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BrBRHUHu0100-512X2012000200004

BrBRHUHu0100-512X2012000200004

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0100-512X
Year2012
Issue0002
Article number00004

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O método cético da oposição e as fantasias de Montaigne

1. Discutiu-se muito sobre o ceticismo de Montaigne. Para alguns, o ceticismo antigo fornece a chave para entender a forma específica de seu ceticismo1; outros sustentam que Montaigne é um cético, mas não nos moldes do ceticismo antigo2; e quem negue que o pensamento de Montaigne possa ser caracterizado como cético3. Sem ter a pretensão de resolver essa questão, eu gostaria de argumentar em favor de uma posição intermediária: a variedade de ceticismo apresentada por Montaigne, embora incorpore muitos elementos do ceticismo antigo, não pode ser identificada com o pirronismo ou o ceticismo acadêmico, não somente por modificar esses elementos, mas também por desenvolver uma forma de duvidar original4.

2. Num capítulo sobre o suicídio, Montaigne se refere à ideia de que filosofar é duvidar. Aparentemente, ele se alinha a essa concepção, pois o que faz, "entreter-se com ninharias e fantasiar", também "deve ser duvidar" (II, 3, 350/ 29). Permanecer na dúvida cabe aos aprendizes, enquanto os catedráticos a resolveriam. Noutro capítulo, em que trata "Dos livros", Montaigne também contrasta os mestres com os aprendizes, novamente se alinhando com os aprendizes. "Não tenho dúvida de que frequentemente me ocorre falar de coisas que são mais bem tratadas pelos mestres do ofício, e mais verdadeiramente." (II, 10, 407/114) Uma dúvida pode ser respondida de maneira que obtenhamos uma resposta certa e verdadeira; é isso o que faz um catedrático ou mestre.

Montaigne não pretende falar das coisas com conhecimento de causa ou verdadeiramente, mas, como um aprendiz5, ele duvida.

O que, no entanto, Montaigne entende por "duvidar"? Nessa passagem, não está claro o que seja, precisamente, duvidar. Uma coisa parece certa: duvidar, seja como filosofar, seja como entreter-se com ninharias e fantasiar, é "investigar e debater" como um aprendiz, e não "resolver" como um catedrático (II, 3, 350/ 29). Duvidar, concebido como investigar e debater, é produzir contradições ou contestar, uma vez que a autoridade divina, que resolve, e não duvida, nos rege "sem contradição", situando-se acima das "contestações humanas e vãs" (II, 3, 350/29). Pode-se inferir, então, que, no caso das questões humanas, que são investigadas e debatidas, contradição e contestação e, portanto, não autoridade inquestionável. Assim, duvidar sobre as coisas humanas seria examinar o que se disse sobre o assunto e debater as opiniões, isto é, estabelecer oposições entre elas.

Os filósofos que pensam que filosofar é duvidar e que duvidar é, fundamentalmente, investigar e debater são os céticos. Na "Apologia", Montaigne apresenta a divisão proposta por Sexto Empírico, segundo a qual a filosofia se divide em três seitas: a dos dogmáticos, a dos acadêmicos e a dos céticos pirrônicos. Enquanto os dogmáticos pretendem ter descoberto a verdade e os acadêmicos, que a verdade não pode jamais ser descoberta, os céticos pirrônicos continuariam investigando-a, "de modo que a profissão dos pirrônicos é de abalar, duvidar e investigar, não garantir nada, nada responder." (II, 12, 502/ 255) O que caracterizaria especificamente a posição pirrônica seria, nessa apresentação tomada de empréstimo a Sexto Empírico por Montaigne, a dúvida e a investigação.

A identificação daqueles que dizem que filosofar é duvidar com os céticos acomoda-se bem com a ideia de que duvidar é contradizer ou contestar. Afinal, os céticos pirrônicos "não temem a contestação em sua disputa. Quando dizem que o pesado vai para baixo, ficariam bastante aborrecidos se se acreditasse neles e procuram que se os contradiga para gerar a dúvida e a suspensão do juízo, que é seu fim." (II, 12, 503/255) A dúvida nasce precisamente dessa capacidade de produzir contradições entre as proposições. A contradição não se limita às proposições, mas envolve também os argumentos empregados para sustentar as proposições contrárias ou contraditórias, de modo que argumentar tanto a favor da afirmação como da negação produz igualmente uma dúvida. A maneira pela qual os pirrônicos investigam e debatem é aplicando o que se poderia chamar de método da oposição, isto é, uma técnica por meio da qual os pirrônicos produzem infindáveis contradições entre as opiniões que se pretendem verdadeiras. "Não razão que não tenha uma razão contrária a ela, diz o mais sábio partido dos filósofos" (II, 15, 612/419), isto é, o dos céticos.

Montaigne pensa que a essência da filosofia, por assim dizer, é duvidar e, portanto, investigar e debater. A esse respeito, ele corrige Sexto Empírico, embora pareça apenas retomá-lo6. Segundo Sexto (HP I, 1-4), somente os pirrônicos investigam e se encontram em aporia. Tanto os acadêmicos como os dogmáticos interromperiam sua investigação, pois teriam chegado a um resultado definitivo, seja que é possível conhecer ou não é possível conhecer. Embora parta desse divisão tripartida da filosofia, Montaigne logo acaba por abolir as distinções traçadas por Sexto. Primeiro, ao expor a posição cética, ele acaba por combinar elementos pirrônicos e acadêmicos. Por exemplo, mistura a probabilidade acadêmica com a aparência pirrônica. De maneira talvez um tanto irônica, diz que o pirronismo é a opinião mais verossímil (II, 12, 506/260). A exposição do ceticismo conclui dizendo que "das três seitas da filosofia, duas fazem profissão expressa de dubitação e ignorância" (II, 12, 506/260). Em particular, pode-se dizer que o princípio pirrônico de opor a todo discurso um discurso oposto de igual força é endossado pelos acadêmicos7. A fronteira entre pirronismo e ceticismo acadêmico é, assim, apagada8.

E quanto ao dogmatismo? Talvez se possa dizer o mesmo, ainda que com menos clareza. Segundo Montaigne, "é fácil descobrir que a maioria assumiu a face da segurança somente para ter melhor semblante. Eles não pensaram tanto em nos estabelecer alguma certeza como em mostrar-nos até onde foram nessa caça da verdade" (II, 12, 506-507/260). A sequência do texto procura sustentar essa opinião um tanto surpreendente e desconcertante, embora certamente contenha alguma dose de ironia. O fato é que Montaigne interpreta boa parte dos dogmáticos como se também eles estivessem sobretudo investigando e duvidando. E explora expedientes que esconderiam a dúvida sob a roupagem da certeza: dar razões prováveis, como Sócrates; empregar a forma do diálogo, como Platão; usar uma linguagem obscura, como Aristóteles. A dúvida se insinua no discurso dogmático das mais diferentes maneiras. Poucos, entretanto, lançarão mão do método cético de oposição. Assim, os filósofos desta terceira seita "têm uma forma de escrever duvidosa na substância e um desígnio investigativo mais do que instrutivo" (II, 12, 509/264).

A diferença entre ceticismo e dogmatismo seria mais de grau do que de natureza.

O pirronismo seria a seita em que essa característica essencial do filosofar é mais evidente, "pois estes [os pirrônicos] ganham sempre o ponto alto da dúvida" (II, 12, 587/382); o ceticismo acadêmico, de maneira talvez um pouco incoerente, mal se afastaria dessa dúvida; e, embora talvez oculta em parte, a dúvida estaria presente também nos mais variados dogmatismos. Cada seita, à sua maneira, poria em prática a dúvida filosófica, mas em graus diversos9.

Uma consequência curiosa dessa ausência de fronteiras precisas é que também as filosofias céticas (pirrônica e acadêmica) podem ter opiniões. Veremos mais adiante como Montaigne incluirá os céticos na diaphonía entre os filósofos, que também os céticos opinariam. Portanto, se o verso da moeda é que os dogmáticos duvidam, investigam e debatem como os céticos, o reverso é que os céticos opinam como os dogmáticos. E assim como graus de dúvida, também graus na formulação de uma opinião. Enquanto os dogmáticos tendem a simplesmente afirmá-las, os acadêmicos as enunciam como meramente "prováveis" e os pirrônicos não somente não as afirmam, como fazem os dogmáticos, como sequer as consideram "prováveis", à maneira dos acadêmicos.

Ora, se Montaigne se inclui entre aqueles que duvidam e, entre os filósofos que duvidam, estão em primeiro lugar os pirrônicos, então parece haver uma estreita afinidade entre Montaigne e esses céticos. Não somente pela dúvida, como investigação e debate, ou por elogiar o ceticismo como o "mais sábio partido dos filósofos", mas também por confessar sua ignorância, Montaigne se aproximaria dessa seita filosófica: "quem me surpreender na ignorância não fará nada contra mim, pois dificilmente responderei a outrem por meus discursos, eu que não respondo a mim por eles, nem estou satisfeito com eles." (II, 10, 407/ 114) A livre e despreocupada confissão da ignorância, o afastamento de qualquer compromisso com o conteúdo do que se afirma seriam indícios de sua aproximação com o ceticismo; afinal, os céticos, quando afirmam ou negam, o fazem somente com espírito polêmico, sem comprometer-se com o que é enunciado. Creio que não a menor dúvida a respeito das afinidades entre o pensamento de Montaigne e o dos pirrônicos e demais céticos.

Frequentemente se diz que Montaigne não suspende o juízo como fazem os céticos e, por isso, não é um cético. Mas, dada a interpretação acima, o fato de Montaigne opinar deixa de ser um problema para aproximar seu pensamento da filosofia cética. Afinal, a principal diferença entre os céticos pirrônicos e acadêmicos com relação aos dogmáticos não seria propriamente a de que os últimos opinariam e os primeiros não, que todas as seitas opinam, mas a maneira pela qual opinam. Montaigne não opinará à maneira dogmática, de forma mais assertiva; sua maneira de sustentar uma opinião é mais próxima da dos céticos: sem vaidade, sem afirmação, ora restringindo-se à mera probabilidade, muitas vezes nem dessa maneira acadêmica.

3. Examinemos, então, o que Montaigne pensa da maneira pirrônica de investigar e debater e que uso ele faz desse método cético da oposição10. Montaigne, numa passagem, reconhece-se como um "filósofo impremeditado e fortuito" (II, 12, 546/320; itálico meu). Ora, dizer-se "filósofo" implica, como vimos, duvidar, o que, por sua vez, parece implicar o emprego do método cético da oposição.

Encontramos, na "Apologia", passagens que parecem uma aplicação do método cético, que exploram a "infinita confusão de opiniões" e o "debate perpétuo e universal sobre o conhecimento das coisas" (II, 12, 562/345). Montaigne, na esteira dos céticos antigos, entende que "não existe nenhuma proposição que não seja debatida e controversa entre nós" (II, 12, 562/345). Por exemplo, os argumentos para mostrar que não podemos conhecer Deus incluem o argumento da diaphonía, em que Montaigne faz uma enumeração das concepções sobre a divindade (II, 12, 514-516/272-275). Ao tratar da diversidade de dialetos e línguas, Montaigne se refere à "infinita e perpétua altercação e discordância de opiniões e de razões que acompanham e embaraçam a construção da ciência humana" (II, 12, 553/331). São inúmeras as passagens de Montaigne em que a diversidade e a contradição das opiniões são invocadas contra o dogmatismo e a pretensão de ter descoberto a verdade. Montaigne relembra, nesse contexto, os tópicos céticos da falta de critério para resolver o conflito ou os modos de Agripa, como a circularidade (por exemplo: II, 12, 600-601/402), a hipótese ou regressão ao infinito (por exemplo: II, 12, 601/402-403), que impediriam a escolha racional entre as opiniões. Diante da diversidade de opiniões, não juiz imparcial. "De resto, quem será adequado para julgar essas diferenças? Como dizemos, nos debates sobre religião, que é preciso um juiz não ligado a um nem ao outro partido, isento de escolha e de paixão, o que não é possível entre os cristãos, ocorre o mesmo aqui." (II, 12, 600/401-402) Montaigne repete o argumento de que não juiz imparcial para emitir um veredicto entre as opiniões conflitantes.

Os argumentos céticos são retomados por Montaigne, como o modo da relatividade (cf. II, 12, 562/345 e 598/399). Além disso, muitos dos 10 Modos de Enesidemo encontram-se presentes nas considerações de Montaigne. Por exemplo, o primeiro Modo, que mostra a divergência entre as percepções dos homens e a dos animais, sendo impossível preferir as nossas às deles (cf. II, 12, 596/396). Logo a seguir, Montaigne invoca a diversidade perceptiva entre os próprios homens, o que corresponde ao segundo Modo de Enesidemo (cf. II, 12, 598/398-399). Em terceiro lugar, ainda seguindo a ordem dos Modos de Enesidemo apresentada por Sexto, Montaigne mostra que, mesmo se os homens estivessem de acordo uns com os outros, os sentidos não estariam de acordo entre si (cf. II, 12, 599/399). E, relembrando alguns exemplos conhecidos, contrasta a percepção entre os diversos sentidos11.

No entender de Montaigne, uma investigação cuidadosa e completa de um determinado assunto parece levar à suspensão do juízo. "Neles [nos negócios] nos perdemos ao considerar tantos aspectos contrários e formas diversas... Quem busca e abarca todas as circunstâncias e consequências, impede sua eleição." (II, 20, 675/513-514) O resultado de todo esse uso do arsenal cético, pirrônico e acadêmico não pode ser senão a abstenção de julgar a respeito das coisas.

"Não temos nenhuma comunicação com o ser, porque toda a natureza humana está sempre no meio entre nascer e morrer, cedendo de si somente uma obscura aparência e sombra, e uma incerta e débil opinião." (II, 12, 601/403) Ao fechar as cortinas, no final de sua "Apologia", é a lição do ceticismo antigo que parece triunfar. Nada nos restaria senão a suspensão do juízo e "nada certo pode ser estabelecido" (II, 12, 601/403).

Essas considerações todas tornam inegável uma proximidade de Montaigne com os céticos antigos. Não nenhuma dúvida de que Montaigne usa, ao menos na "Apologia", mas também noutros capítulos, as armas empregadas pelos céticos antigos, sobretudo os pirrônicos, contra o dogmatismo12. A maneira pela qual os pirrônicos, em particular, combatem os filósofos dogmáticos é muitas vezes retomada por Montaigne de maneira cuidadosa, ainda que pareça ter somente uma longínqua inspiração. Não por acaso ou sem razão, portanto, Montaigne se inclui entre aqueles que duvidam, afastando-se daqueles que decidem. Cabe perguntar, entretanto, até que ponto, ao retomar esses velhos tópicos céticos, Montaigne é fiel à letra e ao espírito do ceticismo antigo.

4. , entretanto, algumas peculiaridades no uso montaigniano do método cético da oposição. Uma primeira peculiaridade é que Montaigne nem sempre faz acompanhar uma opinião de sua argumentação. Não raro, o que encontramos é somente uma lista de opiniões. Enquanto Sexto faz acompanhar uma tese de sua argumentação, Montaigne simplesmente enumera uma diversidade enorme de opiniões conflitantes. Embora, nos dois casos, haja uma abstenção sobre qual seria a opinião verdadeira, o caminho parece diferente: num caso, os argumentos opostos se anulam mutuamente, que são igualmente fortes; no outro caso, parece que a sucessão infindável de opiniões conduz o leitor a desistir de achar a verdadeira opinião13.

Não é difícil, entretanto, conciliar essa primeira peculiaridade com o método cético da oposição. Montaigne poderia estar supondo que cada opinião, em seu lugar de origem, tem um discurso que a sustenta, e, por isso, dispensa-se de fornecer a seu leitor esses argumentos. O próprio Sexto Empírico parece pressupor, em muitas ocasiões, o discurso dogmático positivo e somente apresenta os argumentos negativos, destinados a contrabalançar o discurso dogmático e, equilibrando as forças, suspender o juízo. Por que Montaigne não poderia somente fornecer a lista de opiniões, sem precisar expor todos os argumentos envolvidos? A esse respeito, percebe-se uma segunda peculiaridade na posição de Montaigne.

Enquanto para os pirrônicos a posição mais coerente é a que estabelece uma estrita equivalência entre a força das opiniões conflitantes, Montaigne parece aceitar que algumas opiniões são mais verossímeis do que outras, aproximando-se mais dos acadêmicos (cf. II, 12, 506/260 e 513/270). Assim, embora os pirrônicos levem a dúvida a seu mais alto grau, os acadêmicos parecem estar numa situação mais confortável, quando se trata de extrair o resultado do método cético da oposição.

Mas Montaigne também rejeita a verossimilhança em muitas passagens, com base no argumento pirrônico de que, sem a posse da verdade, não se pode comparar uma opinião com outra e dizer qual é mais verossímil (cf. II, 12, 561-562/343-344).

Além disso, Montaigne diz que, na vida prática, devemos seguir o mais verossímil, que são as leis e costumes. Mas isso, diz Montaigne, tornaria a vida impossível (cf. II, 12, 578-579/369-371). Assim, não está claro até que ponto Montaigne acha que o método cético da oposição conduz à suspensão pirrônica do juízo ou à verossimilhança e probabilidade acadêmicas. Até que ponto Montaigne aceita opiniões prováveis ou verossímeis, mesmo depois de dizer que os pirrônicos são mais coerentes do que os acadêmicos, isto é, depois de recusarem sua noção de probabilidade? Tal como a primeira peculiaridade, esta segunda não apresenta uma novidade clara em relação ao ceticismo antigo nas suas duas formas principais.

Talvez a mais notável peculiaridade seja a inclusão das opiniões céticas (pirrônicas e acadêmicas) no conflito das filosofias. Como entender essa surpreendente inclusão dos céticos no debate entre os filósofos? vimos que Montaigne coloca os céticos ao lado dos dogmáticos, sem traçar uma distinção nítida entre as três principais seitas. Ao sugerir que não fronteiras nítidas entre elas, Montaigne não somente defendeu que a dúvida era a essência da filosofia, inclusive da dogmática, como também aceitou que o ceticismo poderia ter opiniões. Noutras palavras, Montaigne aceitou que um uso da razão, que é o de investigar e debater, no qual se podem sustentar opiniões.

Não surpreende, assim, que os céticos acadêmicos, com suas opiniões prováveis, igualmente aos pirrônicos, com suas "aparências", passem a integrar o conflito das filosofias. Vale a pena explorar esse ponto mais de perto.

uma importante passagem sobre a "infinita confusão de opiniões" (II, 12, 562/345). Se Montaigne estivesse somente aplicando o método cético das oposições, então natural seria esperar que somente as opiniões dogmáticas estariam incluídas nesse "debate perpétuo e universal sobre o conhecimento das coisas" (II, 12, 562-563/345). Surpreendentemente, constata-se que, nesse debate, os céticos também estão incluídos, pois Montaigne diz que não equipolência entre as seitas, mas pirrônicos e acadêmicos triunfam sobre os demais. "Aqueles que duvidam de tudo [os pirrônicos] duvidam também disso [que o céu esteja sobre nossa cabeça]; e aqueles que negam que possamos apreender alguma coisa [os acadêmicos] dizem que não apreendemos que o céu esteja sobre nossa cabeça; e essas duas opiniõessão, em número, sem comparação as mais fortes." (II, 12, 563/345; itálicos meus). Qual das duas formas de ceticismo seria a mais forte? É difícil dizer, pois a passagem de Montaigne é deliberadamente ambígua. Pode parecer que, assim como o pirronismo é a seita que leva a duvida a seu ponto mais alto, também aqui vemos sua superioridade sobre o ceticismo acadêmico, afinal "a opiniãodos pirrônicos é mais ousada e, ao mesmo tempo, mais verossímil" (II, 12, 561/344; itálico meu). No entanto, dizer que o pirronismo é mais "verossímil" parece indicar uma adesão ao ceticismo acadêmico. Em suma, uma vez incluídos no debate filosófico, os céticos o desequilibram, pois os céticos pirrônicos e acadêmicos parecem ter a opinião mais forte (cf. II, 15, 612/419). Essa consideração, ao mesmo tempo em que aproxima Montaigne dos céticos antigos, que lhes confere primazia sobre os dogmatismos, também o afasta deles em alguma medida, que, no conflito filosófico concebido por Montaigne, em que os céticos estão incluídos, não haveria equipolência.

Vejamos outro exemplo. Segundo Montaigne, uma das questões mais debatidas entre os filósofos é a do soberano bem; haveria, segundo Varrão, 288 seitas! (II, 12, 577/367). Eis a diaphonía elevada aos píncaros. Curiosamente, Montaigne introduz, entre as tantas opiniões filosóficas, as opiniões de Arcesilau e dos pirrônicos: para o primeiro, o juízo seria um mal e a suspensão do juízo um bem; os pirrônicos, discordando de Arcesilau, defenderiam que o fim é a ataraxía (e o não admirar-se com coisa nenhuma) (II, 12, 578/368). Assim, as opiniões dos acadêmicos e pirrônicos integrariam o conflito das filosofias, não se situando fora dele, mesmo que os pirrônicos expressem sua opinião de uma forma não afirmativa14. Montaigne não se colocará ao lado, nem de Arcesilau, nem dos pirrônicos. É certo que Montaigne diz que "toda glória que pretendo de minha vida é tê-la vivido tranquilamente" (II, 16, 622/434). No entanto, acrescenta ele, "tranquila não segundo Metrodoro, ou Arcesilau, ou Aristipo, mas segundo eu mesmo. Visto que a filosofia não soube encontrar nenhuma via para a tranquilidade, que cada um a busque de maneira particular!" (II, 16, 622/434) Também Pirro será criticado por Montaigne (II, 29, 705-706/558-559).

Tudo leva a crer, então, que, de acordo com Montaigne, os céticos não estão em melhores condições do que os demais filósofos em nos dizer o que é o bem supremo, nem em como poderemos alcançar a tranquilidade15. Uma vez incluídos no conflito da filosofia, Montaigne poderá eventualmente tomar distância das opiniões céticas.

Cabe perguntar, agora, se o método cético de oposição é empregado por Montaigne com frequência ou como a principal forma argumentativa. Apesar de tudo o que vimos até aqui, Montaigne não costuma empregar o método cético da oposição e sua maneira usual de argumentar é diferente da dos céticos antigos. É o que Montaigne diz numa passagem em que discute quando se deve empregá-lo. Usar a razão para destruir a razão ou abandonar a própria razão para que o adversário não tenha razão, eis o que se deve usar em ocasiões muito específicas. "É um golpe desesperado, pelo qual é preciso abandonar vossas armas para fazer vosso adversário perder as suas, e um passe secreto, do qual se deve servir-se raramente e com reserva." (II, 12, 558/337) De maneira coerente, Montaigne aconselha sua provável leitora a seguir os caminhos habituais na argumentação e na opinião. "Todas as vias extravagantes me desagradam." (II, 12, 558/338) Segundo essa passagem, o método cético seria "extremo", "desesperado", uma "temeridade", "vicioso" e "extravagante". Acho pouco provável que toda essa caracterização expresse a real avaliação de Montaigne do método cético, mas, de outro lado, parece suficiente para atestar que, de fato, ele deve ser usado com moderação e parcimônia, limitando-o às circunstâncias que o exigem.

Quando examinamos outros capítulos, vemos que Montaigne pouco emprega esse método cético, embora ocasionalmente possa fazer referência a ele. Ou, se o emprega, é com uma finalidade diferente: quando considera os dois (ou mais) lados de uma questão, Montaigne não procura estabelecer sua igualdade de forças16. Darei alguns exemplos para mostrar que, nos diversos capítulos, e também na "Apologia", Montaigne não costuma aplicar o método cético da oposição.

A estrutura argumentativa do capítulo sobre o suicídio é bastante clara. Após a breve introdução sobre a dúvida, Montaigne argumenta a favor do suicídio (II, 3, 350-352/29-32) e, em seguida, contra o suicídio (II, 3, 352-354/32-35). Se estivesse praticando a dúvida cética, Montaigne mostraria a equipolênciaentre elas e suspenderia o juízo. Ele, entretanto, não faz nenhuma referência à suposta igualdade de força desses dois discursos17. Ao contrário, a continuação do capítulo atesta que ele defende o direito do suicídio, inclusive com a sugestão final de que deveria existir uma regulamentação legal pelo Estado. "A dor insuportável e uma morte pior me parecem as incitações mais desculpáveis." (II, 3, 362/47) O seu duvidar, portanto, não consiste na oposição dessas duas posições com seus respectivos argumentos, estabelecendo a igualdade de força entre elas e gerando, assim, a suspensão do juízo. A sua maneira de duvidar é compatível com a adesão a um dos lados de uma questão; neste caso específico, com o juízo de que o suicídio é aceitável em alguns casos.

Esse procedimento de instituir uma oposição e julgar que um lado é mais aceitável pode ser observado em muitos outros capítulos. Tomemos como um exemplo o importante capítulo sobre a crueldade (II, 11). Neste, Montaigne distingue três concepções da virtude. De acordo com a primeira concepção, a virtude seria uma "alta e divina resolução" por meio da qual se pode "impedir o nascimento das tentações" e se estaria formado pela virtude de tal maneira "que as sementes mesmas dos vícios estejam desenraizadas" (II, 11, 426/141) ' a virtude seria um hábito implantado em nós que impediria o surgimento do vício; a segunda concepção afirma que a virtude é a superação da força das paixões desregradas, pois não haveria virtude sem um obstáculo a ser vencido; conforme a terceira concepção, a virtude seria uma espécie de inclinação natural para a bondade. Se praticasse a dúvida cética com seu método da oposição, Montaigne certamente suspenderia o juízo entre essas três concepções, pois os argumentos a favor e contra cada uma delas se equivaleriam e seria impossível escolher racionalmente alguma. Mas não é isso o que ocorre. Montaigne claramente endossa a primeira concepção, rejeitando as duas outras. A terceira, ele mal a considera uma concepção da virtude, "pois me parece que ela torna um homem inocente, mas não virtuoso" (II, 11, 426/142; cf. II, 11, 422-423/135-138).

Também a segunda é problemática e tem consequências indesejáveis, pois, se fosse verdadeira, Sócrates e Catão não seriam homens virtuosos (II, 11, 423- 425/138-141). O exemplo desses dois homens virtuosos, e Sócrates ainda mais que Catão, faz com que Montaigne adira à primeira concepção da virtude.

Creio que os exemplos poderiam se multiplicar18. Em vários capítulos Montaigne apresenta mais de uma opinião, na verdade expõe opiniões contrárias ou contraditórias e, longe de suspender o juízo, invocando a equipolência entre as partes conflitantes, prefere uma em detrimento das demais. Montaigne parece rejeitar a ideia mesma de uma equipolência. "Antes se poderia dizer, parece-me, que nenhuma coisa se apresenta a nós na qual não exista uma diferença, por leve que seja, e que, para a visão ou tato, existe sempre algo mais que nos atrai, mesmo que seja imperceptivelmente." (II, 14, 611/417-418) Com base numa diferença, por menor que seja, pode-se julgar. E Montaigne, com frequência, julga.

Temos um bom exemplo de seu julgamento na própria "Apologia". Após apresentar a primeira objeção a Sebond e dizer que os objetores são muito piedosos, merecendo uma resposta respeitosa e doce, e que caberia aos homens versados em teologia responder-lhes (pois desse assunto ele diz não saber nada), Montaigne introduz suas considerações com as seguintes palavras: "Entretanto, eu julgoassim" (II, 12, 440/164; itálico meu). Não me parece que Montaigne esteja pensando que a primeira objeção a Sebond e as considerações em defesa de Sebond tenham a mesma força e, equivalendo-se, destruam-se mutuamente, como preconiza o método cético da oposição. Muito ao contrário, Montaigne emite um juízo: a posição mais razoável é a de que se deve empregar a razão humana na defesa da . Para Montaigne, embora a graça divina seja necessária e embora o entendimento humano seja insuficiente, não se segue que é inútil recorrer a razões humanas para sustentar os artigos de . Trata-se de um caso claro de non sequitur e, por isso, essa posição deve ser rejeitada.

5. Ao reconhecer-se como alguém que duvida, Montaigne coloca-se ao lado do filósofo, sem com ele identificar-se. Embora, numa passagem, se tenha assumido como um filósofo impremeditado e fortuito, noutras passagens, Montaigne afirma explicitamente que não é filósofo19. Essa recusa em identificar-se como um filósofo tem, certamente, vários sentidos, mas um deles pode ser o de que ele não entra nessas disputas como os filósofos (inclusive os céticos) entram nelas. O que Montaigne faz não é "filosofar", mas "entreter-se com ninharias e fantasiar" (II, 3, 350/29; "niaiser et fantastiquer"). O que significa isso? Note-se que, de acordo com Montaigne, esta segunda atividade que se distingue do filosofar é "com mais forte razão" duvidar. Creio que essa passagem sugere que duvidar é a atividade do aprendiz e, assim como o filósofo, na condição de aprendiz, busca a sabedoria, aquele que se entretém com ninharias e fantasia está num estágio ainda mais inicial do aprendizado e, por isso, ainda com mais razão, duvida. É como se Montaigne admitisse sua condição de completa ignorância, uma ignorância ainda maior do que a do filósofo que anseia pelo conhecimento. Mas um outro lado nessa passagem, pois ela talvez diga respeito não somente à condição de um aprendiz principiante, mas também sobre o que se busca saber. Enquanto o filósofo, mesmo que aprendiz, busca a sabedoria, Montaigne ainda se entreteria, como uma criança, com coisas pequenas, sem importância, infantis e pueris, bem como com suas fantasias, imaginações, devaneios.

Montaigne diz que seu duvidar consiste em "entreter-se com ninharias (niaiser) e fantasiar (fantastiquer)". Um estudo sistemático dos usos de niaiser et fantastiquer podem nos ajudar a compreender a maneira específica pela qual Montaigne pratica a dúvida. Ao que eu saiba, Montaigne pouco usa o termo niaiser e seus correlatos. uma passagem (II, 3, 353/35), em que Montaigne se refere a uma "vaidade" no sentido de uma "puerilidade"; ora, niaiser tem o sentido de ser uma tolice, uma infantilidade. Essa passagem, embora não seja especialmente significativa e não nos ensine nada sobre a maneira montaigniana de duvidar, ao menos aproxima a niaisairie da futilidade produzida pela vaidade. O termo "fantasiar" e seus correlatos, no entanto, são usados com enorme frequência20. Naturalmente, nem todos esses usos servirão para esclarecer nosso ponto. Por exemplo, Montaigne fala, no capítulo sobre o suicídio, de "humores fantasiosos" (II, 3, 354/36), mas creio que esse uso não tem relação direta com o fantasiar que consiste num duvidar.

No aviso "Ao leitor", Montaigne parece associar novamente algo como a niasairie e a fantasia, pois, ao dizer que "é a mim que pinto", reconhece que se trata de um "assunto tão frívolo e tão vão." (p. 3/3) , portanto, uma constelação de termos aparentados a niaiser, que apontam para a pintura de si, como aquilo que Montaigne faz e que "deve ser duvidar". A associação entre termos dessa constelação e a dúvida se faz presente na "Apologia". Por exemplo, numa passagem em que a referência ao ceticismo é evidente, pois afirma que a razão produz inumeráveis discursos contrários sobre um mesmo assunto e atribui a decisão e a escolha de um deles ao instinto fortuito, Montaigne sugere que, para emitir um bom juízo, é preciso escutar-se de perto, coisa que a maioria não faz. "Eu que me espio de mais perto, que tenho os olhos incessantemente atentos a mim, como quem não tem muito o que fazer alhures... eu mal ousaria dizer a vaidade e a fraqueza que encontro em mim." (II, 12, 565/349) Embora próximo do ceticismo, Montaigne não deixa de indicar suas diferenças com essa vertente da filosofia. Segundo Sexto, a filosofia como um todo se caracteriza por buscar a verdade; mas Montaigne diz, aos filósofos, que não se deve esperar encontrar a verdade em seus escritos, pois "quem está em busca da ciência, deve pescá-la onde ela se encontra; não nada de que eu faça menos profissão." (II, 10, 407/114) Creio que essa passagem não quer dizer somente que Montaigne, como os pirrônicos, não alcançou a ciência e, portanto, não tem nenhum conhecimento verdadeiro a oferecer. Parece-me que ela diz algo mais do que isso, embora, obviamente, Montaigne confesse sua ignorância da verdade. O que ela diz a mais é que Montaigne não está "em busca da ciência" tal como os filósofos estão, os céticos inclusive. A continuação dessa passagem, crucial para nossos propósitos, parece atestar que Montaigne não está buscando a verdade: "Estão aqui minhas fantasias, pelas quais não tento dar a conhecer as coisas, mas a mim" (II, 10, 407/114; itálico meu). Ora, a ocorrência da palavra "fantasia" num contexto de aproximação e distanciamento do ceticismo sugere que essas passagens todas estão articuladas e expressando uma mesma concepção do que Montaigne está fazendo. Ao apresentar suas fantasias, ele se esforça por dar-se a conhecer ao leitor.

O capítulo sobre o suicídio permite descobrir uma característica da dúvida de Montaigne. Após apresentar as duas posições contraditórias sobre o suicídio, Montaigne diz que "entre os da primeira opinião houve grande dúvida sobre isso: quais ocasiões são suficientemente justas para fazer um homem entrar no partido de se matar?" (II, 3, 354/35) A partir daí, Montaigne se dedica a discutir essa "dúvida". Eis, portanto, um exemplo de como Montaigne entende a dúvida: não como oposição entre opiniões conflitantes, mas como dificuldade inerente a uma opinião. É justo matar-se em certas ocasiões, mas quais? Eis a dúvida. E Montaigne dedica-se a investigar quais seriam essas ocasiões. O estudo da história apresenta uma enorme gama de situações que permitiriam tentar resolver essa dúvida ou, ao menos, dar-se conta da dificuldade em se respondê-la. Uma dúvida, portanto, não é uma hesitação entre duas posições, mas uma questão sobre a possível adesão a um dos lados.

No capítulo sobre a crueldade, vemos outro exemplo de "fantasiar", diretamente ligado à questão da dúvida. Montaigne começa por expor e criticar a concepção da virtude como inclinação natural para a bondade. algo na virtude que não se pode limitar a tão pouco: sem vencer uma resistência forte, não haveria, propriamente falando, virtude. A seu ver, essa argumentação contra a primeira concepção de virtude é trivial. "Cheguei até aqui bem comodamente. Mas, no final desse discurso, cai-me na fantasiaque a alma de Sócrates, que é a mais perfeita que chegou ao meu conhecimento, seria, a meu ver, uma alma de pouca recomendação, pois não posso conceber nesse personagem nenhum esforço de concupiscência viciosa." (II, 11, 423/138; itálico meu) Trata-se, evidentemente, de levantar dúvidas sobre umaconcepção da virtude sugerida pelo discurso que rejeitou "facilmente" uma concepção equivocada da virtude como inclinação natural para a bondade. Não se trata, como vimos, de opor duasposições igualmente fortes que se anulariam mutuamente. Ao ser levado, por um discurso, a conceber uma segunda teoria sobre a virtude, sua fantasia como que lhe impõe, talvez independentemente de sua vontade, uma objeção, um problema, uma dificuldade específica dessasegunda teoria. Tudo se passa como se, ao investigar uma teoria proposta e buscar conhecer suas próprias "fantasias", certas fantasias lhe ocorram ou venham à sua mente para duvidar da correção precisamente dessa concepção. Na fantasia de Montaigne, Sócrates e Catão são homens virtuosos e nada que negue isso pode ser concebido, imaginado ou pensado por Montaigne no sentido de ser aceito por ele. Esse uso de "fantasia" corrobora o uso de dúvida como uma interrogação, que conduz a uma investigação, de uma concepção em particular.

Poder-se-ia dizer que Montaigne somente retoma elementos presentes no ceticismo antigo, em particular no pirronismo21. Afinal, Sexto Empírico havia dito que, ao expor a doutrina pirrônica, ele não fazia senão relatar o que lhe aparecia no momento, como um cronista ou historiador (HP I, 4). A meu ver, no melhor dos casos, se trata de uma semelhança superficial, pois existe somente uma remota semelhança na ideia de "descrever o que aparece no momento como um cronista ou historiador". Não é preciso muita reflexão para perceber que relatar o que lhe aparece no momento, em Sexto, é algo muito diferente de pintar a si mesmo. Enquanto Sexto relata as opiniões dos outros filósofos, Montaigne fala de sua própria vida. Não temos nenhuma ideia de onde Sexto viveu ou quais eram suas crenças; Montaigne não se cansa de falar de sua vida e de suas opiniões sobre tudo. Quando relata o que lhe aparece, Sexto relata somente oposição de teses e argumentos; quando relata o que lhe aparece, Montaigne fala de sua vida. Sexto nunca pretendeu que relatar a própria vida tivesse relevância filosófica.

um sentido, a meu ver correto, no qual Montaigne poderia estar elaborando, de maneira muito original, uma nova fontepara a diaphonía pirrônica. Uma maneira pela qual a investigação de Montaigne (a pintura de si mesmo) produz a dúvida é descobrir em si mesmo todas as fraquezas. Não é preciso ficar examinando as opiniões alheias, fazendo a opinião dos estóicos contradizer a de Platão, nem contrastar a dos epicuristas com a de Aristóteles, como fazem os pirrônicos, mas bastaria examinar-se atentamente. Montaigne é matéria suficiente para engendrar dúvidas "com mais forte razão" (II, 3, 350/29).

Descrevendo suas alterações de opinião de acordo com as mais variadas situações e circunstâncias, seja do corpo ou da alma, ele encontra em si uma diversidade tão grande ou ainda mais que a encontrada entre os filósofos. "Acontecem em mim mil agitações inconsideradas e casuais" (II, 12, 566/350). Não apenas em si mesmo, mas também em seus escritos, Montaigne muda frequentemente de opinião e, ao voltar sobre uma passagem anterior, nem sempre reencontra o sentido dela, dando-lhe um novo, na falta do velho. Assim, "somente vou e venho: meu julgamento nem sempre vai adiante; ele flutua, vagueia" (II, 12, 566/350). E Montaigne dedica-se a investigar, após expor as variações pelas circunstâncias, também variações que se devem às paixões da alma (II, 12, 567-576/351-365).

Nesse proceder tortuoso, nota-se claramente a proximidade do ceticismo, pois Montaigne também defende "uma opinião contrária à minha" (II, 12, 566/350-351).

O resultado é sempre o mesmo: "Quantas diferenças de sentido e de razão, quanta contrariedade de imaginações nos apresenta a diversidade de nossas paixões!" (II, 12, 568/353). Pintar-se a si mesmo equivaleria a descobrir em si a mesma diversidade que os céticos antigos descobriam no debate entre os dogmáticos, patente em seus livros.

Mas é preciso ver que, embora a diferença entre Montaigne e os pirrônicos pudesse dizer respeito somente à fonte da diaphonía (nos textos alheios ou em si mesmo), também muitas outras diferenças que deveriam ser notadas. Uma diferença, pelo menos, é crucial, que diz respeito à finalidade do método e à capacidade para empregá-lo. Enquanto Sexto pretende superar a precipitação dogmática por meio da oposição de argumentos, Montaigne, na descrição de si mesmo, isto é, na busca do conhecimento de si, precisa superar as distorções que a vaidade causa. Com efeito, a vaidade inerente a todo ser humano, portanto também presente em Montaigne, tem dois efeitos: estimar-se além da conta e não estimar suficientemente os outros (II, 17, 633/452). Assim, dada nossa inevitável vaidade, temos um "julgamento perturbado e alterado"; no entanto, para Montaigne, "o julgamento deve manter por toda parte seu direito" (II, 17, 632/449). Num certo sentido, pode-se dizer que a investigação do autor dos Ensaiosexige uma técnica que lhe permita anular esse efeito nocivo da vaidade, ao passo que a técnica exigida pelo pirronismo combate a precipitação dogmática. O pirrônico caracteriza-se por dominar uma técnica particular, isto é, a capacidade de empregar adequadamente o método de oposição que conduz à suspensão do juízo; a pintura de si mesmo caracteriza-se por tentar evitar os efeitos nocivos da vaidade humana e chegar a juízos mais equilibrados sobre si mesmo.

Mesmo quando, nessa descrição de si, encontra infindáveis variações, no entanto, diferentemente do pirrônico, Montaigne o faz "por exercício e brincadeira" e, sobretudo, "aplicando-se e voltando para aquele lado, liga-me tão bem que não encontro mais a razão de minha primeira opinião e me separo dela." (II, 12, 566/351) Não , propriamente falando, uma equipolência de opiniões e razões, mas uma parece substituir a outra, numa sucessão inevitável.

É certo que o exame detalhado de todas as circunstâncias e consequências de um assunto e seu esclarecimento sutil e profundo impediriam uma decisão (II, 20, 675/513-514). Estaria Montaigne concedendo que a suspensão do juízo é o resultado inevitável de uma investigação imparcial e sem precipitação? Ora, o contexto parece indicar precisamente o contrário: em vez de suspender o juízo, Montaigne condena uma investigação desse tipo: "as opiniões da filosofia elevada e refinadas mostram-se ineptas na prática. Essa aguda vivacidade da alma e essa volubilidade flexível e inquieta perturba nossas negociações. É preciso manejar os empreendimentos humanos mais grosseira e superficialmente e deixar boa e grande parte deles para os direitos da fortuna. Não é necessário esclarecer os negócios tão profunda e sutilmente." (II, 20, 675/513) Não sendo a suspensão do juízo desejável do ponto de vista prático, devem-se investigar as coisas de maneira diferente daquela levada a cabo pelos céticos. A suspensão do juízo também é impossível, pois uma "virtude assim simples, que [...] Pirro [...] tornava o objetivo de sua vida, não pode sê-lo sem composição" (II, 20, 673/511). A constância da suspensão do juízo é um ideal inatingível na prática, embora Pirro tenha se esforçado como um verdadeiro filósofo nessa direção (II, 29, 705-706/558-559). A investigação não deve ser sobre as coisas, desvendando- lhes todas as suas sutilezas e aspectos, em busca da suspensão do juízo, mas sobre si mesmo, descrevendo suas constantes mudanças, almejando um esclarecimento que permita a orientação prática na vida.

Montaigne não dizia coisa muito diferente quando, ao apresentar suas fantasias ao leitor, afirmava que não procurava conhecer as coisas, mas a si mesmo: "elas talvez venham por acaso a ser conhecidas por mim, ou o foram outrora, conforme a fortuna me levou a lugares nos quais elas foram esclarecidas. Mas eu não me lembro mais." (II, 10, 408/114) Também aqui Montaigne, longe de ter os olhos voltados às coisas, olha-se a si mesmo e, se porventura as conheceu, delas se esqueceu. O que lhe interessa não é enunciar uma suposta verdade sobre as coisas, mas expressar o seu conhecimento dos livros. Ora, mais uma vez, percebe-se uma nítida aproximação e um distanciamento do ceticismo. Como os céticos antigos, a investigação de Montaigne, ao menos em parte, é ler livros e ver o que os filósofos disseram sobre as matérias filosóficas. No entanto, Montaigne não o faz por buscar a verdade das coisas; seu saber, se é que tem algum, diz respeito a si mesmo. Assim, ao avaliar seu uso dos autores, devemos ver, não se é verdade o que toma de empréstimo, mas "se eu soube escolher com que realçar meu tema." (II, 10, 408/115) Assim, a relação de Montaigne com os livros que é muito diferente da relação que os pirrônicos têm: estes tentam pescar uma verdade ou fazer as opiniões conflitarem para suspender o juízo, aquele se esforça por uma maneira melhor de expressão. São as fraquezas de Montaigne que o fazem tomar de empréstimo passagens de diversos autores. É preciso, nesse relato que faz de si mesmo, enfeitá-lo "para fazê-los sair em público um pouco mais decentemente" (II, 12, 546/320).

Não se deve identificar, entretanto, a posição de Montaigne com essa sucessão de opiniões ao sabor dos ventos22. Em muitas passagens, Montaigne diz que a constância e a regularidade são preferíveis e que, de fato, a ciência mais difícil é justamente adquirir essa firmeza23. "Na verdade, aprendi outrora que o vício é somente desregramento e falta de medida e, consequentemente, é impossível ligar a ele a constância." (II, 1, 332/5) Não é por outra razão, como vimos, que Montaigne concebe, a partir dos exemplos de Sócrates e Catão, a virtude como um hábito (II, 29; II, 1, 336/10) e que "a irresolução me pareça o vício mais comum e aparente de nossa natureza" (II, 1, 332/4). E, embora diga não ser capaz dessa virtude e, no melhor dos casos, tem somente uma inclinação natural para a bondade, Montaigne confessa uma aversão a essas flutuações e mudanças incessantes. Ao examinar um homem, ao examinar a si mesmo, "é preciso sondar até o interior e ver por quais molas ocorre o movimento" (II, 1, 338/ 13). As variações não se dão somente ao sabor dos ventos, mas procedem igualmente de algum princípio que cada um traz dentro de si.

Ao olhar atentamente para si mesmo, investigando-se, ao constatar suas flutuações, identificando suas motivações, Montaigne evita que esses fatores aleatórios lhe imponham um juízo instintivo (cf. mais acima). "Ora, do conhecimento dessa minha volubilidade gerei em mim por acidente alguma constância de opiniões" (II, 12, 569/355). Assim como não se segue, da variação e contradição das opiniões, a mera adoção da última opinião (quando Montaigne se esqueceu das razões para opiniões anteriores), também não se segue a suspensão do juízo. Como em muitas outras ocasiões, Montaigne aceita uma opinião. Mas ele o faz sem "decidir" (pois não é mestre, e sim aprendiz): "posto que não sou capaz de escolher, tomo a escolha de outro e fico no lugar em que Deus me pôs. De outra forma, não poderia impedir de rolar sem cessar." (II, 12, 569/355) Poder-se-ia ler, nessas linhas, uma adesão cética à tradição e costumes e a aceitação de uma crença sem julgar por si, seguindo o tutor como um menino. As opiniões de Montaigne sobre o costume e a necessidade de obedecer às leis, o seu assim chamado conservadorismo, parecem confirmar essa interpretação24.

Creio que, apesar dessa semelhança, a opinião de Montaigne tem um fundamento diferente, pois Montaigne critica explicitamente a sugestão de que se devem seguir as leis "de nosso país" (II, 12, 579/370). Seria interessante, diz Montaigne, reunir a diversidade dos costumes, ordenando-a por divisões e classes, numa única obra, mostrando que são produtos humanos. O que fazer diante dessa diversidade toda? "Se é de nós que tiramos a organização de nossos costumes, em que confusão nos metemos! Pois o que a razão nos aconselha de mais verossímil é genericamente que cada qual obedeça às leis de seu país" (II, 12, 578/369; cf. II, 12, 579/370). Essa é a opinião de Sócrates, mas é também certamente a dos pirrônicos, ainda que formulada no vocabulário acadêmico. No entanto, Montaigne rejeitará claramente esse conselho da filosofia. Se a filosofia tem razão, "nosso dever não tem outra regra que não fortuita" (II, 12, 578/369). As leis, no entender de Montaigne, estão sujeitas à mais contínua agitação: "Desde que nasci, vi mudar três ou quatro vezes aquelas dos ingleses, nossos vizinhos, não somente em assunto político, que é aquele em que se quer mais constância, mas no mais importante assunto que possa existir, a saber a religião." (II, 12, 579/369-370) Ora, a sugestão da filosofia lança-nos nesse mar flutuante das opiniões. Tal sugestão não será acatada por Montaigne: "Não posso ter o juízo tão flexível." (II, 12, 579/371) Dessa forma, Montaigne rejeita explicitamente a posição da razão, que coincide com a dos pirrônicos, de seguir as leis do país porque essa posição, não somente acaba com a ideia mesma de justiça, mas também exige uma flexibilidade que ele próprio não tem25.


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