana:1 a noção de verossimilhança pressupõe a noção de verdade, sendo incompatível com a epoche e, portanto, com um ceticismo consistente e integral.2 Se efetivamente uma diferença significativa entre estas duas tradições céticas antigas, a doutrina do probabilismo ou verossimilhança é a grande divisora de águas.3 Uma hipótese bastante aceita sobre o ressurgimento do pirronismo (ou surgimento do neopirronismo) no século I a.c. é a reação de Enesidemo, então membro da nova academia, à leitura epistêmica da doutrina de Carnéades proposta por Filo de Larissa.4 Como sugere Montaigne, a influência desta tradição neoacadêmica é enorme.5 Ela decorre da grande influência no período de Cícero, que foi aluno de Filo; e de Agostinho, que responde a Cícero. É conhecida somente uma parte que creio mínima da influência do ceticismo acadêmico no pensamento moderno ' em particular da doutrina da verossimilhança acadêmica ' apesar do grande crescimento dos estudos históricos sobre o ceticismo moderno desde os trabalhos de Popkin.6 No caso que nos interessa aqui, como bem notou Flávio Loque7, o ataque à verossimilhança na Apologia causa certa estranheza porque Montaigne a adota como critério de julgamento e de ação na própria Apologia e em diversos outros ensaios8. Para resolver este problema exegético da Apologia proponho uma dupla restrição do escopo do ataque à verossimilhança. Por um lado, mostrarei que o ataque visa mais a leitura epistêmica da verossimilhança proposta por Filo do que ao conceito carneadiano original. Por outro, situo-o em um contexto político- religioso bem específico. Esta contextualização soluciona também outros problemas ainda mais fundamentais que estudiosos da Apologia têm enfrentado como o problema da defesa paradoxal de Sebond, a inconsistência aparente das duas respostas de Montaigne às duas objeções e o problema do fideísmo. A minha hipótese é que o pirronismo de Montaigne na Apologia centra-se no ataque à verossimilhança acadêmica por ela ter sido apropriada por apologistas calvinistas.9 O ataque pirrônico à verossimilhança é a estratégia oferecida por Montaigne à rainha católica de Navarra e irmã do rei da França Marguerite de Valois, para eventual uso nas polêmicas religiosas em sua corte majoritariamente protestante de Nérac.10 Inicialmente farei breves considerações históricas que sugerem ter sido a Apologia majoritariamente escrita ou para municiar Marguerite de Valois em seus debates com os huguenotes ou para registrar por escrito conselhos que Montaigne teria sussurrado oralmente nos ouvidos da bela e sedutora rainha Margot.11 Em seguida farei uma análise de passagens centrais da Apologia que comprovam a identificação da posição acadêmica aos protestantes e da pirrônica como estrategicamente oferecida por Montaigne à rainha para auxiliá-la a resistir à verossimilhança calvinista.

O contexto histórico [A] Vós, por quem me dei ao trabalho de, contra meu costume, estender um corpo tão longo, não deixareis de defender vosso Sebond pela forma habitual de argumentar em que sois instruída diariamente, e exercitares nisso vosso espírito e vosso estudo; pois este último passe de esgrima deve ser empregado como um recurso extremo. (557- 558/337) A edição Villey-Saulnier acrescenta a seguinte nota sobre a pessoa a quem Montaigne se dirige na passagem: "Segundo uma tradição, pouco antiga na verdade, este ensaio seria dirigido a Margarida de Valois, a futura esposa de Henrique de Navarra" (557/337).

Em primeiro lugar urge uma correção factual da maior importância. Marguerite estava casada com Henri de Navarra, futuro Henri IV, quando a Apologia foi escrita. O casamento ' seguido da famosa noite sangrenta de São Bartolomeu ' foi celebrado em 1572 e Villey afirma que a Apologia não pode ser anterior a 1572, sendo, ainda segundo Villey, a maior parte (as passagens mais pirrônicas) provavelmente de 1576. Villey indica ainda passagens que não poderiam ter sido escritas antes de 1579. Mostro abaixo que 1579 é a data provável da redação, pelo menos da parte da Apologia que concerne mais diretamente a Marguerite, pois é quando a mesma se encontra na vizinhança de Montaigne.

Quanto à tradição de que a Apologia teria sido dirigida a Marguerite,12 ela é de fato relativamente recente no campo dos estudos montagnianos, mas remonta ao final da vida da rainha. Amaury Duval, editor de uma edição de 1827 dos Ensaios, afirma em uma nota que o "Vós" da passagem citada refere-se à Marguerite. Na nota relata possuir um exemplar dos Ensaioscom uma anotação neste sentido feita por Pierre-Charles Jamet, bibliófilo do século XVIII, na qual diz ter tomado ciência da identidade da destinatária por Hilarion de Coste em pessoa, primeiro biógrafo e contemporâneo dos últimos anos da rainha, falecida em 1615. Este fato é relatado em 1923 pelo estudioso de Montaigne Joseph Coppin, que identifica nas Memórias da princesa uma passagem em que muito provavelmente se refere com grande entusiasmo ao Livro das criaturas de Sebond, cuja leitura lhe teria sido um caminho de devoção.13 Vários elementos históricos dão plausibilidade à tese Duval-Coppin. Montaigne diz no início da Apologia que seu objetivo foi o de socorrer as damas que viram "seu livro" [das criaturas], traduzido por Montaigne,14 atingido "por duas objeções principais" que examinarei adiante. Marguerite é a principal dama de Navarra e uma das principais da França. A descrição do poder da destinatária corresponde perfeitamente à sua situação: "Vós que, pela autoridade que vossa grandeza vos traz e ainda mais pelas vantagens que as qualidades mais vossas vos dão, podeis com um piscar de olhos comandar quem vos aprouver" (558/338- 339). Marguerite era conhecida como dotada de qualidades físicas e espirituais excepcionais. Sua chegada a Gascogne e estabelecimento em Nérac com suas damas teve grande repercussão na época, e não somente na França. Shakespeare, por exemplo, escreveu uma comédia ambientada na corte de Nérac (Love's Labours Lost) que retrata o choque entre os nobres protestantes, liderados por Henri, moralmente rigorosos, mas um tanto broncos e ingênuos nas coisas do amor por um lado e as damas católicas recém-chegadas de Paris, lideradas por Marguerite, grandes especialistas na arte de sedução cortesã.15 A descrição por Montaigne da destinatária da Apologia resume bem a comédia de Shakespeare, na qual a princesa controla Ferdinand de Navarra (que representa Henri) e seus gentilshommes com um piscar de olhos.

Marguerite chega inicialmente a Bordeaux em outubro de 1578, onde é recebida com grande pompa pelos nobres da cidade. Em fevereiro de 1579 participa ativamente de uma conferência política reunindo católicos e protestantes em Nérac, onde ela estabelece sua corte junto ao marido até janeiro de 1582.16 Sua corte atraiu os grandes eruditos e poetas da região. Um destes poetas, Guy du Faur de Pibrac (1529-1584), conselheiro do rei como Montaigne e amigo pessoal do autor da Apologia, foi tesoureiro de Marguerite por quem se apaixonou.17 Embora não haja, até onde sei, documentos históricos que atestem a presença física de Montaigne em Nérac entre a chegada de Marguerite no final de 1578 e a publicação da primeira edição dos Ensaios(incluindo a Apologia) em 1580,18 os historiadores são unânimes em apontar a verossimilhança da frequentação de Montaigne da corte de Marguerite.19 Montaigne era então Chevalier de Chambre, tanto do rei católico da França Henri III, irmão de Marguerite, como do rei protestante de Navarra. Marguerite, como diz Montaigne, era estudada e tinha espírito (558/337). Este juízo era compartilhado por alguns dos "principais" huguenotes.20 Além de Sebond, Marguerite conhecia o pensamento de outros filósofos, especialmente da tradição neoplatônica, e era católica convicta. É difícil imaginar que não tenha sido intelectualmente desafiada por apologistas huguenotes a sustentar o catolicismo romano.21 Uma sua eventual conversão à religião do marido seria um trunfo enorme para o partido protestante.22 Entre a chegada de Marguerite na Gascogne e a publicação da Apologia decorreu quase um ano, tempo suficiente para que Montaigne "socorresse" [secourir] (440/163) Marguerite e suas damas católicas nas controvérsias a que se expuseram ao instalarem-se na corte protestante de Henri de Navarre.23 Dois dos maiores protestantes que se engajaram em controvérsias teológicas públicas oficiais com teólogos católicos, Du Plessis-Mornay e Agrippa d'Aubigné, eram conselheiros de Henri de Navarra na época. Aubigné, poeta mais frequente no caderno de poesias que Marguerite guardava em Nérac, afirma que a rainha não gostava dele por, entre outros motivos relacionados à intrigas de corte, "não ser complacente com suas vontades".24 A Apologia se ajusta a tal designío? Como observa Villey, os dois primeiros livros dos Ensaios não têm ' sobretudo na primeira edição de 1580 ' tanto o desígnio da pintura de si como o terceiro livro. O objetivo original dos dois primeiros livros é o "benefício particular de meus parentes e amigos; para que, ao me perderem (do que correm o risco dentre em breve), possam reencontrar nele alguns vestígios de minhas tendências e humores" (I, Ao leitor, 3/3). Este objetivo se desdobra em dois outros compatíveis. O simples registro em escrito da pessoa Montaigne, como souvenir na sua ausência e, mais raramente, o registro de conselhos específicos a amigas. O ensaio II.37/"Da semelhança dos filhos com os pais" tem o primeiro objetivo. Ele é dedicado à Madame de Duras por esta o ter visitado quando escrevia o ensaio. 25 Madame de Duras era a "confidente e favorita" da rainha de Navarra, a quem acompanhou na maioria das viagens pela França, incluindo esta a Gascogne quando encontrou Montaigne.26 No caso de Marguerite, evidentemente as conversações seriam no château da rainha, mas não menos amigáveis e ainda mais necessitadas de um registro escrito, pelo caráter de conselho que tem. Com efeito, dois outros ensaios de Montaigne dedicados a damas de suas relações constituem conselhos bem específicos, como o dado a Marguerite na Apologia. O ensaio II.8/"Da afeição dos pais pelos filhos" é dedicado à Madame d'Estissac então viúva e aparentemente avara com o seu filho. Montaigne lhe aconselha a deixar o filho gerir os bens da família. O ensaio I.26/"Da educação das crianças" é dedicado à Madame de Foix. Ela está grávida e Montaigne lhe conselhos sobre a educação do futuro filho.27 Mas, poder-se-ia questionar, se Marguerite é a destinatária da Apologia porque o seu nome é omitido, diferentemente dos nomes das outras damas a quem Montaigne se dirige nos Ensaios? É preciso distinguir destinatária da pessoa a quem se dedica uma obra. O ensaio II.8 não é destinado à Madame de Duras, mas somente a ela dedicado. O mesmo ocorre com a introdução aos versos de La Boétie, dedicados ' mas evidentemente não dirigidos ' a Madame de Grammont. Várias publicações de poetas, filósofos e eruditos foram dedicadas a Marguerite, seja pelo simples fato dela ser uma grande autoridade e patrona das artes, seja pelos seus interesses mais específicos, como o neoplatonismo no campo da filosofia.28 Outras obras foram dirigidas a ela ' sendo algumas explicitamente dedicadas, outras não ' como por exemplo as obras escritas por pretendentes e amantes. 29 A hipótese Duval-Coppin não é que a Apologia é dedicada à Marguerite, em cujo caso a omissão do seu nome exigiria uma explicação, mas que a Apologia é dirigida a Marguerite, como um conselho privado cuja divulgação pública da identidade da destinatária poderia ser até indevida.30 A hipótese de que Marguerite de Valois é a destinatária original da Apologia não é, portanto, incompatível com a natureza dos Ensaios. É compatível, também, com a singularidade da Apologia entre os Ensaios. Em primeiro lugar, a desproporção do seu tamanho. Na primeira passagem em que se dirige a Marguerite, Montaigne diz que ela foi a pessoa por quem ele se deu "ao trabalho de, contra o [s]eu costume, estender um corpo tão longo" (557/337). Outra especificidade da Apologia no corpo dos Ensaios é o fato de tratar de questões teológicas (440/164). Tais questões são tratadas justamente porque são essenciais nos debates para os quais Marguerite é assistida. Montaigne deixa claro que não trataria de tais questões e não faria um ensaio tão grande se não fosse pela solicitação de Marguerite e suas damas, o que indica tratar-se de alguém com autoridade soberana sobre ele.

Se Coppin está certo sobre a extensão da afeição de Marguerite pelo Livro das Criaturas de Sebond, este foi, muito provavelmente, um dos textos em que Marguerite apoiava a sua católica, pois, como diz Montaigne na Apologia, Sebond busca nele "vérifier" todas as doutrinas católicas, especialmente a eucaristia, principal alvo dos calvinistas.31 É natural que Marguerite recorresse a seu súdito católico, vizinho e tradutor do Livro das Criaturas para defendê-lo dos ataques calvinistas. Como Marguerite apoia seu catolicismo em Sebond, o socorro que Montaigne presta às damas que veem seu Sebond questionado visa, em última instância, a defesa do catolicismo.

O contexto das posições filosóficas As duas objeções a Sebond a que Montaigne respondeu na Apologia são as seguintes. A primeira "é que os cristãos estão errados em querer apoiar com razões humanas sua crença, que se concebe por e por uma inspiração particularizada da graça divina" (440/163-164). A segunda é que os "argumentos [de Sebond] são fracos e inadequados para demonstrar [vérifier] o que ele pretende, e dispõem-se a atacá-los facilmente" (448/175). Estas duas objeções são mutuamente conflituosas. A primeira recusa o papel da razão na apologética religiosa ao passo que a segunda tacitamente aceita tal papel, limitando-se a mostrar a inadequação da argumentação de Sebond para conferir verossimilhança às doutrinas católicas. Uma vez que estas duas objeções derivam de concepções distintas da relação entre razão e , elas confirmam a distinção que Montaigne faz entre os autores das duas objeções.32 As respostas que Montaigne a elas são ' se não contraditórias ' certamente conflituosas. Na resposta à primeira objeção, Montaigne defende o papel ' embora limitado ' da razão na apologética religiosa ao passo que a estratégia central da resposta à segunda objeção é radicalizar a insuficiência da razão, não somente em matéria apologética, mas em todas as matérias. Esta tensão se desfaz se pensarmos cada resposta como ad hominem, isto é, como válida somente para cada objetor.

Quem seriam estes objetores? No contexto das guerras de religião da época é plausível associar cada objetor a um dos partidos contrários que não eram os de Montaigne. Estes partidos contrários eram o protestante, liderado por Henri de Navarra, e a Santa Liga, fundada pelo duque de Guise para exterminar a religião calvinista do solo francês.33 Montaigne era do partido católico, mas moderado, próximo dos "politiques", que buscava uma solução conciliada para o conflito religioso.34 Os autores da primeira objeção conformam-se ao figurino dos membros da Liga.

São católicos "piedosos" e "zelosos" (440/164) que não querem disputar com os protestantes no terreno da razão.35 Pouco importa se a versão calvinista do cristianismo é mais verossímil do que a católica. A não somente tem outro fundamento (posição agostiniana com a qual Montaigne concorda), mas até dispensa a razão (posição não agostiniana da qual Montaigne discorda). Assim, é indiferente para estes objetores a questão de se os argumentos pró-católicos de Sebond são ou não válidos. Mais importante do que buscar persuadir os huguenotes com argumentos é impor a ortodoxia católica pela espada.

Montaigne responde, em primeiro lugar, defendendo como "uma iniciativa muito bela e muito louvável adaptar ao serviço de nossa os instrumentos naturais e humanos que Deus nos deu" (441/164). Montaigne aconselha Marguerite a seguir preferencialmente esta via apologética tradicional quando lhe apresenta a via extrema pirrônica, a ser empregada somente "como um recurso extremo": "Vós [...] não deixareis de defender vosso Sebond pela forma habitual de argumentar em que sois instruída diariamente, e exercitareis nisso vosso espírito e vosso estudo" (557-558/337).36 Dada a plasticidade da razão que, como veremos na resposta à segunda objeção, é capaz de produzir verossimilhança sobre não importa o que, Montaigne parece dizer aos zelosos da Liga: "Não devemos abandonar a razão para os huguenotes na disputa religiosa porque não é verdade que os argumentos verossímeis são os calvinistas. Nós também, católicos, podemos produzir ' e Sebond efetivamente produziu ' argumentos a favor de nossas doutrinas tão verossímeis quanto os calvinistas".37 Em segundo lugar, partindo para a ofensiva, Montaigne denuncia a arrogância e a superstição associadas a esta objeção "zelosa". A arrogância está na pretensão da própria do objetor estar fundamentada na graça divina, dispensando os frágeis instrumentos racionais naturais humanos.38 Na verdade o "zelo piedoso" se efetiva em ação política intolerante, violenta e sediciosa que, ao contrário de revelar a força da , mostra a instrumentalização da religião para fins meramente políticos. Montaigne fustiga então os membros da Liga. Estes que alegam uma base sobrenatural para a sua desmentem tal base pelas suas ações, em tudo semelhantes à dos heréticos huguenotes a que se opõem de forma tão radical. Os membros da Liga "empregam [a religião] de maneira tão semelhante [aos protestantes] em seus violentos e ambiciosos projetos, caminham numa marcha tão igual [aos protestantes] em desregramento e injustiça que tornam duvidosa e difícil de crer sua pretensa diversidade de opiniões" (443/167).39 Mesmo estas opiniões, ao contrário de fundarem-se na graça, respondem a interesses meramente humanos. Montaigne cita justamente a troca de opiniões entre protestantes e católicos da Liga após a morte de Henri III. Os huguenotes defendiam o direito de rebelião em nome da religião até que o direito da sucessão recaiu sobre Henri de Navarra. A partir daí passaram a defender o legalismo sucessório com o mesmo ardor exibido até então pelos católicos da Liga que, por sua vez, passaram a defender o direito da rebelião em nome da religião.40 A identificação dos primeiros objetores como membros da Santa Liga fica aqui a título de sugestão. Os elementos textuais que apontam nesta direção são menores do que os que permitem identificar os autores da segunda objeção ao outro partido extremado na época, os huguenotes.41 Uma leitura atenta da Apologia não deixa dúvida que a segunda objeção à Sebond visa a religião católica de Marguerite e sua entourage. Parece-me também evidente que a posição do objetor não é o que entendemos hoje por ateísmo. Em primeiro lugar simplesmente porque provavelmente não havia na Europa da época ateus no sentido de descrentes do Deus judaico-cristão.42 E ainda que existissem ateus na época de Montaigne,43 é impossível que o autor da Apologia se esteja referindo aqui a "ateísmo" como o concebemos hoje, pois tal posição certamente não existia na dimensão social diagnosticada.44 A designação por Montaigne deste segundo objetor como "ateu" ou de sua objeção como "ateia"45 precisa ser entendida no sentido que o termo tinha na época, a saber, como herético em relação à crença religiosa objetada.46 Montaigne lembra que quando o pai recebeu um exemplar do Livro das Criaturas do erudito Pierre Bunel, este recomendou a utilidade do mesmo na ocasião, "foi quando as novidades de Lutero começavam a entrar em voga e a abalar em muitos lugares nossa antiga crença. Nisso ele tinha uma opinião muito acertada, prevendo pelo raciocínio que aquele início de doença facilmente degeneraria num execrável ateísmo" (439/161-162). Este "ateísmo" de que fala Montaigne é, como ele explica na sequência, a consequência lógica da subordinação da crença religiosa ao julgamento pessoal.47 Descreve o racionalismo religioso do reformador que toma como verdadeiros aqueles dogmas cristãos cuja verossimilhança é atestada pela própria razão.48 Outra evidência que os adversários visados são racionalistas cristãos é o fato de Montaigne compará-los aos maniqueístas cristãos combatidos por Agostinho. "[C] Pois Santo Agostinho, arrazoando contra estas pessoas, tem a oportunidade de criticar sua injustiça por considerarem falsas as partes de nossa crença que nossa razão fracassa em estabelecer" (449/176).49 Os racionalistas cristãos heréticos da época de Montaigne são os protestantes que consideram falsas as partes da crença católica desprovidas de verossimilhança. Isto é precisamente indicado por Marie de Gournay em seu prefácio aos Ensaios, defendendo o catolicismo de Montaigne: "Quem poderia suportar estes novos Titãs do século, estes alpinistas do Céu, que pensam poder conhecer Deus por seus meios e circunscrever Deus, suas obras e as próprias crenças nos limites da própria investigação e razão, não querendo acolher nada como verdadeiro que se não lhes apareça como verossímil [vray-semblable]?"50 Os autores da segunda objeção são chamados de "novos doutores" por Montaigne logo em seguida à referência à Marguerite acima citada (559/340). Estes objetores são, portanto, teólogos da religião reformada. Isto indica que Marguerite se vale de Sebond para defender seu credo católico e que os apologistas huguenotes que frequentam a corte do marido como Du Plessis-Mornay e d'Aubigné atacam Sebond no sentido de mostrar a invalidade dos seus argumentos a favor dos dogmas católicos. A arma pirrônica que Montaigne oferece à rainha deverá ser usada caso "alguns desses novos doutores decidir fazer-se de engenhoso em vossa presença [isto é, buscar convencê-la da maior verossimilhança das doutrinas calvinistas], à custa de sua salvação e da vossa [isto é, à custa da salvação do calvinista herético e da rainha, caso esta seja persuadida pela verossimilhança das heresias]" (559/340). O conselho principal de Montaigne é muito claro: Marguerite deve permanecer católica. "Mantende-vos na rota comum [...]. Aconselho-vos, em vossas ideias e em vossas argumentações tanto quanto em vossos costumes e em qualquer outra coisa, a moderação e a temperança, e a fuga da novidade e da estranheza" (558/338).

Várias passagens da Apologia identificam a Reforma como "novidade".51 Outras passagens que também revelam a identidade dos autores da segunda objeção poderiam ser citadas. Por exemplo, a crítica à religião puramente espiritual de Numa visa os reformadores (513/271). Idem a extensa crítica às tentativas de limitação da potência divina à capacidade racional humana.52 Uma das passagens nas quais Montaigne se refere, na minha opinião, exclusivamente à Reforma é citada por Popkin53 como chave da associação entre o ceticismo e o fideísmo na Apologia. Segundo Montaigne, o pirronismo apresenta o homem nu e vazio, reconhecendo sua fraqueza natural, apropriado para receber do alto uma força externa, desguarnecido de ciência humana e portanto mais apto para alojar em si a divina, anulando seu próprio julgamento a fim de dar mais espaço para a , [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo algum dogma contra as observâncias comuns; humilde, obediente, disciplinado, zeloso; inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideias irreligiosas e vãs introduzidas pelas falsas seitas. (506/260).

O texto deixa claro que esta utilidade do pirronismo, pelo menos na primeira edição dos Ensaios,54 não é a de conduzir um ateu ou pagão ao cristianismo. A verdade ou falsidade ' ou o benefício ou malefício ' do cristianismo não está em questão na Apologia.55 A utilidade reivindicada é a manutenção do católico na religião católica, isto é, evitar sua conversão à religião reformada. O que o pirronismo favorece no contexto é a não utilização de nossa razão como critério de crença religiosa ' como fazem os protestantes.56 Proponho assim uma correção parcial de Popkin que contextualiza a posição de Montaigne na Contra- Reforma, mas também lhe atribui, a meu ver de forma anacrônica, uma visão fideísta do cristianismo. Popkin erra ao concordar com Villey que a Apologia teria sido escrita ' em suas partes substanciais ' "em 1575-1576, quando Montaigne, através do estudo dos escritos de Sexto Empírico, estava passando pelo trauma extremo de ver todo seu mundo intelectual se dissolver na dúvida completa". Não acho que a Apologia seja "o resultado d[a] crise pyrrhonienne pessoal [de Montaigne]"57 ' pelo menos não o seu resultado imediato ' nem que "juntamente com este desdobramento [...] vigoroso da crise pyrrhonienne, Montaigne constantemente introduz seu tema fideísta: a dúvida completa a nível racional, combinada com uma religião baseada na exclusivamente, que nos é dada não por nossas capacidades mas somente pela Graça de Deus"58. Como propus, a Apologia foi escrita majoritariamente em 1579 para subsidiar Marguerite e suas damas, não em uma defesa fideísta do cristianismo, mas como último recurso ' uma vez falhada a estratégia apologética católica racionalista tradicional que Marguerite deve priorizar ' como um antídoto pirrônico contra a apologética calvinista.59 Mantenho, portanto, a leitura de Popkin da Apologia como uma arma da Contra-Reforma, mas observando que o oponente protestante não é um dogmático mas um cético acadêmico probabilista filoniano que defende a maior verossimilhança do calvinismo, isto significando para ele uma maior proximidade da verdade comparativamente ao catolicismo.

A arma pirrônica de ataque à razão que constrói verossimilhança deve ser usada somente "na extrema necessidade". Marguerite deve utilizar Sebond e quem mais puder na forma apologética tradicional, isto é, buscando combater os huguenotes no terreno da razão, mostrando a maior verossimilhança da posição católica vis- à-vis a protestante. Como indiquei, Montaigne afirma ser isto possível em sua resposta à primeira objeção. Mas no caso de a rainha não conseguir contrapor aos argumentos calvinistas argumentos católicos pelo menos tão verossímeis quanto os dos "novos doutores" ' e evidências que indicarei abaixo de que Montaigne considera o calvinismo mais verossímil (mais racional, para a nossa razão finita e falível) do que o catolicismo ' deverá usar a arma pirrônica disponibilizada por Montaigne para justificar a sua não conversão.

Esta arma é a desqualificação da razão como instrumento de aproximação à verdade. O fato de uma doutrina aparecer verossímil não significa que esteja mais próxima da verdade ou que seja mais provavelmente verdadeira, pois a validade desta verossimilhança concerne exclusivamente à subjetividade humana, nada informando sobre a verdade das coisas.

Emmanuel Naya, num amplo estudo ainda não publicado sobre a influência dos ceticismos antigos no Renascimento,60 mostra que o probabilismo acadêmico foi utilizado por apologistas católicos como via para as verdades reveladas. Naya61 cita como um exemplo de tal utilização do probabilismo acadêmico o prefácio de Hervet à sua tradução de Sexto dedicada ao grande teórico da Liga, o cardeal de Lorrain (tio e tutor do chefe da Liga, Henri de Guise). Diz Hervet que o exercício cético é "bastante eficaz para estimular e aguçar a inteligência dos jovens que, somente então, estarão em condições de distinguir a verdade, pois separarão o que é provável e verossímil do que não o é, e enfim extrairão de muitos prováveis e verossímeis a verdade que ocultavam"62. O exame do contexto da Apologia aqui apresentado sugere que este uso apologético da verossimilhança acadêmica foi feito também pelos calvinistas autores da segunda objeção.

Verifica-se assim que tanto católicos como protestantes consideraram sua religião mais verossímil do que a do outro, fazendo a mesma apropriação apologética deste probabilismo epistêmico filoniano. Minha leitura concorda com a de Naya no sentido em que este diverge da leitura fideísta de Montaigne proposta por Popkin. Entretanto, não me parece evidente que Montaigne recuse o probabilismo acadêmico a favor do ceticismo pirrônico pela razão de somente o primeiro ser cristianizável 63. O alvo da Apologia não é a verossimilhança tal como defendida por um Hervet como ponto de partida para a aceitação da revelaçãocristã, mas o uso desta estratégia pelos protestantes para justificarem a reforma de determinadas crenças cristãs, a saber, os dogmas desprovidos de verossimilhança. A posição de Hervet é a mesma de Agostinho que toma a verossimilhança epistemicamente, isto é, como pressupondo ' no caso também apontando para ' a verdade.64 Montaigne rejeita esta interpretação epistêmica da verossimilhança, mas como a argumentação pirrônica na Apologia tem um alvo bem específico, não podemos dizer se Montaigne rejeita ou não qualquer uso apologético cristão do ceticismo.

Montaigne se dirige a Marguerite poucas páginas antes da crítica à verossimilhança acadêmica. Esta crítica é o núcleo duro do conselho que à princesa e compreende o segmento da Apologia em que Montaigne ataca a razão diretamente (339-558-576/365). Montaigne diz que a posição pirrônica é mais coerente do que a acadêmica, retomando contra os acadêmicos a objeção de Agostinho de que o verossímil pressupõe a verdade (tese que para Agostinho era admitida secretamente pelos acadêmicos).65 A crítica de Montaigne afasta a interpretação filoniana, restituindo a verossimilhança ao seu significado original carnediano, segundo o qual um abismo intransponível entre verossimilhança (que diz respeito ao aspecto da impressão voltada para o sujeito) e conhecimento das coisas (que diz respeito ao aspecto da impressão voltado para o seu objeto).66 A rejeição de qualquer valor epistêmico da verossimilhança é coerente com a própria crítica acadêmica ao poder de nossas faculdades de alcançar a verdade. 67 A precariedade de nossas faculdades (de nossa natureza) determina a precariedade da verossimilhança enquanto instrumento epistêmico. Além disto, o diagnóstico cético desta precariedade recomenda ' por razões práticas ' a suspensão do juízo, que está de acordo com o ideal de sabedoria acadêmico (na interpretação não dialética da nova academia): se não podemos alcançar a verdade, podemos ao menos evitar o erro não dando o assentimento mesmo ao que parecer plausível (verossímil) para as nossas faculdades.

embora estabelecessem [...] que a verdade está engolfada em profundos abismos [os acadêmicos] admitiam que algumas coisas eram mais verossímeis [vray-semblables] do que outras e admitiam em seu julgamento essa faculdade de se poder inclinar mais para uma aparência do que para outra. [...] Mas como eles se deixam dobrar pela verossimilhança, se não conhecem a verdade? [...] Se nossas faculdades intelectuais e sensíveis não têm fundamento nem base, se não fazem mais que flutuar e girar ao vento, por nada deixemos levar nosso julgamento a alguma parte de sua operação, qualquer que seja a aparência que esta pareça nos apresentar. (562/344 ' ênfases adicionadas).

O contexto desta posição é a verossimilhança das doutrinas calvinistas e a inverossimilhança das católicas, tal como argumentadas pelos apologistas huguenotes que frequentavam a corte de Nérac. "Esta facilidade que têm os bons espíritos de tornar plausível [vraysemblable] o que quiserem ' e não nada estranho que eles não se aventurem a dar-lhe cor suficiente para enganar uma simplicidade como a minha ' mostra claramente a fragilidade de sua prova" (570/ 356).68 Além do problema da coerência, o probabilismo aparece aqui como inadequado até como critério prático da ação. Como a razão pode construir e desconstruir verossimilhança, esta não constitui um guia estável para a ação.

Este é o uso propriamente pirrônico da razão.69 Qualquer crença, por mais verossímil que seja, poderá ser suspensa, seja graças a habilidade do pirrônico de estabelecer a igual verossimilhança de uma crença contrária, seja, como último recurso quando o pirrônico não consegue estabelecer a equipolência, pelo argumento falibilista que desqualifica epistemologicamente a verossimilhança.

"Assim, quando alguma doutrina nova se apresenta a nós, temos muita razão em desconfiar dela e considerar que antes que fosse produzida sua contrária estava em voga; e assim como aquela foi derrubada por esta, no futuro poderá nascer uma terceira invenção que da mesma forma se chocará com a segunda" (570/356- 357).70 Esta é bem a situação de Marguerite em Nérac, a quem foi apresentada de forma verossímil uma nova doutrina ' a calvinista ' contra a qual ela não consegue contrapor uma católica igualmente verossímil. Apesar disto, Marguerite não agirá contra a razão mantendo a doutrina que lhe aparece na ocasião menos verossímil. Basta considerar que antes de Calvino as doutrinas católicas eram verossímeis e que poderá surgir novo reformador religioso que mostrará a inverossimilhança das doutrinas calvinistas. Além disto, dada a plasticidade da razão, basta habilidade para as mesmas doutrinas serem sucessivamente mostradas verossímeis e inverossímeis.71 Vemos assim que mesmo restituída à sua dimensão exclusivamente prática, a probabilidade acadêmica não deve ser observada em questões fundamentais e controvertidas como a sobre a qual Montaigne aconselha Marguerite. Se a princesa ou Montaigne ou qualquer outro seguisse o verossímil, não pararia de rolar em meio a diferentes seitas, eventualmente retornando e tornando a sair das mesmas seitas em função da contingência de se deparar com apologistas habilidosos das mesmas.

Montaigne cita o seu caso pessoal no aconselhamento à Marguerite.

[A] Ora, do conhecimento dessa minha volubilidade acidentalmente gerei em mim uma certa constância de ideias, e dificilmente tenho alterado as minhas primeiras e naturais, pois qualquer que seja a aparência [quelque apparence] da novidade, não mudo facilmente, pelo medo que tenho de perder na troca. E, posto que não sou capaz de escolher, tomo a escolha de outrem e mantenho-me na posição em que Deus me pôs. De outra forma eu não conseguiria impedir-me de ficar rolando sem parar. Assim, pela graça de Deus, conservei-me intacto [...] nas antigas crenças de nossa religião, em meio de tantas seitas e divisões que nosso século produziu. (569/355 ' ênfases adicionadas).

Montaigne provavelmente se refere a um dilema pessoal que viveu em algum momento de sua vida. Se se tivesse guiado pela verossimilhança na querela religiosa ter-se-ia, como a sua mãe e irmãos, convertido ao calvinismo. 72 No ensaio I, 27/"É loucura condicionar ao nosso discernimento o verdadeiro e o falso", podemos entender melhor porque Montaigne pode permanecer católico sem problema de consciência mesmo verificando a maior verossimilhança de pelo menos algumas doutrinas calvinistas. Diz que "é uma tola presunção ir desdenhando e condenando como falso o que não nos parece verossímil; esse é um vício habitual nos que pensam ter algum discernimento além do comum [como os novos doutores da corte de Nérac]. Outrora eu agia assim". O caso relevante é citado no final do ensaio: o problema da Reforma.

Ora, o que me parece trazer tanta desordem a nossas consciências, nesses distúrbios religiosos em que estamos, é essa dispensa que os católicos fazem de sua . Parece-lhes que agem como moderados e sensatos quando cedem aos adversários alguns artigos dos que estão em debate. Mas, além de não verem quanta vantagem a quem vos ataca começardes a ceder-lhes e recuardes, e como isso o anima a prosseguir sua investida, esses artigos que eles escolhem como os de menor peso são às vezes muito importantes. Ou é preciso submeter-se totalmente à autoridade de nossa política eclesiástica, ou dispensá-la totalmente.

Não cabe a nós estabelecer a parcela de obediência que lhe devemos. E mais ainda: posso dizê-lo porque o experimentei, tendo outrora usado essa minha liberdade pessoal de escolha e seleção para negligenciar certos pontos da observância de nossa Igreja que parecem ter um aspecto mais vão ou mais estranho e vindo a falar disso com os homens sábios, descobri que tais coisas têm um fundamento maciço e muito sólido e que apenas a tolice e a ignorância nos fazem recebê-las com menos respeito que ao restante. Por que não lembrarmos quanta contradição sentimos em nosso próprio discernimento? Quantas coisas ontem nos serviam de artigos de e hoje nos são fábulas? (I, 27, 181-182/271-272).

Este souvenir pessoal remete ao trecho da Apologia sobre a mutabilidade da razão.

Quando me pressionam com um novo argumento, cabe a mim estimar que aquilo a que não puder satisfazer, um outro satisfará; pois acreditar em todas as aparências das quais não nos podemos livrar é uma grande ingenuidade. Dessa forma aconteceria que todos os homens comuns [...] veriam sua convicção girando facilmente, como um cata-vento, pois sua alma, sendo maleável e sem resistência, seria forçada a acolher incessantemente outras impressões, a última apagando sempre o rastro da anterior. (570-571/357).

Passagens como esta desta parte da Apologia embasam as leituras do ceticismo de Montaigne feitas por Giocanti e Brahami, segundo as quais Montaigne romperia com a epoche em função da incapacidade antropológica humana de resistir ao verossímil. Pois é justamente a posição contrária que Montaigne defende aqui: trata-se de resistir ao verossímil ' ao menos em questões cruciais em que a vida ou salvação estão em jogo, como é o caso, respectivamente, da medicina e da religião.73 Em questões menos importantes que não são objeto de controvérsia, podemos seguir nossa inclinação natural e aderir ao verossímil, cuja força é reconhecida por Montaigne.74 Somente espíritos fortes são capazes de resistir-lhe75 ' como dirá Charron pouco depois ' 76 e é por isso que Montaigne recomenda um uso muito circunstanciado e secreto da estratégia pirrônica. Note que por "razão" aqui Montaigne entende "esta aparência de raciocínio [discours] que cada qual forja em si ' essa razão por cuja condição pode haver cem raciocínios contrários em torno de um mesmo assunto, é um instrumento de chumbo e de cera, alongável, dobrável e adaptável a todas as perspectivas e a todas as medidas; é preciso apenas a habilidade de saber dar-lhe contorno" (565/349). Esta é a razão que constrói verossimilhanças. A ela Montaigne opõe a pirrônica, que se vale desta mesma maleabilidade, não para construir mas para destruir a verossimilhança que impede a suspensão do juízo. Marguerite deve fazer como Montaigne, não se deixar levar pela verossimilhança das doutrinas calvinistas nem se afastar do catolicismo pela inverossimilhança de algumas de suas doutrinas. Antes de Nérac doutrinas católicas pareciam verossímeis a Marguerite, católica convicta. Em Nérac, exposta aos apologistas huguenotes, algumas destas mesmas doutrinas agora lhe aparecem inverossímeis. Mas se Marguerite se converter por causa disto ' ato que teria enorme repercussão na politica francesa da época ' poderá eventualmente, após retornar ao Louvre e se expor novamente a habilidosos apologistas católicos, voltar a considerar as doutrinas rejeitadas como mais verossímeis. Deve portanto desconsiderar a verossimilhança. Mudanças tão radicais e monumentais como as deslanchadas pela Reforma ' seja dos grandes do reino, seja de multidões dos povos (que vão atrás dos grandes) ' são incompatíveis com a natureza do estado, como diz Montaigne, este grande corpo que se sustenta somente pelo seu próprio peso.77


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