A propósito da "ordem" como atributo da "maneira" em Montaigne
Na nota que apõe ao "De l'art de conferer" (III, 8), Pierre Villey já nos fazia
notar que, neste capítulo, Montaigne quisera "juntar o exemplo ao preceito", e
por isso, "nunca talvez o seu estilo tenha tido a cor e o movimento do estilo
da conversação familiar" quanto tem aí.1 De fato, a intenção do ensaísta de
produzir um efeito de causerie familière, no capítulo que trata expressamente
da conversação, afeta ' esta a impressão no leitor ' tanto o estilo
propriamente dito, a léxis montaigniana, quanto o andamento e o desenvolvimento
do arrazoado, a "disposição" de suas partes, ou sua táxis.2 Ou seja, sua
"maneira" de escrever. A impressão é de uma grande liberdade com o
desenvolvimento da "matéria", o que, aliás, é próprio da experiência de leitura
de qualquer ensaio montaigniano, mormente os mais desenvoltos do terceiro
livro. Temas subsidiários emergem, depois somem, e mais adiante ressurgem. O
texto frequentemente escapa para longas digressões. E só com algumas boas
leituras, "diligentíssimas", o conjunto dos elementos que estão dispersos e
aparentemente deslocados ganham coesão e começam a revelar para o leitor sua
"unidade". Como neste texto, em grande parte, trata-se explicitamente do
problema da "forma", suas questões, de algum modo, parecem se projetar na
prática do escritor, e o esclarecimento da manièreque aí se propõe ajuda a
lançar alguma luz sobre a significação do ensaio como forma a um só tempo de
pensamento e de escrita. Gostaria, assim, de retomar brevemente aqui dois
pontos de um estudo anterior3 sobre a estruturação interna deste capítulo: o
primeiro deles é o que chamei de uma "conversão para a maneira"; o outro,
tributário daquele, é uma discussão sobre a noção de "ordem" que ali se expõe.
Para tanto, teremos de retomar alguns passos da primeira parte da argumentação.
• • •
Podemos seguramente apontar a manièrecomo o conceito mais fundamental a que se
consagra a totalidade do "De l'art de conferer". O essencial de que se cuida
diz mais respeito ao modo como se emprega o discurso do que as possíveis
verdades ou falsidades veiculadas por ele. Que seja assim, o próprio ensaísta
nos avisa expressamente a certa altura do arrazoado: "Pois estamos na maneira,
não na matéria do dizer" (III, 8, 928). A operação que está, efetivamente, em
questão é a de "deixar o assunto para ver os meios de tratá-lo" (III, 8, 926).4
Obviamente, é pelo viés e perspectiva da aptidão para a "conversação" que este
tema é tratado. Entretanto, a mudança de interesse que se opera ao longo do
arrazoado montaigniano ' passa-se do cuidado com as "matérias" para um cuidado
com a "maneira" que será preciso caracterizar ' claramente franqueia, segundo
penso, os limites mais estreitos da disciplina que pertence ao domínio dos
tratados de cortesia e que regula a manière du dire em uma prática bem
específica. Minha hipótese é a de que flagramos aí uma espécie de conversão
para o âmbito da maneira aplicável ao conjunto da obra, fiando-me, por ora, na
advertência montaigniana de que "fala ao papel como ao primeiro que encontra"
(III, 1, "Do útil e do honesto", 790). Acredito que um passo na compreensão do
sentido desta "conversão" é dado quando se estabelece, num primeiro momento
deste capítulo, a relação que se deve ter com as diversas opiniões com que se
defronta quem entra em conversação. Montaigne nos fala, em primeira pessoa, de
sua própria atitude. É bem o início de seu tratamento do tema da conversação,
já que se deixou para trás nesta altura somente um prólogo5:
Entro em conversação [conference] e em disputa com grande liberdade e
facilidade, porquanto a opinião encontra em mim terreno impróprio
para aí penetrar e aí fincar profundas raízes. Nenhuma proposição me
espanta, nenhuma crença me fere, por contrária que seja a minha. Não
há tão frívola e tão extravagante fantasia que não me pareça bem
possível de sair da produção do espírito humano. Nós outros, que
privamos nosso julgamento do direito de fazer arrestos, olhamos
molemente as opiniões diversas; e, se não lhes emprestamos o
julgamento, emprestamos-lhes facilmente o ouvido. Onde um prato está
vazio por completo na balança, deixo oscilar o outro, sob os sonhos
de uma velha. (III, 8, 923)
Embora longa, a citação nos é útil, pois condensa o essencial da postura
intelectual que habilita ao bom desempenho do homem de conversação. A
"liberdade e facilidade" na conference, vemos, assentam no desenraizamento das
opiniões operado neste passo, claramente, por uma vinculação ao Ceticismo.
Tanto a imagem da "balança" como a afirmação de que "priva o julgamento do
direito de dar sentenças" nos parecem indícios suficientes disso. Aqui importa,
todavia, discutir o que esta vinculação ao Ceticismo ' se autenticamente
pirrônico ou não, deixemos de julgar por agora, pois ele mesmo diz deixar
oscilar os pratos da balança ao invés de estabilizá-la, e o homem de
conversação pode possuir opiniões e crenças, desde que não se obstine em
assumi-las e sustentá-las de modo dogmático ' produz em termos do exercício da
conversação (e, daí, em termos da manièreque se estende à confecção do próprio
livro). Dois pontos são de destacar. A "ignorância" que se instaura a partir da
crítica cética, primeiro, habilita a ouvir as mais diversas, contrárias, e
mesmo disparatadas "opiniões", de maneira calma (molemente), sem "espanto" e
sem "ofensa". Não há "frívola e extravagante fantasia" que o homem de
conversação não considere como produção possível do espírito e a que não possa
"emprestar o ouvido", ele que não lhe "empresta o julgamento", ou seja, ele que
não decide sobre sua verdade ou falsidade. Além disso, a mesma "ignorância"
permite que ele reconheça nestas "opiniões", ainda que pouco, algum peso: "Por
mim, superam somente a inanidade, mas a superam" (III, 8, 923). Elas fazem
oscilar o prato da balança e a crítica, longe de barrar a curiosidade de
Montaigne, mantém-no aberto e atento às possíveis produções do espírito humano,
e às correções que podem proporcionar. E assim, posiciona-se ele como que entre
dois extremos viciosos, pois muitos que tentam evitar a "superstição",
afirmando peremptoriamente a inverdade de tais "insanidades" (ravasseries),
acabam presunçosamente incorrendo no vício oposto da "obstinação"
(opiniastreté): portam-se como possuidores seguros de uma verdade
incontestável.
Logo, o que esta postura "cética" favorece é a abertura para o exercício de uma
conversa em que haja "contradição dos julgamentos": "As contradições, pois, dos
julgamentos não me ofendem nem me alteram; despertam-me somente e exercitam-me"
(III, 8, 924). Contradição que Montaigne calmamente encara como instrução capaz
de corrigi-lo, pois, segundo nos descreve, as repreensões rudes e ásperas que
recebe "despertam sua atenção, não sua cólera" (III, 8, 924).6 Além disso, no
passo ora comentado, podemos colher um segundo efeito de seu desapego em
relação às próprias opiniões e crenças, já que o fato de não incorrer no páthos
colérico permite manter "a verdade como a causa comum" dos que conversam e
disputam.7 Em outras palavras, é porque, de saída, Montaigne não assume sua
posição pessoal num debate como a portadora da razão e da verdade, ou seja, não
se obstina como o faz um opiniastre, que pode aceitar ser contradito em nome de
uma "verdade impessoal" que se investiga e busca.
Isto é tudo o que Montaigne não encontra ' continuando ' nos "homens do seu
tempo", com os quais coteja sua própria atitude: por não terem a "coragem de
sofrer a correção", eles não têm igualmente a "coragem de corrigir" e "falam
sempre com dissimulação em presença uns dos outros" (III, 8, 924). Dissimulação
que Montaigne, em princípio, exclui do regime de sua conference:
Gosto, entre os gentis-homens, de que se exprimam corajosamente, de
que as palavras cheguem aonde vai o pensamento. É-nos preciso
fortalecer o ouvido e o endurecer contra a ternura do som cerimonioso
das palavras. (III, 8, 924)
Vemos, então, que a conversa que aqui se elogia abertamente se desdobra e
perfaz de preferência numa querela entre amigos que vigorosa e generosamente se
corrigem em suas opiniões e condutas, deixando, como nos diz o ensaísta, "suas
palavras [irem] aonde [vão seus] pensamentos". Neste regime de conversação,
como afirma André Tournon, "as complacências mútuas das conversas de salão não
são admitidas",8 nenhum descompasso entre o que se pensa e o que se diz, entre
o lógos e a léxis, tem lugar. Não há espaço nenhum para a mentira, a adulação e
a dissimulação: "Ela [=a conference] não é assaz vigorosa e generosa, se não
for querelante, se for civilizada e artificiosa, se temer o choque e tiver seus
passos constrangidos" (III, 8, 924).
Esta postura destacada em relação à verdade das próprias opiniões e que,
portanto, aceita "pacificamente" pô-las à prova, fica ainda mais evidente no
desapego de Montaigne para com a "vitória" na disputa. Isso mostra que não só a
adulação e dissimulação9 ' o "uníssono" que era desqualificado como tedioso
desde o início do capítulo ' são recusadas, mas também uma postura que buscasse
a qualquer custo a vantagem e a vitória no debate:
Nossas disputas deveriam ser proibidas e punidas como outros crimes
verbais. [...] Aprendemos a disputar só para contradizer, e, cada um
contradizendo e sendo contradito, leva-nos à conclusão de que o fruto
da disputa é perder e aniquilar a verdade. (III, 8, 926)
As condições em que o diálogo, em suma, deve-se dar são definidas entre estes
extremos ou desvios: da "disputa pela contradição" sem ter em vista a "verdade"
' pura negação do outro que se vale de quaisquer meios ', e da "dissimulação",
que evita contradizer por temor de ser contradito ' puro endosso interessado da
opinião de outrem. Entre ambos, a querela franca, igual e livre entre os
oponentes.
Ainda quanto à possível esperança de vitória no debate, respondendo a uma
objeção que se poderia fazer à sua postura calma e corajosa tanto em corrigir
como em sofrer a correção, como se se tratasse de segurança por acreditar-se
dotado de força ' a força e sabedoria de um Sócrates ' para triunfar
gloriosamente das contradições a cada vez que elas se apresentam, o ensaísta,
reiterando sua preferência pela frequentação dos que o maltratam a dos que o
temem, constrói para si a posição humilde de quem aceita a contradição
corretora. Alega que qualquer "opinião de preeminência e desdém pelo
adversário" torna o "sentimento assaz delicado" diante da contradição, o que
impede exatamente de aceitar "as oposições que o retificam e recompõem". Não se
supõe aqui, portanto, nenhuma superioridade de "força" que triunfaria a cada
nova objeção, o que já é indício de que as opiniões defendidas importam menos
do que o próprio exercício de pensamento e a correção que a conferencepode
ensejar.
O movimento mesmo desta argumentação se encerra com uma consideração da vitória
que se poderia obter diante de um ou outro oponente, importando mais a vitória
sobre si mesmo, por ocasião de uma possível derrota para alguém mais forte, do
que a vitória sobre um adversário fraco:
Sinto-me bem mais confiante na vitória que conquisto sobre mim
quando, no ardor mesmo do combate, eu me faço dobrar sob a força da
razão de meu adversário, do que me sinto agraciado pela vitória que
conquisto sobre ele por sua fraqueza. (III, 8, 925)
A conference, assim, define-se como um exercício em que, de saída, todas as
proposições se veem igualadas e reduzidas ao domínio opinativo, instaurando as
condições de um livre exame a dois, de uma busca desinteressada e sem termo da
verdade, em que não importa tanto a vitória que se obtém na matéria, mas a
conduta que se tem durante o seu transcorrer. Todo seu jogo se joga no campo da
"forma", ou da bela manière dos "conferencistas". É nesse campo que se avalia a
sua vis, a sua "força", ou, em termos montaignianos, a sua suffisance10:
Que maior vitória esperais que ensinar ao seu inimigo que ele não vos pode
combater? Quando ganhais a vantagem de vossa proposição, é a verdade que ganha;
quando ganhais a vantagem da ordem e da conduta, sois vós que ganhais. (III, 8,
927)
Como se vê, a maior vitória não é referente ao "objeto" tomado para disputar,
não se dá no plano das "matérias", porque ela pode ocorrer mesmo quando se
perde a vantagem da proposição, mesmo quando a tese que se sustenta é refutada.
A lição que se mostra ao adversário é de "ordem e conduta" no tratamento das
matérias, qualidades que aderem ' diferentemente da verdade, atributo das
proposições ' aos "sujeitos". Pois em grande medida o que a conversa deve
produzir é a correção da "impertinência" dos homens, tal como Montaigne entende
a tarefa assumida por Sócrates em Xenofonte e Platão:
Sou de parecer que [...] Sócrates disputa mais em favor dos que
disputam do que em favor da disputa; e para instruir Eutidemo e
Protágoras acerca do conhecimento de sua impertinência mais do que da
impertinência de sua arte. Ele empunha a primeira matéria como quem
tem um fim mais útil do que esclarecê-la, a saber, esclarecer os
espíritos que ele toma para manejar e exercitar. (III, 8, 927-8)
Este Sócrates já não ensina o erro de opinião sobre as matérias, realizando o
parto que traz à luz aquele que irá engajar-se no estudo das realidades
verdadeiras, mas o que imporá ao espírito a exigência interna de ordenação. Ao
alegar que Sócrates disputa "mais em favor dos que disputam do que em favor da
disputa", e para instruir sobre a impertinência deles e não de sua arte, o
texto já demonstra o desvio de atenção das "matérias" para a "maneira". Já não
se trata de ensinar que a tese sustentada por qualquer um dos interlocutores
não responde ao problema que se pôs de início. Ou seja, não se trata de acusar
uma impertinência no que se diz sobre a matéria e de reconhecer um erro no
plano do juízo formulado sobre ela, o que seria apontar simplesmente uma
"impertinência da arte" e uma precipitação pontual em julgar, coisa de pouca
monta para Montaigne. O que se ensina a conhecer é a impertinência dos
"esprits", sua tolice e desordem; é o reconhecimento de um erro que assenta no
sujeito mesmo, em sua forma de condução do pensamento, e não no juízo que
formula sobre as coisas. A suma de toda esta discussão nos é oferecida um pouco
adiante:
A agitação e a caça é propriamente de nossa competência: não somos
escusáveis por conduzi-la mal e impertinentemente; falhar quanto à
presa é outra coisa. Pois nascemos para buscar a verdade; pertence a
uma maior potência possuí-la. [...] O mundo não é senão uma escola de
inquisição. Ele não é de quem acerta o alvo, mas de quem faz as mais
belas corridas. (III, 8, 928)
Poucos textos assinalam com tanta precisão que a tarefa conferida ao homem é a
da busca, que seu horizonte é o da zétesis. Mas o fato de que se trata de uma
busca bem conduzida, com pertinência e beleza ' o que a menção às "belles
courses" parece, metaforicamente, confirmar ', mostra, ainda uma vez, que os
cuidados e o zelo com o discurso se deslocaram da adequação dogmática, suposta
entre ele e as próprias coisas, para o domínio da manière du dire. O que
importa passa a ser não mais a "captura da presa", mas a bela "condução da
caça". Desloca-se, deste modo, o télosda conversa, que não mais tem por alvo a
"obtenção da presa", e sim, o próprio desempenho hábil de seu exercício. Ainda
que, entre as condições para o bom exercício da conversa, mantenha-se, como
dissemos acima, "a verdade como causa comum", não se trata mais, exatamente, de
querer obtê-la, mas de instalar-se tranquilamente no domínio da busca e exercê-
la com ordem.11
Tanto é assim que Montaigne está apto para dissociar o "verdadeiro" da "ordem e
pertinência", o "falso" de seus contrários: "Tanto pode agir tolamente quem diz
o verdadeiro, como quem diz o falso: pois estamos na maneira, não na matéria do
dizer" (III, 8, 928). Note-se, de passagem, que a explicação, expressa de forma
intencionalmente ambígua, pode não só se aplicar à conversação, como também
referir-se obliquamente ao conjunto dos Ensaios, que efetivamente não abordam
as matérias, tentando estabelecer um saber seguro e certo sobre elas, mas
somente as abordam e tratam no intuito de exibir e ostentar a "maneira" de o
nosso ensaísta manejá-las e desenvolvê-las em seus exercícios do juízo, como
tão bem nos instrui o início desenvolto do capítulo "Dos livros", em que fala
de sua falta de competência para tratar as matérias em que ensaia suas
"faculdades naturais", e de que eu lembraria aqui apenas o arremate final: "Que
não se preste atenção às matérias, mas à maneira (façon) que lhes dou" (II, 10,
408). Atitude de leitura que Montaigne, mais do que espera, prescreve, e que se
aproxima inteiramente da maneira como ele mesmo lê autores e entretém-se com
espíritos famosos, segundo nos diz o mesmo "De l'art de conferer":
E todos os dias me divirto em ler nos autores, sem preocupação com
sua ciência, aí buscando sua maneira, não seu assunto. Da mesma forma
que procuro a comunicação de algum espírito famoso, não para que ele
me ensine, mas para que eu o conheça. (III, 8, 928, grifo meu)
Tendo assim deixado para trás a preocupação com a verdade das matérias, toda
atenção se converte para os "verdadeiros" traços distintivos do espírito, que
são os "modos" que distinguem o mero dizer, conquanto ocasionalmente
verdadeiro, do dizer bem e com pertinência: "Todo homem pode dizer verdade; mas
dizer de modo ordenado, prudente e suficiente [ordonéement, prudemment et
suffisamment], poucos homens o podem] (III, 8, 928, grifo meu).
No entanto, tal "conversão" não significa para Montaigne absolutamente que se
dê relevo a um cuidado com a instrução puramente "formal" e autônoma de uma
capacidade de arrazoar e discursar. Este é um ponto crucial, e ao mesmo tempo
difícil, para a compreensão do "De l'art de conferer", pois no momento mesmo em
que acreditamos trocar a ordem de preocupações, passando do âmbito da adequação
dogmática do discurso às coisas, para o de sua suposta ordenação interna por
procedimentos que poderiam ser codificados por uma arte, já que se trata agora
da "maneira" ' ou seja, trata-se, pensaríamos, segundo o modo de equacionar a
questão que fora herdado dos antigos, da instrução do exercício de uma
"faculdade" por meio de uma "arte"12 ', o texto montaigniano parece nos remeter
novamente para o só âmbito das "matérias", das coisas tratadas, das concepções
e ideias expostas, uma vez que, ao que parece, bastaria a concepção segura das
matérias que só uma educação cuidadosa dá, para impor a ordenação aos
espíritos. Educação, lembremos, que tem como cerne a formação do julgamento e
parece desprezar o cuidado com os artifícios dialéticos e retóricos.
Voltaríamos, portanto, ao velho adágio que afirma julgar e falar bem quem é
conhecedor daquilo de que trata. Mas veremos como a "ordem" é, ainda assim,
construída a parte subjecti, e revela a capacidade do espírito de manejar as
diversas matérias, sem, contudo, apoiar-se em um saber (sçavoir) dogmático
sobre elas.
Com isso, tocamos, então, no segundo ponto anunciado no início: a questão da
"ordem" (ordre) que articula o discurso na conversa, e, por que não, no livro,
agora avisados de que esta ordem não se concebe como um espelhamento da ordem
das coisas mesmas no discurso, mas se dá toda no plano das articulações das
fantasies, das "representações" do espírito, sem garantias objetivas. Ainda
assim, é a penetração nas concepções das "coisas" que assegura e constitui uma
ordem. Como isso se dá, é o que tentaremos mostrar no que segue.
Há duas perguntas acerca da "ordem" de que podemos esperar resposta do texto
montaigniano. Como se tece um discurso ordenado? Quem é capaz de tecê-lo?13 A
ambas o texto responde mais pelo avesso, através das figuras do opiniastre e do
"tolo", do que positivamente, segundo o tratamento par contrarieté que mais
apraz ao ensaísta. Comecemos, contudo, por alguns traços positivos.
A "ordem" é um dos termos que integram as qualidades da manière montaigniana,
ao lado da "prudência" e da "suficiência", de que, no nosso ver, aquela
depende. Há outros elementos, como a força, a graça ou a sutileza dos
argumentos, mas que são relegados a um segundo plano. A "ordem" é o predicado
privilegiado pelo ensaísta na conversação, condição necessária e suficiente de
seu desempenho: "Um dia inteiro eu contestarei pacificamente, se a conduta do
debate se seguir com ordem" (III, 8, 925). Na sequência imediata desta citação,
Montaigne, como de hábito, nos oferece não uma definição abstrata do que ela
possa ser, mas uma imagem viva de onde ela se perfaz. Vale citar:
A ordem que se vê todos os dias nas altercações dos pastores e
meninos de oficina, jamais entre nós. Se eles se atrapalham, é por
incivilidade; também nós o fazemos. Mas seu tumulto e impaciência não
os desviam de seu tema: o propósito deles segue seu curso. Se eles se
atropelam um ao outro, se não se esperam, ao menos eles se entendem.
Responde-se sempre muito bem para mim, se se responde a propósito.
(III, 8, 925)
Notamos aqui como à "civilidade" que observa regras de boas maneiras no trato
mútuo entre os homens não pertence o que é essencial para a produção da ordem.
E ao lado disso, o que a "incivilidade" dos "pastores e meninos de oficina", em
seu "tumulto e impaciência", não exclui por sua vez: o prosseguimento do curso
da conversa garantido pelo simples fato de que não se desviam do tema proposto,
atendo-se a este nexo mínimo e suficiente que engendra a consecução no
discurso: o nexo nomeado sucinta e modestamente pela expressão à propos.14 O
que, de resto, garante também que haja entendimento entre os interlocutores.
Ora, é de notar que, se o discurso para o ensaísta não pode ter garantias de
não se desgarrar, tomadas a uma verdade objetiva sobre as coisas, não se
renuncia por isso à garantia da pertinência das falas que são trocadas ao longo
da conversa.15 Assim, com os "espíritos vigorosos e regrados" de que nos fala,
a "ordem e pertinência" abrem o campo do entendimento mútuo, favorecendo uma
quase fusão das "imaginações" dos interlocutores desdobradas no diálogo:
(...) quando debato contra um homem vigoroso, apraz-me antecipar suas
conclusões, poupo-lhe o esforço de se interpretar, experimento
antecipar sua imaginação imperfeita ainda e nascente (a ordem e a
pertinência de seu entendimento me advertem e ameaçam de longe)
(...). (III, 8, 936)
Eles efetivamente pensam juntos e há tal congruência entre as falas que se
sucedem, que um possa antecipar, interpretar ou prever o que o outro dirá. Dos
tolos, ao contrário, Montaigne diz que "não entendem nem o que se diz nem
porque, e respondem assim mesmo" (III, 8, 928). Desgarram-se uns dos outros, ao
desviarem-se do tema proposto.
Logo, exploremos um pouco mais o que pode significar esse "desvio", na
tentativa de esclarecer, agora par contrariété, as lições acerca da "ordem".
Tendo afirmado a certa altura que não se porta de modo pacífico e paciente
diante da falta de "forma" de certos golpes assestados contra ele, Montaigne
pede licença para desviar-se do assunto e cuidar do "meio de tratá-lo".
Curiosamente, oferece-nos, então, um variado e irônico quadro dos supostos
mestres da disputa e da eloquência, verdadeiro espetáculo da "tolice", em que
vemos vários traços de seu comportamento desviante.16
O que, afinal, faz da disputa com o tolo uma conversa "tumultuada e desregrada"
(trouble et des-reglée)? Montaigne alude a um movimento tempestuoso em direções
contrárias que se desgarra do que trata e perde o que buscava: "Um vai para o
oriente, outro para o ocidente; eles perdem o principal, e descartam-no na
multidão dos incidentes. Ao fim de uma hora de tempestade, não sabem o que
buscam" (III, 8, 926).
O problema maior do tolo está ' e aqui teremos necessariamente de desprezar
matizes e nuances desta caracterização ' em sua incapacidade de manter a
atenção no núcleo do assunto tratado, dispersando-se para o que é incidental,
quer isto represente uma passagem para outro assunto; quer uma recusa, por
fraqueza, de disputar; quer ainda um cuidado com prefácios e digressões que não
contribuem para fazer o assunto avançar; quer, por fim, um emprego de
artifícios na discussão que nada acrescentam ao esclarecimento racional da
matéria. Os "incidentes" de que os tolos se ocupam, destaquemos, são múltiplos
(há uma "multidão" deles), enquanto o principal é um só. Além disso, são
exteriores ao cerne do assunto discutido, o que faz deles meros acréscimos
desnecessários ao prosseguimento da conversa. A exigência, que vimos formulada
inicialmente, da "contradição dos julgamentos", obrigava a falar da mesma
coisa, mas não a dizer a mesma coisa dela, e que, no limite, dissessem coisas
contraditórias para que a conversa fosse proveitosa. Os tolos, segundo a
acusação montaigniana, se desgarram uns dos outros e perdem, pelo desvio para o
incidental, a coesão da interlocução, mantida, ao contrário, quando se avança
nas falas, sustentando o foco na mesma coisa e no que é "principal" nela,
quando a atenção se volta para o "assunto" (subject) tratado ' não para a
"forma"' e quando ele é um só, sem variação que o comprometa. Numa palavra, a
"ordem" é ditada pela unidade da própria "matéria".17 É esta "unidade" que o
nexo do à propos, ou seja, que a pertinência das respostas pode positivamente
garantir a cada passo, na medida em que cada um é apto ou conveniente àquilo
que o precede e eles não se sucedem ao acaso.18 Não se pode passar em silêncio
que a "ordem" propugnada aqui está bem distante da imagem da oscilação e
variação que normalmente se associa ao discurso montaigniano, na medida em que
o andamento, ainda que siga um curso sinuoso, é regrado pelo vínculo oportuno
de cada alegação, se pudermos, mais uma vez, projetar na feitura da obra e no
modo como o pensamento nela se desenvolve esta discussão sobre uma exigência da
conversa. Se for lícita tal projeção, fica a tarefa de reinterpretar a
afirmação do prólogo do capítulo "Do arrependimento" (III, 2) de que suas
fantasias são governadas pela sorte, enquanto as da música pela arte.
Até aqui nós não fizemos senão repor os termos montaignianos da questão e
delinear o que ele entende por "ordem". A explicação efetiva da unidade
garantida pela pertinência, ou seja, a explicitação das condições de
articulação de um discurso ordenado ' e isto já nos encaminha para a resposta
sobre quem é capaz de tecê-lo, apontada acima ', Montaigne no-la oferece,
indiretamente, pelo diagnóstico das causas dos desvios da tolice.
Um fato preliminar a notar é que a discussão traz à tona uma questão central
para os vários projetos intelectuais da Renascença ' central, por conseguinte,
para Montaigne ', qual seja, a do "pedantismo". Em nosso autor, o alvo real da
invectiva contra os pedantes é um pouco mais difuso do que em outros
humanistas. Petrarca,19 por exemplo, quando invectiva os velhos dialéticos, em
suas Cartas das coisas familiares, parece endereçar suas críticas contra a
Escolástica e o método da disputatio. Já Montaigne reúne sob a rubrica do
pedantismo, ao que parece, mestres da disputa e retores do Humanismo. O tolo
que ele satiriza20 longamente no "De l'art de conferer", em seus múltiplos
aspectos e formas tipicamente construídos, não é senão um legítimo
representante daquela incorreta relação com o saber e as letras, presente tanto
em uns como em outros e ameaçadora do fim preciso da imitação rival (aemulatio)
dos antigos.21 Ele opera como uma espécie de figura reguladora interna de uma
cultura que cuida para não desgarrar de seus propósitos mais elevados,
persuadindo, a contrario sensu, de sua impropriedade, já que é o negativo de
que se extrai a instrução par disconvenance ou par contrariété. Dito isso,
voltemos ao texto, exatamente no passo em que, num "excurso" breve, dirige-se
uma invectiva acerba contra um "uso que se faz das ciências e das letras",22
uso pedante e servil, que tem por causa certa "indigestão" intelectual, onde a
inépcia do tolo tem origem.
Montaigne começa enunciando sua desconfiança quanto ao proveito para a vida que
se poderia tirar das "ciências", em especial das que prometem ensinar a melhor
pensar e discorrer:
Ora, quem não entra a desconfiar das ciências, e não fica em dúvida
se delas se pode tirar algum sólido fruto para a necessidade da vida,
ao considerar o uso que delas fazemos: nihil sanantibus litteris
[dessas letras que nada curam]? Quem obteve o entendimento com a
lógica? onde estão suas belas promessas? Nec ad melius vivendum nec
ad commodius disserendum [Não há nada [nelas] nem para viver melhor,
nem para discorrer mais comodamente]. (III, 8, 926; citações latinas,
respectivamente, de Sen. Ep. lix e Cic. De fin. I xix)
A expressão da desconfiança e do desprezo pelos sçavantse suas disciplinas23 '
preferindo "as tavernas" às escholes de la parlerie para o filho aprender a
falar ' reforçada, na sequência de nosso texto, pelo exemplo do maistre ès arts
' desafiado a despir seu "latim" e "não martelar Aristóteles inteiramente puro
e inteiramente cru em nossos ouvidos" ' testemunha verossimilmente a aversão de
Montaigne contra uma lide dogmática com o saber ou venal com as Musas ' que
"emenda as bolsas, mas não as almas" ', incompatível com as aspirações de um
fidalgo bem-nascido que não quer confundir-se com os faiseurs de livres, ou com
os que fazem das Letras profissão, meio de vida. Sua crítica, em suma, volta-se
claramente contra aqueles que assentam sua suffisance et valeur na "ciência"
(sçavoir), que "submetem seu entendimento à memória", e não sabem nada senão o
que tomam de empréstimo dos livros:
Mas àqueles (e há um número infinito deste gênero) que estabelecem
sua fundamental suficiência e valor, que apoiam seu entendimento em
sua memória [C]sub aliena umbra latentes[escondendo-se sob sombra
alheia], [B] e não podem nada senão por livro, eu os odeio, se o ouso
dizer, um pouco mais do que [odeio] a bestialidade. (III, 8, 927;
citação latina de Sen. Ep. xxxiii)
Tais homens calcam o seu saber na memória e no empréstimo e imitação servil das
autoridades, bem como na sujeição aos preceitos das artes.24 Tantos traços de
uma "indigestão" intelectual e de uma sujeição ao "alheio" em detrimento do
"próprio" que nosso autor insistentemente rechaça e que aponta como causa da
desordem na conduta dos debates com os esprits bas et maladifs.25 E, ao
contrário, é à "força" das concepções dos esprits rigoureux et reglé que o
arrazoado montaigniano nos remete, quando fala de "ordem", resultado de um zelo
e cuidado com a institutionconforme à "nova maneira" que o "De l'institution
des enfans" já propugnava (I, 26, 150). E, portanto, em termos montaignianos,
conforme à "suficiência" (suffisance) de uma teste bien faicte, que garante por
si só a unidade e a pertinência da discussão, pois é forjada numa lide com o
saber que se põe, por fim, a serviço da formação do jugement.
Afloramos aqui um tópos recorrente dos Ensaios, nesta oposição entre um "saber"
de empréstimo, que é puramente de memória, e um "saber" que resulta de uma
verdadeira "assimilação" das lições aprendidas não só nos livros, como também
tomadas das muitas lições que porta a experiência. O sentido deste "saber",
contudo, é esclarecido se nos lembrarmos de um passo do "Da experiência" em que
aparece o significado preciso da "ignorância" que se reserva, segundo o
ensaísta, a toda uma tradição venerável da filosofia,26 incluindo evidentemente
os céticos:
As dificuldades e a obscuridade não são percebidas em cada ciência
senão por aqueles que nelas penetraram. Pois, ainda é preciso algum
grau de inteligência para poder observar que se ignora, e é preciso
empurrar uma porta para saber que ela para nós está fechada. (III,
13, 1075)
Esta percepção de que se ignora, por parte daqueles que penetraram com
inteligência nas ciências, ou seja, por aqueles que fizeram o esforço de
"empurrar uma porta" para descobrir que ela está fechada, não é à-toa que a
encontramos associada a uma "ignorância" que em nada se aproxima da
"indigestão" de que são acusados os sçavants, e que radica profundamente numa
cultura da alma forjada pela "experiência" da variação e oscilação que observa
em si e nas coisas exteriores, sem renunciar a penetrá-las com inteligência e
ordenada e racionalmente investigá-las. Ela é da mesma ordem que a
"experiência" no sentido mais elevado que aflora em outro momento no "De l'art
de conferer", em que o ensaísta contrasta duas "experiências": uma que é mero
relato de ocorrências ou vivências particulares; e outra que nasce do exercício
do entendimento e do julgamento sobre elas:
Eu lhe diria de bom grado que o fruto da experiência de um cirurgião
não é a história de suas práticas, e se recordar de que curou quatro
empestados e três gotosos, se ele não souber tirar deste exercício o
de que formar seu julgamento, e não nos souber fazer perceber que se
tornou mais sábio com o exercício de sua arte. [...] Se as viagens e
os cargos os têm emendado, é à produção de seu entendimento [que
cabe] fazê-lo transparecer. Não basta contar as experiências, é
preciso pesá-las e confrontá-las; e é preciso tê-las digerido e
destilado, para extrair-lhes as razões e conclusões que portam. (III,
8, 931)
A experiência no sentido mais elevado a que aludimos acima se constitui, como
vemos, a partir do trabalho ativo e inteligente do sujeito da experiência sobre
cada uma de suas "experiências", trabalho que "pesa e compara", "digere e
destila" as lições ' de livros, da vida ' que cada situação faz confrontar. As
produções do entendimento mudam e fazem transparecer uma melhora e emenda, por
meio deste trabalho de formação do discernimento e julgamento que leva em conta
razões e conclusões de cada caso vivenciado. Vemos como este processo, ainda
que não chegue a constituir ciência num sentido pleno para Montaigne, pois,
dada a ingerência da diferença em todos os assuntos, não avança no sentido de
uma generalização abstrata que retém o semelhante de cada caso particular27,
não pode, igualmente, se deter na simples recordação (souvenir). Este é, de
fato, o principal defeito dos sçavants que se valem somente de um saber que não
é deles, pois não foi devidamente assimilado, apropriado e modificado, uma vez
que só reproduzem e devolvem o que retiveram na memória.
Em seu "De l'institution des enfans", Montaigne mobilizava já a famosa metáfora
das abelhas, tomada por ele certamente de Sêneca, para sinalizar o fim a que se
propõe toda instrução de seu enfant de maison:que ele não devolva tal como
recebeu a matéria que lhe deram, mas que saiba tirar dela o de que formar seu
julgamento, passando "tudo pelo crivo e não alojando nada em sua cabeça por
simples autoridade e crédito" (I, 26, 151).28 Assim, a atividade que forma o
juízo e o entendimento, acentua e aguça a penetração inteligente nas
articulações de um "saber" que permanece, por assim dizer, problemático, mas
por meio do qual se produz uma modificação profunda no homem, que se torna
capaz não só de pensar e discursar, como de agir com prudência e "suficiência",
triando suas próprias vias no âmbito do saber, pois mostra ter-se tornado "mais
sábio", ou, em termos estritamente montaignianos, homme suffisant, mesme à
ignorer.