Teses sobre o estatuto subjetivo do significar e comunicar em Kant e Nietzsche
Parte I: O conceito Fürwahrhalten e a validação subjetiva do significar e
comunicar em Kant
A reflexão sobre o legado da filosofia de Kant, marcada, especialmente, pela
interpretação do modo peculiar como ele buscou validar (objetivamente) as
pretensões do homem à verdade, bem como dos critérios que norteiam a pretensão
de validade dessa reivindicação a partir de uma nova disciplina do pensamento '
a filosofia transcendental ', passa, certamente não pela primeira vez, por uma
curiosa e, a nosso ver, promissora inflexão. Essa nova inflexão, apresentada em
um livro de 2003 e de autoria de um emérito professor da Universidade de Bonn,
Josef Simon, procura incorporar temas relativos à filosofia da linguagem ao
núcleo rígido da filosofia transcendental.1 Aliás, um olhar mais circunspecto
poderia notar que, desde as primeiras recepções da filosofia de Kant, a
reflexão filosófica sobre a linguagem ocupou lugar proeminente tanto para
aqueles que exaltavam os alcances da filosofia transcendental quanto para os
seus mais severos críticos. O próprio Kant atribuiu aos principais objetivos da
"Crítica da razão pura" (doravante, KrV), em uma carta a C. G. Reccard de 7 de
junho de 1781, o desenvolvimento e o aprofundamento do projeto filosófico de
Johann Heinrich Lambert de "reforma da metafísica", o que consistia, segundo a
interpretação de Josef Simon, em tornar a primeira "Crítica" "a melhor
elucidação do uso da razão que, para além da 'intuição' (de um objeto
predeterminado), articula-se semioticamente".2
A perspectiva de Josef Simon ' para além daquela pesquisa de alguns
neokantianos, que mostrou a importância da mediação linguística na análise
kantiana da função do juízo para o saber especulativo (uma vez que, nesse caso,
o juízo porta a unidade de significação disso que sujeitos racionais entendem,
de modo determinado, por "objeto" ou "experiência", enquanto unidade de uma
correspondência ' o que se diz da coisa e a própria coisa ' existente e
fundamentada)3 ' é audaciosa e polêmica neste sentido: ela pretende fazer com
que resultados teóricos do exame crítico da razão alcancem decisiva relevância
no âmbito prático, isso, para se pensar uma unidade pragmática fundamental, à
qual denomina Weltorientierung (orientação universal), no tocante aos modos de
diversificação (ou seja, nos usos) da razão.4 Dito, por ora, de modo resumido:
Simon parte da posição de Kant segundo a qual toda reivindicação racional de
verdade, isto é, a possibilidade de "relação com o objeto" (KrV B300),5 via
determinação a priori pelo sujeito, encontra-se antes de tudo na capacidade de
julgar (Urteilskraft), o que implica tornar secundária, por sua vez, qualquer
estrita concepção formal dessa determinação. Pelo contrário, defende Simon, só
há determinação a priori válida se e somente se remanesce nela uma mediação
estética, qual seja, a Einbildungskraft.6 Mas no que isso dista das
interpretações tradicionais propriamente? O componente "estético" presente no
ato de julgar é, segundo Simon, o fator individual determinante, porque
submetido irrevogavelmente às relações do tempo (Zeitverhåltnisse) (KrV B242),
de toda síntese operada a priori pelo entendimento, porquanto procura validar
um discurso com "significação objetiva (objetive Bedeutung)", nas palavras do
próprio Kant (KrV B242).
A mediação subjetiva7 de toda pretensão de "significação objetiva" (ou, se
quiser, a relação entre "esquemas do tempo" e "conceito") de um ato de julgar '
uma vez que somente por meio dos esquemas se conferem condições legítimas aos
conceitos para "uma relação com o objeto, portanto, [confere-se] uma
significação" (KrV B185) ' seria incognoscível para a razão, justamente porque
aí se encontra aquela "arte oculta [que jaz] nas profundezas da alma humana,
cujos segredos de funcionamento dificilmente poderemos algumas vezes arrancar à
natureza e revelar aos nossos olhos" (KrV B181). Aliás, por causa de duras
críticas ficou notabilizada a explicação (ou ausência dela), na seção do
"Esquematismo" da primeira "Crítica", que trata do modo como a razão humana
opera esquematicamente com vistas a alcançar valor objetivo pelo entendimento
desde que mediado por um critério estético, qual seja, o tempo, enquanto forma
pura homogênea às representações empíricas (dadas no espaço) e aos conceitos.
Nessa direção, um argumento decisivo de Simon é o de que seria necessário,
portanto, negar que a reivindicação de verdade de todo ato de julgar em Kant
assuma o "tom elevado" de um discurso (metafísico), que busque validar seus
resultados por meio de fixas definições, axiomas e demonstrações definitivas,
isto é, validar sentido e significado sempreestáveis (atemporais) na relação do
sujeito com objetos.8 Para Simon, a "verdade" (o significado objetivo, a
correspondência a priori entre juízo e coisa julgada) restaria para Kant como
reivindicação subjetiva de validação racional, na medida em que toda pretensão
de oferecer, via entendimento, um "sentido determinado" à nossa relação com o
objeto assenta-se, irrevogavelmente, em um ato individual fundado no poder da
imaginação. Nas palavras de Kant, o sentido e significado de algo, o próprio
ato de designar algo enquanto algo cognoscível para um sujeito permanece, acima
de tudo, um ato estético. Ele afirma: "Para que um conhecimento possua
realidade objetiva (objektive Realitåt), isto é, se refira a um objeto e nele
encontre sentido e significado (Sinn und Bedeutung), deverá o objeto poder, de
qualquer maneira, ser dado" (KrV B194).
Nesse caso, e parafraseando aqui Demócrito, concluir-se-ia, sem exageros, que
"a verdade jaz num abismo", o que para Kant equivaleria a dizer: a verdade
encontra-se na certeza oculta à razão de um ato estético, ou seja, na síntese
entre tempo e conceito.9 Ao revocar uma pretensão puramente normativa
(formalista) de verdade em Kant, Simon quer enfatizar, vale dizer, a
importância pragmático-filosófica da razão em suaWeltorientierung, isto é, na
diversificação dos seus modos de significação e comunicação dos sentidos das
coisas. Ele sustenta:
Se a filosofia quisesse se ligar a definições fixas de seu conceito
fundamental (Grundbegriff), ela teria que se apoiar em um
entendimento determinado (auf ein bestimmtes Verståndnis), um que
aparece em um tempo determinado e para um fim determinado como
suficientemente claro (hinreichend deutlich). Mas isso ela não quer
devido à sua reivindicação universal. Ela tem que se esforçar
continuamente (ståndig) por uma melhor clareza lógico-comunicativa.
[...] A semântica deve permanecer na filosofia, assim também em
outros [domínios], em movimento (in Bewegung).10
E complementa: "Todo dizer o que algo é pode ser entendido, de acordo com isso,
como expressão de uma síntese de conceitos tomada subjetivamente como
suficientemente clara para um juízo."11
Segundo Doris V. Hofmann, a mencionada certeza oculta à razão de um ato
estético enquanto conditio sine qua nonde sentido e significado objetivo dos
signos empregados pelo sujeito em sua relação com o objeto foi pensada por
Kant, primeiramente na "Crítica da razão pura", sob o conceito de Fürwahrhalten
(literalmente: tomar-por-verdadeiro), pois nele se encontra, segundo Hofmann, a
expressão da validação subjetiva (subjetive Geltung) presente em toda relação
com o objeto e única capaz de engendrar valor objetivo (objektive
Gültigkeit).12 Em KrV, Kant define tal noção assim: "Tomar-por-verdadeiro é um
fato que ocorre (Begebenheit) em nosso entendimento, que pode se assentar em
razões objetivas, mas que também exige causas subjetivas no ânimo (im Gemüt)
daquele que aí julga" (KrV B848). No "Cânone da Razão Pura", questiona-se como
as "ideias da razão" podem ter "realmente sua influência no mundo sensível,
para o tornar, tanto quanto possível, conforme a essa ideia" (KrV B836). Aqui,
trata-se de pensar a relação do sujeito com uma classe especial de "objetos",
as ideias da razão pura, que, nesse caso, se dá por uma espécie de
diversificação do uso da razão (o uso prático) em virtude de um outro
interesse: compreender como devo agir.
Kant concebe ali três modospor meio dos quais se dá essa relação da razão com
seu objeto, não fazendo agora distinção de usos. Permito-me aqui apresentar em
linhas gerais uma interessante esquematização feita por Simon para ilustrar
essa passagem do "Cânone" da KrV. A modalidade, enquanto contribui
decisivamente para a constituição a priori da relação com o objeto, é o
conceito para o quarto grupo da tábua de categorias responsável pelo
conhecimento objetivo, a saber, aquela que regulamenta a "certeza" de um
juízo.13 Analogicamente ao uso teórico, Kant, na interpretação de Simon, visa a
compreender sob quais condições se dariam e qual grau de "certeza", de
"convicção", seria engendrado pelos juízos na relação da razão prática com seus
objetos, sendo que essa certeza deve ser pensada naquilo que caracteriza,
segundo Kant, a "pedra de toque" do tomar-por-verdadeiro, qual seja, "a
possibilidade de comunicá-lo (dasselbe mitzuteilen) e validá-lo (gültig zu
befinden) para a razão de todo homem" (KrV B849). Kant escreve no "Cânone":
O tomar-por-verdadeiro [Fürwahrhalten] ou a validade subjetiva do
juízo [subjektive Gültigkeit des Urteils], no que toca à convicção
(que tem ao mesmo tempo uma validade objetiva), apresenta os três
seguintes graus: opinar,crere saber. A opiniãoé uma crença que tem
consciência [mit Bewußtsein] de ser insuficiente tanto subjetiva
quanto objetivamente. Se o tomar-por-verdadeiro apenas é
subjetivamente suficiente e, ao mesmo tempo, é considerado
objetivamente insuficiente, chama-se crença. Por último, chama-se
sabero tomar-por-verdadeiro tanto subjetivamente quanto
objetivamente. (KrV B850)
Todos os três modos, preliminarmente, se igualam nisto: são modos de
comunicação e de validação de pretensões de convicção, que, com consciência,
dão sentido e significado às suas relações com o objeto individualmente. Isso
quer dizer, em primeiro lugar, que não há uma gradação de certezas entre os
modos, como se o saberrepresentasse um modo de relação mais verdadeirocom o
objeto, já que está ciente, ao julgar, tanto da certeza subjetiva (intuição)
quanto da objetiva (conceito). O que Kant parece destacar nessa importante
passagem é que sua distinção encontra-se, isto sim, na "consciência" que
acompanha cada um dos modos. Se o tomar-por-verdadeiro é conscienteda
incapacidade para a adequação objetiva (no caso do opinar e da crença), bem
como consciente da capacidade para isso (no caso do saber), todos os modos
reivindicam, no ato de julgar, "convicção", certeza. Sob esse aspecto,
convicção nada mais é do que um conceito para a comunicação estável e válida
temporalmente(uma vez que dela são exigidas "causas subjetivas") com uma "razão
estranha (fremde Vernunft)", comunicação daquilo que foi tomado por verdadeiro
pelo indivíduo. Como seu contraconceito é apresentada, nesse mesmo trecho da
KrV, a "persuasão" (Überredung), que vale como "não consciência" das
incapacidades e capacidades do entendimento em seu tomar-por-verdadeiro.
Os modos do tomar-por-verdadeiro apresentam uma nova chave de interpretação de
Kant (com destaque não só na primeira "Crítica") para um tipo de conhecimento
não apenas dependente das modalidades epistemológicas de compreensão dos
objetos, já que deve ser possível tornar comuns e válidosos sentidos e
significados das relações com objetos. Tal como sugere Simon, poder-se-ia então
pensar, analogicamente aos juízos que recaem sobre o quarto grupo da tábua de
categorias, como se daria a comunicação e validação daqueles três tipos de
"fatos que ocorrem no entendimento": i) segundo sua possibilidade, a opinião é
um tomar-por-verdadeiro que, enquanto consciente, não orienta o sujeito nem de
modo subjetivo, nem objetivo. Poder-se-ia dizer, também analogicamente, que ela
é uma forma de orientação do comunicar e validar problemática; ii) segundo sua
realidade, a crença é um tomar-por-verdadeiro assertórico, ou seja, comunica a
existência de algo, porém, apenas subjetivamente; ela "tem ciência" de que sua
relação com o objeto se dá de modo provável; por fim, iii) segundo sua
necessidade, o indivíduo comunica aquilo que tomou-por-verdadeiro de modo
apodítico, ou seja, com a convicção de que razões conceituais estão
subjetivamente (segundo as formas da intuição e esquemas da imaginação)14
orientando sua relação com objetos.15 A crença não engendra menos certeza que o
saber apenas porque este pode determinar seu objeto subjetiva e objetivamente;
resguardado a cada um dos modos seu grau de certeza, a crença divergiria do
saber nisto: "Crença (como Habitus, não como Actus) é o modo de pensar moral da
razão [die moralische Denkungsart der Vernunft] no tomar-por-verdadeiro aquilo
que para o conhecimento teórico é inacessível".16 Para ilustrar a convicção que
a crença pode engendrar, tome-se, por exemplo, o uso, pela razão, da ideia de
liberdade na KrV.
Nos modos do tomar-por-verdadeiro, a razão vislumbra, portanto, a condição
fundamental de sua publicidade, e é na concordância quanto aos juízos
comunicáveis que a verdade (sentido e significado) pode ser reivindicada. Visto
sob esse aspecto, entende-se, a partir de um novo ponto de vista, o supremo
interesse da razão em seu uso prático: ela precisa, mediante três modos de
julgar, apresentar, na comunicação, os "títulos de crença" de seu tomar-por-
verdadeiro quando julga, e isso, com o intuito de, via critério subjetivo de
validação e de certeza do discurso, estabelecer um horizonte de interação e,
possivelmente, de entendimento17 com uma "razão estranha". Nesse sentido, no
tornar públicas as suas convicções, a razão, por um lado, deve poder validar as
causas de seu tomar-por-verdadeiro, pensando apenas por si, em detrimento da
razão estranha. Resulta disso o reconhecimento público de seu primeiro "dever",
como constata Simon ao citar a "Antropologia": "Eu devo, em todo ato de pensar
por si (Selbstdenken), permanecer comunicável",18 caso contrário, afirma Kant
agora na KrV, tratar-se-ia aí de uma mera tentativa de abertura para o outro
"com os princípios que são válidos [apenas] para nós", e isso, com o único fim
de "produzir sobre a razão estranha os mesmos efeitos que produzem sobre a
nossa"; ora, isso "é um meio que, embora apenas subjetivo, serve não para
produzir a convicção, mas para descobrir a simples validade privada do juízo,
isto é, o que nele é mera persuasão" (KrV B849). Tal insight, aliás, é tomado
na "Antropologia" como critério geral da razão em seus interesses eticamente
orientados. Kant os enumera assim: "1) pensar por si[Selbst denken]; 2) pensar
a si (na comunicação com homens) no lugar de cada outro; 3) a todo momento,
pensar em concordância consigo mesmo".19
A "razão estranha", "a outra razão", com a qual interajo e pretendo estabelecer
entendimento, nada mais é, segundo Simon, que "formas de pensar e necessidades
de orientação que não podem ser antecipadas, pelo [meu] próprio pensar, às
outras pessoas, com suas outras necessidades de orientação e formas de pensar",
o que significa dizer que do indivíduo é sempre exigido alcançar clareza
suficiente para tornar públicas as suas convicções, ou seja: é-lhe exigido "não
apenas usar uma linguagem por outra, mas também usar a linguagem por meio de
outro uso dessa mesma linguagem, ou para dizer como Wittgenstein, por meio [do
uso] dos respectivos jogos de linguagem".20 Assim, argumenta Simon, a distinção
daqueles modos no ato de tomar algo por verdadeiro poderia representar o núcleo
próprio do projeto crítico kantiano, pois ali
o problema da comunicaçãodos pensamentos (de pessoa para pessoa)
obtém com isso uma nova dimensão. Enquanto problema da formação dos
juízos em detrimento das outras pessoas, encontra-se a constituição
dos objetos 'em geral'. Dessa mesma maneira, a formação de juízos
'internos' torna a comunicação('pública') dos pensamentos um problema
da faculdade individual de julgar ao subestimar os horizontes de
entendimento e de conhecimento dos outros, pois as razões das
formações de juízos e conceitos da razão estranha não podem ser
conhecidas a partir de um ponto de vista particular e, nessa medida,
elas são 'abismos'.21
Parte II: Nietzsche sobre anecessidade de tornar-se consciente de si e o
caráter gregário no uso dos signos
Para ser mais honesto com o leitor, talvez seja mais prudente apontar de
antemão em que sentido entendemos haver uma possível interlocução entre o
pensamento de Kant, apresentado acima, e o de Nietzsche, do qual trataremos
agora. A rigor, em ambos os filósofos pode ser encontrado um hercúleo esforço
para descortinar criticamente a orientação dogmática de discursos em filosofia
que reivindicam, sem mais, validade objetiva de suas pretensões cognitivas e
comunicativas, escamoteando impasses entre a objetividade da pretensão e os
fatores subjetivos imbricados naquelas práticas. Partindo então de um ponto de
vista crítico(no sentido de Kant), em Nietzsche, poder-se-ia também perceber
que a razão dogmática é forçada a apresentar seus argumentos sobre aquele
impasse entre pretensões objetivase pressupostossubjetivosdo significar e do
comunicar: em sua orientação para significar e comunicar o mundo com o qual se
confronta, a razão, especialmente tal como concebida pela tradição metafísica,
teria falseado os "interesses" (o fator subjetivo), ocultando os "riscos", de
sua interpretação da realidade por motivos que ela própria não autorizava
expor. Para enfrentar tal dogmatismo, Nietzsche apresenta sua versão dessa
motivação, por exemplo, no contexto da reflexão sobre o conceito de
"consciência" (em certa medida, de "razão"), exposto no aforismo 354 do quinto
livro de "A gaia ciência" (doravante, FW). Nele, tornar-se-á mais clara a
irredutibilidade da proposta nietzscheana quanto ao fato de que, em todo
horizonte de conhecimento e comunicação pela razão, ou os dados e fatos do
mundo compartilhados são assumidos com a condição de que alguém sempre pode mal
ou diferentementeentendê-los e comunicá-los (caráter falibilista) ou, eliminado
esse "risco", qualquer fator subjetivo de qualquer visão e compreensão de mundo
culmina naquilo que Nietzsche denomina lá "perspectiva de rebanho", um
filosofema para identificar, entre outras coisas, pontos de vista tornados
"comuns", "convencionais", compreensões de mundo que se pretendem autoimunes
aos riscos inerentes a um conhecimento e comunicação entre indivíduos.
O famoso aforismo 354 de FW, por abordar a relação entre linguagem e
consciência, foi muitas vezes tomado pelos intérpretes como prova de que
Nietzsche seria herdeiro da tradição alemã do final do Oitocentos, encabeçada
pelas observações de J. G. Hamann, J. G. Herder e W. von Humboldt à filosofia
transcendental de Kant, tradição essa que passou a ser denominada
"metacrítica". Todavia, vale destacar que a cuidadosa problematização, por
Nietzsche, do conceito "consciência" já havia sido realizada anos antes, no
aforismo 11 de FW, quando redirecionou sua investigação, tal como o fez no
início do aforismo 354, não para Bewusstsein ' "ser" consciente ', mas sim para
Bewusstheit ' "estado" consciente. A suposição é então, e isso nos parece ser
fundamental para uma compreensão abrangente do aforismo 354, de que aquilo que
é substancial no pensar, a autoconsciência, que ela veio a ser, ela evoluiu,
amparada por certos signos de comunicação, a partir de estados psíquicos e
fisiológicos ' e o filósofo já os tinha mencionado logo no início do aforismo
354 de FW: pensar, querer, recordar e até mesmo agir, estados que caracterizam
atividades do organismo, algo "pessoal, único, ilimitadamente individual" (FW
354).22 Em suma: sua suposição fundamental em FW 354 é a de que, pela linguagem
de signos, veio à tona tanto o saber-de-si dos homens(autoconsciência) quanto
seu entender uns aos outros acerca desse saber-de-si (elemento interpessoal da
autoconsciência). Inventar signos para "saber o que lhe ocorria", interna e
externamente, e compartilhar com o outro por meio de signos de comunicação:
ambas as operações permitiram ao homem, narra o texto de FW 354, tornar-se
consciente (de parte) daquelas suas atividades vitais. Usando os mesmos signos
para ilustrar experiências internas semelhantes; usando os mesmos signos para
comunicar essas experiências aos outros de modo inequívoco; em suma: ao
consolidar um uso para a linguagem de signos, estabeleceu-se também uma "nova"
ordem de conhecimento, a qual oferecia ao homem mais estabilidade e segurança
(Nietzsche fala de "utilidade" em FW 354) no pensar, querer, sentir, agir. Esse
saber e entender "estados" psíquicos e fisiológicos em constante mutação,
possíveis em virtude da linguagem de signos, em virtude de "signos individuais"
e "signos de comunicação" (simplificadores e facilitadores das relações
interpessoais), fez emergir um novo modo de pensar, argumenta Nietzsche: o
"pensar que se torna consciente [das bewusstwerdende Denken]".23
No aforismo 354 de FW, Nietzsche precisa justamente a mencionada hipótese sobre
o estatuto dos signos no saber de si, quando argumenta que a consciência nada
mais seria do que uma "necessidade de [...] saber-se a si mesmo, [...] de saber
que [se] pensa (nöthig, also selbst zu wissen,[...]zu wissen, was [man]
denkt)". No entanto, adverte lá, não basta saber o que se pensa, saber-se a si
mesmo como sujeito pensante. É preciso ainda que os homens se coloquem de
acordo quanto a isso, é preciso "entender-se" quanto aos signos empregados. Não
basta saber-se a si mesmo, tornar-se "consciente de si", portanto, um sujeito,
exige-se ainda que esse saber seja consolidado "intersubjetivamente". Para que
a evolução do conceito de consciência culminasse na fundamentação da
subjetividade, não seria suficiente saber-se enquanto sujeito de suas
representações, percepções, daquilo que se pode chamar "atividades vitais do
organismo"; era preciso ainda que os sujeitos se entendessem quanto a isto:
eranecessário usar determinados signos de comunicação que, compartilhados,
valessem de maneira estável, inequívoca; que, quando usados, designassem um
conjunto de coisas comuns, ou mesmo fossem capazes de diferenciá-las. Esses
signos seriam palavras, conceitos, noções, as quais, além de apreender,
sintetizar e universalizar os mais diversos processos volitivos e/ou
cognitivos, deveriam dar unidade de sentido a tais processos, a fim de, ao
serem compartilhados, evitar o mal-entendimento, o risco do conflito entre os
pares. Tais signos, portanto, deveriam valer como algo que é imediatamente
entendido pelos pares. Em FW 354, Nietzsche fala de uma coação, de uma
necessidade para se entender, mas tal entendimento não seria possível caso o
homem não fosse capaz decriar e usar signos que fossem comunicados e
compreendidos fácil e rapidamente pelos pares.
Nietzsche ilustra isso da seguinte maneira em FW 354: "Eu", "sujeito", "objeto"
não são meros conceitos, mas signos que apreendem e sintetizam em si outra
multiplicidade de signos, os quais, por sua vez, não seriam imediatamente
entendidos caso fossem usados de modo aleatório, "privado". "Sujeito",
"objeto", "eu" foram os "mais curtos", "mais abreviados" signos empregados para
facilitar a comunicação de um outro grande contingente de signos, pois algo que
é imediatamente entendido pressupõe sempre um breve signo que cristalize em si
inequivocidade: eis aqui a utilidade dos signos para os "instintos gregários"
do homem.
Desse ponto de vista, parece-nos que a principal questão que norteia a
perspectiva de Nietzsche sobre o que é "gregário", sobre o "instinto de
rebanho", no aforismo 354 de FW, seria esta: como o filósofo examina e que
conclusões extrai da suposição de acordo com a qual há uma evolução do estar
simplesmente pensando para um "ser"do pensamento? Ou, nas palavras do próprio
filósofo em FW 354: como se dá, efetivamente, a evolução do homem que "pensa
sempre, mas não sabe (denkt immerfort, aber weiss es nicht)" para o homem que
se empenhou "para saber o que ele pensa (zu wissen, was er denkt)", transição
essa que reproduz em FW 354 aquela do tipo homem-indivíduo para o homem-
social?24
Para Nietzsche, algo como consciência de si é possível com a emergência desse
"saber o que se pensa", saber o que se sente, saber o que se imagina,
representa etc. É uma capacidade auto-ordenadora, na medida em que cria, de um
modo ou de outro, uma unidade entre pensar, o que é pensadoe quem pensa; entre
sentir, o que é sentido e quem sente; entre agir, o motivo e o agente. E
Nietzsche avança ao aditar a esse contexto, como mencionamos acima, o entender,
a comunicabilidade por signos do que veio a ser subjetividade, a possibilidade
de tornar tal forma de subjetividade "comum", compartilhada; em resumo: encena
com esse conceito o modo como compreende o reconhecimento mútuo de cada
"subjetividade", de cada consciência. Uma fundamental perspectiva que esse
argumento oferece é de que, a partir de um exame evolutivo da consciência,
sobre como ela tornou o que ele é, de como ocorreu a supressão daquele "pensar
sem saber que se pensa" ' a isso converge, em FW 354, uma tipologia do homem,
pois, com a supressão do "não saber que pensa", do "estar" meramente pensando,
também a "existência individual do homem", o modo individual de significação e
comunicação foi suprimido. Com ele não apenas um novo "mundo de signos" teria
emergido, mas também um novo "uso" de signos. Ao modo de pensar do tipo "homem-
indivíduo", Nietzsche contrapõe o modo de pensar do tipo "animal social". A
força do saber e do entender, como modos de esquematização, pela linguagem de
signos, de estados orgânicos e de sua comunicação, produziu, com isso, um
complexo processo de desinvidualização, excluindo, por economia de princípio,
tudo que é (de uso) individual no homem; uma "mutação" do próprio homem, longa
e imperceptível, transição essa que culminaria na ascensão da "perspectiva
gregária", à qual Nietzsche alude na seguinte passagem de FW 354:
Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não pertence
propriamente à existência-individual do homem, antes àquilo que para
ele é de natureza gregária e comunitária; que a consciência, como se
segue disso, sutilmente evoluiu (entwickelt) apenas em relação à
utilidade gregária e da comunidade, e que, consequentemente, cada um
de nós, com grande desejo, para entendera si mesmo de modo tão
individual quanto possível, [para] "conhecer a si mesmo", trará
sempre à consciência, entretanto, apenas o não individual em si, seu
"caráter-nivelador" (sein Durchschnittliches), ' que nosso pensamento
mesmo, continuamente, torna-se superior (majorisirt) em virtude do
caráter da consciência, ' do gênio da espécie que nele se apresenta '
e é retraduzido na perspectiva-gregária.
O exercício tipológico que Nietzsche apresenta nesse passo destaca exatamente
isto: que um tipo distingue-se do outro pela sua perspectiva, por aquilo que
ela necessita, almeja, busca. A necessidade de saber e de comunicar tal saberé
genuína manifestação da autorreflexão, do pensar que buscou pelo conhecimento
na forma do "dobrar sobre si mesmo", do exercício, amplamente promovido na
filosofia, introspectivo de pensar somente o pensar: aliás, desde Sócrates, a
filosofia fora concebida como sabedoria do que é pensar. Pela vontade de saber
o que pensa, quem pensa e o que é pensado, o que é perdido aí é justamente
aquilo no homem que "pensa sem saber que pensa". Qualquer marca
individualizante, portanto, qualquer ato de querer, pensar, lembrar é suprimido
em virtude dessa "técnica", que passou a orientar o pensamento filosófico pelo
menos desde Sócrates, nome que, aliás, aparece sim em FW 354, quando Nietzsche
menciona a força de seu γνῶθι σεαυτόν. O tipo homem de natureza-gregária
emergiria da fórmula conhece-te a ti mesmo, um dirigir o espírito para a
autocompreensão de si, bem como para o entender-se sobre isso, que é condição
do tornar estável o reconhecimento, pela linguagem, entre-sujeitos ' e não
seria mera coincidência que, já em sua origem grega, ofilosofar enquanto
maiêutica fundada no diálogo (saber e entender, no sentido de Nietzsche, estão
aí presentes) tenha assumido, com Sócrates, um caráter protréptico.
A consciência de si, aquilo que se tornou uma forma de subjetividade, argumenta
agora no aforismo 11 de FW, "tiraniza" os estados psíquicos e fisiológicos. A
consumação de uma filosofia da subjetividade, triunfo do pensamento moderno,
enquanto superpotencialização da consciência reflexiva, é vetor resultante
daquele mencionado processo de desindividualização da existência-individual do
homem, de uma forma de "dar sentido" e "comunicar tal sentido", à qual
Nietzsche chamou "gregária". Por essa razão, o "eu", "(consciência de) si",
"sujeito" etc., terminologias que se tornaram dominantes na filosofia moderna,
são, pelos escritos maduros de Nietzsche, relacionados ao que pertence à
"perspectiva de rebanho". A consciência que se tornou autorreflexionante "é
tomada", escreve de modo esclarecedor no aforismo 11 de FW, "como uma grandeza
fixa [e] dada! Vós omitíeis seu crescimento, seus estágios intermediários
(Intermittenzen)".
O mencionado gregarismo pela linguagem se deve, fundamentalmente, conforme o
texto de FW 354, a três operações fundamentais: "superficialidade",
"generalização" e "falsificação" linguísticas. Superficiais, porque os signos
utilizados para o saber-de-si e para o entender uns aos outros acerca disso são
os signos mais simples, mais breves, que condensam em si um sem-número de
sentidos. Quanto mais um signo pode simplificar outros signos, mais fácil se dá
sua compreensão, mais preciso e direto ocorre seu comunicar. Generalização
ocorre quando o uso dos signos torna "algo" em "algo-universal", quando se
torna um "signo" em um "signo-comum". E nisto reside a falsificação: o uso
superficial e generalizante possibilita não só sintetizar, arranjar, ordenar
mais facilmente os processos "orgânicos" (aqueles que ocorremsem auxílio da
"consciência"), mas também falsear os múltiplos sentidos dos signos em signos-
breves e signos-universalizáveis. Isso teria permitido uma "agregação" de
certos tipos de indivíduos via um uso comum de signos. E é exatamente sob esse
aspecto que, como avalia Nietzsche em "Para além de bem e mal" 268 (doravante,
JGB), "a história da linguagem" poderia convergir com a "história de um
processo de abreviação (Abkürzung)". Com tal convergência, Nietzsche estaria
sugerindo que, para um "saber-se de si" (aspecto cognitivo) e um "se entender"
(aspecto comunicativo) cada vez mais fácil e sem prejuízos, foi preciso
encurtar (abkürzen) em signos sempre mais "breves" outros tantos signos muito
complexos e ambivalentes. Nas linhas iniciais do aforismo 268 de JGB, Nietzsche
oferece um exemplo dessa "abreviação" de signos em um cada vez mais condensado
universo de signos. "Palavras são signos sonoros (Tonzeichen) para conceitos;
conceitos são, porém, mais ou menos signos imagéticos (Bildzeichen) para
percepções que frequentemente retornam e se agrupam, para grupos de
percepções."
Duas são as abreviações aqui destacadas: uma pela palavra, e outra por
conceitos. É curioso notar que Nietzsche apresenta sua "definição" para
conceito, que, no entanto, nada tem que ver com um registro lógico, do
entendimento, mas sim tem a ver com signos. Conceito é algo que
abreviapercepções que frequentemente retornam e que se agrupam em Bildzeichen.
Mas há também uma outra abreviação, que, na ordem do argumento, é apresentada
primeiramente: as palavras são signos sonoros que encurtam semanticamente ainda
mais aqueles grupos de percepções, já que "palavra" é a primeira abreviação de
conceito. Então: porquanto grupos de percepções são semioticamentetraduzidos,
há de se notar um duplo movimento de abreviação: primeiro em conceitos (signos
imagéticos) e depois em palavras (signos sonoros). Aqui encontramos uma
capacidade para abreviar o que é sensível, primeiro, em imagens, e, depois, em
sons ' um esquema que alude a certos argumentos de seu opúsculo de juventude,
"Verdade e mentira em sentido extramoral". Mas o grande diferencial reside
nisto, a saber, que em JGB 268 essa esquematização do registro sensível em
imagens e sons é pensada do ponto de vista dos signos, e que tal esquematização
não representa mera transposição (metaforização), mas é, na verdade,
abreviação, encurtamento, simplificação semiótica do mais complexo em algo mais
simples e fácil para o "saber algo de si" e para o "se por em entendimento"
quanto a isso. Daí sua conhecida hipótese de acordo com a qual para que
processos de sociabilização sejam estáveis é preciso usar(gebrauchen) os signos
"mais curtos", a saber, as palavras, pois quanto mais seu sentido tende para o
inequívoco tanto mais simples e rápida é sua compreensão pelos pares. Esse
cálculo é pensado por Nietzsche em JGB 268 como condição para evitar o pior de
todos os perigos que toda sociabilização corre, qual seja:
(o medo ante o "eterno mal-entendimento [ewigen Missverståndniss]":
esse é o benevolente gênio, que separa pessoas de sexo oposto tão
frequentemente [de uma] açodada união ' aconselhando o sentido e
coração delas, e nãoum qualquer "gênio da espécie" schopenhaueriano)
Conceitos são signos; palavras são também signos, mas o são de modo distinto
dos conceitos: elas são signos de signos imagéticos. Conceitos, enquanto
signos, podem agir abreviando "grupos de percepções", que, numa certa medida,
são também signos do acontecer interno, no entanto, os mais ambíguos de uma
escala de significação e comunicação. As percepções agregam uma multiplicidade
de sentidos, por isso devem ser evitadas, enquanto signos mais ambivalentes,
numa comunicação. Uma significação e comunicação por meio delas conteria o
maior de todos os "riscos": o perigo do mal-entendimento entre os homens. É
preciso articular de tal forma os signos imagéticos para adquirir eficácia
(utilidade) em práticas cognitivas e comunicativas, e então com isso suprimir o
medo capital do tipo "homem social" que querviver em comunidade: o mal-
entendimento, a possibilidade de não compreensão inequívoca do outro em seu
usode signos.
Superficializar, generalizar, falsificar, em suma: uso da linguagem que abrevia
em sentidos estáveis e de fácil compreensão, signos que universalizam, signos
condensados que tornam comum uma multiplicidade de outros signos ' isso é algo
que o homem não pode dispensar em uma comunidade. A necessidade de comunicação,
a necessidade de conhecer a si mesmos e de comunicar isso uns aos outros
encontra na linguagem de signos o mediumde sua realização. Mas que o uso cada
vez mais breve, cada vez mais simples, cada vez mais "falso" tenha permitido a
formação e consolidação tanto dos "sujeitos" quanto de sua comunidade; que ele
seja manifestação de um "tipo" homem que carece de experiências e vivências
"niveladas"; que carece usar signos breves para estabilizar o sentido de suas
experiências internas e externas; que o uso da linguagem de signos seja, na
cultura, essencialmente gregário: a rigor, isso nada fala a favor de uma
"natureza", de uma "essência gregária" da linguagem, mas apenas da necessidade
de tal e tal uso da linguagem. No contexto de FW 354, o ponto de vista de
Nietzsche é pragmático, jamais essencialista.É por necessidade (necessidade de
comunicação) que uns e outros indivíduos usam as mesmas breves e simples
palavras para semelhantes acontecimentos, eventos internos ou externos: eles
devem usar, se têm necessidade de estabilizar os múltiplos sentidos de suas
experiências. Como dito anteriormente, a exigência por (ou necessidade de) usar
os mesmos breves e universalizáveis signos no saber "sobre o que se pensa",
"quem pensa" e o "que é pensado"; a necessidade de comunicar isso fácil e
rapidamente em signos "imediatamente" inteligíveis pelos pares ' tais
necessidades constringentes são, em última instância, exigências morais das
quais o tipo animal social carece para sua segurança, sua estabilidade, para a
conservação do seu tipo. A perspectiva da necessidade se mostra conjuntamente
com o uso dos signos, com a "utilidade" da linguagem, e é com base nisso que
Nietzsche interpreta se a necessidade de um tipo exprime um modo de
significação e comunicação "pessoal", "singular", "próprio", "subjetivo", ou se
é "gregário", "comum", "vulgar", (dogmaticamente) "objetivo". Se e em que
medida a história da "razão" na cultura ocidental, entendida como história da
autoconsciência ("subjetividade") e seus desdobramentos culturais
("intersubjetividade"), poderia ser entendida como história do domínio do "tipo
gregário", coloca, a nosso ver, uma concreta questão para a Pesquisa-Nietzsche,
que, por prudência, este artigo não deve sequer ousar aqui responder.
À guisa de conclusão: filosofar como crítica da razão dogmática
A interpretação de Josef Simon, ora brevemente apresentada, conduz a filosofia
de Kant para um domínio ainda, a nosso ver, inexplorado, e isso não apenas por
enfatizar o papel da imaginação para o conhecimento e usos da razão em sua
orientação cognitiva e comunicativa, rejeitando assim uma simples interpretação
formalista, dominante na Pesquisa-Kant; talvez a principal força dessa
interpretação, que, julgamos, carece ainda ser melhor aprofundada, assente-se
no fato de que ela concretamente abre um horizonte de interlocução da filosofia
kantiana com problemas filosóficos contemporâneos, tais como temas relativos a
uma visão pragmática da teoria da linguagem e da teoria da comunicação, bem
como a uma nova (uma vez que supera os impasses daquela formalista) concepção
de "subjetividade", de indivíduo, que não se assenta em uma razão plena de
"certezas absolutas", plena de convicções atemporais, mas sim em "certezas
falíveis", e, uma vez que essas são simplesmente pontos de vista plausíveis,
precisam ser constantemente justificadas pela razão em sua orientação
cotidiana. Para essa forma de racionalidade, "riscos" no significar e comunicar
são e devemser sempre considerados. Assim, foi com o intuito de indicar o
horizonte descortinado por essa interpretação de Simon da filosofia de Kant que
uma aproximação com as reflexões nietzscheanas da linguagem e do signo foi
sugerida, ainda que, devemos admitir, de modo não sistemático. Nietzsche seria
um interlocutor privilegiado de Kant se considerássemos o modo como ambos
articulam questões relativas à linguagem e à temporalidade de maneira
pragmática para então trazer à tona os procedimentos da razão dogmática no que
tange aos modos de reivindicar validade para seus conceitos e juízos, para suas
crenças e convicções. É certo que uma pesquisa que pretendesse aproximar Kant e
Nietzsche nesse ponto, autores tidos por muitos como "antípodas", poderia optar
por se guiar pelo caminho mais convencional, qual seja, visitar os
contemporâneos de Nietzsche, nos quais ele, historicamente, apoiou-se para seus
diálogos (conflituosos, no mais das vezes) com Kant. Mas este artigo assumiu
certo "risco" ao não optar por esse caminho exegético (talvez) mais seguro e
apostar que o caminho aberto por Josef Simon, aliás um dos mais engajados
estudiosos da Pesquisa-Nietzsche Internacional, com publicações reconhecidas
entre os pares, pode sim constituir um campo fértil para futuras pesquisas que
aproximem ambos os autores, em especial considerando a tarefa filosófica que
Kant e Nietzsche impuseram à modernidade, a saber, crítica à orientação
dogmática de discursos filosóficos por falsearem os fatores subjetivos
intrínsecos às mais elementares práticas cognitivas e comunicativas da razão.