Transformações do significado de conflito na "História de Florença" de
Maquiavel
O estudo da questão do conflito a partir da "História de Florença" nos fornece
elementos capazes de mostrar que a reflexão maquiaveliana não se desenvolve de
modo tão simples e linear quanto pode parecer pela leitura dos "Discursos". Com
efeito, revelará que a oposição entre dois tipos de conflito - positivo e
negativo - descrita nos "Discursos" se define progressivamente como de um só
tipo - trágico e violento - baseado sobre contraposições que não são possíveis
de serem resolvidas em termos de uma virtù clássica, característica do primeiro
período da história de Roma. Esta transformação levanta um conjunto de
interrogações para as quais, de algum modo, o presente estudo pretende oferecer
respostas: teria Maquiavel renunciado à ideia de conflito como fundamento da
liberdade republicana e se entregado à utopia de uma ordem homogênea e estável?
Levando em conta as consequências das discórdias sobre a vida florentina,
seriam todas as divisões no seio da sociedade definitivamente prejudiciais à
integridade da vida republicana? A que se deve atribuir o fato de as discórdias
não haverem produzido em Florença os mesmos efeitos que em Roma? Seriam todas
as discórdias naturais e, portanto, inevitáveis, ou poderia haver divisões
"artificiais" e, portanto, evitáveis? Vamos examinar estas questões seguindo os
capítulos da "História de Florença" desde o início.
O "Proêmio" do livro oferece pistas para compreender as transformações pelas
quais passou a concepção de conflito na obra de Maquiavel. O texto parece
reduzir a importância do esquema dual dos "Discursos", que classificava os
conflitos em "bons" e "maus" segundo os efeitos que produziam sobre a vida
republicana. Logo nas primeiras linhas já demarca como motivo de seu
distanciamento de "dois excelentes historiadores" de Florença - Lionardo
d'Arezzo e messer Poggio - o fato de estes haverem tratado insuficientemente
"das discórdias civis e das inimizades intrínsecas, bem como dos efeitos que
delas nascem" ("História de Florença", Proêmio).1 Maquiavel, contrariamente à
opinião destes ilustres historiadores, é do entendimento de que são
precisamente as "dissensões" universais de Florença que devem ser postas no
centro da reflexão.
Já nos "Discursos" Maquiavel havia insistido na centralidade do conflito tanto
para Roma quanto para Florença. No entanto, Roma e Florença viveram as
dissensões de modo diferente: enquanto a história de Roma pode ser
caracterizada como passagem da potência ao declínio e crise a partir de um
modelo de conflito dual (positivo/negativo), a história de Florença é crise do
começo ao fim e a potência não aparece como polo oposto à crise (como em Roma),
do mesmo modo que o conflito foge ao esquematismo dual. O conflito se desdobra,
progressivamente, em múltiplas formas impossíveis de serem reduzidas ao esquema
positivo/negativo:
se houve república cujas divisões foram notáveis, as de Florença
foram notabilíssimas, porque a maioria das outras repúblicas das
quais se tem alguma notícia contentou-se com uma divisão, em razão da
qual, segundo os acontecimentos, ora ampliaram, ora arruinaram sua
cidade; mas Florença, não contente com uma, criou muitas. Em Roma,
como todos sabem, depois que os reis foram expulsos, nasceu a
desunião entre os nobres e a plebe, que se manteve até sua ruína;
[...]. Mas, em Florença, primeiro os nobres se dividiram entre si, e
depois se dividiram os nobres e o povo, e, por último, o povo e a
plebe; e muitas vezes ocorreu que uma dessas partes, tendo vencido,
dividiu-se em duas, e de tais divisões tiveram origem tantas mortes,
tantos exílios, tantas destruições de famílias, como nunca ocorreu em
nenhuma cidade de que se tenha memória ("História de Florença" II,
34).
A diferença principal que Maquiavel estabelece, no modo de lidar com o
conflito, entre Roma e Florença consiste no fato de a última, tendo um grupo
alcançado vitória, encontrar sempre novo motivo para dividir-se renovando o
conflito em vez de obter dele uma saída. Nos "Discursos", pelo contrário,
Maquiavel chama a atenção precisamente à necessidade de a estrutura
institucional prever mecanismos capazes de dar vazão ao conflito. Ora,
argumenta Maquiavel, se em Roma o conflito produziu efeitos que não gerou em
Florença, "isso advém das más ordenações desta cidade, por não haver, dentro de
seus limites, uma ordenação que permita desafogar os humores malignos que
nascem nos homens, sem o emprego de modos extraordinários" ("Discursos" I, 7:
17).2 Assim, se em Florença, diferentemente do que ocorreu em Roma, "do ódio se
chegava à divisão, da divisão às sètte, das sètte à ruína" ("Discursos"I, 8:
18), foi porque lhe faltaram ordenamentos para resolver pela via institucional
(isto é, pelos "meios ordinários") as disputas entre as partes.
Encontramos, pois, nos "Discursos" ao mesmo tempo uma condenação de Florença e
uma explicação para a multiplicação dos conflitos entre as partes, o que
impossibilita estabelecer a sua diferenciação em positivo/negativo como sob a
Roma republicana. Agora, na descrição que Maquiavel oferece na "História de
Florença", o que se mostra é unicamente uma imagem negativa das dissensões. A
"matéria" (ou seja, o conflito) perde os contornos nítidos que possuía na
descrição da Roma republicana assemelhando-se a um "objeto pastoso", no qual se
torna muito difícil distinguir quando se trata da oposição de umori e quando é
o caso de disputa de sètte. Em outras palavras, em Florença os grupos em
confronto não se deixam distinguir para saber quando se trata de discórdias
naturais e, portanto, inevitáveis (isto é, do confronto entre umori) e quando
se trata de divisões produzidas artificialmente pelas facções na luta pelo
controle do poder e, portanto, evitáveis (isto é, de disputa entre sètte). Em
virtude disso, torna-se impraticável a utilização das categorias
interpretativas do modelo romano do conflito para explicar as dissensões
florentinas. Isso explica também porque Maquiavel inverte seu julgamento sobre
o significado do conflito quando fala de Florença: em Roma, era o fundamento da
liberdade e grandeza da república e, portanto, positivo; em Florença, nutre a
contínua crise, "origem de tantas mortes, tantos exílios, tantas destruições de
famílias" ("História de Florença", Proêmio) e, portanto, negativo.
No Livro II Maquiavel mostra como a estrutura constitucional de Florença é
modelada pelas divisões da cidade desde as suas origens. Aos partidos guelfo
e gibelino, nos quais "nossa cidade, como toda Itália, havia muito estava
dividida" ("História de Florença" II, 4), alinharam-se as principais famílias
nobres e a estas "juntaram-se muitas das populares; desse modo, quase toda a
cidade foi corrompida por tal divisão" ("História de Florença" II, 4). Foi esta
divisão interna em umori, sètteeparte que comandou a criação das ordenações
militares e civis da cidade com a finalidade de estancar o confronto entre os
diferentes grupos. A disputa entre eles deixa patente que é unicamente a
vontade de poder e domínio que os nutre, razão pela qual Maquiavel conclui que
"é impossível que coexistam" ("História de Florença" II, 12).
As soluções institucionais - a criação das Artie a nomeação de um Gonfaloniere
di giustizia - mostram-se impotentes para conter a vontade de domínio dos
grupos e, por isso, seus efeitos são passageiros e sem continuidade. Uma das
possíveis razões dessa insuficiência talvez possa ser encontrada na estrutura
mesma dos partidos em Florença. Enquanto os umori na Roma republicana eram
claramente diferenciados, em Florença são matizados e mutáveis de modo que não
se tornam possíveis determinações claras e precisas quanto às forças sociais
que as compõem. "A linha que separa horizontalmente o alto do baixo, isto é, os
grandes do povo, tende a fundir-se na contraposição de grupos radicados tanto
na classe popular quanto na nobre", argumenta Del Lucchese (2001, p. 82).
Contra esta interpretação, Sfez insiste, pelo contrário, no caráter
irredutivelmente heterogêneo dos dois humores fundamentais como característica
essencial da síntese teórica de Maquiavel. Segundo ele,
há dois desejos de natureza diferente ou heterogênea, que não definem
mais um conflito possível em torno de um único e mesmo objetivo e que
não descrevem a configuração das relações de poder na simetria, mas
aquela de relações de poder na dissimetria; [...] Não há medida comum
entre estes desejos, porque não se trata da mesma ação de desejar.
Entre estes dois desejos não há negociação conveniente e definitiva,
pois se trata sempre de uma relação sem relação. Estes dois desejos
estão em desacordo. O desacordo diz respeito, a princípio, à
resistência do desejo do povo ao desejo dos Grandes (de dominar o
povo), mas, igualmente, ao fato do conflito: desacordo absoluto que
não pode ser nem resolvido nem eliminado, porque cada um dos dois
desejos persegue um objetivo diferente (Sfez, 1999, p. 183, grifos do
autor).
A heterogeneidade na qual insiste Sfez se refere ao confronto de humores
enquanto encontra regulação nas instituições; isto é, à existência de
ordenamentos que possibilitam o desafogo dos humores opostos das forças sociais
em confronto. A heterogeneidade se conserva na medida em que estes ordenamentos
forem capazes de dar sfogo aos desejos opostos. A heterogeneidade que marca o
conflito político não extingue, porém, a homogeneidade dos desejos humanos:
todos os homens, insiste Maquiavel em muitos lugares de sua obra, são habitados
pelas mesmas paixões e ambições. A homogeneidade desaparece e a heterogeneidade
se instala quando os homens passam a situar-se em posições opostas sob uma
determinada ordem política: uns na posição de comando e outros na de
comandados. Quando se instaura esta relação de poder, aqueles que se situam na
posição de comando - e enquanto se situam nesta posição - são animados pelo
desejo de domínio; já aqueles que estão na posição contrária - e também
enquanto estão na posição de submissão - são movidos pelo desejo de liberdade.
Basta, porém, as instituições se revelarem incapazes de regular esse confronto
- o povo suprimindo a capacidade de dominação dos grandes ou estes aniquilando
o desejo de liberdade do povo - para que a homogeneidade do desejo humano se
instaure. Quando isso acontece, todos, indistintamente, passam a dar vazão à
universalidade das paixões e ambições humanas: riqueza, poder, honrarias. O
conflito deixará de ser político e nutridor da liberdade republicana para se
tornar simplesmente humano e fonte de formas anárquicas ou tirânicas,
respectivamente. Assim, o fato de o conflito na Roma republicana haver
conhecido uma forma heterogênea se deve a ter havido naquela cidade
instituições capazes de regulá-lo, algo que Florença não conheceu e, por isso,
ter sido marcada pela homogeneidade das dissensões internas em lugar da
heterogeneidade da Roma republicana, ao menos até o surgimento dos Gracos.
Esta característica própria à estrutura social de Florença, que impossibilita o
uso das categorias dos Discorsi para analisar os conflitos florentinos,
encontra no paradigmático capítulo introdutório ao Livro III de "História de
Florença" um novo enriquecimento na comparação entre as duas cidades (Roma e
Florença). O capítulo se abre com a contraposição, já anteriormente referida em
"O Príncipe" (IX:2) e nos "Discursos"(I, 4:5), dos umori que "existem entre os
homens do povo e os nobres, causadas pela vontade destes de comandar e daqueles
de não obedecer" ("História de Florença" III, 1). Por se tratar de umori, "são
inimizades naturais" e, por isso, inevitáveis e impossíveis de serem
eliminados. Foi a oposição destes umori que manteve desunida tanto Roma quanto
Florença. No entanto, o modo de lidar com eles foi muito diferente entre as
duas cidades, do que resultaram efeitos opostos:
As inimizades havidas no princípio em Roma entre o povo e os nobres
se determinavam disputando, enquanto as de Florença combatendo; as de
Roma terminavam com leis, enquanto as de Florença com o exílio e a
morte de muitos cidadãos; as de Roma sempre aumentaram a
virtùmilitar, enquanto as de Florença a extinguiram totalmente
("História de Florença" III, 1).
A lista de efeitos contrastantes não termina ali. Antes de apresentar um novo
conjunto de contrastes, conclui as diferenças com um resultado que inverte os
termos da comparação entre Roma e Florença: "enquanto em Roma a igualdade entre
os cidadãos levou a grandíssima desigualdade, em Florença da desigualdade
chegou-se a uma admirável igualdade" ("História de Florença" III, 1).3 Em
seguida Maquiavel continua com uma nova lista de contrastes: "o povo de Roma
desejava gozar as supremas honras com os nobres enquanto o de Florença combatia
para ficar sozinho no governo, sem a participação da nobreza"; o desejo do povo
romano "era mais razoável", enquanto o do povo florentino "era injusto e
abusivo"; a nobreza romana cedia às exigências do povo "sem recorrer à
violência", enquanto em Florença "a nobreza preparava sua defesa com maiores
forças" e isto "levou ao derramamento de sangue e exílio"; as leis e as
reformas introduzidas em Roma após esses conflitos foram para o "bem comum",
enquanto em Florença o foram "em favor do vencedor"; em Roma o acesso dos
homens do povo ao governo levou-os a tornarem-se semelhantes à nobreza e
assumirem a virtù desta última, enquanto em Florença produziu o efeito oposto,
de modo que os nobres, a fim de serem readmitidos ao governo, tiveram que se
tornar semelhantes aos homens do povo e "não apenas ser como parecer
semelhantes ao povo no comportamento, no modo de pensar e de viver" ("História
de Florença" III, 1). Ao termo desta comparação, conclui novamente as
diferenças com um efeito que inverte os termos da comparação entre Roma e
Florença: "e Roma, quando aquela virtù se transformou em soberba, já não
conseguia manter-se sem um príncipe, enquanto Florença chegou a um ponto em que
um legislador sábio facilmente poderia reordená-la em qualquer forma de
governo" ("História de Florença" III, 1).4
A análise comparativa entre Roma e Florença levada a efeito por Maquiavel deixa
claro que o conflito nesta última tem um caráter puramente negativo, é um
"mal". No entanto, como em muitas outras passagens de sua obra, o mal pode
produzir efeitos bons e, inversamente, o bem causar consequências funestas.
Neste caso, os conflitos positivos em Roma a levaram à decadência ao passo que
os conflitos negativos em Florença a colocaram em condições de fundar uma nova
potência. O efeito positivo do caráter negativo (negativo por ser violento e
extremo) dos conflitos em Florença foi o de haver extinguido a nobreza (a qual,
para reconquistar os cargos, "precisava não apenas ser, mas também parecer
semelhante ao povo") de sorte que a potência desta foi transmitida ao povo. No
entanto, uma vez que "a virtù das armas e a generosidade de ânimo que havia na
nobreza" não foi capaz de "reacender-se no povo" ("História de Florença"
III,1), as dissensões permaneceram, agora entre o próprio povo. O povo "herda"
a potência da nobreza ao ficar só após a extinção daquela, mas não herda sua
virtù. O motivo disso é simples: a virtù não tem como ser herdada, precisa ser
aprendida, recriada, como Maquiavel insiste em muitas passagens de sua obra. A
incapacidade demonstrada pelo povo de assimilar a virtù da qual era portadora a
nobreza transforma o conflito entre o povo numa disputa pela roba e as
sustanze. Os onori e gradi, ambicionados pelo povo, passam a ser considerados
tão somente meios, instrumentos imprescindíveis ao gozo das riquezas e do
patrimônio. A "admirável igualdade" a que o conflito conduziu em Florença não
produziu o efeito esperado, porque faltou no "sujeito histórico" (ou seja, ao
povo) a virtù. Levado pelo desejo de ganho, prevaleceu o interesse privado
sobre o público, com todas as consequências que disso decorrem (luta de
facções, violência, exílio etc.). Compreende-se, desta maneria, o lamento de
Maquiavel: "assim, Florença foi se tornando cada vez mais humilde e abjeta"
("História de Florença" III, 1).5
Maquiavel coloca na boca de um cidadão anônimo, em um discurso proferido diante
dos Senhores, as palavras que resumem com perfeição o quadro das coisas em
Florença: "nela as leis, os estatutos, e as ordenações civis não são ordenados
de acordo com a vida livre, mas de acordo com a ambição do partido que se
tornou superior. É por isso que, expulso um partido e extinta uma divisão,
sempre surgem outras" ("História de Florença" III, 5). Ao final do discurso, no
apelo que faz aos Senhores no sentido de que introduzam as reformas necessárias
para fazer prevalecer o bem público, o orador anônimo chama a atenção ao
caráter histórico e não natural do quadro: "imputai as antigas desordens não à
natureza dos homens, mas aos tempos e como estes mudaram, podeis esperar melhor
fortuna para a vossa cidade por meio de melhores ordenações" ("História de
Florença" III, 5).
Estas diferenças em relação aos efeitos produzidos pelos conflitos em Roma e em
Florença ficam melhor esclarecidas, na sequência dos capítulos do Livro III,
pela análise do tumulto dos ciompi, cardadores de lã florentinos, que abalou a
cidade por três meses em 1378.6 Já foi notado (Bock, 1990, p. 193) que o
tumulto dos ciompi pode ser lido como contraponto das disputas em torno da lei
agrária descritas nos "Discursos" (I, 37): passagem da luta política para a
econômica; transformação da discórdia civil em guerra civil; recurso aos meios
privados em substituição aos públicos; emergência de líderes individuais de
ambos os lados em confronto e a consequente emergência de um poder único -
César em Roma, Cosimo em Florença.
Maquiavel descreve o tumulto dos ciompi na sequência de outros tumultos havidos
um pouco antes. O motivo do tumulto foi, segundo Maquiavel, "o ódio que o
popolo minuto nutria pelos cidadãos ricos e pelos príncipes das Artes, por lhe
parecer que não era pago por seu trabalho conforme acreditava merecer por
justiça" ("História de Florença" III, 12). A questão toda teve origem, segundo
a análise de Maquiavel, por ocasião da organização da cidade em Artes.
Inicialmente, a cidade foi dividida em doze Artes, às quais foram acrescentadas
outras até chegar a vinte e uma. "E como entre estas havia as mais e as menos
honradas, foram elas divididas em maiores e menores: sete foram chamadas
maiores e catorze menores" ("História de Florença" III, 12). Acontece que, "ao
ordenar as corporações das Artes, muitos dos ofícios nos quais trabalhava o
popolo minuto e a ínfima plebe, ficaram sem corporações próprias e seus membros
precisaram submeter-se a outras Artes, de acordo com suas qualidades e
ofícios", a principal e mais poderosa das quais era a da lã ("História de
Florença" III, 12). Assim, pelo fato de estes trabalhadores não terem a quem
recorrer, senão "ao magistrado daquela Arte que os governava, lhes parecia que
não era feita a justiça a que julgavam que tinham direito" ("História de
Florença" III, 12).
Para a interpretação dos acontecimentos, Maquiavel contrapõe o discurso do
gonfaloneiro Luigi Guicciardini ao de um anônimo chefe dos insurgentes.
Enquanto o discurso do gonfaloneiro é basicamente uma exortação à moderação
argumentando que todas as reivindicações razoáveis do popolo minuto já foram
satisfeitas, o do ciompo é um apelo a um confronto violento argumentando que o
principal - a riqueza e sua forma de produção - ficou intacto. Em outras
palavras, o discurso do ciompo se volta àquilo que ficara oculto no discurso do
gonfaloneiro: o problema da roba.
Com efeito, Guicciardini ressalta em seu discurso todos os ganhos "políticos"
alcançados pelo popolo minuto como se a isto se reduzisse o conjunto das
reivindicações deste e o motivo do tumulto:
Dizei, por vossa fé: o que mais, honestamente, podeis desejar de nós?
Quisestes abolir a autoridade dos capitães de partido: ela foi
abolida; quisestes que suas bolsas fossem queimadas e que se fizessem
novas reformas: nós consentimos; quisestes que os advertidos
recuperassem seus cargos: e permitimos. Atendendo a vosso pedido,
perdoamos aqueles que atearam fogo às casas e roubaram as igrejas, e
muitos cidadãos honrados e poderosos foram mandados para o exílio,
para satisfazer-vos; os grandes, para vosso agrado, foram refreados
com novas ordenações ("História de Florença" III, 11).
O argumento do gonfaloneiro é, pois, de que tudo o que poderia ser concedido
havia sido feito. Já em relação às questões econômicas, seu argumento será no
sentido de mostrar a irrazoabilidade da pretensão a uma repartição dos bens ou
de promover uma igualdade econômica:
Que ganhareis com vossas desuniões, além da servidão? Ou dos bens que
nos roubastes ou roubaríeis, que mais além da pobreza? Porque são
esses bens que, com nossa engenhosidade [industria], alimentam toda a
cidade; e se formos deles espoliados, não a poderemos alimentar; e
aqueles que os tiverem tomado, por ser coisa mal conquistada, não os
saberão conservar: e daí advirão a fome e a pobreza da cidade
("História de Florença" III, 11).
O discurso do gonfaloneiro procura convencer seus interlocutores de que a
produção das riquezasdas quais a cidade vive requer uma habilidade (industria)
que somente os grandes detêm. Pretender colocar em discussão as "relações de
produção" implicaria comprometer a própria sobrevivência e, portanto, que
reivindicações no sentido de uma igualdade econômica ou participação na roba
redundariam, no final das contas, em prejuízo de todos. A roba,como podemos
notar, assume um sentido mais vasto do que somente riqueza: refere-se à própria
"ordem econômica", isto é, à forma como a riqueza é produzida e repartida.
Desta maneira, as palavras de Guicciardini explicitam o contraste entre um
conflito em que se combate por onori e aquele em que se luta pela roba.
Enquanto se trata dos primeiros, existe sempre a possibilidade de acordo
pacífico; já quando está em questão a segunda, o resultado são tumultos e
violência.7
O discurso do anônimo ciompo8 é uma resposta indireta às palavras de
Guicciardini. Com efeito, no centro do argumento daquele está um argumento a
favor de uma igualdade que não é, em primeiro plano, política, mas, sobretudo,
econômica. Ociompo inicia sua análise com a proposição de um confronto violento
com a parte adversária que está no poder. Ele exclui qualquer possibilidade de
composição e defende que quanto maior for a violência cometida tanto mais fácil
será escapar à vingança. Reconhece que "tomar em armas, queimar e roubar as
casas dos cidadãos, despojar as igrejas" é um mal, mas avalia que o único modo
de serem "perdoados dos erros antigos" será "cometendo novos, duplicando os
males" ("História de Florença" III, 13). Não se trata, porém, da escolha de uma
alternativa entre outras possíveis, e sim da constatação de uma trágica
necessidade: "estou certo de que, mesmo que nada mais nos ensinasse, a
necessidade nos ensinaria" ("História de Florença" III, 13). Um duplo objetivo,
defende ele, é preciso ter em vista neste confronto: "um é não sermos
castigados pelas coisas que fizemos nos últimos dias; o outro é viver com mais
liberdade e satisfação do que no passado" ("História de Florença" III, 13).9
Este confronto requer o emprego de métodos que podem repugnar a alguns. É
preciso, porém, ter presente, diz o orador anônimo, que "nem a consciência nem
a infâmia vos deve amedrontar, pois aqueles que vencem o fazem de qualquer
modo, e disso nunca trazem vergonha" ("História de Florença" III, 13). Assim,
continua o ciompo, se observarmos o modo como os vitoriosos agem se notará que
"todos aqueles que conseguem grandes riquezas e grande poder os conseguiram com
a fraude ou com a força". Em compensação, "aqueles que evitam tais métodos,
sempre afundam na servidão e na pobreza" ("História de Florença" III, 13). Por
essa razão, conclui o orador anônimo, "é preciso usar a força quando é dada a
ocasião. E ocasião melhor não poderia ser oferecida pela fortuna, pois os
cidadãos ainda estão desunidos, a Senhoria ainda está incerta, e os magistrados
assombrados" ("História de Florença" III, 13).
Embora Maquiavel não assuma em parte alguma uma posição plenamente favorável em
relação às reivindicações sociais dos ciompi, não se proíbe de admirar a
resolução destes de tomar a iniciativa no confronto e de enfrentar os senhores
em vez de continuar a depender de boa vontade destes. Com efeito, é conforme ao
mais genuíno pensamento maquiaveliano, especialmente o expresso em "O
Príncipe", recusar quaisquer meias-medidas e ter a coragem de ser "inteiramente
mau" quando sua vida e sua liberdade estão em jogo. A consciência moral mostra-
se, no discurso atribuído ao orador anônimo, como uma mordaça social destinada
a desencorajar qualquer inclinação à revolta e para inibir a força de ação.
A argumentação do ciompo não dá qualquer importância ao mérito, que no discurso
de Guicciardini era um valor específico da nobreza. A nobreza não tem, em si
mesma, qualquer valor; a distinção da qual estes se revestem é puramente
exterior, aparente, sustentada na riqueza, defende o ciompo:
todos os homens tiveram o mesmo princípio e são, por isso, igualmente
antigos, e foram feitos de um mesmo modo pela natureza. Fiquemos
todos nus, e vereis que somos semelhantes; e se nos vestirmos com as
vestes deles e eles com as nossas, vereis que, sem dúvida, nós
pareceremos nobres e eles não nobres; porque somente a pobreza e a
riqueza nos desigualam ("História de Florença, III, 13, grifos
nossos).
Para o ciompo, diferentemente do que prega Guicciardini, o que confere o
domínio e o poder não são gli onori, mas la roba. O que conta é unicamente "a
força e a fraude" para alcançar o poder e a riqueza. Ora, se a distinção da
nobreza não brota de uma qualidade especial da qual seriam portadores, mas
brota da riqueza, conquistá-la será o único modo de prevalecer, de superar a
servidão histórica que seu partido tem sofrido. O discurso do ciompo deixa
claro que o poder não é alcançado pelos onori, mas pela posse da riqueza, a
roba. Quem possui a riqueza, controla o poder: esta é a descoberta que o ciompo
elucida aos seus ouvintes. Seu argumento é de que está oferecida a occasione
propícia para subverter a dominação histórica da qual são objeto.
A análise do discurso do ciompo nos leva a compreender que, a princípio, a luta
pela igualdade nos onori e na roba não pode ser condenada como ilegítima. No
plano da natureza humana não existe qualquer distinção que faça de uns nobres e
outros não nobres a ponto de ser possível justificar o domínio de uns e a
subordinação dos demais. As diferenças existentes devem-se ao desenvolvimento
histórico, "aos tempos", na linguagem do florentino. Isso, porém, não leva
Maquiavel a um louvor irrestrito do tumulto. Maquiavel reconhece a urgência de
retomar o gosto pela liberdade quando se está habituado à servidão. Neste
sentido, a luta dos ciompi merece louvores, pois compreenderam que a prudência
mal interpretada, isto é, como irresolução, é uma forma de fraqueza
particularmente condenável num mundo sem horizontes predeterminados como aquele
no qual se desenrola o tumulto. No entanto, a aspiração louvável de viver
livre, quando degenera em licença e crueldade gratuita, como no caso dos
ciompi, leva paradoxalmente ao reforço da tirania.
Além disso, há um outro motivo para a reprovação ao tumulto: os rebeldes
perseguiram sistematicamente uma política de divisão. Esta estratégia fica bem
explícita no fato de se aliarem às mesmas pessoas que perseguiram na véspera,
como explica Maquiavel: "nesse acontecimento, o mais notável é que muitos
tiveram suas casas queimadas e pouco depois, no mesmo dia, foram feitos
cavaleiros por aqueles mesmos que as haviam queimado [...]; foi o que aconteceu
a Luigi Guicciardini, gonfaloneiro de justiça" ("História de Florença", III,
14). Nesse sentido, o tumulto dos ciompiexemplica muito bem esse caráter
"misturado" ou "pastoso", homogêno enfim, do conflito florentino por oposição à
forma heterogênea notada sob a Roma republicana.
Que os rebelados não estavam movidos pelo bem comum fica claro na sua pretensão
ao exercício absoluto do poder da cidade: não querem unicamente participar do
governo (algo que Guicciardini já lhes havia assegurado em seu discurso), mas
querem excluir definitivamente o partido oposto do acesso ao poder e à riqueza.
O discurso do ciompo é, neste sentido, muito preciso: "está na hora de não só
vos libertardes deles, como também de vos tornardes tão superiores a eles que
eles tenham mais queixas e temores de vós do que vós deles" ("História de
Florença" III, 13). Em outras palavras, segundo o ciompo, "ou nos tornaremos os
únicos príncipes da cidade, ou passaremos a representar parte tão importante
dela que não só nos perdoarão os erros passados, como teremos autoridade para
ameaçá-los com novas injúrias" ("História de Florença" III, 13).10
O discurso do ciompo se utiliza de um conjunto de ideias que Maquiavel reafirma
em diversas passagens de sua obra: a ocasião como algo que não se pode deixar
passar em vão; a necessidade como motor da ação; a justificação da ação pelo
êxito e a vitória; o uso necessário da astúcia e da força; a consideração da
ação política no mundo mundano sem consideração de elementos sobrenaturais.
Onde, então, reside o escândalo de suas palavras? Para Del Lucchese (2001, p.
93), no reconhecimento de que "a política é principalmente afirmação violenta
da força, ou melhor, é a descoberta da ligação indissolúvel entre política e
violência. [...] É o reconhecimento de que não existe um ganho honesto, se por
honesto se deve entender que exclui o uso da força e da fraude". O discurso do
ciompo possibilita, pois, a Maquiavel caracterizar a transformação do
significado do conflito em Florença em relação à Roma republicana. Em virtude
do caráter extremo do confronto, que leva o conflito à condição de guerra
civil, associado ao fato de a motivação de fundo ser fundamentalmente o ganho e
a acumulação, mais precisamente, por ver no exercício do poder político
unicamente uma oportunidade para ampliar o ganho e a acumulação, o tumulto
assume unicamente um significado negativo, semelhante ao que assumiu em Roma em
decorrência dos conflitos agrários sob os Gracos. Quando o conflito assume esta
feição, o mais provável é o surgimento de líderes individuais. Este será o
assunto do Livro IV.
O capítulo primeiro do Livro IV, semelhante ao que ocorre nos capítulos
iniciais dos demais Livros, retoma o tema da divisão. Existem cidades,
argumenta Maquiavel, que são repúblicas apenas no nome, e que "mudam
frequentemente de governo e de estado, não mediante liberdade e servidão, como
pensam muitos, mas mediante servidão e licença" ("História de Florença" IV, 1).
Enquanto a liberdade é celebrada pelos populares, a servidão o é pelos nobres,
mas nem um nem outro "deseja submeter-se às leis nem aos homens" ("História de
Florença" IV, 1). Na realidade, um mínimo de estabilidade somente é possível de
ser assegurada por meio de um líder individual o qual, porém, "em razão da
morte, pode vir a faltar, ou em razão de dificuldades, pode tornar-se inútil"
("História de Florença" IV, 1). Além disso, Maquiavel reconhece que "o
surgimento de algum cidadão sábio, bom e poderoso, que ordene leis capazes de
aquietar os humores dos nobres e do povo ou de impedi-los de agir mal"
("História de Florença" IV, 1) de modo a tornar o legislador supérfluo é algo
muito raro de acontecer. Por esta razão, conclui Maquiavel, em repúblicas como
as de Florença, "cujos governos variaram e variam frequentemente do estado
tirânico ao licencioso e deste àquele, não há nem pode haver estabilidade
alguma em razão dos poderosos inimigos que têm" ("História de Florença" IV, 1).
O que se multiplica nestas repúblicas são as divisões. Às "naturais" discórdias
somam-se as "artificiais" disputas pelo controle do Estado como instrumento de
ganho e acumulação.
Esta distinção entre conflitos "naturais" e "artificiais" pode, sobretudo, ser
captada no capítulo VII. Os conflitos naturais são regidos pela oposição dos
"humores".11 A noção de "humor" conserva algo de sua origem hipocrática e
galênica, uma vez que permite estabelecer que a crise faz parte da vida
política normal de qualquer regime. À semelhança dos humores que se misturam no
corpo humano segundo a medicina hipocrático-galênica, o corpo político também é
agitado por "humores": aspirações coletivas dos grupos sociais constituídos,
tais como os "grandes" e o "povo". Assim como no corpo humano a imposição de um
humor sobre os demais é causa de sua doença, no corpo político também não é
desejável que um "humor" (uma força social determinada) se imponha
definitivamente sobre o outro sob pena de aniquilar a liberdade e causar a
morte do vivere libero. Para o equilíbrio dos "humores" no corpo político é
preciso que existam mecanismos institucionais que lhe deem vazão de modo a
evitar a manifestação da hostilidade dos umori sob a forma de tumultos
violentos que desestabilizariam o regime e prejudicariam o corpo social. Assim,
compreende-se porque os conflitos concebidos como confronto de umori opostos
sejam naturais, isto é, inerentes ao corpo social e, por isso, impossíveis de
serem extirpados. Podem ser positivos ou negativos segundo o modo de sua
regulação, mas não há como eliminá-los. No capítulo I do Livro VII da "História
de Florença", Maquiavel opõe a estes conflitos "naturais" entre umori as lutas
entre sètte: disputas entre famílias, clãs e corporações em vista do controle
do poder de estado. Diferentemente do conflito entre humores, as disputas
motivadas pelas seitas são artificiais e, portanto, podem e devem ser evitadas.
A divisão é inevitável, pois constitui a natureza mesma das sociedades. O ideal
de uma república harmoniosa e unida é uma ilusão. As divisões, muito embora
constitutivas do ser social, não têm, contudo, um modo único de aparecer. Na
forma de umori de classes - grandes e povo - opõem entre si forças sociais
naturais a todas as sociedades cujos desejos, se não adequadamente regulados,
podem levar a república à crise e, finalmente, à destruição, como aconteceu com
Roma. No entanto, encontrando a devida regulação institucional, o confronto
entre os humores constitui-se em pilar da liberdade política. O mesmo não se
pode dizer das seitas que, por virem acompanhadas de partidários, se alimentam
da própria crise e multiplicam as divisões. Uma república pode, e Maquiavel
entende que deve, evitar esta forma de divisão, ainda que seja impossível
evitar a divisão enquanto tal. As seitas criam verdeiras "sociedades parciais",
como afirma Rousseau,12 que impedem à coletividade vislumbrar algo maior que os
meros interesses privados e particulares.
A condenação que Maquiavel manifesta em relação às sètte é motivada pela
natureza "divisionista" destas. As discórdias alimentadas pelas seitas
multiplicam as divisões na cidade em lugar de resultarem em leis e instituições
favoráveis à coletividade. A estratégia divisionista das seitas consiste em
servir-se, em benefício próprio, de uma das classes sociais - grandes ou povo.
A divisão que Maquiavel descreve entre guelfos e gibelinos mostra bem esta
dinâmica: ao mesmo tempo que é um conflito entre famílias, é também um conflito
entre nobres e povo.
Onde se localizam as diferenças no julgamento de Maquiavel acerca do conflito
em relação à descrição oferecida nos "Discursos" e na "História de Florença"? A
visão totalmente negativa dos conflitos expressa na "História de Florença"
contraposta à ideia positiva que eles assumiam nos "Discursos" revelaria uma
capitulação de Maquiavel em favor de uma república harmoniosa? O fato de não
ver mais no conflito a força dinamizadora responsável pela grandeza dos
Estados, mas, pelo contrário, a causa de crises intermináveis, poderia ser
interpretado como uma inversão de seu julgamento anterior sobre o mesmo tema?
Bock entende que não é absolutamente este o caso. Pelo contrário, defende ela,
precisamente porque era um republicano convicto [...], percebeu e
analisou o fato de que nas repúblicas há interesses contrastantes,
conflitos agudos, relações de poder, tirania e amoralidade. Mas é
apenas na ordem republicana que as discórdias entre os vários umori
humanos podem e devem ser expressos; por outro lado, são estas
discórdias mesmas que continuamente a ameaçam. Ambos são a vida e a
morte da república (Bock, 1990, p. 201).13
Em outras palavras, o juízo negativo acerca dos conflitos na história de
Florença não leva Maquiavel a abandonar sua convicção originária, expressa já
em "O Príncipe" e retomada com todo vigor nos "Discursos", de que a existência
de conflitos é expressão da vitalidade política. Somente repúblicas são capazes
de sobreviver aos conflitos que naturalmente dilaceram todas as sociedades
políticas. O fato de as discórdias haverem alimentado de modo permanente a
crise em Florença não pode ser atribuído aos conflitos enquanto tais e sim à
forma que estes assumiram naquela cidade: em vez de serem expressão natural dos
umori contrapostos das classes sociais, transformaram-se em disputas de seitas
e partidos em torno do controle do poder do Estado em vista da ampliação da
riqueza e acumulação privadas.
Del Lucchese, ainda que de outra perspectiva, também compartilha da ideia de
que não há um abandono da fecundidade da noção de conflito em Maquiavel em
decorrência da função negativa que desempenhou na história de Florença. O autor
chama a atenção ao fato de já nos "Discursos" (I, 37) Maquiavel haver
contraposto uma concepção positiva do conflito fundada na luta pelos cargos
políticos a uma concepção negativa fundada sobre a disputa em torno das
riquezas. Esta transformação, como é sabido, está na origem da ruína da
república e abriu caminho à tirania de César. O que muda neste aspecto, segundo
Del Lucchese, dos "Discursos" para a "História de Florença", são duas coisas.
Por um lado, la roba torna-se a única matéria do conflito, uma vez que gli
onori passaram a ser simples meio para alcançar a riqueza. Por outro lado, o
abandono do esquema dual de conflito positivo e conflito negativo, uma vez que
não se resume mais à oposição natural de umori e, por esta razão, se tornaram
cada vez mais matizados de tal modo que membros de diferentes classes se
colocarem no mesmo lado em combate com outro. A principal transformação não
está, porém, nisso. Para Del Lucchese (2001, p. 95):
Em O Príncipe e nos Discursos o interesse estava voltado ao princípio
da potência e à sua necessidade. Desde este ponto de vista, a
História de Florença não muda o objeto de sua investigação. Muda,
pelo contrário, a relação entre virtù e crise. A potência de Roma,
alimentada por sua virtù e pelo modelo conflitual positivo segundo a
descrição dos Discursos, entra em crise com a introdução da lei
agrária. A crise enfraquece a virtù e anula a potência. Na História
de Florença, pelo contrário, a crise torna-se de algum modo o motor
da história de Florença, a mola de seu desenvolvimento. Decadência e
desenvolvimento se exigem mutuamente, anulando algumas conclusões
contidas nos Discursos. Como se afirma no Proêmio da História de
Florença e no primeiro capítulo do Livro III, a crise e a
conflitualidade negativa de Florença conduziram a cidade a uma
"admirável" igualdade. A crise, diferente do que em Roma, é o
paradigma interpretativo da história de Florença, e é a que contém o
princípio da potência. A crise não exclui a potência, mas a contém.
Esta conclusão, de que a crise é o paradigma interpretativo da história de
Florença e de que ela contém a potência, certamente é uma transformação
significativa em relação à concepção do conflito nos "Discursos". No entanto,
ainda que se possa admitir que a crise na história de Florença (diferentemente
do que ocorreu na história de Roma, em que foi responsável pela ruína da
república) não a arrastou à ditadura; a república que sobreviveu em meio à
crise é costumeiramente mais formal que real: ora se aproxima mais a uma
oligarquia, ora mais a um principado. Isto tudo leva a concluir que a potência
da qual Florença permanecia detentora na crise, defende Del Lucchese, foi
impotente para incliná-la a uma verdadeira vida republicana, exceto por breves
períodos, como durante o período em que esteve sob a influência de Savonarola e
depois sob o governo de Pedro Soderini. Assim, ainda que a crise em Florença
não a tenha conduzido à tirania como em Roma, também não resultou em uma vida
republicana autêntica. Podemos identificar esta ideia como a posição "mais
madura" de Maquiavel acerca do conflito, como pensa Del Lucchese?
Muito embora seja verdade que Maquiavel tenha percebido a profunda
transformação ocorrida na natureza dos conflitos no decurso da história de
Florença em relação ao seu significado na história romana examinada nos
"Discursos", é pouco plausível que tenha abandonado sua tese sobre a intrínseca
positividade das lutas de classe. Assim, a "posição mais madura", que Del
Lucchese identifica na "História de Florença", retoma a tese fundamental já
anunciada nos "Discursos". Vamos tentar reconstruir esquematicamente o
argumento maquiaveliano.
No capítulo introdutório ao Livro III, a origem das desgraças de Florença é
imputada à exasperação dos conflitos de classe, que passam de uma "discórdia
civil" a praticamente uma "guerra civil", impedindo a cidade de criar
instituições semelhantes às romanas. No entanto, enquanto a "discórdia civil"
em Roma foi incapaz de impedir que a "desigualdade" dos cidadãos chegasse a
ponto de aquela cidade "já não conseguir manter-se sem um príncipe", o
confronto violento em Florença conduziu esta cidade "de uma desigualdade a uma
admirável igualdade" criando condições a que "um sábio legislador" fosse capaz
de reordená-la facilmente "em qualquer forma de governo" ("História de
Florença" III, 1).
No capítulo I do Livro IV, Maquiavel retoma a alternativa de reordenar a cidade
pela força de um "sábio legislador". Popolani e nobili, afirma Maquiavel, não
amam a "liberdade", mas, respectivamente, a "licença" e a "servidão" e "nenhum
deles deseja submeter-se nem às leis nem aos homens". Em semelhante quadro, a
alternativa que resta é esperar que surja "algum cidadão sábio, bom e poderoso
que ordene leis capazes de aquietar os humores de nobili epopolaniou de impedi-
los de agir mal" ("História de Florença" IV, 1). Estaria Maquiavel convencido,
como sugere Ménissier, de que somente a força de um príncipe seria capaz de
restaurar a república num quadro político semelhante ao florentino? Que, nas
palavras de Ménissier (2010, p. 155), "em última análise, a 'lógica
principesca' prevalece sobre a 'lógica republicana', possivelmente até que, aos
olhos de Maquiavel, esta somente é possível se regularmente reativada por
aquela"? Ou, então, estaria Maquiavel sugerindo que o único modo de evitar a
alternância entre "licença" e "servidão" seria aplicar em Florença a medida
adotada por Licurgo em Esparta? Teria, neste caso, Maquiavel renunciado ao
modelo romano e reconhecido o modelo espartano como o único viável para uma
vida republicana? Acreditaria Maquiavel, contra tudo o que havia escrito nos
"Discursos", na possibilidade de que as lutas internas poderiam ser moderadas
por uma solução não emergida dos próprios conflitos e, portanto, estranha a
estes? Cadoni entende que, absolutamente, não se trata disso:
A generalização do modelo espartano não pode, pois, ser considerada a
verdadeira solução do problema da decadência. Esta é antes sinal das
insuperáveis dificuldades nas quais se debate o florentino. Um
profundo desejo de paz social leva Maquiavel para um impotente
voluntarismo que opõe às lúcidas considerações sobre a história
romana a ilusória esperança de que as lutas internas poderiam ser
moderadas por leis estranhas a elas (Cadoni, 1974, p. 214).
Com efeito, no início do capítulo I do Livro VII, Maquiavel afirma "que quem
espera que uma república possa ser unida muito se ilude com tal esperança". No
entanto, apesar de a divisão ser inevitável, não torna impraticável uma vida
republicana. É preciso reconhecer, continua Maquiavel, "que algumas divisões
prejudicam as repúblicas, enquanto outras as ajudam" ("História de Florença"
VII, 1). Eis, portanto, o ponto: Maquiavel não abandonou sua convicção acerca
da intrínseca positividade dos conflitos. O que é preciso é introduzir uma
clara distinção entre as divisões motivadas pelos conflitos, separando aquelas
que prejudicam as repúblicas daquelas que as favorecem: "as prejudiciais são as
que vêm acompanhadas por sètte e partidários; as proveitosas são as que se
mantêm sem sètte e sem partidários" ("História de Florença" VII, 1).
Consequentemente, "um fundador de uma república, não podendo evitar que nela
existam inimizades, precisa ao menos providenciar para que nela não existam
sètte" ("História de Florença" VII, 1). Como alcançar isso? Impedindo aos
cidadãos a possibilidade de obter fama e prestígio "por modos privados", isto
é, "beneficiando este e aquele cidadão defendendo-o perante os magistrados,
ajudando-o com dinheiro, alçando-o a cargos não merecidos e agradando a plebe
com jogos e doações públicas" ("História de Florença" VII, 1). Com efeito, as
ações "fundadas sobre bem comum" não proporcionam àqueles que as levam a efeito
"partidários que para a utilidade própria os seguem" ("História de Florença"
VII, 1) e, portanto, não oferecem aos odii grandissimi a ocasião de se
transformarem numa luta cruenta e destrutiva, como acontece, pelo contrário,
nos "modos privados" dos quais nascem as sètte.
A tese do "sábio legislador", enunciada no primeiro capítulo do Livro III e
retomada igualmente no capítulo I do Livro IV, encontra a solução no capítulo I
do Livro VII. Depois de haver reconhecido que a ruína das repúblicas se deve à
violência dos conflitos sociais, Maquiavel identifica a causa primeira desta
violência nas condições que permitem a formação das sèttee dos partigiani que
inevitavelmente as acompanham. Não é o caso, pois, de uma capitulação à solução
espartana - de encontrar a resolução dos conflitos na ação providencial de um
sábio legislador - nem de uma vitória da "lógica principesca" sobre a "lógica
republicana", e sim da reafirmação de sua convicção de que os conflitos são
inseparáveis da vida republicana e, portanto, que não se trata de aniquilá-los,
mas de opor-se aos "modos privados", os quais se utilizam das divisões em
vantagem própria. No fundo, é uma dura condenação dos homens políticos de
Florença: considerando que é possível "anular as ordenações que alimentam as
sètte e prender aqueles que não estão em conformidade com a verdadeira vida
livre e civil", a cidade teria podido ter "melhor fortuna" se tivesse
providenciado e adotado em tempo "melhores ordenações" ("História de Florença"
III, 5).14