O devir e o lugar da filosofia: alguns aspectos da recepção e da crítica de
Nietzsche ao idealismo transcendental via Afrikan Spir
I
A segunda metade do século XIX alemão foi palco de uma importante disputa entre
correntes de pensamento que dizia respeito às condições de legitimação tanto da
atividade intelectual de modo geral quanto de nossos empreendimentos cognitivos
tomados particularmente. O cerne dessa disputa era a questão acerca de qual
seria o método mais legítimo e mais adequado à pesquisa da verdade. Após a
derrocada dos grandes sistemas filosóficos do idealismo, particularmente após a
morte de Hegel,1 grande parte dos olhares se voltou para as ciências empíricas
à procura da autoridade capaz de sancionar epistemicamente nossos
empreendimentos cognitivos, fazendo do materialismo a principal corrente de
pensamento da época. Com isso, a filosofia se viu diante da imensa tarefa de
recuperar sua dignidade por meio da delimitação de seu objeto de reflexão e do
método específico a ser empregado em suas análises, assegurando assim seu lugar
no espaço das atividades intelectuais, que se via ameaçado pelo avanço
implacável das ciências naturais. A grande estratégia encontrada pela filosofia
acadêmica da época consistiu em revisitar a filosofia de Kant, cujo núcleo
crítico havia sido obscurecido pelas sombras especulativas lançadas sobre ela
pelo idealismo pós-kantiano, e buscar estabelecer com isso uma relação menos
hostil e mais saudável entre reflexão filosófica e investigação empírica, já
que aqueles sistemas especulativos haviam criado um abismo quase intransponível
entre filosofia e ciência. Mas o caminho de retorno a Kant encontrou
bifurcações. Se, por um lado, houve um movimento (quase hegemônico nas
primeiras décadas da segunda metade do século XIX) de reconciliação que buscava
assimilar o materialismo ao kantismo mediante uma naturalização dos seus
aspectos transcendentais (movimento levado a cabo não só por filósofos, mas
também por cientistas da época), houve, por outro lado, uma tentativa de
renovação da filosofia transcendental que apostava todas as fichas na
especificidade da reflexão filosófica e do seu método, em contraposição aos
métodos das ciências naturais, e que visava portanto não uma assimilação do
materialismo, mas uma compartimentalização dos saberes que resguardava à
análise autorreflexiva a prioridade de método no âmbito das investigações
epistemológicas. Contudo, isso não teria como consequência uma manutenção da
relação hostil que vigorava então entre filosofia e ciência: uma vez que seus
âmbitos estariam delimitados, assim como seus objetos, elas poderiam se
complementar em vez de se atacarem. Essa era a posição defendida pelo filósofo
Afrikan Spir.
A tentativa de reformulação e renovação da filosofia crítica levada a cabo por
Afrikan Spir numa perspectiva rigorosamente transcendentalista se movia então
na contramão daquela tendência hegemônica de naturalização da filosofia
transcendental kantiana. Podemos identificar como importantes representantes
dessa tendência naturalista filósofos e cientistas como Friedrich Albert Lange
e Hermann von Helmholtz, mas ela remonta em certa medida à reapropriação feita
por Schopenhauer das teses do idealismo transcendental de Kant. Um dos aspectos
centrais desse movimento teórico de naturalização do transcendental é a
proposição de uma continuidade de método entre investigação científica e
análise filosófica, que pretende eleger a primeira como único meio adequado
para a descoberta dos elementos a priori da cognição. Ou seja, os adeptos desse
movimento, apesar de assumirem a tese kantiana acerca da existência de
elementos a priori que condicionariam a experiência, rejeitam o método de
análise transcendental baseado na autorreflexão do sujeito. Para Lange, a
descoberta e o exame dos elementos que condicionam universalmente a experiência
e que não derivam dela só pode se dar pela via da própria experiência e com
base nos recursos atuais da ciência, sobretudo da fisiologia da percepção.2
Esta última representava um dos mais importantes ramos da ciência empírica da
época.
A tese mais influente em voga neste contexto, defendida então principalmente
pelo já mencionado fisiólogo kantiano Hermann von Helmholtz, era de que o mundo
que conhecemos, o mundo dos fenômenos, é o resultado de operações de natureza
inferencial efetuadas inconscientemente pelos órgãos dos sentidos. Conhecida
como tese das inferências inconscientes, esta explicação dos processos
cognitivos que estão na base de nossa percepção do mundo remonta à tese
schopenhaueriana do caráter intelectual da intuição. De acordo com esta
explicação, a percepção sensível se funda numa operação inconsciente que
consiste em inferir do efeito ou estímulo sentido pelos órgãos sensoriais a
causa dessa sensação, a qual é associada a um objeto no mundo. É neste processo
que o objeto identificado como causa das impressões é intuído enquanto tal.
Para Helmholtz, que defendeu esta tese com base numa série de experimentos
empíricos relativos à energia específica de cada órgão e à sua reação aos
estímulos externos, aquela operação tem a mesma natureza de uma dedução lógica.
E isto "na medida em que extraímos do efeito observado sobre nossos sentidos a
representação de uma causa desse efeito, enquanto, de fato, só podemos perceber
diretamente as excitações nervosas, isto é, sempre apenas os efeitos, nunca os
objetos externos."3 Assim, a explicação fisiológica acerca de como formamos uma
imagem do mundo empírico remete a uma aplicação inconsciente do princípio de
causalidade a partir da qual os órgãos sensíveis referem toda sensação a um
objeto, projetado exteriormente e percebido então como sua causa. A tese em
questão, portanto, implica, por um lado, a validade universal e a priori do
princípio de causalidade, um princípio mental entendido como fundamento lógico
da percepção; por outro, porém, ela converte essa função lógica numa função
psicofisiológica, pois não se trata mais, como em Kant, de um entendimento puro
que aplica espontaneamente um conceito às impressões recebidas passivamente
pela sensibilidade, mas, antes, são os próprios órgãos sensoriais e a estrutura
psicofísica a eles associada que operam de modo inferencial interpretando
causalmente as impressões sensíveis. Sendo assim, a fisiologia da percepção, na
medida em que se ocupa dessa organização psicofísica (para usar o termo
empregado por Lange), seria a via mais adequada para a descoberta dos
princípios a priori da cognição.
Spir, em sua tentativa de reformulação da filosofia crítica e de restauração de
uma perspectiva transcendentalista mais robusta, critica esta tese por meio de
três argumentos:
1) em primeiro lugar, ela estaria em desacordo com o sentido do próprio
princípio de causalidade. Para Spir, o que está implicado no princípio de
causalidade é que nenhuma mudança pode ocorrer sem que outra mudança a preceda
no tempo e à qual ela se segue segundo uma lei fixa. Ou seja, ao estabelecer a
causa de uma mudança, nos depararemos sempre com outra mudança, nunca com um
objeto ou uma substância.4 Para compreender melhor este argumento, é preciso
ter em mente a dedução do conceito de causalidade proposta por Spir. Podemos
dividir sua argumentação em dois passos:
a) segundo o autor, o conceito de causalidade é derivado do princípio
de identidade, princípio entendido por ele como lei fundamental do
pensamento e como único elemento legitimamente a priori do sujeito
cognoscente. Conforme este princípio, "todo objeto em si, segundo sua
essência própria, é idêntico a si mesmo".5 Em última instância, este
conceito do "idêntico a si mesmo" coincide com o conceito de
incondicionado, ao qual correspondem as noções de Ser e substância.
Neste sentido, conforme nosso conceito de substância, a "identidade
consigo mesmo" seria o estado originário, essencial e incondicionado
de todo objeto em si. A mudança, por sua vez, segundo Spir, significa
"uma não identidade ou nãoconformidade consigo mesmo daquilo que
muda".6 Por conseguinte, ela não pode pertencer à essência
incondicionada do objeto, à qual deve corresponder uma identidade
absoluta. Assim, toda mudança deve ser condicionada, a saber, por
algo exterior ao próprio objeto, algo que não é o objeto mesmo: "e
isto é exatamente o que o princípio de causalidade declara: nenhuma
mudança sem causa".7 Portanto, para Spir, o conceito de causalidade
deve ser entendido como resultado da aplicação do conceito originário
e a priori da essência íntima de cada coisa, "que encontra sua
expressão no princípio lógico da identidade", ao "fato da mudança,
que só pode ser conhecido a partir da experiência";8
b) dado que toda mudança é portanto condicionada, é inconcebível que
esta possa emergir do estado de repouso que caracteriza a essência
incondicionada de cada objeto. Nesse sentido, nenhuma substância,
segundo sua essência, pode ser causa, pois toda causação implica
condicionalidade. Desse modo, segundo Spir, a partir do estado
originário da identidade a si nenhuma mudança pode ter origem. Disso
se segue, por sua vez, que a causa de uma mudança, isto é, seu
condicionante, só pode ser outra mudança, nunca uma substância ou um
objeto. É por isso que Spir afirma que a tese das inferências
inconscientes, ao explicar a percepção de um objeto empírico como um
ato de intuição de uma causa externadas impressões, está em
contradição com o próprio princípio de causalidade;
2) em segundo lugar, a tese das inferências inconscientes estaria em
contradição com a natureza imediata do conhecimento dos corpos. Na medida em
que explica nossa percepção dos objetos empíricos e, portanto, nossa crença na
existência do mundo exterior, a partir da aplicação de uma regra inferencial de
natureza lógica, esta tese não seria capaz de explicar a força persuasiva, a
certeza intuitiva e a imediaticidade da nossa apreensão do mundo fenomênico. Ou
seja, ela não seria capaz de explicar o fato de que a realidade é representada
em nossa consciência de modo absolutamente imediato e com uma força de
persuasão fenomenologicamente irresistível. Na qualidade de uma regra
hipotética, o princípio de causalidade só poderia nos fornecer um conhecimento
teórico-discursivo acerca do mundo exterior ' como o conhecimento que temos
acerca das relações causais entre os fenômenos ', jamais um conhecimento
intuitivo imediato dos próprios fenômenos. Este último pressupõe uma norma
cognitiva categórica que afirma incondicionalmente a substancialidade do mundo
ao aplicar o conceito de objeto como substância(derivado do princípio lógico de
identidade) às impressões sensíveis, interpretando essas impressões como
qualidades diversas de um mesmo objeto ontologicamente autônomo. Nesse sentido,
o princípio de identidade atua também como discriminante ontológico, pois
estabelece a norma a prioripara a determinação e fixação do conteúdo factual da
representação enquanto objeto empírico, garantindo assim objetividade à
experiência. O caráter incondicional dessa lei do sujeito cognoscente e de sua
aplicação é o que, para Spir, explica a imediaticidade da certeza que temos da
existência do mundo exterior, de modo que o princípio de causalidade está a ela
subordinado;
3) por fim, esta teoria fisiológica da percepção, ao reconduzir o princípio
cognitivo que determina nossa apreensão do mundo a uma função orgânica que pode
ser estudada pelas ciências empíricas, desconheceria o estatuto particular da
afirmação envolvida no processo de representação, cuja natureza
fundamentalmente lógica não se deixaria explicar por meio de leis físicas. Para
Spir, leis físicas (fisiológicas) podem explicar certas operações psicológicas
de associação, assim como as causas mecânicas da cognição resultantes de nossa
organização corporal, mas são incapazes de dar conta dos princípios lógicos do
conhecimento. Um princípio ou lei do conhecimento é uma disposição interna do
sujeito a "referir a objetos o conteúdo que lhe é dado" e, segundo a natureza
desse conteúdo, formar juízos acerca da existência e da natureza dos objetos.
Spir define as leis lógicas envolvidas na cognição como "princípios gerais de
afirmações sobre objetos, isto é, uma necessidade interna de ter uma crença
acerca dos objetos". Uma tal disposição jamais poderia ser produto de causas
físicas: "a este tipo de leis chamamos leis lógicas, e estas são, segundo sua
essência mais íntima, distintas das leis físicas objetivas às quais pertencem
também as leis da associação."9 Essas leis de associação são secundárias com
relação à lógica judicativa de aplicação do conceito de substância às
sensações. Enquanto um processo como o das inferências inconscientes poderia
ser explicado fisicamente a partir de um vocabulário fisiológico (incluindo-se
o psicológico ou associativo), o fato da consciência, que é acompanhado da
evidência fenomenológica da existência de corpos fora de nós (ou do sentimento
de evidência, mesmo que sua correspondência objetiva seja falsa), só pode ser
explicado por um esquema lógico-judicativo que transcende a constituição
biológica do homem. Trata-se no fim das contas de um esquema lógico-metafísico
do qual Spir retirará implicações ontológicas. É sobretudo com relação a este
ponto que o programa de Spir de renovação da filosofia crítica mais se
distancia da tendência hegemônica na segunda metade do século XIX alemão de
naturalização do transcendental. Ele resguarda, na cognição, um espaço lógico
irredutível ao âmbito de explicação dos modelos das ciências naturais,
conservando assim um método de investigação específico para a filosofia, que
concerne ao que poderíamos chamar hoje de espaço lógico-normativo das razões,
diferentemente das ciências naturais, que se ocupa com o espaço físico-
descritivo das causas:10
Disso resulta uma relação inteiramente diferente entre ciência da
natureza e filosofia, na qual ambas se complementam mutuamente ao
invés de se atacarem. Pois onde termina o território de uma, somente
ali se inicia o da outra. A ciência natural não pergunta por exemplo
por que e de que modo nós extraímos, do conteúdo de nossa própria
consciência, o conhecimento de um mundo corpóreo exterior a nós. A
ciência da natureza tampouco pode responder a essa pergunta, uma vez
que ela tem o conhecimento do mundo corpóreo como seu pressuposto
último e supremo; todavia cabe à filosofia responder a essa questão,
na medida em que, com este propósito, ela remonta àquilo que é
imediatamente certo.11
II
A influência de Afrikan Spir na construção de algumas das teses epistemológicas
centrais do pensamento de Nietzsche é variada, assim como sua importância no
que tange à recepção e à crítica nietzscheana ao idealismo transcendental de
cunho kantiano. Nietzsche se apropriou e reinterpretou várias teses e temas
presentes na reformulação da teoria kantiana do transcendental proposta por
Spir. Alguns dos aspectos centrais desse projeto de reelaboração teórica são,
por um lado, a recondução do a priori a um único elemento constitutivo, o
princípio de identidade, o qual nos forneceria o conceito de Ser e de
incondicionado e, por outro, a afirmação de uma extensão ontológica desse
conceito. Além disso, Spir serviu a Nietzsche como porta de acesso a uma
problemática que envolvia tanto o diálogo entre teoria do conhecimento e
ciência natural quanto as interfaces entre epistemologia, ontologia e
metafísica. Assim, ele forneceu a Nietzsche uma análise sistemática das
principais teorias científicas e epistemológicas da época, trazendo à luz ao
mesmo tempo um conjunto de pressupostos teóricos do transcendentalismo que
Nietzsche irá associar criticamente a um comprometimento ontológico com o
conceito normativo de Ser de cunho parmenidiano. Spir é, por essa razão, um dos
filósofos que serviram de base para a interpretação do jovem Nietzsche dos pré-
socráticos, que visava confrontar seus pensamentos com certas posições
contemporâneas tanto da ciência quanto da filosofia. É sobretudo sua
interpretação e crítica do pensamento de Parmênides em contraposição ao
heraclitismo que é mais devedora do quadro conceitual tomado de empréstimo de
Spir na sua reformulação da filosofia crítica. Com efeito, Parmênides é
identificado por Nietzsche como o precursor de uma ontologia cujos pressupostos
normativos e consequências teóricas conduziriam a uma crítica epistemológica
radical que, por sua vez, teria encontrado na filosofia transcendental kantiana
sua expressão mais acabada. Em contrapartida, Heráclito é visto como o
precursor de um tipo de filosofia histórica essencialmente
antitranscendentalista que, aliada aos resultados da investigação científica,
nos colocaria diante do problema do conhecimento com um olhar mais
pessimista.12
Mas, antes de entrarmos mais especificamente nessa discussão, presente
sobretudo no texto "A filosofia na época trágica dos gregos", de 1873, e que
antecipa alguns aspectos centrais da posterior teoria do erro de Nietzsche,13 é
útil nos debruçarmos sobre o fragmento 19[242] de 1872. Trata-se de uma das
primeiras anotações escritas sob influência da leitura de Spir. Neste
fragmento, Nietzsche retoma uma discussão de Spir acerca dos juízos sintéticos,
reinterpretando-a e chegando à conclusão de que os processos que estão na base
de nossa cognição são de natureza ilógica e implicam o caráter ficcional e
antropomórfico do conhecimento.
Na passagem retomada por Nietzsche no fragmento em questão, Spir analisa a
natureza dos juízos que fundam nossa representação e nosso conhecimento do
mundo empírico. Para ele, a representação que possuímos de um mundo exterior
preenchido por corpos só é possível por meio da aplicação de um princípio
cognitivo a priori que age categorialmente sobre todo conteúdo sensível
fixando-o como identidade e unidade. Este princípio, identificado por Spir com
o princípio de identidade, seria o elemento fundamental de organização da
experiência, a partir do qual seríamos capazes de estabelecer e identificar
objetos empíricos estáveis, compreendidos como substâncias, a partir dos dados
sempre instáveis das sensações. Enquanto elemento constitutivo da
representação, portanto, o princípio de indentidade, ao estabelecer a norma a
priori para a determinação do conteúdo sensível da representação enquanto
objeto empírico, garantiria objetividade à experiência, atuando como
discriminante ontológico. Contudo, tomado em sua expressão meramente lógica, o
princípio de identidade permite apenas juízos tautológicos do tipo A = A, ao
passo que o juízo que nos permite descrever a representação de um objeto
empírico, apesar de conter em si uma aplicação categorial do princípio de
identidade, é de outra natureza. Nesse sentido, na passagem retomada por
Nietzsche no fragmento 19[242] Spir escreve:
Que representação alguém obteria da essência de um lápis, por
exemplo, caso se lhe dissesse apenas: o lápis é o lápis? Obviamente
nenhuma. Para descrever o lápis, precisaríamos nos expressar mais ou
menos assim: o lápis é uma coisa extensa, é alongado, fino, tem forma
cilíndrica, é colorido, duro, pesado, etc. Vemos aqui, portanto, toda
uma quantidade de qualidades contidas ou abarcadas numa unidade (o
lápis), as quais são todas diferentes umas das outras.
Ora, a unidade do diverso é chamada em geral de síntese, e as
proposições nas quais a essência de uma tal unidade é expressa são
chamadas proposições sintéticas ou juízos sintéticos. A fórmula geral
das proposições sintéticas, a expressão geral de uma síntese, é a
proposição: "A é B".14
Spir entende aqui a síntese como momento constitutivo de nossa apreensão do
mundo empírico, caracterizado por uma pluralidade de objetos que abarcam uma
diversidade de qualidades. É somente por meio de um ato de síntese que somos
capazes de perceber qualidades diversas ' que correspondem a uma pluralidade de
impressões sensíveis no sujeito ' como pertencentes a uma mesma coisa,
compreendida como unidade deste diverso. A partir da passagem citada é possível
vislumbrar o que, para Spir, constitui a condição sob a qual se nos torna
possível a experiência de objetos em geral. O objeto, enquanto unidade de
qualidades diversas, é o resultado de um juízo sintético no qual certos
complexos de sensações são referidos a um substrato. Segundo Spir, este juízo
(ou síntese) se funda, em última instância, na lei lógica fundamental do
sujeito cognoscente, a qual postula uma substância idêntica a si mesma como
suporte das sensações dadas na percepção. Sem a necessidade subjetiva
originária de postular objetos incondicionados e que permanecem os mesmos,
nenhuma experiência do mundo seria possível. Com efeito, o que de fato
percebemos daquilo a que chamamos "objetos" é meramente uma pluralidade de
qualidades e atributos ligados por uma certa lei, em conformidade com a qual
eles sempre aparecem juntos. Contudo, pensamos um objeto ou um corpo, para além
desses complexos de sensações, "como uma unidade individual que é por assim
dizer o suporte das qualidades [...] Aqui, o esforço do pensamento é claramente
o de apreender as muitas qualidades simplesmente como diversos lados da
essência una e indivisível da coisa."15 Entre o conceito de substância,
derivado imediata e originalmente do princípio de identidade, e a necessidade
de representar coisas ou objetos existentes por si mesmos, deve haver então uma
relação lógico-predicativa que, por sua vez, corresponde ao quadro judicativo
no interior do qual as proposições sintéticas são formadas.
No fragmento 19[242] de 1872, Nietzsche retoma a passagem de Spir citada acima
e escreve:
A essência da definição: o lápis é um corpo alongado, etc. A é B. O
que é alongado é, aqui, ao mesmo tempo colorido. As qualidades contém
apenas relações.
Um corpo determinado é igual tantas e tantas relações. Relações
jamais podem ser a essência, mas apenas efeito da essência. O juízo
sintético descreve uma coisa segundo seus efeitos, isto é, essência e
efeitos são identificados, isto é, uma metonímia.
Portanto, na essência do juízo sintético jaz uma metonímia, isto é,
uma equação falsa.
Ou seja, as inferências sintéticas são ilógicas.Quando as aplicamos,
pressupomos a metafísica popular, isto é, aquela que considera
efeitos como causas.
O conceito "lápis" é confundido com a "coisa" lápis. O "é" no juízo
sintético é falso, ele contém uma transposição, duas esferas
distintas são colocadas lado a lado, entre as quais jamais pode
ocorrer uma equação.
Vivemos e pensamos sob efeito do ilógico, no não-saber, no falso
saber.
Num movimento argumentativo que parece apontar numa direção divergente das
intenções teóricas de Spir, que aloca os juízos sintéticos num espaço lógico
cuja base é a lei da identidade, Nietzsche, discutindo diretamente com um
modelo naturalista da cognição (o modelo das inferências inconscientes),16
compreende aqui estes juízos como resultado de uma transposição semântica
(metonímica) que corresponde à confusão ou inversão entre essência e efeito.
Identificando essa operação semântica a uma equação falsa, Nietzsche conclui
que as inferências sintéticas são ilógicas, e isso, ao que parece, por dois
motivos: a) primeiramente porque Nietzsche não acredita que o processo
fisiológico de transposição de um estímulo nervoso em imagem possa ser descrito
em termos lógicos, já que ele ocorre numa esfera da cognição desprovida de
signos abstratos e cujas associações analógicas (metafóricas) não possuem uma
forma dedutiva-inferencial ou mesmo predicativa, estando aquém de qualquer
estrutura lógica ou conceitual; b) em segundo lugar, porque a confusão entre
causa e efeito, descrita por Nietzsche como uma metonímia, transgride as regras
lógicas e conceituais que estruturam nossa compreensão racional do mundo,
correspondendo assim a uma aplicação inadequada do princípio de razão. Ora, é
justamente desse modo que o jovem Nietzsche, sob influência do linguista e
filósofo Gustav Gerber ("Die Sprache als Kunst"),17 compreende o princípio que
atua inconscientemente na cognição: como uma operação ilógica, metafórica
(metonímica), que confunde impressões subjetivas com qualidades objetivas
imanentes a um objeto, e projeta então falsamente este complexo de impressões
como um objeto no mundo exterior. A influência de Gerber é aqui clara. Essa é
exatamente a definição que o autor de "Die Sprache als Kunst" dá para a figura
da metonímia: inversão de causa e efeito, ao associar esse tropo à nossa forma
de aplicação do princípio de causalidade, como quando dizemos, por exemplo:
"essa bebida é amarga, em vez de: a bebida suscita em nós uma sensação desse
tipo"; ou "a pedra é dura, como se a dureza fosse outra coisa que um juízo
nosso".18 Seguindo essa sugestão de Gerber, Nietzsche afirma em "Sobre verdade
e mentira":
Deduzir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é o resultado de
uma aplicação falsa e injustificada do princípio de razão. [...] como
estaríamos autorizados a dizer: a pedra é dura: como se "duro" nos
fosse conhecido de outra forma e não simplesmente como uma excitação
absolutamente subjetiva!19
É ainda nesse contexto que ele escreve no fragmento 19[217] de 1872: "São
tropos, não inferências inconscientes, sobre os quais repousam nossas
percepções sensíveis". Como vimos, o modelo das inferências inconscientes, que
visava explicar os mecanismos fisiológicos que dão origem à percepção sensível,
era o modelo em voga na segunda metade do século XIX alemão, cujo ambiente
intelectual era marcado por uma forte tendência de naturalização do
transcendental que tinha nas ciências empíricas seu referencial metodológico.
Friedrich Albert Lange e o fisiólogo kantiano Hermann von Helmholtz eram dois
dos principais representantes desse movimento. Afrikan Spir, ao contrário, era
um crítico desse modelo e da tendência que ele representava, uma vez que seu
projeto de renovação da filosofia crítica partia do pressuposto de que a
filosofia deveria se valer de um método próprio de investigação, baseado na
análise a priori de nossas funções cognitivas. O modelo tropológico
desenvolvido por Nietzsche no início da década de 1870 sob influência da
leitura de Gerber, por sua vez, pretende apresentar uma alternativa à tese das
inferências inconscientes, sem contudo escapar a um vocabulário que é em grande
medida naturalista.
Segundo esta tese hegemônica na época, nossa imagem do mundo sensível se
origina graças a um princípio atuante nos órgãos sensoriais e que seria, em
última instância, idêntico àquele que rege nossos juízos lógicos. A explicação
se baseia na aplicação da categoria de causalidade para toda sensação
imediatamente dada, de forma que nós construímos uma imagem sensível do mundo
como fenômeno referindo toda sensação a um objeto e interpretando-o como sua
causa. Dado o pressuposto da validade universal e a priori do princípio de
causalidade, os órgãos responsáveis pela construção do mundo fenomênico
operariam então segundo leis fixas e invariáveis, de forma que sua operação
seria acompanhada de necessidade e universalidade. Ao que tudo indica, este é
um dos aspectos centrais da tese das inferências inconscientes contra o qual
Nietzsche faz valer seu modelo tropológico. Ao afirmar que são tropos, não
inferências inconscientes, sobre os quais repousam nossas percepções sensíveis,
ele parece querer ressaltar que necessidade, universalidade e logicidade são
características conceituais interconectadas e que pertencem estruturalmente a
um nível de abstração que não corresponde à dinâmica contingente dos processos
inconscientes que estão na base da cognição.20 E isso porque aquele columbário
conceitual é, para o jovem Nietzsche, um produto tardio da formação de
metáforas, sobre cuja base se origina a cognição, e que devem ser descritas
como contingentes, individuais e ilógicas. Nesse sentido, Nietzsche entende
nossas operações "inferenciais" (projetivas) como operações ilógicas, ou mesmo
como falácias, pois elas estão aquém de qualquer estrutura formal e não são
justificadas nem justificáveis por regras conceituais de natureza lógica ' ao
contrário, devido a seu caráter semanticamente arbitrário, elas ferem essas
regras. É por isso que no fragmento 19[242], no qual Nietzsche retoma a
discussão de Spir acerca dos juízos sintéticos, ele afirma que nós pensamos e
vivemos constantemente sob o efeito do ilógico, na medida em que só construímos
o mundo fenomênico com base em processos de metaforização que carregam em si
uma arbitrariedade semântica incontornável.
Dentro desse contexto, o movimento argumentativo apresentado por Nietzsche
nesses fragmentos aponta numa direção divergente dos pressupostos teóricos de
Spir na medida em que este último pressupõe uma estrutura formal, um conceito a
priori de Ser, do "idêntico a si mesmo", numa esfera da cognição que, segundo a
posição do jovem Nietzsche, está aquém de toda forma lógico-predicativa ou
conceitual.21 Este é o pano de fundo que o autoriza a reconduzir a explicação
de Spir acerca dos juízos sintéticos para o interior do seu modelo tropológico.
Entretanto, apesar dessa diferença fundamental entre as posições dos dois
autores, um ponto importante de convergência deve ser destacado: trata-se da
tese mais geral segundo a qual nosso conhecimento do mundo fenomênico é marcado
por uma contradição ou inconsistência lógica. Se para Nietzsche a falsidade e/
ou o caráter falacioso e ilógico do nosso conhecimento são resultado de uma
transposição (Übertragung) metonímica na qual duas esferas distintas são
equacionadas ' a esfera da "coisa" e a esfera das qualidades e relações ', de
modo que causa e efeito são confundidos e a coisa é definida a partir da soma
de suas propriedades, para Spir o julgamento sintético, no qual qualidades
diversas são atribuídas a um mesmo objeto, está em conflito com as leis lógicas
da autoidentidade e da não contradição.22 Como vimos, segundo Spir, todo objeto
empírico, enquanto unidade sintética de uma multiplicidade de qualidades, é o
produto da aplicação do nosso conceito de substância aos complexos de
sensações, com o que as diversas qualidades correspondentes às sensações são
atribuídas a um substrato. Nosso conceito de substância, por sua vez, coincide
com o conceito de incondicionado, expressão mais imediata da norma epistêmica
que rege nosso pensamento: o princípio de identidade. Mas o incondicionado,
enquanto tal, não pode conter multiplicidades, pois multiplicidade implica
relação (a relação das múltiplas qualidades entre elas), e relação implica
condicionalidade. Nietzsche parece se referir a este argumento ao afirmar que
qualidades contêm apenas relações e que relações jamais podem ser a essência,
chegando à conclusão de que o "é" no juízo sintético, ao definir a "coisa"
pelas suas propriedades, equacionando duas esferas distintas entre as quais
jamais pode haver uma equação, é falso e/ou ilógico.23
Retomando o argumento de Spir, podemos dizer então que nosso conhecimento do
mundo empírico, na medida em que é necessariamente um produto de juízos
sintéticos, é logicamente inconsistente, pois pressupõe a aplicação do conceito
de incondicionado (do absolutamente idêntico a si mesmo) à multiplicidade da
experiência, na qual ele nunca pode ser plenamente instanciado: "Pensemos num
objeto incondicionado A, cuja essência consiste em duas qualidades a e b; nesse
caso, A é tanto a quanto b e nada além de a e b. Porém, uma vez que a e b são
diferentes um do outro, o objeto A seria, assim, na medida em que é a qualidade
a, diferente de si mesmo na medida em que é a qualidade b."24
Sendo assim, o incondicionado pressuposto pela norma do pensamento, o princípio
de identidade em sua forma mais pura, deve se referir a uma unidade
absolutamente simples que só poderia ser instanciada por um ente tal como o Ser
de Parmênides. Para Spir, um tal ente existe realmente. Segundo ele, o
desacordo entre o conceito de incondicionado, por um lado, tal como é expresso
pelas leis lógicas da identidade e não contradição, e a natureza empírica dos
corpos, por outro, nos remete necessariamente a um lado da realidade para além
do âmbito sensível no qual este conceito seria instanciado: trata-se daquilo
que ele identificará com a coisa em si kantiana, a essência própria das coisas.
O procedimento de Spir pode ser visto aqui como uma espécie de "inversão" do
pressuposto básico tanto da Analítica quanto da Dialética Transcendental
kantiana segundo o qual os conceitos puros só podem ser legitimamente aplicados
aos objetos da experiência, isto é, aos fenômenos, jamais à coisa em si. É
justamente por meio desta limitação do uso dos conceitos a priori que Kant
busca resolver as antinomias da razão. Para Spir, ao contrário, a única
aplicação legítima do conceito a priori do nosso pensamento ' o conceito de
substância ou de incondicionado ' é sua aplicação à coisa em si, pois ao ser
aplicado à pluralidade e transitoriedade dos objetos empíricos ele implica uma
contradição lógica com estes.25 Com isso, Spir sustenta uma ontologia de cunho
parmenidiano ao identificar a coisa em si à instanciação do nosso conceito de
Ser. O elemento a priori do pensamento, o princípio lógico da identidade,
possui assim uma extensão ontológica, de modo que o conceito de incondicionado
nos forneceria a única representação adequada da essência da realidade: "não
pode haver outra ordenação justificada do pensamento a não ser aquela que nos
capacita e nos conduz ao conhecimento correto da realidade".26
III
A proximidade entre os pressupostos e consequências teóricas da filosofia
transcendental de Spir (assim como da de Kant, em alguns de seus pontos
centrais), por um lado, e o pensamento de Parmênides, por outro, não passou
despercebida aos olhos de Nietzsche. É por isso que as reflexões e os
argumentos do renovador da filosofia crítica são tomados como pano de fundo
para a apresentação das teses de Parmênides no interior do diálogo mais ou
menos implícito estabelecido pelo jovem Nietzsche entre os pré-socráticos e
seus contemporâneos. Como sugere Paolo d'Iorio,27 o primeiro ponto de
aproximação entre os dois filósofos é o anseio pela certeza, cuja busca, no
caso de Parmênides, teria conduzido a um reino de abstrações lógicas totalmente
estranho ao espírito grego.28 Este é um tema-chave em Spir, que acredita que
toda filosofia deve ter como ponto de partida certezas imediatas, de natureza
factual e racional. No que concerne àquilo que Nietzsche reconhecerá como sendo
o ponto fundamental tanto da ontologia quanto da crítica de nosso aparato
cognitivo presentes na filosofia de Parmênides, o papel central será concedido
à certeza imediata de caráter racional, identificada por Spir ao princípio
lógico da identidade: "a única forma do conhecimento em que acreditamos
incondicionalmente e cuja negação equivale à loucura é a tautologia A = A".29
A partir dessa certeza e verdade lógicas, Parmênides teria chegado à conclusão
de que somente o Ser enquanto identidade pura, isto é, o que pode ser expresso
por uma proposição tautológica do tipo A = A, existe realmente: o Ser é! Na
medida em que nos vemos obrigados a atribuir qualidades ao Ser e dizer algo do
tipo: A = B (o que equivale a dizer A = não A), encontramo-nos no erro. É
possível reconhecer aqui as reflexões de Spir discutidas acima acerca dos
juízos sintéticos e sua concepção do caráter ilógico do nosso conhecimento
empírico. A diversidade e a mudança das qualidades comportam diferenças, ou
seja, negação da identidade, de modo que aquilo a que se pode atribuir mudança
e diversidade, todo o mundo sensível, portanto, pertenceria, segundo o
Parmênides de Nietzsche, ao âmbito do não Ser: "tudo aquilo de que se pode
dizer: 'foi' ou 'será' não é; do Ser, porém, jamais se pode dizer: 'não é'".30
Com esse pensamento, ele teria realizado a primeira e mais importante crítica
do nosso aparato cognitivo, cindindo assim o âmbito da sensibilidade (da
temporalidade, da mudança e da diversidade) e o âmbito das abstrações lógicas
(do princípio lógico da identidade, do Ser uno, eterno e atemporal), cisão que
encontraria sua formulação mais precisa na distinção kantiana entre
sensibilidade e entendimento puro. A consequência dessa "crítica fatal" é a
seguinte:
Todas as percepções sensíveis, julga Parmênides, fornecem apenas
ilusões; e sua ilusão principal é justamente que elas nos fazem crer
que também o não Ser é, que também o devir tem um ser. Toda aquela
pluralidade e aquele colorido do mundo conhecido pela experiência, a
mudança de suas qualidades, a ordem em sua ascensão e declínio é
impiedosamente descartada.31
Desse modo, Nietzsche vê na filosofia de Parmênides os prelúdios tanto de uma
crítica epistemológica radical quanto da ontologia. Uma vez que a experiência
não nos mostra nenhum ente que corresponda ao nosso conceito normativo de Ser,
Parmênides teria deduzido que esse conceito, por estar presente em nosso
pensamento, deve necessariamente poder ser instanciado numa dimensão ontológica
que ultrapassa a experiência. O conteúdo lógico do pensamento e seu valor de
verdade não teriam portanto nenhuma referência à experiência, mas viriam de
outro lugar, a saber, de um mundo suprassensível ao qual nós teríamos um acesso
direto pelas vias do pensamento puro.32 O argumento atribuído por Nietzsche a
Parmênides é aqui análogo ao argumento de Spir segundo o qual o desacordo entre
nosso conceito de incondicionado e a natureza empírica dos corpos nos remeteria
necessariamente a um lado da realidade para além do âmbito sensível que
corresponderia a esse conceito.
IV
Nos parágrafos que se seguem, Nietzsche mobiliza um importante argumento contra
a tese parmenidiana de uma identidade entre pensamento e Ser supostamente capaz
de nos assegurar da existência de uma dimensão ontológica essencial e
incondicionada para além do mundo sensível. Trata-se do argumento (atribuído
por Nietzsche sobretudo a Anaxágoras) da mobilidade e do caráter temporal do
próprio pensamento. Se o Ser deve ser entendido como uma unidade
incondicionada, imutável e atemporal, o pensamento, para ser idêntico a essa
unidade e poder apreendê-la verdadeiramente, deveria ter essas mesmas
características. Porém, "é totalmente impossível caracterizar o pensamento como
uma permanência invariável, como um pensar-a-si-mesmo eternamente imóvel da
unidade".33 O pensamento é sempre necessariamente um movimento de conceitos e
uma sucessão de representações que se dá incontornavelmente no tempo. Eis o que
os adversários de Parmênides poderiam lhe objetar, recorrendo a um argumento ad
hominem e afirmando que no seu próprio pensamento há sucessão e movimento,
razão pela qual esse pensamento não poderia ser real e portanto nada poderia
provar acerca do real.
Lançando mão de um argumento que retoma em algumas linhas gerais a referência à
filosofia transcendental de Kant presente em seu escrito sobre os filósofos
pré-platônicos,34 Nietzsche recorre à tese kantiana da idealidade
transcendental do tempo e do fenomenismo da experiência interna para propor uma
saída a este embaraço filosófico no qual os adversários de Parmênides o teriam
lançado. Àquela objeção, Parmênides poderia responder, como Kant, da seguinte
forma: "é verdade que eu posso dizer que minhas representações se sucedem umas
às outras: mas isso significa apenas que somos conscientes delas numa sequência
temporal, isto é, segundo a forma do sentido interno. O tempo não é, por isso,
algo em si, tampouco uma determinação objetivamente inerente às coisas."35 Este
argumento kantiano tem como alvo aqueles que acreditam possuir um acesso
epistêmico privilegiado à experiência interior, aos fatos e processos internos
da nossa consciência representacional. Os adeptos dessa tese internalista
poderiam argumentar que, por mais que possamos e devamos ser céticos com
relação aos objetos externos, nada nos autoriza a duvidar do conteúdo imanente
e das mudanças de nossas próprias representações, o que atestaria a realidade
do tempo, uma vez que essas representações ocorrem necessariamente no tempo.
Kant afirmará que de fato o tempo possui uma realidade empírica, na qual todas
as mudanças que experienciamos têm lugar. Contudo, não podemos nos valer desse
argumento para provar uma suposta realidade transcendental ou absoluta do
tempo. O fato de que a consciência que tenho de minhas próprias representações
as dispõe numa sequência temporal não implica que o tempo seja uma determinação
objetivamente inerente às coisas. Nietzsche observa a esse respeito que,
segundo o argumento kantiano, seria necessário "distinguir entre o pensamento
puro, que seria atemporal como o Ser parmenidiano, e a consciência desse
pensamento, e esta última já traduziria o pensamento na forma da aparência, ou
seja, da sucessão, da pluralidade e do movimento."36
Trata-se aqui justamente do argumento kantiano do fenomenismo da experiência
interna. Contra aqueles que argumentam a favor da tese de que possuímos um
acesso privilegiado às representações do sentido interno, Kant afirmará que a
experiência interna, isto é, a consciência que temos de nós mesmos no fluxo de
nossas representações, nos fornece apenas um fenômeno do mesmo gênero daqueles
do mundo externo, o que significa que o conteúdo que acessamos pelo sentido
interno não corresponde a nenhuma realidade que ultrapasse a realidade
meramente fenomenal. O conceito central empregado por Kant nesse contexto é o
de autoafecção, noção que caminha lado a lado com a tese da idealidade
transcendental do tempo. Uma vez que a consciência que temos de nós mesmos e de
nossas próprias representações emerge sob a forma do sentido interno (o tempo),
ela não pode nos dar senão um fenômeno do sujeito, já que o sujeito em seu
aspecto propriamente transcendental deve ser localizado numa dimensão atemporal
e não condicionada pelas formas da sensibilidade.37 Nesse sentido, Parmênides
poderia recorrer à tese kantiana e afirmar que a sucessão de nossas
representações na consciência é apenas um fenômeno que não corresponde à
verdadeira natureza do pensamento, do pensamento puro, idêntico a si mesmo e
localizado numa dimensão atemporal assim como o próprio Ser.
Num segundo momento de sua argumentação, Nietzsche se servirá então de uma
passagem decisiva de Spir contra a tese kantiana. Retomando o essencial do
argumento referido acima de que as mudanças nas nossas representações são
reais, o texto de Spir desenvolve essa ideia de um modo bastante sofisticado
recorrendo a uma fenomenologia da representação de inspiração cartesiana:
É provável que Parmênides tivesse se servido dessa saída: aliás,
dever-se-ia objetar contra ele o mesmo que A. Spir (Pensamento e
realidade, p. 264) objeta contra Kant. "Agora, porém, é claro
primeiramente que eu não posso saber nada de uma sucessão enquanto
tal se eu não tiver ao mesmo tempo em minha consciência as partes que
se sucedem. A representação de uma sucessão, portanto, não é ela
mesma sucessiva; por conseguinte, ela é também totalmente distinta da
sucessão de nossas representações. Em segundo lugar, a suposição de
Kant implica absurdidades tão evidentes que é espantoso como ele pôde
tê-lo ignorado. Segundo essa suposição, César e Sócrates não estão
realmente mortos, eles continuam tão vivos quanto há dois mil anos e
somente parecem estar mortos devido à configuração do meu "sentido
interno". Homens futuros já vivem agora, e se eles ainda não aparecem
como viventes é igualmente por culpa daquela configuração do "sentido
interno". Aqui se coloca sobretudo a seguinte questão: como pode o
começo e o fim da própria vida consciente, juntamente com todos os
seus sentidos internos e externos, existir meramente na apreensão do
sentido interno? O fato é que não podemos de modo algum negar a
realidade da mudança. Se a jogarmos pela janela, ela surge novamente
pelo buraco da fechadura. Que se diga: "simplesmente me parece que os
estados e as representações mudam" ' entretanto, essa aparência mesma
é algo objetivamente existente e nela a sucessão possui, sem dúvida
alguma, realidade objetiva; nela, as coisas realmente se seguem umas
às outras. ' Ademais, deve-se notar que toda a crítica da razão só
pode estar fundamentada e justificada a partir do pressuposto de que
nossas representações mesmas nos aparecem como elas são. Pois, caso
as representações também nos aparecessem diferentemente de como elas
são realmente, não se poderia fazer afirmações válidas acerca delas,
ou seja, não se poderia realizar nenhuma teoria do conhecimento e
nenhuma investigação transcendental. Ora, está fora de dúvida que
nossas próprias representações nos aparecem como sucessivas.38
Abstraindo-se alguns detalhes em certo sentido marginais, a parte ad hominem do
argumento e alguns exageros retóricos presentes no texto, podemos dizer que o
argumento filosófico principal desta passagem é o seguinte: ao dizer que meus
estados de consciência e minhas representações me aparecem como sucessivos e
mutáveis, sou obrigado a aceitar que essa aparência mesma possui uma realidade
objetiva enquanto estado de consciência ' realidade da qual não podemos
abstrair a temporalidade sem contradizer radicalmente a evidência
fenomenológica mais elementar do processo do representar. Nesse sentido, a
estrutura da argumentação em questão é semelhante à estrutura do cogito
cartesiano, e o incisivo apelo de Spir ao conteúdo factual da representação
como certeza imediata da consciência em analogia ao método filosófico de
Descartes é prova dessa semelhança. Há aqui um apelo à fenomenalidade radical
da consciência representacional, que é levada a seus limites, e à evidência de
sua forma constitutiva. Ora, por mais que Nietzsche (sobretudo em seu período
de maturidade) se mostre profundamente cético quanto ao apelo filosófico a
certezas imediatas e fatos da consciência, de onde provém sua crítica incisiva
tanto ao cogitocartesiano (que apela à imediaticidade do pensar) quanto à
filosofia da vontade de Schopenhauer (que apela à imediaticidade do querer),
essa "forma minimal"39 de argumentação fenomenológica a favor da realidade
objetiva do tempo não parece ofender sua prudência cognitiva. Ela nada afirma
sobre um suposto sujeito subjacente às mudanças e oferece a possibilidade de
uma "interpretação eliminativa"40 a favor de uma tese com a qual Nietzsche
parece estar de acordo desde muito cedo. Com efeito, o que é considerado nessa
argumentação não é o cogito tal como o compreenderá Nietzsche mais tarde, isto
é, o conteúdo de um ato de consciência entendida enquanto substância pensante,
mas sim a forma da cogitatio, a saber, sua forma temporal enquanto estrutura
imanente a toda representação possível. De acordo com este argumento, o modo
temporal das representações, o fluxo da consciência, implica a realidade
objetiva do tempo. Trata-se aqui, portanto, de uma constatação fenomenológica
de que à essência de toda cogitatio pertence um tempo que é constitutivo da
cogitatio ela mesma e que não pode ser dela abstraído. Assim, a temporalidade
não é um atributo acidental do pensamento e da representação, que viria se
somar a eles na medida em que se tornam fenômenos para a consciência; antes,
ela é uma de suas determinações mais essenciais. O aparecer sucessivo e em
constante mudança de dados sensíveis imanentes na atividade do representar é
fenomenologicamente indubitável. Por conseguinte, na medida em que a sucessão e
a mudança das representações possuem realidade objetiva; na medida em que, no
próprio aparecer das representações, uma coisa se segue realmente à outra, não
estamos autorizados a negar a realidade do tempo.41 Com isso, a tese kantiana
da idealidade transcendental do tempo estaria refutada.
Dando ainda um passo além no sentido de uma análise mais profunda do argumento,
podemos observar o seguinte: o primeiro ponto da crítica de Spir citada por
Nietzsche na passagem acima ' isto é, que não podemos saber nada de uma
sucessão se não tivermos ao mesmo tempo na consciência as partes que se
sucedem, e que, portanto, a representação de uma sucessão não é ela mesma
sucessiva e é por conseguinte distinta da sucessão de nossas representações '
se opõe à afirmação de Kant de que "a sucessão das representações não seria de
modo algum distinta da nossa representação da sucessão".42 Para Spir, a
sucessão das representações não pode ser identificada com a representação de
sua sucessão. Ao contrário, a representação de uma sucessão só é possível na
medida em que uma sucessão de representações nos é anteriormente dada de modo
objetivo, e cuja realidade precisamos afirmar de antemão para que possamos
obter uma representação ulterior do processo, o que significa: se não afirmamos
a existência da sucessão, ou seja, a existência de um movimento real de nosso
pensamento, nenhuma representação da sucessão é possível.
Além disso, Kant não teria deixado claro, em sua distinção fundamental entre
coisa em si e fenômeno (representação), o que ele entende por fenômeno e qual
realidade ele concede ao mundo dos fenômenos. Este teria sido seu erro básico,
que o teria conduzido à falsa concepção da irrealidade do tempo.
Ele definiu os fenômenos por toda parte como meras representações,
mas ele não distinguiu estas duas coisas totalmente heterogêneas:
'ser uma representação' e 'ser meramente representado' ou 'existir
meramente na representação.' Ele não distinguiu a representação
mesma, como um processo objetivo ou como objeto, daquilo que é nela
reproduzido ou representado.43
Este é um ponto fundamental para o argumento de Spir: na medida em que a
existência da representação ela mesma, e não daquilo que é nela representado,
não pode ser negada, tampouco podemos negar a existência objetiva de uma
sucessão temporal, pois as representações ocorrem necessariamente no tempo. Ou
seja, a temporalidade do processo de representação enquanto processo objetivo
não pode ser descartada.
V
Mas Spir, movido pelo que talvez seja uma certa "piedade filosófica" ou
simplesmente pelo princípio de caridade interpretativa, concede razão a Kant em
dois pontos no que concerne à tese da idealidade transcendental do tempo:
1) o primeiro é que Kant teve razão ao afirmar que "o tempo em si" não é algo
real, pois este seria uma mera abstração das sucessões que nos são realmente
dadas e não poderia ser representado sem elas. Um "tempo em si" no sentido de
um tempo vazio, no qual nenhuma mudança ocorresse, é uma mera abstração e nesse
sentido algo irreal.44 Este argumento, que se encontra na sequência do trecho
retirado pelo jovem Nietzsche do primeiro volume da obra, já antecipa uma
segunda crítica de Spir à compreensão kantiana do tempo, presente no segundo
volume, e que não se refere mais à tese da idealidade transcendental, mas sim à
tese do apriorismo do tempo. Nietzsche se refere a esta crítica nos fragmentos
35[56] e 35[61] de 1885, nos quais ele cita Spir: "o tempo não é dado a priori
' Spir 2, p. 7";45 e na sequência: "'o assim chamado tempo, uma mera abstração,
nem existente objetivamente, nem um modo de representação necessário e
originário do sujeito' <Spir> 2. p. 15."46 Se não contextualizados, estes
fragmentos podem levar a falsas interpretações da posição nietzscheana acerca
do problema. O leitor desatento pode ser tomado pela impressão de que Nietzsche
se serve aqui de uma citação de Spir para sustentar a ideia de que o tempo, na
medida em que é uma mera abstração, na medida em que não existe nem
objetivamente nem como forma a priori de nossa faculdade cognitiva, não possui
nenhuma realidade que ultrapasse a esfera da consciência empírica, sendo não
exatamente uma forma da representação, mas sim um produto dela. Porém, essa
seria uma leitura profundamente equivocada.47 Como mencionado, Nietzsche se
refere aqui à crítica de Spir à tese kantiana do caráter a priorido tempo. Spir
concede a Kant que, se entendido como um tempo vazio (e esta é justamente a
consequência da tese da Estética Transcendental que entende o tempo como forma
pura a priori dos fenômenos), este não pode ser real. O que Nietzsche chama de
"tempo" ao citar Spir no fragmento 35[61] referido acima não é, portanto, o
tempo que nos é dado na experiência da sucessão e da mudança, mas sim o tempo
como conceito abstrato, como forma pura, referido pela expressão "o assim
chamado tempo". Este assim chamado tempo é, nesse contexto, o tempo da Estética
Transcendental kantiana, do qual abstraímos todo conteúdo, ou seja, toda
sucessão e toda mudança possíveis. Trata-se do tempo vazio. Ora, um tal tempo
vazio, no qual não há sucessão ou mudança, não existe nem para Nietzsche nem
para Spir.
O ponto central do argumento de Spir pode ser resumido da seguinte forma: Kant
afirma que o tempo é uma representação necessária que está na base de toda
intuição. Por conseguinte, poderíamos extrair todo fenômeno dado na intuição, e
o tempo permaneceria, como forma pura a priori. Poderíamos abstrair de toda
sucessão e de toda mudança notempo, mas o tempo mesmo jamais poderia ser
suprimido.48 Segundo Spir, o erro de Kant consiste em primeiro lugar na
tentativa de estabelecer um paralelismo estrito entre as intuições do tempo e
do espaço. Para o reformulador da filosofia crítica, é verdade que as coisas
espaciais nos são dadas somente por intermédio de uma forma do sentido externo,
ou para dizer de outro modo: as representações espaciais são construídas na
intuição. Mas esse não é de modo algum o caso no tocante às sucessões
temporais. Estas nos são dadas real e imediatamente e sua realidade objetiva
não pode ser negada, ao passo que a existência das coisas no espaço permanece
sempre duvidosa.49 Em segundo lugar, o tempo não é, diferentemente do espaço,
uma forma geral da representação ou mesmo uma representação geral da qual
poderíamos abstrair o conteúdo dado. Este parece ser o ponto central do
argumento, ao qual já nos referimos acima. Segundo Spir, podemos efetivamente
nos representar um espaço vazio, mas um tempo vazio é, para ele, algo
inconcebível: "um tempo vazio, isto é, um tempo no qual nada ocorre, no qual
não se dão nenhum evento e nenhuma sucessão, não pode ser representado."50 Um
tal tempo vazio é irrepresentável pois o tempo não é senão a sucessão mesma das
mudanças, por meio da qual ele pode ser medido: "além das sucessões, nada se
pode conceber que poderia servir como medida do tempo. Por essa razão, o tempo
desaparece completamente se abstraímos das sucessões reais."51
A conclusão de Spir não poderia ser outra: um "tempo" no qual nada ocorre não é
tempo; o "tempo em geral", como forma pura sem conteúdo é, portanto, uma
representação vazia, que resta como mera abstração após suprimirmos pelo
pensamento as sucessões reais. A passagem citada por Nietzsche no fragmento 35
[61] de 1885 se refere à conclusão dessa argumentação, onde Spir afirma "que o
assim chamado tempo é uma mera abstração e não pode ser visto nem como algo
existente objetivamente, nem como um modo de representação necessário e
originário no sujeito".52
2) O segundo ponto com relação ao qual Spir entende que a tese kantiana da
irrealidade do tempo provém de uma intuição legítima diz respeito ao fato de
que o conceito que temos da essência incondicionada do mundo não comporta a
possibilidade da mudança e, portanto, da realidade objetiva do tempo. (É nesse
sentido que, para Nietzsche, a filosofia transcendental, ao afirmar o caráter
puramente fenomenal e em certo sentido "ilusório" do mundo da experiência,
seria uma versão moderna e renovada das teses dos eleatas.) Para Spir, o tempo
não pode pertencer à coisa em si, pois a coisa em si, segundo o conceito que
temos dela (derivado do princípio de identidade), não pode estar submetida à
mudança. O que teria faltado a Kant é, segundo seu crítico, a sutileza teórica
na elaboração da distinção entre fenômeno e coisa em si. Ao supor somente dois
tipos de "objetos", correspondentes a dois níveis ontológicos distintos: as
coisas em si, por um lado, que existem independentemente da representação, e as
coisas fenomênicas, por outro, existentes na representação e portanto sem
realidade objetiva, Kant teria ignorado um terceiro tipo ou nível ontológico:
trata-se da representação ela mesma, que existe realmente e de modo objetivo,
mas não como coisa em si. Neste nível ontológico, ao qual pertence ainda o
sujeito cognoscente, a temporalidade tem uma existência objetiva e a realidade
da mudança não pode ser negada.53
VI
Nietzsche, ao acatar a tese de Spir da realidade do tempo e da mudança,
rejeitará por sua vez o pressuposto de um nível ontológico superior que
corresponderia ao Ser de Parmênides ou à coisa em si kantiana e no qual nosso
conceito de incondicionado poderia ser objetivamente instanciado. Em vez disso,
ele entenderá esse conceito como uma ficção regulativa necessária que responde
aos interesses vitais de certos complexos orgânicos com vistas à constituição e
ao desenvolvimento do que poderíamos chamar de operações e disposições
intencionais, que tornarão possível o desenvolvimento de suas capacidades
cognitivas-adaptativas. Sua aposta ontológica, portanto, é no caráter temporal
e mutável imanente à dimensão do devir, que Spir remete ao nível ontológico
intermediário dos processos representacionais.
Em uma série de fragmentos de 1881,54 numa confrontação direta com Spir,
Nietzsche procura entender os processos intencionais relativos à dimensão da
representação como aquilo que há de mais certo e mais essencial no universo.
Essas notas parecem ser esboços do que virá a se configurar mais tarde como a
hipótese das vontades de poder enquanto processos de interpretação.Nessa série
de fragmentos, Nietzsche concede ao fato(constatável fenomenologicamente) de
que há representações o status de certeza fundamental (em analogia ao cogito
cartesiano), e a capacidade de representação é vista como uma característica
primitiva do próprio Ser. Desse modo, o devir e a temporalidade, atributos
essenciais das operações ligadas à representação, são considerados como
características essenciais do Ser compreendido em seu aspecto global, ao passo
que a permanência e a identidade são vistas como ficções necessárias para que a
representação possa dar origem a um conteúdo cognitivamente determinável e,
portanto, assimilável. Sem essa ficção jamais poderia surgir algo como o
pensamento: "o pensamento seria impossível se ele não desconhecesse
fundamentalmente a essência [...]: ele precisa afirmar a substância e o
idêntico, pois um conhecimento daquilo que está absolutamente em fluxo é
impossível."55 Nesse sentido, segundo Nietzsche, é preciso que complexos
orgânicos criem descontinuidades no fluxo contínuo dos acontecimentos para que
eles possam perceber objetos, substâncias, relações causais; é preciso que eles
sejam capazes de reconhecer o mesmo diante do não idêntico, de abstrair da
singularidade, da pluralidade e da mudança para identificar fenômenos e se
acomodarem ao mundo, tornando assim possíveis sua sobrevivência e evolução.
Essa seria uma exigência de conservação da vida que só pôde realizar-se com o
surgimento, numa fase primitiva da evolução desses complexos orgânicos, de um
princípio cognitivo que age de modo regulativo fixando como identidade aquilo
que se encontra em constante mudança, tornando possível assim a percepção do
mundo como um mundo de objetos "ideais" estáveis.
Esta tese, que aparece modestamente nas obras publicadas e em afirmações mais
temerárias nos fragmentos póstumos, é desenvolvida com mais clareza sobretudo a
partir do período intermediário. É em "Humano, demasiado humano", com o
programa de uma filosofia histórica aliada às ciências empíricas, que Nietzsche
articula pela primeira vez de modo claro sua teoria do devir com sua crítica à
filosofia transcendental, o que culmina numa teoria do erro segundo a qual
nosso conceito de substância falsifica sistematicamente a realidade do devir.
Sua crítica tem como alvo principalmente as filosofias de Kant e Schopenhauer,
assim como o programa de renovação da filosofia crítica levado a cabo por Spir.
Sobretudo os aforismos 2 ("Defeito hereditário dos filósofos"), 16 ("Fenômeno e
coisa em si") e 18 ("Questões fundamentais da metafísica") deixam clara a
intenção de Nietzsche de transformar os conceitos transcendentais em
condicionantes históricos ligados à evolução dos seres orgânicos em geral, da
espécie humana em particular, e de suas instituições sociais e culturais. Mas o
ponto central no que concerne à crítica a Spir e ao seu conceito do
incondicionado encontra-se no aforismo 18, que procura reinterpretar o
princípio de identidade, que em Spir assume a função de lei originária do
sujeito cognoscente (no sentido transcendental), como uma função orgânica:
Quando algum dia se escrever a história da gênese do pensamento, nela
também se encontrará, sob uma nova luz, a seguinte frase de um lógico
eminente: "A lei universal do sujeito cognoscente consiste na
necessidade interior de reconhecer cada objeto em si, em sua própria
essência, como um objeto idêntico a si mesmo, portanto existente por
si mesmo e, no fundo, sempre igual e imutável, em suma, como uma
substância". Também essa lei, aí denominada "originária", veio a ser
' um dia será mostrado como gradualmente surge essa tendência nos
organismos inferiores.56
Convertida em herança atávica de estágios primitivos da evolução dos organismos
e contraposta à tese do devir universal, a necessidade subjetiva (cujo caráter
cognitivamente imperativo Nietzsche reconhece sem receios) de identificar
objetos empíricos como entidades discretas e idênticas a si mesmas perde sua
validade objetiva, de onde emerge um ficcionalismo generalizado. Nesse cenário
teórico, o papel da filosofia não pode mais ser definido em termos
justificatórios, no sentido de estabelecer as condições universais de verdade e
de validade de nossos juízos. Ela tampouco pode continuar reivindicando para si
a autoridade epistêmica para legitimação de qualquer tipo de conhecimento a
priori ou metafísico. Pelo contrário, sua tarefa agora deve incluir um programa
de desconstrução da força normativa das convicções metafísicas mediante uma
investigação genealógica de sua origem, do seu significado e de sua função
vital. Ao pretender mostrar, com auxílio das ciências empíricas, "que todo
conceito de incondicionado corresponde a uma ficção regulativa que teve sua
origem nas formas orgânicas primitivas e foi transmitido através dos mecanismos
de hereditariedade",57 a filosofia histórica de Nietzsche se compromete com um
certo naturalismo que contesta, em seu fundamento, o tipo de transcendentalismo
robusto que Spir almejava ressuscitar.