Ideia, ser objetivo e realidade objetiva nas "Meditações" de Descartes
A análise da teoria das ideias cartesiana tem várias portas de entrada: as
medievais como, por exemplo, a noção de ser objetivo, introduzida por Scotus e
tematizada pelo seu discípulo Alnwick, a de conceito formal e de conceito
objetivo, difundida por Suarez, e ainda mesmo as análises modernas como a noção
de inexistência intencional ou de objetividade imanente de Brentano que,
inspirada em concepções escolásticas, teve enorme influência na filosofia do
século XX.
Neste artigo, não pretendemos realizar um estudo histórico sobre as influências
medievais na teoria cartesiana das ideias nem sobre o impacto e a relevância
dela nos sistemas pós-cartesianos. É fato que Descartes retomou e reinterpretou
noções escolásticas e por isso mesmo foi fortemente influenciado por elas.
Dessa maneira, sua teoria das ideias não só contribuiu para uma valoração
retrospectiva de certas teses da filosofia medieval, como também trouxe à tona
questões que se tornaram determinantes para a filosofia moderna. Refiro-me, em
particular, à questão do 'acesso' ou da percepção do mundo
exterior. Quais seriam os objetos imediatos do conhecimento: seriam as coisas
'fora' da mente ou as próprias ideias, no sentido cartesiano do
termo 'ideia'? O objeto imediato do intelecto seria o conteúdo da
ideia, aquilo que a ideia exibe na mente? Ou seria a própria coisa, isto é, a
coisa tornada objeto para o cognoscente em razão das operações do intelecto? O
Realismo Direto e o Representacionalismo1 são interpretações que dão respostas
alternativas a essas questões.
Em uma carta Descartes escreve:2
Pois estando certo que eu não posso ter conhecimento algum do que
está fora de mim senão através das ideias dessas coisas que tive em
mim, eu me preservo [je me garde bien] de relacionar meus juízos
imediatamente às coisas e de nada lhes atribuir de positivo que não
perceba anteriormente em suas ideias […].3
À primeira vista este texto parece sustentar a interpretação
representacionalista: mediante as ideias seriam apreendidas as coisas
'fora' da mente. No entanto, as ideias não são consideradas como
objetos imediatamente cognoscíveis, mas como meios: se algo é apreendido
'fora' de mim, é apreendido mediante uma ideia. Dessa maneira, o
texto não exclui nem corrobora a interpretação Representacionalista ou a
Realista Direta. Ele apenas reitera uma tese inquestionável para o
cartesianismo: as ideias, imanentes ao pensamento (em mim), são ideias de
coisas.4 Mas a questão da natureza das coisas das quais se têm ideias não fica
esclarecida: elas seriam entes objetivos que existem intencionalmente no
pensamento e permitem o acesso mediato às coisas 'fora' da mente ou
seriam as coisas mesmas, visadas e apreendidas pelo pensamento, que podem
existir independentemente da mente?
Ao formular uma objeção a Descartes, Caterus, autor das Primeiras Objeções,
explica, segundo sua perspectiva, o significado do termo "ideia" e o de "ser
objetivo": "O que é ser uma ideia? É a própria coisa pensada enquanto ela
existe (est) objetivamente no intelecto. Mas o que é ser objetivamente no
intelecto? Apreendi há muito tempo: é terminar o próprio ato do intelecto à
maneira de um objeto" (AT, VII, "Primae Objectiones", p. 92; AT, IX-
1 "Premières Objections", p. 74).
Na sua resposta, Descartes afirma que não concorda com o significado dado por
Caterus à noção de "ser objetivo": "E lá ser objetivamente no intelecto não
significará terminar sua operação à maneira de um objeto, mas ser no intelecto
à maneira que os seus objetos têm o costume de aí existir (ser) […]" (AT, VII,
"Primae Responsiones", p. 102; AT, IX-1, "Premières Réponses", p. 82).
Caterus parece assumir uma posição característica de uma forma de Realismo
Direto. Descartes discorda de Caterus. Estará discordando do Realismo Direto?
Esclarecer as noções ser objetivo e realidade objetiva em Descartes e, em razão
disso, responder às questões acima enunciadas, é o objetivo desse artigo.5
Respondendo a duas objeções ao "Discurso do método", Descartes, no Prefácio à
edição latina das "Meditações", escreve:
Mas, eu respondo que nesta palavra 'ideia' há um
equívoco, pois ou ela pode ser tomada materialmente por uma operação
do meu intelecto e neste sentido não se pode dizer que ela seja mais
perfeita do que eu, ou ela pode ser tomada objetivamente pela coisa
que é representada por esta operação, coisa que embora não se suponha
que ela exista fora do meu intelecto, pode, entretanto, ser mais
perfeita do que eu, em razão da sua essência.6 (AT, VII,
"Meditationes", p. 8)
Ao pretender eliminar a ambiguidade do termo 'ideia', Descartes
parece ter engendrado uma nova dificuldade: segundo o texto acima citado, ou
bem a noção de ideia é um ato uno7 decomposto em duas relações ou em dois
aspectos complementares ou bem "ideia" teria dois sentidos distintos: a
operação representativa do intelecto e a coisa pensada. Note-se que o termo
"coisa pensada" é ambíguo. Ele tanto pode significar a coisa fora da mente,
visada e percebida pelo intelecto, como pode significar a coisa no intelecto
(ser objetivo).8
Na primeira interpretação do termo 'ideia', o ato representativo do
intelecto pode ser analisado em um duplo aspecto: considerado materialmente,
ele é analisado em sua relação com o intelecto; considerado objetivamente, ele
significa a coisa exibida pela ideia. É a operação do intelecto ou a realização
do ato que é representativo, pois ele exibe uma coisa que, dessa maneira, se
torna uma coisa inteligida ou pensada, isto é, um objeto para o intelecto. A
coisa exibida pela ideia não precisaria existir 'fora' do intelecto
para ser representada como coisa. O que a ideia exibe como coisa, quer exista
quer não, pode ter uma essência, num sentido minimalista de essência: não é um
ente fictício nem um ente de razão.
Na segunda interpretação, 'ideia' teria um duplo significado:
poderia ser considerada ou bem como a operação representativa do intelecto ou
bem como a coisa representada.9 Aparentemente, essa segunda interpretação em
pouco difere da primeira. No entanto, por distinguir dois significados de
ideia, ela traz à tona a questão do estatuto da natureza da coisa pensada. Ela
seria uma entidade que independe da operação representativa? Obviamente, não há
coisa pensada que não seja pensada pelo intelecto; portanto, que não seja
exibida pelo pensamento. Mas o objeto do pensamento é a coisa no pensamento ou
é a coisa mesma visada pelo pensamento?
A segunda interpretação suscita de imediato uma série de questões que
alimentaram e ainda alimentam o debate entre as interpretações realistas
diretas e representacionalistas: qual seria a relação da ideia, enquanto coisa
pensada, com a ideia considerada como operação do intelecto? Qual seria a
relação da coisa pensada com a coisa, seja esta uma mera essência ou uma coisa
existente? A coisa pensada, a coisa no pensamento, é um tertium quid, um
intermediário entre a operação representativa e a própria coisa ou seria a
própria coisa, apreendida pela operação representativa?
Na 3ª Meditação, após afirmar que todos os modos do pensamento envolvem ideias
e que ideias são pensamentos de coisas,10 o que realça a intencionalidade do
pensamento, Descartes caracteriza as ideias "como imagens de coisas" (AT, VII,
"Meditationes", p. 37; AT, IX-1, "Méditations", p. 29), o que sublinha, desta
vez, a função representativa das ideias.
Esta última caracterização suscita uma pergunta: é a operação ou a coisa no
pensamento que exerce a função representativa? Se a ideia é um ato único,
decomposta em dois aspectos complementares, então seria plausível afirmar que a
operação do intelecto exerce a função representativa, pois, no seu termo ela
exibe uma coisa que, dessa maneira, se torna um objeto para o intelecto. É o
ato que intelige que é representativo e não a coisa inteligida. Sob este
aspecto, representar significa exibir ou apresentar uma coisa-objeto para o
intelecto. Assim, ao invés de ser considerada como uma espécie de um quadro
pictórico ou de um quadro mudo, a ideia é "como imagens de coisas" porque num
único ato visa e exibe coisas para o intelecto.
Se, no entanto, a ideia tem dois significados distintos, operação do intelecto
e coisa no pensamento, seria plausível, embora não necessário, considerar a
coisa pensada no intelecto como uma imagem inteligível ou um substituto no
intelecto da própria coisa. A essa hipótese, poderia ser acrescentado outro
passo decisivo: a coisa no pensamento poderia ser considerada o objeto
imediato11 de cada um dos nossos pensamentos, uma espécie de intermediário
entre a operação do intelecto e a coisa mesma. A interpretação
Representacionalista estaria, nesse caso, sendo assumida.
Na 3ª Meditação, Descartes dará uma resposta provisória às questões acima
formuladas. A resposta é provisória porque contextual: é num quadro cético e
solipsista que na 3ª Meditação é analisada a noção de ideia. O que nesse
contexto pode ser dito sobre as coisas das quais temos ideias? Já que a
realidade e a existência de coisas 'fora' ou independentes da mente
estão postas em questão pelas dúvidas formuladas na 1ª Meditação, como explicar
o que são as coisas das quais temos ideias? A resposta a esta pergunta tem que
levar em conta o contexto em que ela é formulada. A indubitabilidade do Cogito,
provada na 2ª Meditação, se propaga aos atos cogitativos ou aos modos do
pensamento (AT, VII, Objectiones Tertiae, Objectio II, Responsio; AT, IX-1,
Objection II, Réponse). Dentre os diversos modos de pensar, a ideia é um modo
prioritário (AT, VII, "Meditationes", p. 37; AT, IX-1, "Méditations", p. 29),
pois todos os outros modos, como, por exemplo, as ações da vontade, envolvem
uma ideia. Portanto, é indubitável e verdadeiro que penso em coisas ou que
tenho ideias de coisas, mas é dubitável que as coisas das quais tenho ideias
independam do pensamento. Daí se segue que as coisas das quais temos ideias têm
que ser provisoriamente consideradas como coisas no pensamento, pois a
existência delas 'fora' do pensamento é dubitável.
Nesse contexto cético e solipsista, Descartes explicita a caracterização de
ideia formulada no Prefácio à edição latina das "Meditações". Consideradas do
ponto de vista da sua realidade formal, as ideias são seres reais e positivos,
modos do pensamento e todas parecem proceder da res cogitans da mesma maneira:
elas são operações da mente e, enquanto tais, elas não se diferenciam. Mas, diz
o texto latino "mas enquanto uma representa uma coisa, outra, outra coisa, é
evidente que essas mesmas ideias são bastante diferentes umas das outras." (AT,
VII, "Meditationes", p. 40). A tradução francesa desse texto acrescenta a
palavra "imagem": as ideias representam coisas porque são imagens de coisas: "
[…] mas, considerando-as (as ideias) como imagens, dentre as quais algumas
representam uma coisa e as outras uma outra, é evidente que elas são bastante
diferentes entre si" (Descartes, 1962, p. 143, grifo meu). Mas por que seriam
imagens?12 Em razão de exibirem coisas no pensamento?
Analisada do ponto de vista do seu conteúdo ou ideato, a noção de ideia
possibilita a introdução de duas noções decisivas: a noção de realidade
objetiva e a de ser objetivo. Como já foi dito, as coisas exibidas pelas ideias
permitem diferenciar as ideias entre si. Isso parece ser uma razão para afirmar
que as coisas que no pensamento permitem diferenciar as ideias não são "um puro
nada", isto é, são entes que estão ou existem no pensamento como objetos. Daí
serem denominados entes objetivos.
Se as ideias se distinguem entre si pelos diferentes objetos que exibem e por
isso eles são considerados entes objetivos, então entes de razão também
poderiam ser considerados entes objetivos, na medida em que são objetos de
ideias. É o que afirma, por exemplo, Eustachio de S. Paulo,13 escolástico que
Descartes apreciou,14 que identificou esse objectivum com objeto do
intelecto.15 Nesse caso, ser objetivo significa apenas ser objeto do intelecto,
ou terminar o ato do intelecto, como escreve Caietano.16 Dessa maneira, entes
de razão seriam os entes objetivos que não têm ser além do pensamento.17 Mas,
entes de razão devem ser considerados como 'um puro nada', pois
fabricados pela razão, não podem ter realidade formal ou atual.
A análise imanente da ideia no contexto cético da 3ª Meditação não impede que
os objetos das ideias sejam denominados entes objetivos, isto é, objetos que
estão no intelecto. Mas se a diferença entre as ideias se apoia exclusivamente
no fato de que as ideias exibem no intelecto diferentes objetos, não se pode
extrair dessa afirmação que os objetos das ideias não são 'um puro
nada', pois entes de razão são entes objetivos e são um 'puro
nada'.
De fato, a tese cartesiana na 3ª Meditação não é a de que as ideias são
diferentes somente em razão dos objetos que exibem, mas elas se diferenciam em
razão dos graus de perfeição que os seus objetos têm no pensamento. Descartes
constata, como se fosse um fato, que a ideia de substância tem maior grau de
perfeição do que as ideias de modo e a ideia de substância infinita maior grau
de perfeição do que a ideia de substância finita.
Mas, considerando-as (as ideias) como imagens, dentre as quais
algumas representam uma coisa e as outras uma outra, é evidente que
elas são bastante diferentes entre si. Pois, com efeito, (Nam
proculdubio, na versão latina) aquelas que me representam substâncias
são, sem dúvida, algo mais e contêm em si (por assim falar) mais
realidade objetiva, isto é, participam por representação [acréscimo
da versão francesa] num maior número de graus de ser ou de perfeição
do que aquelas que representam modos ou acidentes. (Descartes, 1962,
"Meditações", p. 142; AT, VII, "Meditationes", p. 40; AT, IX-1,
"Méditations", p. 32; grifo meu)
Nem sempre Descartes distingue a noção de realidade objetivada deser objetivo.
A versão francesa da Exposição Geométrica (AT, IX-1, Séconde Réponses, def.
III) define Realidade Objetiva como a entidade ou o ser da coisa representada
pela ideia, o que permitiria assimilar as noções de realidade objetiva e de ser
objetivo. O texto latino é mais conciso: realidade objetiva é caracterizada
como a entidade da coisa representada pela ideia, o que sugere a distinção
entre ser objetivo de realidade objetiva (AT, VII, Secundae Responsiones, def.
III).
O texto cartesiano não exclui a distinção entre essas duas noções: a noção de
ser objetivo referir-se-ia ao objeto da ideia que está ou existe no pensamento;
a noção de realidade objetiva significaria o grau de perfeição ou de realidade
do ser objetivo. Assim, em uma interpretação minimalista, "ser objetivo"
significaria tão somente o objeto do intelecto exibido ou representado pela
ideia, pois sua noção não envolve nem é dependente da noção de realidade
objetiva. Certa tradição medieval considerou ser objetivo como um ser de razão,
uma denominação extrínseca à realidade da coisa. Ser objeto do intelecto não
implicaria ter uma realidade ou uma perfeição no intelecto. Quais seriam,
então, as razões de Descartes para afirmar que certos objetos do intelecto têm
graus de perfeição?
Na Exposição Geométrica (AT, VII, Secundae Responsiones, Axioma 6; AT, IX-1,
Secondes Réponses, Axioma 6), Descartes sugere uma resposta a essa pergunta:
parece evidente que a substância infinita tem um grau de perfeição maior do que
a substância finita e as substâncias graus maiores do que os seus modos. Essa
tese, que remonta à ontologia aristotélica, não suscita, ao menos no contexto
da recepção medieval do aristotelismo, objeções relevantes. Mas, Descartes
extrai dela uma consequência significativa: por isso ('Ideoque' no
texto latino; 'C'est pourquoi'segundo a versão francesa) a
ideia de substância infinita tem um grau maior de perfeição do que a ideia de
substância finita e esta um grau maior do que a ideia de modo. Segundo o Axioma
6, o grau de realidade ou de perfeição dos seres objetivos seria derivado do
grau de realidade dos entes atuais ou formais (entes em si).
Este argumento suscita objeções óbvias: ele não pode ser válido no contexto
cético da 3ª Meditação, onde a dúvida sobre o mundo externo e a dúvida
metafísica ainda não foram eliminadas. No entanto, do ponto de vista do sistema
completo das "Meditações", quando as dúvidas acima citadas já tiverem sido
eliminadas, segundo uma teoria causal das ideias, o argumento poderia ser
considerado plausível à condição que tenha sido demonstrado que os seres
objetivos têm realidade e, por conseguinte, graus de perfeição. De fato, o
argumento apresentado pelo Axioma 6 da Exposição Geométrica hierarquiza graus
de perfeição, o que pressupõe que seja correta a afirmação de que os seres
objetivos, como os entes que têm uma realidade atual ou formal, tenham também
realidade ou perfeição no pensamento.
Nas Respostas às Primeiras Objeções às "Meditações", formuladas por Caterus
(AT, VII, pp. 101-121; AT, IX-1, pp. 81-95), Descartes procura esclarecer o
significado e a função do termo ser objetivo e justificar a tese de que as
ideias contêm uma realidade objetiva. O contexto desse debate não é o mesmo da
3ª Meditação. A dúvida sobre a existência do mundo exterior não é levada em
consideração. Questiona-se, inicialmente, se as ideias são submetidas ao
princípio de causalidade. Se elas têm uma realidade objetiva, então, em
princípio, seria legítima a pergunta sobre a causa das ideias.
A estratégia de Caterus é a de assumir teses cartesianas e mostrar, em seguida,
que estas teses conduzem a conclusões que Descartes não poderia aceitar, pois
se as aceitasse, a coerência do seu sistema estaria comprometida. O ponto de
partida do debate é a definição de ideia, atribuída por Caterus a Descartes e
que Descartes assume como sua, embora, ao que parece, jamais a tenha
explicitamente formulado (AT, VII, Primae Objectiones, p. 92, l.13-14; AT, IX-
1, Premières Objections, p. 74). A ideia, escreve Caterus, é a coisa pensada
enquanto existe (ou está) objetivamente no intelecto.18 Ser objetivamente no
intelecto é terminar como objeto o próprio ato do intelecto.19 Assim, ser
objetivo é a própria coisa enquanto objeto do intelecto. Caterus formula, dessa
maneira, uma versão simples e talvez convincente do Realismo Direto: a operação
representativa ou perceptiva do intelecto termina ao apreender uma coisa, que
se torna, graças a essa apreensão, um objeto para o pensamento. A noção de ser
objetivo exprimiria apenas a intencionalidade do pensamento. Quando penso no
sol, não penso na ideia do sol, mas no próprio sol, que se tornou objeto para o
meu pensamento, graças à operação representativa. Dessa maneira, a
representação seria uma relação diádica: de um lado as operações
representativas do sujeito cognoscente, de outro, a própria coisa. Obviamente,
a coisa pensada pode ser pensada sem que exista atualmente ou formalmente.
O ser objetivo é uma relação extrínseca à própria coisa, explica Caterus. Nada
ocorre à coisa pelo fato dela ser pensada. Assim, ser visto não altera a
realidade daquilo que é visto, ser pensado não modifica a coisa que é pensada,
embora seja uma modificação acidental do sujeito que pensa. Pode-se, portanto,
investigar a causa das coisas ou do sujeito pensante que tem a faculdade de
apreender as coisas, mas não tem sentido investigar as causas do ser objetivo,
que é uma mera denominação, conclui Caterus, se opondo, dessa maneira, à tese
cartesiana.
Além disso, se o termo "nada" é usado para designar as coisas que não têm ser
atual ou formal, ser objetivo é um puro nada, como são os entes de razão, na
medida em que está no pensamento apenas como uma denominação extrínseca das
coisas visadas ou percebidas pelo intelecto. No entanto, concede Caterus, se
"nada" significa seres fictícios, o ser objetivo não pode ser considerado um
mero nada, pois ele é o termo de uma operação real do cognoscente.
Note-se que, segundo Descartes, porque pensamos em coisas, isto é, porque temos
ideias de coisas, somos imediatamente conscientes de nossos pensamentos. Daí se
segue que se pode conceber claramente a operação representativa e o seu termo,
isto é, o ser objetivo. Sobre este ponto, não há divergência entre Descartes e
Caterus. Mas, o que é claramente concebido é a operação representativa que
exibe um objeto no termo da sua ação. Conclui, então, Caterus, o ente objetivo
pode ser claramente concebido enquanto termo de uma operação representativa,
que é um modo do sujeito cognoscente. No entanto, pelo fato de poder ser
claramente concebido, não se segue que não depende do pensamento, pois,
enquanto denominação extrínseca, o seu ser é de ser pensado, não tendo,
portanto, realidade formal ou atual. Assim, o ser objetivo não necessita de
causa, pois segundo o escolástico Caterus, só seres atuais são submetidos ao
princípio de causalidade.
As objeções de Caterus, que partira de uma caracterização de ideia cartesiana,
retomam algumas análises escolásticas, essencialmente tomistas, da noção de ser
objetivo. Elas atestam a ambiguidade dessa noção que, desde Scotus e do seu
discípulo Alnwick, suscita uma diversidade de interpretações.20
A resposta de Descartes a Caterus vai se apoiar em duas considerações
complementares e mutuamente imbricadas:
a) ser objetivo é um modo de ser distinto do modo de ser formal ou atual. As
ideias, enquanto operações do sujeito cognoscente, têm uma realidade formal, a
de ser um modo ou um acidente do sujeito cognoscente. As coisas que existem
'fora' do pensamento são substâncias ou afecções de substâncias21 e
têm, portanto, uma realidade formal ou atual. O ser objetivo, no entanto,
embora seja um ens diminutum, tem outro modo de ser. Assim, mediante a noção de
ser objetivo e de realidade objetiva, a ontologia cartesiana reconhece dois
modos de ser independentes: uma coisa pode ter um ser formal e não ter um ser
objetivo; por sua vez, um ser objetivo pode não ter um correlato formal, embora
a sua causa última seja uma realidade formal.22
b) o ser objetivo tem certa autonomia ontológica em relação à realidade formal
da ideia que o exibe. De um lado, ele é sempre exibido por uma ideia: se x é um
ser objetivo, existe uma ideia de x.23 Sob este aspecto, o ser objetivo depende
da operação representativa. Por outro lado, em certos casos (o das essências
matemáticas, por exemplo), ele independe de um correlato formal no mundo para
ter uma natureza ou essência. Ele contém, assim, propriedades necessárias que
independem quer da realidade formal das ideias, quer da realidade atual das
coisas. Analisando as essências matemáticas exibidas pelas ideias, H. Gouhier
usa uma expressão que pode caracterizar certos gêneros de entes objetivos: as
ideias das essências matemáticas, escreve H. Gouhier, "estão em mim sem serem
de mim".24 É a autonomia ontológica do ser objetivo face à realidade formal da
ideia que torna compreensível a afirmação cartesiana de que o sujeito
cognoscente pode conter uma ideia (considerada objetivamente) mais perfeita do
que ele.
Ao contrário do que objetara Caterus, ser objetivo, segundo Descartes, não
significa terminar como objeto a operação do intelecto, mas existir no
intelecto da maneira pela qual objetos têm o hábito de aí existir. O que seria
a ideia do sol?
[…] é o próprio sol existindo no intelecto, não formalmente como no
céu, mas objetivamente, isto é, da maneira pela qual os objetos têm o
costume de aí existir; certamente esse modo de ser é bem menos
perfeito do que aquele pelo qual as coisas fora do intelecto existem,
mas disso não se segue que sejam um puro nada, como já escrevi antes.
(AT, VII, Primae Responsiones, pp. 102-103; AT, IX-1, Premières
Réponses, p. 82; grifo meu)
O ser objetivo da ideia do sol pode ser uma denominação extrínseca em relação
ao próprio sol, pois nada ocorre ao sol, enquanto existe formalmente no céu,
pelo fato de ser pensado. Mas, segundo Descartes, o ser objetivo da ideia do
sol não significa apenas que o intelecto percebe ou apreende o sol como objeto,
mas significa que próprio sol, visado e apreendido, tem uma existência objetiva
no intelecto. Nesse sentido, o ser objetivo do sol não pode ser considerado um
puro nada nem ter o nada como origem. É um modo de ser imperfeito, mas enquanto
tal, está submetido ao princípio de causalidade.
Afirmar que o ser objetivo, como faz Caterus, não é um ser atual ou formal, não
é uma objeção, mas ao contrário, uma corroboração da tese cartesiana sobre o
significado de ser objetivo. Afirmar que o ser objetivo pode ser distintamente
concebido, como vimos, também não é uma objeção ao cartesianismo. Afirmar, em
seguida, que embora seja distintamente concebido, o ser objetivo não precisa de
uma explicação causal seria um contrassenso, caso o ser objetivo fosse, como
Descartes pretende, uma realidade com graus de perfeição no pensamento.
Se as críticas de Caterus a Descartes expressam as habituais concepções
escolásticas sobre a noção de ser objetivo, a resposta de Descartes a Caterus
ainda não é conclusiva, pois ela não formula argumentos convincentes que
mostrariam que o ser objetivo é no pensamento um ente real que, sob certo
aspecto, independe da operação representativa e, em certos casos, da existência
do seu correlato formal.
Na 3ª Meditação, a primeira prova da existência de Deus, formulada num contexto
cético e solipsista, supõe que as ideias exibam no pensamento coisas-objetos
que têm graus de realidade ou de perfeição. O texto que introduz a noção de
realidade objetiva deixa transparecer que se trata mais da constatação de um
fato do que da demonstração ou justificação de uma tese: "[…] aquelas [ideias]
que me representam substancias são, sem dúvida, algo mais e contêm em si (por
assim falar) mais realidade objetiva […]" (Descartes, 1962, 3ª Meditação, p.
143; AT, VII, "Meditationes", p. 40; AT, IX-1, "Méditations", pp. 31-32; grifo
meu).
Na 5ª Meditação, a célebre prova ontológica da existência de Deus não recorre
nem ao Princípio de Causalidade, usado habitualmente pelos filósofos medievais,
nem à noção de realidade objetiva, introduzida na 3ª Meditação. Descartes faz
economia de noções filosóficas para adequar melhor sua prova à forma
argumentativa dos matemáticos. Analisando as ideias de objetos matemáticos,
nota-se que dos objetos dessas ideias decorrem necessariamente certas
propriedades. Por exemplo, decorre necessariamente do objeto triângulo que a
soma dos seus ângulos internos seja igual à de dois retos. A verdade dessa
afirmação não depende nem do fato dessa propriedade ter sido apreendida pela
operação representativa nem da existência de um triângulo no mundo.25 Se da
ideia de um objeto decorre necessariamente uma propriedade, essa propriedade é
constitutiva desse objeto.26 Assim, propriedades que decorrem necessariamente
de objetos das ideias pertencem à natureza verdadeira e imutável desse objeto,
pois essa natureza não é fabricada pelo pensamento, não depende da vontade do
sujeito cognoscente, nem precisa existir no mundo para ser considerada
verdadeira e imutável. Elas não são fabricadas pelo intelecto nem adquiridas
pelos sentidos; são representadas por ideias inatas. Isso significa que os
objetos das ideias inatas têm necessariamente no pensamento uma natureza ou
forma ou uma essência determinada e, por conseguinte, não podem ser
considerados um "mero nada". A necessidade dessas propriedades não é uma lei
regulativa da operação representativa; ela é imposta ao pensamento pela
necessidade da natureza da própria coisa pensada (AT, VII, "Meditationes", p.
67; AT, IX-1, "Méditations", p. 53). Por isso essas propriedades e os objetos
que têm essas propriedades são no pensamento entes reais inteligíveis.
Embora restritas à essência dos objetos matemáticos, essas análises mostram que
o ser objetivo tem uma realidade objetiva e daí um grau de perfeição: as
propriedades que decorrem necessariamente desses objetos independem tanto da
operação representativa quanto da realidade formal de coisas extensas que
existem fora do pensamento. E como são consequências necessárias dos objetos
dessas ideias, elas têm no pensamento uma natureza imutável, um grau de
perfeição. Portanto, elas estão em mim, mas não são de mim, como assinalou H.
Gouhier.
Não passou despercebida a Caterus a relação entre as noções de realidade
objetiva e de essência. Para Caterus o que importa é mostrar que as ideias não
são submetidas ao princípio causal. Mas ao menos uma razão (e não uma causa)
tem que ser dada para o fato de que uma ideia tem esta e não aquela realidade
objetiva. O que explica que um pensamento seja um pensamento de x e não de y,
deum homem e não de uma pedra, por exemplo? Caterus formula essa questão usando
a expressão realidade objetiva: "Alguém talvez me dirá: se não dás uma causa
para as ideias, dê ao menos uma razão pela qual esta ideia contém esta
realidade objetiva ao invés de outra" (AT, VII, Primae Objectiones, p. 93; AT,
IX-1, Premières Objections, pp. 74-75; grifo meu).
Uma interpretação tradicional da escola tomista tem uma resposta para essa
pergunta: o conhecimento é uma assimilação de formas e a forma apreendida é uma
forma intencional inteligível (que está no intelecto em razão de uma operação
abstrativa) e é idêntica à forma que determina a essência das coisas. Quando se
pensa em x, pensa-se na forma intencional de x que especificou o ato de
inteligir. Como a forma intencional de x é a mesma forma que a forma de x, ao
se pensar na forma intencional de x, pensa-se na forma real de x.
Caterus, ao responder a questão que formulou, generaliza para todas as ideias o
que Descartes aplicara às ideias dos objetos matemáticos: as ideias representam
essências (entes inteligíveis) e as essências apreendidas são eternas e
verdadeiras. Ao pensar em x penso na essência de x que é diferente, por
hipótese, da essência de y. Com erudição e ironia, conclui Caterus, Davus é
Davus e não é Édipo. Ora, as essências (eternas e verdadeiras), imagina
Caterus, não precisam de causas. Assim, contra Descartes, Caterus teria
mostrado que mesmo se a noção de realidade objetiva fosse assimilada à noção de
essência, isto é, se a noção de realidade objetiva significasse entes
inteligíveis (essências) no intelecto, as ideias, que exibem essências, não
precisariam de causas, pois as essências são eternas. Ora, para Descartes, as
essências são criadas e dependem somente da causalidade divina, ao contrário do
que pensava a tradição medieval, ancorada em Scotus e em Suarez.27
A noção de essência, como se sabe, exerce um papel fundamental no argumento
ontológico da 5ª Meditação,28 assim como a noção de realidade objetiva exercera
nas provas da existência de Deus da 3ª Meditação. Embora importante e com usos
repetidos, são poucos os textos de Descartes, ao contrário da tradição
medieval, que procuram caracterizar a noção de essência. Na Exposição
Geométrica (AT, VII, Secundae Responsiones, Axioma 10; AT, IX-1, Premières
Objections, Axioma 10) é afirmado29 que na ideia de cada coisa está contida uma
existência possível ou necessária. Assim, a essência de uma coisa, representada
por uma ideia, contém ou inclui uma existência possível ou necessária. A
essência dos objetos matemáticos não precisa ser instanciada no mundo para ser
considerada verdadeira e imutável. Ela contém apenas uma existência possível.
Mas Descartes, além da expressão "essência verdadeira e imutável", usa também a
expressão "essência inventada" ou "natureza fictícia ou composta pelo
intelecto".30 Dessa maneira, ocorre implicitamente uma hierarquização das
essências das coisas que são objetos das ideias; é preciso distinguir aquelas
que contêm uma existência necessária das que contêm uma existência possível. E
dentre as que contêm ou incluem uma existência possível, é preciso distinguir
aquelas que são verdadeiras e imutáveis, das que são fabricadas ou compostas
pelo intelecto.
A hierarquização das essências tem uma contrapartida na classificação
cartesiana das ideias em inatas, factícias e adventícias (AT, VII,
"Meditationes", pp. 37-38; AT IX-1, "Méditations", p. 29). Em carta endereçada
a Mersenne, Descartes retoma a classificação formulada nas "Meditações" e
acrescenta: "[…] eu distingui três tipos de ideias; […] certas são adventícias
[…] outras são fabricadas ou factícias, […] outras inatas como a ideia de Deus,
da mente, do corpo, do triângulo e em geral todas aquelas que representam
quaisquer essências verdadeiras, imutáveis e eternas".31
Em outra carta32 endereçada a um destinatário não identificado, analisando as
distinções que reconhece como legítimas, Descartes retoma a questão da noção de
essência. A essência pode ser considerada no pensamento de dois modos
diferentes: seja fazendo abstração de que ela existe ou de que não existe, seja
pensando-a como existente. Por exemplo, pensar em um triângulo e pensar em um
triângulo existente. Do primeiro modo, pode-se distinguir essência de
existência, pois se pode conceber algo que não existe atualmente, como seria o
caso de pensar a rosa no inverno, como respondeu Descartes a uma pergunta de
Burman.33 É a essência objetiva (essência pensada) que pode ser distinguida da
existência, pois, do ponto de vista da existência efetiva, a coisa existente é
a essência existente dessa coisa.34 Nesse caso, essência e existência não podem
ser distinguidas.35 Finalmente, conclui Descartes: a essência objetiva (a
essência pensada) se distingue realmente da essência existente: "Como também
quando por essência inteligimos a coisa enquanto existe objetivamente no
intelecto e por existência a mesma coisa enquanto existe fora do pensamento, é
evidente que estas duas coisas são realmente distintas".36
Essas afirmações de Descartes realçam a tese de que uma mesma coisa (ou a
essência de uma mesma coisa) pode ter um duplo modo de existência: uma
existência objetiva no pensamento pela ideia e uma existência atual ou formal.
Obviamente, sem outras considerações, não se pode deduzir da existência
objetiva de uma coisa o seu correlato atual ou formal e vice-versa.
Se há um duplo modo de existência, qual seria o tipo de relação entre o ser
objetivo de uma coisa e o seu ser formal? Essa questão é importante, pois, quer
tenha ou não um correlato formal ou atual, o ser objetivo é o objeto visado e
percebido pelo cognoscente, graças à operação representativa que o exibe. O que
é imediatamente percebido é o ser objetivo. Se, como sugerem alguns textos de
Descartes, ocorre uma relação de identidade entre o ser objetivo e o seu
correlato formal, caso o correlato formal exista, ao se perceber o ser objetivo
x, ipso facto percebe-se xna sua realidade formal ou atual.
Descartes afirmou que pensar em um objeto (triângulo) e pensar sua existência
(triângulo existente) são dois pensamentos que se distinguem modalmente. Em uma
coisa efetivamente existente, a essência desta coisa não pode ser separada de
sua existência, pois a existência da coisa é a essência existente da própria
coisa. Mas, entre a essência objetiva de uma coisa e a existência atual fora do
pensamento dessa coisa, ou entre a essência objetiva e a essência existente, há
entre elas uma distinção real.37
Se o ser objetivo e o seu correlato forem realmente distintos, eles não podem
ser numericamente idênticos, pois a identidade numérica não parece ser
compatível com a distinção real entre dois entes. Como aplicar o princípio dos
indiscerníveis, que caracteriza a identidade, ao ser objetivo e ao seu
correlato formal, caso o correlato seja uma coisa extensa? A ideia do sol, por
exemplo, não tem as propriedades da extensão e o sol na natureza não tem as
propriedades do atributo pensamento. Ora, duas coisas numericamente idênticas
satisfazem ao Princípio dos Indiscerníveis. Duas coisas realmente distintas
(como, por exemplo, o sol e a ideia do sol) não satisfazem ao Princípio dos
Indiscerníveis. Donde, duas coisas realmente distintas não são numericamente
idênticas.
Dessa maneira, é implausível considerar que a relação entre o ser objetivo e o
seu correlato extenso seja uma relação de identidade numérica. Talvez esta
relação devesse ser interpretada como uma relação de similitude, pois as
ideias, segundo a 3ª Meditação, são "como imagens de coisas".38 Mas a ideia é
uma representação na medida em que é considerada como uma operação cognitiva
que exibe um objeto. Além disso, nos seus textos filosóficos, Descartes não
analisou a noção de similitude,39 ao contrário, por exemplo, de Tomás de Aquino
que inúmeras vezes usou este termo em sua obra e explicou o significado da
expressão "similitude por representação".40 De fato, não seria uma tarefa fácil
dar um sentido preciso à relação de similitude entre dois entes realmente
distintos, tendo em vista que "similitude" é uma relação simétrica, ao
contrario de "representação" que, na maioria dos casos, é uma relação
assimétrica.
Mas há outra via para explicar a relação entre ser objetivo e o seu correlato
formal, caso ele exista. O intelecto percebe imediatamente tudo o que nele
ocorre. Ao perceber imediatamente, através de uma ideia inata, a realidade
objetiva (ou essência) do ser objetivo, o intelecto apreende algo que não
depende do pensamento humano, mesmo que não exista efetivamente
'fora' do pensamento. Mas quando apreende por uma ideia inata a
essência de um ser objetivo e se esta essência existe efetivamente, ele
apreende a mesma essência que está objetivamente no pensamento e que existe
efetivamente fora do pensamento, caso a essência seja considerada sem os seus
modos diferentes de existir. De fato, a essência do ser objetivo e a do seu
correlato formal extenso são realmente distintas não em razão da sua natureza,
que é a mesma, mas em razão dos seus modos de existir: no pensamento e na
realidade efetiva. Assim, perceber um ser objetivo, mediante uma ideia inata, é
perceber o que é a própria coisa, seja ela meramente possível ou atual.
Se x é um ser objetivo e tem um correlato formal y, perceber x, mediante uma
ideia inata, equivale a perceber y, pois ambos têm a mesma essência; xe y se
distinguem realmente e não são, portanto, idênticos numericamente. Mas são
distintos, não em razão das suas essências, que são idênticas quando
abstratamente consideradas, mas em razão dos seus modos de ser diferentes:
objetivo e formal.
A percepção imediata do ser objetivo exibido por uma ideia41 acarreta a
percepção imediata da essência do seu correlato formal, caso ele exista, pois
como vimos, a essência representada por uma ideia inata é idêntica à do seu
correlato formal, caso seja deixado de lado o modo de ser, objetivo ou formal,
da essência. Dessa maneira, o ente objetivo não é um intermediário, um tertium
quid, entre o sujeito cognoscente e a própria coisa. Assim, a tese do acesso
direto às coisas mesmas não é incompatível com a tese do 'acesso'
imediato ao ser objetivo. Sob este aspecto, a teoria cartesiana é uma forma de
Realismo Direto.
No entanto, é preciso distinguir a questão da percepção da essência de uma
coisa externa da questão da prova da existência de coisas.
Os entes objetivos são entes reais no pensamento. Nesse sentido, como tudo o
que é real, eles são também submetidos ao princípio causal (AT, VII,
"Meditationes", p. 42; AT, IX-1, "Méditations", pp. 32-33). Mas, em princípio,
uma ideia pode ser causa de outras ideias (AT VII, "Meditationes", pp. 43-45;
AT, IX-1, "Méditations", pp. 34-35). Esse nexo causal entre as ideias não pode
se prolongar ao infinito, afirma Descartes (AT, VII, "Meditationes", p. 42; AT,
IX-1, "Méditations", p. 33). É preciso chegar a uma ideia cuja realidade
objetiva tenha como causa uma realidade formal, que contenha, ao menos, tanta
perfeição formal quanto a perfeição objetiva da ideia, pois é da natureza das
ideias, ao menos as primeiras e originais, terem como causa uma realidade
formal.42
As provas da existência de Deus na 3ª Meditação usam o princípio de causalidade
aplicado à realidade objetiva das ideias. Na 6ª Meditação, a prova da
existência dos corpos é também uma prova inferencial de existência. No entanto,
tendo em vista a indeterminação do grau de realidade objetiva das ideias
sensíveis, não é possível inferir da sua questionável realidade objetiva a
realidade formal da coisa.43 O ponto de partida da prova da existência dos
corpos é a consciência da receptividade e da coerção que caracterizam a
consciência sensível.44 Após uma sequência de argumentos que envolvem outras
premissas e teses, dentre as quais a tese da distinção real entre o pensamento
e a extensão e a tese da Veracidade Divina, o princípio de causalidade é usado
para provar que algo exterior ao sujeito pensante (e de natureza diferente
dele, em razão da distinção real), os corpos extensos, são causas das ideias
sensíveis e, portanto, existem. Sob este aspecto, a teoria cartesiana poderia
ser interpretada como um Representacionalismo inferencial, pois as provas de
existência da 3ª Meditação e a prova das coisas extensas, usando o princípio de
causalidade, inferem a partir de dados imanentes do pensamento a existência de
realidades formais atuais.
Mas nem todas as provas de existência das "Meditações" são inferenciais: nem o
Cogito nem o Argumento Ontológico recorrem, por exemplo, ao Princípio de
Causalidade. Assim, o Representacionalismo realista cartesiano está restrito
nas "Meditações" a algumas provas de existência: a da existência de Deus,
formulada no contexto cético da 3ª Meditação, e à prova da existência dos
corpos extensos.
Na teoria cartesiana, as interpretações Realista Direta e Representacionalista
inferencial, aplicadas a questões distintas, convivem harmonicamente. O
reconhecimento de dois modos de existência, objetivo e formal, são distinções
conhecidas e assumidas pelos medievais. Mas a superação do ceticismo e a prova
da existência de coisas extensas, graças ao princípio de causalidade, tendo
como ponto de partida os dados intencionais e imanentes ao intelecto parece ser
uma contribuição original e decisiva da filosofia primeira de Descartes.