HABITUS E VIRTUDE EM PEDRO ABELARDO: UMA DUPLA HERANÇA
1 Introdução
A ética de Pedro Abelardo sofre influências variadas, tanto da Escritura e dos
Padres da Igreja, quanto dos pensadores pagãos. Entretanto, não há dúvida de
que a sua teoria da virtude é inspirada pelos seus predecessores filósofos.
Mesmo assim, pode ter alguma hesitação, segundo o texto estudado, no que se
refere à fonte exata, da qual Abelardo extrai a sua própria concepção da
virtude. Enquanto parece clara que a descrição feita na "Ethica sive Scito
teipsum" ("Ética ou Conhece-te a ti mesmo")1 ou no "Sic et non"2 seja de
caráter aristotélico, a encontrada no "Dialogus"3 já não é tão manifesta. Nesse
último caso, as influências são diversas, notadamente estoica. Por outro lado,
quando examinamos os tratados de lógica do autor em estudo, a análise com
relação à natureza ontológica da virtude aproxima-se da de Aristóteles. Em
outras palavras, Abelardo mostra-se, no conjunto, favorável à teoria da virtude
proposta pelo Estagirita, ainda que o contexto, no qual a sua própria concepção
aparece, e muitas das suas especificidades sejam claramente de natureza
estoica.
No presente estudo, pretendemos esclarecer essa questão, mostrando a influência
precisa exercida por cada um desses principais protagonistas na concepção
abelardiana da virtude. Em outros termos, trata-se de deixar claro o que é a
ascendência de Aristóteles e dos diferentes filósofos estoicos sobre a
descrição feita por Abelardo, em vários dos seus tratados, dessa qualidade
meritória. Em primeiro lugar, examinamos o essencial da definição da virtude
como habitus, tal como é apresentada por nosso autor na sua obra de lógica.
Neste caso, é preciso remontar ao Estagirita das "Categorias" para descobrir a
origem dessa noção polissêmica de habitus (
), a fim de identificar o significado preciso
correspondente à virtude. Em seguida, expomos diferentes descrições da virtude
encontradas em textos éticos e teológicos de Abelardo. Revelam-se então
diferentes características e elementos não somente aristotélicos, mas também de
natureza estoica, sem esquecer o contexto, no qual aparecem essas explicações,
que procede frequentemente da Escola do Pórtico. Em suma, além de identificar
as principais fontes e intermediários usados por Abelardo para elaborar a sua
própria concepção da virtude como habitus, queremos indicar a qual dessas
teorias tem, afinal de contas, a sua preferência.
2 A noção de habitus
O que Abelardo entende exatamente por habitus? Para responder a essa pergunta,
é necessário se referir, sobretudo, aos tratados de lógica do nosso
protagonista, nos quais explica em pormenor a polissemia da noção. Neste
momento, é sem dúvida útil apresentar os dois principais textos lógicos usados
no presente estudo, já que são pouco conhecidos e de acesso difícil.
Primeiro, a "Logica 'Ingredientibus'",4 também conhecida como "Glosas de
Milano", consiste em comentários bastante desenvolvidos sobre uma boa parte da
logica uetus. O título entre aspas, que corresponde à primeira palavra do
tratado, é enganador, dado que parece pouco provável que o conteúdo estava
destinado a iniciantes. Trata-se essencialmente de comentários sobre a
"Isagoge" de Porfírio, as "Categorias" e o "De interpretatione" de Aristóteles
e o "De differentiis topicis" de Boécio.5 Nesses textos, Abelardo
frequentemente expõe suas próprias ideias sobre questões lógicas debatidas
pelos seus contemporâneos. Como é de costume na obra inteira de Abelardo,
notadamente nos textos teológicos, a "Logica 'Ingredientibus'" é revisada e
corrigida no decorrer da vida do seu autor, acabando em um texto conhecido sob
o nome de "Logica 'Nostrorum petitioni sociorum'" ou, às vezes, "Glosas de
Lunel". Hoje perdido em boa parte, o conteúdo deste último tratado restringese
apenas a um comentário elaborado sobre a "Isagoge".6 Além dessas glosas e
comentários, examinamos outro tratado lógico de Abelardo considerado mais
original e conhecido como "Dialectica".7 Em parte incompleto, esse texto de
maturidade, que também comporta várias revisões, expõe as próprias concepções
lógicas do nosso autor.
Examinamos agora o que é dito sobre o habitus na "Logica 'Ingredientibus'". Nas
suas "Glosas sobre as 'Categorias' de Aristóteles" desse tratado, na parte
consagrada aos predicamentos do tempo (quando), do lugar (ubi) e do haver
(habere), Abelardo indica que o termo habere pode ser igualmente tomado, à
maneira de habitus, como um substantivo (nomen). Distingue então três
significados diferentes da palavra habitus. vejamos o trecho em questão.
"Haver" também se toma como nome, à semelhança de "habitus". E esse
habitus possui três significações. De fato, há o habitus que, com a
disposição, é colocado sob a primeira espécie de qualidade. Há
igualmente o habitus <que se opõe> à privação. Enfim, os habitus são
considerados, no mesmo lugar, como propriedades que, segundo o
testemunho de Boécio, vêm das coisas exteriores que possuímos. Por
exemplo, a partir das armas que possuo, tenho alguma propriedade que
se chama "Haver <armas>" ou "estar armado". Na verdade, "estar
armado" não designa aqui uma paixão (afecção),8 pela qual se afirma
"estou armado", "estás armado", mas <designa> certa propriedade, que
é dita "Haver" e <que vem> depois de uma afeição inata, permanente e
não transitória, como é a paixão.9
Entre esses três sentidos de habitus descritos por Abelardo nesse tratado, o
primeiro nos interessa acima de tudo no presente trabalho. Reservamos mais
adiante a sua análise e explicação. Por enquanto, vamos limitar nosso exame aos
dois outros significados de habitus, a fim de ressaltar a diferença com o
primeiro sentido.
A segunda significação refere-se ao habitus em oposição à privação (priuatio).
Esse par constitui uma das quatro duplas de opostos apresentada por Aristóteles
nas "Categorias" 10.10 Esse último sentido de habitus possui uma extensão ao
mesmo tempo maior e distinta, pelo menos em parte, do primeiro.
O Estagirita dá como exemplos de habitus/privatio ([/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0075-gf04.jpg]) a visão, que se opõe à cegueira, e o fato
de ser cabeludo, em oposição a ser calvo.11 Para explicar melhor a significação
do termo habitus em questão, Abelardo afirma que se trata de uma forma de posse
(possessio) ou de haver (habere), quando esse último termo é tomado de maneira
genérica (generalissimum).12
Sem entrar em detalhes, o habitus do primeiro gênero da qualidade distingue-se
do habitus, que se opõe à privação, por seu caráter habitualmente adquirido,
isto é, inatural ou não inato. Essa característica não parece pertencer ao
habitus como posse, que é apresentado, antes, como algo congênito.13
Enfatizamos enfim que Agostinho retoma, mutatis mutandis, esse segundo sentido
de habitus, oposto à privação, para desenvolver a sua famosa concepção
ontológica do mal, como ausência ou privação do bem.14 Como diz o Bispo de
Hipona, seguindo assim de perto, via Plotino, Aristóteles sobre essa questão, a
ausência de algo não é uma coisa.15 A cegueira não é alguma coisa, mas, sim, a
ausência da visão, assim como a calvície é a privação em parte ou em totalidade
de cabelos. O que se opõe a algo não é uma coisa ou o nada (nihil), na medida
em que o nada seria algo.16 Daí o mal, que se opõe ao bem, não constitui uma
entidade ontológica, nem é algo, já que é, antes, uma ausência, ou seja, uma
privação do bem, da mesma maneira que a cegueira, como ausência de visão, não é
algo, mas a ausência da visão. Deus simplesmente não pode criar uma natureza
inteiramente má. Nessa esfera, existe somente, segundo Agostinho, a má vontade
humana ou algo parcialmente corrompido. Em suma, o mal não é somente contrário
ao bem, como o indica Aristóteles nas "Categorias" 10 e 11, enfatizado por
Plotino nas "Enéadas" I, 8, mas também é oposto à posse ou, como diz Abelardo,
ao habitus.
Enfim habitus significa, na terceira divisão, as propriedades exteriores das
coisas. Os exemplos que traz Abelardo correspondem àqueles apresentados por
Aristóteles na seção das "Categorias" 9 sobre o haver ([/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf06.jpg]-habere), tomado de maneira
específica. Nesse sentido preciso, habitus é, sem dúvida, uma maneira de ser
adquirida. O Estagirita também retoma esse significado de habitus na sua
descrição mais desenvolvida do pós-predicamento haver (e[cein), no último
capítulo das "Categorias" 15. Ressaltamos que essa parte final desse tratado
não corresponde exatamente àquela da categoria de haver no capítulo 9. Na
realidade, a descrição, talvez incompleta, encontrada ali representa somente um
dos casos de haver explicados por Aristóteles no capítulo 15.
Na descrição do pós-predicamento haver, existe igualmente, entre os diversos
modos (τρόποɩ-modi) apresentados, um caso que corresponde ao habitus como
primeiro gênero da qualidade. Os outros modos desse mesmo pós-predicamento são
ligados, por um lado, à categoria da quantidade.17 Por exemplo, ter ou haver
1,75 m. Por outro lado, encontra-se um caso relacionado à categoria da relação
como parte/todo.18 Assim, há o exemplo da mão e do pé, como partes de nós que
temos ou possuímos (habere). Salientamos que não se trata, nesse último caso,
do mesmo tipo de relação que o elo que existe entre o universal e o particular,
que é, desta vez, de natureza essencial. Abelardo tem cuidado em distinguir a
relação parte/todo da de inerência, que não é mais extrínseca. Por exemplo, o
branco não pode ser separado do seu substrato sem afetar a própria substância,
ao passo que um braço cortado não muda substancialmente o ser seccionado. Além
dos casos que acabamos de apresentar, Aristóteles ainda menciona outros
exemplos mais secundários que pertencem a esse pós-predicamento "haver".19
Na segunda passagem proveniente, nesta vez, da "Dialectica", Abelardo retoma
essencialmente as mesmas distinções que as examinadas anteriormente na "Logica
'Ingredientibus'". Sob a rubrica De habere da seção intitulada De reliquis
predicamentis (Das outras categorias), Abelardo indica, desde o início, que o
termo habere, tomado em um sentido genérico, é equívoco e que Aristóteles
enumera diferentes modos.
A palavra "habitus" teve várias significações entre os filósofos. De
fato, pusemos que o habitus é, com a disposição, uma espécie da
qualidade. Há igualmente o habitus <que se opõe à> privação, como a
visão, cuja privação é a cegueira. Existe ainda o habitus tomado de
maneira mais geral, que Aristóteles nomeou "haver", e do qual é
preciso agora discutir. Seguindo Aristóteles, identificamos
anteriormente muitos modos que dizem respeito a esse último tipo de
habitus. Quanto ao número desses modos, deve ser atribuído, todavia,
a Aristóteles, por causa do que dissemos anteriormente, ou, antes, a
Boécio, que traduziu as Categorias, ou talvez a outro filósofo? Desde
há muito tempo, existe uma grande dissensão sobre isso.20
É claro que se trata, nesse trecho, das mesmas três significações distintas
descritas por Abelardo na "Logica 'Ingredientibus'". Apesar disso, nosso
protagonista acrescenta, na "Dialectica", que não há certeza acerca do autor na
origem do número de modos encontrados na categoria de haver. Além de mostrar
que Abelardo não possui o texto original grego, nem uma versão latina completa
das "Categorias", o seu comentário indica que existe igualmente um debate
importante entre os pensadores sobre essa questão há muito tempo. Notamos que
Boécio retoma simplesmente, no seu "Comentário sobre as 'Categorias'" 9, as
mesmas palavras que as mantidas por Aristóteles na categoria de haver.
Assinalamos, enfim, que Abelardo examina, no seu "Comentário sobre as
'Categorias' da 'Dialectica'", somente as dez categorias (praedicamenta), o que
inclui assim o habere, mas não distingue esse último do pós-predicamento
homônimo. Para o Abelardo da "Dialectica", o termo "pós-predicamento"
corresponde, antes, àquilo que vem, no "Organon", depois do tratado das
"Categorias", aludindo assim a uma parte do conteúdo do "Peri hermeneias" ("De
interpretatione"), que nomeia De uocibus significatiuis (Das palavras
significativas). Quanto aos próprios pós-predicamentos de Aristóteles, Abelardo
os analisa no seu "Comentário sobre os 'Tópicos' da 'Dialectica'". Enfim, vimos
que nosso protagonista trata, na "Logica 'Ingredientibus'", dos pós-
predicamentos na mesma ordem que a encontrada nas "Categorias" de Aristóteles.
3 Virtude e habitus
Em diferentes lugares da sua obra, Abelardo indica nitidamente que toma
emprestado às "Categorias" de Aristóteles sua concepção da virtude como
habitus. Que seja nos seus tratados de lógica, de ética, de epistemologia, de
psicologia ou de teologia, nosso autor identifica as "Categorias" como sendo a
fonte principal, à qual se refere para desenvolver sua teoria da virtude.
Vejamos o que afirma sobre isso em alguns dos seus textos. Primeiro, na sua
ética intitulada "Dialogo entre um filósofo, um judeu e um cristão":
Filósofo: A virtude, dizem eles (os filósofos), é o melhor habitus do
espírito [...]. De fato, chamamos de habitus o que Aristóteles
distinguiu nas Categorias (VIII) quando reuniu habitus e disposição
na primeira espécie da qualidade. O habitus é, portanto, uma
qualidade da coisa que não lhe é naturalmente inata (insita), mas
conquistada (conquisita) por um esforço deliberado e é dificilmente
passível de alteração. [...] Afirma (Boécio) também que toda virtude
é dificilmente modificável quando explica, no tratado mencionado
acima sobre a qualidade, que Aristóteles coloca ciências e virtudes
entre os habitus. Diz (Boécio): "A não ser que seja difícil de
alterar, não é uma virtude".21
Antes de examinar quais são as principais características da natureza da
virtude segundo Abelardo, vejamos outro extrato sobre o mesmo tema tirado,
desta vez, do "Sic et non" 144.
Aristóteles no seu tratado sobre a qualidade: O habitus difere da
disposição, porque é mais permanente e duradouro. Tais são as
ciências e as virtudes. De fato, a ciência parece <pertencer> a essas
coisas permanentes, que são dificilmente movidas, como se alguém
usava seu saber inteiramente ou em parte, a não ser que uma grande
perturbação aconteça fortuitamente por causa de uma doença ou de algo
parecido. Da mesma maneira, as virtudes, como a justiça ou a
castidade e outra coisa desse gênero, não parecem ser facilmente
mudadas, nem modificadas.22
Encontramos, nesses dois trechos, as principais particularidades da virtude
descritas por Aristóteles nas "Categorias" 8, assim como outras
características, que não estão presentes. Lembramos que, na exceção de uma
parte dos tratados conhecidos sob o nome de logica uetus, Pedro não tem acesso
ao resto da obra do Estagirita, inclusive as éticas, a "Metafísica" e a
"Retórica", nas quais as descrições do habitus são bastante detalhadas. Por
enquanto, vejamos o que pode conhecer Abelardo nas "Categorias" sobre a
virtude.
Em primeiro lugar, nosso autor afirma que, na qualidade de habitus, a virtude é
adquirida (conquisita) através de um esforço deliberado e racional, daí seu
mérito. Portanto, não está naturalmente (insita) em nós. Quanto a Aristóteles,
vejamos o que diz sobre isso:
São assim ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-
gf01.jpg]/habitus) os conhecimentos ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-
512X-kr-56-131-0075-gf07.jpg]) e as virtudes ([/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf08.jpg]). Pois o conhecimento
parece ser uma coisa permanente e difícil de mudar (mesmo que alguém
o adquira ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-
gf09.jpg]) moderadamente), a não ser que ocorra uma grande alteração,
por doença ou por alguma outra coisa deste tipo.23
A segunda característica da virtude como habitus, levantada por Abelardo,
também se encontra nas "Categorias" e diz respeito à sua estabilidade e sua
quase permanência. Na passagem que acabamos de citar, o Estagirita assinala as
duas mesmas distinções, afirmando que os saberes ou conhecimentos e as virtudes
são duradouros e difíceis de ser movidos. Na verdade, parece que somente uma
grande perturbação ou mudança ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-
0075-gf10.jpg]) possa abalar esses habitus. O corolário desse traço marcante é
que o habitus não é uma disposição (dispositio). Portanto, a virtude como
habitus também não é uma disposição ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-
56-131-0075-gf11.jpg]). De fato, a natureza quase permanente e duradoura do
habitus distingue-se da constituição da disposição que, ao inverso, é pouco
estável e mais efêmera. Os dois elementos do primeiro gênero da qualidade
assemelham-se, contudo, devido a seu caráter adquirido, como o mostra Abelardo
na sua "Ethica sive Scito teipsum".
Pois como os filósofos mantiveram, nunca se deve dizer ter uma virtude, a não
ser que seja um habitus ótimo da mente ou um habitus de uma mente bem
constituída. Mas o que chamaram de habitus ou disposição? Aristóteles
cuidadosamente os distinguiu na primeira espécie da qualidade, ao ensinar que
são chamadas de habitus ou de disposições essas qualidades que não estão
naturalmente (natutaliter) in nós, mas que vêm pela nossa aplicação. São
habitus, disse ele, se forem difícil de mudar, tais como as ciências ou as
virtudes. Mas são disposições, ao inverso, se forem facilmente mutáveis.24
Nas "Categorias" 8, Aristóteles também afirma que o habitus ([/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf01.jpg]) e a disposição ([/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf11.jpg]) distinguem-se simplesmente pela
duração e pela permanência. Ele conclui sobre isso: "Por conseguinte, um estado
difere de uma disposição por esta ser fácil de mudar, enquanto aquele é mais
durável e mais difícil de mudar".25
Os exemplos de disposições dados por Aristóteles são a doença e a saúde, assim
como o calor e o frio, que são, de certa maneira, adquiridos. Portanto, o homem
transita, por exemplo, do estado de saúde ao de doença, e viceversa, em pouco
tempo. Agora, as disposições apresentadas pelo Estagirita nas "Categorias"
levantam algumas dificuldades. Os casos expostos dizem respeito somente a
corpos e não há nenhum exemplo de disposição mais inteligível. O resultado é
que são comparadas coisas distintas na oposição entre o habitus e a disposição.
Além disso, parece bastante claro que um dos dois elementos dos pares de
opostos que compõem as disposições deva ser mais permanente e durável que o
outro. Por exemplo, no par saúde/doença, um dos dois componentes deve, em
princípio, ser mais duradouro que o outro. De fato, não passamos constantemente
de um estado de saúde a um de doença, ambos sendo mutáveis. Entre o calor e o
frio, também devem existir vários graus intermediários, deixando difícil de
identificar exatamente o estado quente ou frio.
Deixando essas dificuldades de lado, o fato é que existem, nos textos de
Abelardo citados acima, outras características da virtude que não se encontram
nas "Categorias". Primeiro, nosso protagonista enuncia claramente que a virtude
não é qualquer tipo de habitus, mas, sim, um habitus excelente (habitus
optimus).26 Além disso, é acrescentado que esse habitus excelente, que
constitui a virtude, não é corpóreo, mas antes do espírito ou da mente (habitus
animi optimus-habitus mentis optimus).27 O próprio Aristóteles não descreve
nesses termos a virtude ou o saber, pelo menos nas "Categorias", ainda que seja
bastante claro que esses habitus são excelentes e pertencem à alma.
Ao início da sua "Ethica", Abelardo distingue as qualidades corpóreas das da
alma. Além disso, discerne as qualidades mentais, que não pertencem ao domínio
da ética, das que fazem parte dele.28 Por exemplo, uma mente rápida ou uma boa
memória são manifestamente qualidades da alma, mas não são por isso habitus,
mesmo que sejam duradouras e quase permanentes. Essas qualidades são antes
aptidões, como diria o Aristóteles das "Categorias" 8, e deveriam estar
classificadas entre as qualidades do segundo gênero ([/img/revistas/kr/v56n131/
/0100-512X-kr-56-131-0075-gf12.jpg]). De fato, elas não são adquiridas através
de um esforço constante e permanente, mas se encontram naturalmente em nós.
Portanto, essas aptidões não ocasionam o mérito e são, por esse motivo,
excluídas da esfera moral.29
Se a característica da virtude como habitus excelente da mente (habitus animi/
mentis optimus) não vem explicitamente do Aristóteles das "Categorias", então
donde vem? Quem são esses filósofos (philosophi) aos quais Abelardo se refere
nos trechos apresentados acima? Seguindo a ordem cronológica, encontramos, para
começar, essa particularidade entre os latinos em Cícero. No "De inuentione",
ao qual Abelardo tinha diretamente acesso,30 Cícero afirma nitidamente esse
traço específico do habitus. Indicamos a seguir a definição da virtude proposta
pelo orador romano no contexto de uma discussão bem estoica sobre o honesto.
O que se procura por si mesmo, <que seja> inteiramente ou, de algum
modo, em parte, chamar-nos-emos honesto (honestum). Por isso, como é
dividido em duas partes, ora simples, ora misto, consideramos
primeiro a simples.31 Em esse gênero, tudo <que tem> uma única
natureza e um mesmo nome é, portanto, compreendido na virtude. Pois a
virtude é um habitus do espírito (animi habitus), conforme a natureza
e a razão. Assim, quando serão conhecidas todas as suas partes, será
considerado o valor inteiro da honestidade pura.32
Nesse último trecho, a virtude é claramente identificada a um habitus mental.
Em duas outras passagens do mesmo tratado, Cícero também afirma:
Chamamos habitus do espírito (habitum animi) ou do corpo uma
perfeição constante e absoluta em alguma coisa, como a virtude, a
posse de uma arte, qualquer ciência ou até certa vantagem corpórea
não dada pela natureza, mas gerada pela aplicação e pelo trabalho.33
Um pouco mais adiante, reitera: "Já que o habitus consiste em certo acabamento
perfeito e constante do espírito (animi) ou do corpo, cujo gênero é a virtude,
o saber e aquilo que é contrário [...]".34
Nesses três extratos do "De inuentione" de Cícero, encontramos, portanto, a
concepção segundo a qual a virtude não é só um habitus do espírito, mas também
a ideia implícita de que se trata de um habitus excelente da mente. De fato, ao
usar expressões como "perfeição constante e absoluta" (perfectio constans et
absoluta) e "acabamento perfeito e constante" (absolutio perfecta et constans),
o orador deixa entender que o habitus mental em questão é, segundo as palavras
de Abelardo, algo "ótimo" e pertence a uma "mente bem constituída". Todavia,
não podemos inferir, a partir daí, que Abelardo pede emprestado diretamente a
Cícero essas características essenciais do habitus, mesmo que se encontrem em
um mesmo contexto de uma definição da virtude. As expressões usadas por cada um
dos dois autores são bastante diferentes e Abelardo não se refere
explicitamente a Cícero, apesar de ter acesso ao "De inventione".
Antes de examinar outra autoridade possível, em que Abelardo busca diretamente
suas informações acerca do habitus, queremos fazer duas observações sobre o que
acabamos de considerar. Primeiro, o próprio Cícero não indica explicitamente no
"De inuentione" a fonte à qual se refere para descrever a virtude, mas o
contexto no qual aparece a sua definição é claramente estoico. Não há dúvida de
que a explicação do honesto (honestum) e do útil ou da vantagem (utile-
commodum) corresponde ao que os estoicos antigos chamavam de kalovn e de
wjfevlimon.35 Sabemos que o orador romano não é stricto sensu um pensador do
Pórtico, mas que apresenta a filosofia estoica em detalhes em uma boa parte da
sua obra. Além disso, os pensadores da Stoa também mantêm que a natureza da
virtude36 consiste em uma perfeição ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-
56-131-0075-gf13.jpg]) e um acabamento ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-
kr-56-131-0075-gf14.jpg]) da espécie.37 Em suma, a concepção da virtude como
habitus de Cícero, tal como apresentada no "De inuentione", é claramente de
inspiração aristotélica, mas, o que não é contraditório, o contexto no qual se
manifesta parece, antes, estoico. Como veremos mais adiante, a compreensão da
virtude por parte das duas escolas filosóficas em estudo não é incompatível.
Em segundo lugar, notamos que Cícero afirma, em uma das passagens citadas
acima, que esse habitus do espírito não é dado naturalmente, mas que é gerado
ou adquirido pela aplicação e pelo esforço (studio et industria partam),
expressões igualmente retomadas em boa parte por Abelardo, quando descreve a
virtude. Na ocasião, esse último indica que ela é "conquistada por um esforço
deliberado" (studio ac deliberatione conquisita) e que "vêm pela nossa
aplicação" (per applicationem nostram ueniunt).38 Vimos que essa importante
característica do habitus já é exposta por Aristóteles nas "Categorias".39
Chamamos a atenção de que Agostinho retoma palavra por palavra e integralmente,
no seu "De diversis quaestionibus LXXXIII",40 o primeiro trecho do "De
inuentione", que citamos acima.41 Abelardo tinha igualmente acesso diretamente
a esse tratado do Bispo de Hipona. Notamos enfim que Sêneca usa o mesmo tipo de
expressões que Cícero para descrever a virtude nas suas "Cartas a Lucílio", as
quais também eram acessíveis a nosso protagonista.42
Passamos agora a Boécio, cujas traduções latinas e comentários são usados por
Abelardo para descrever, entre outras coisas, a virtude como habitus. Vimos
anteriormente que nosso autor se refere diretamente a ele em trechos citados
acima e o menciona de novo numa outra passagem do capítulo 144 do "Sic et non,"
intitulado "O pecador é aquele que é assíduo nos seus pecados, ou não?" ("Quod
peccator sit ille tamen qui assiduus est in peccatis, e contra"):
Boécio em seu comentário sobre essa passagem:43 a não ser com
dificuldade, a virtude não é mutável. Aquele que julga uma vez de
maneira justa não é alguém justo, nem é adúltero aquele que comete
uma vez adultério, mas <é o caso> quando permanecem essa vontade e
esse pensamento (de julgar de maneira justa e de cometer adultério).
De fato, Aristóteles não pensa, como Sócrates, que as virtudes são
saberes. O mesmo (Boécio) no seu livro das divisões:44 [...] O termo
é convertido assim: a virtude é um habitus ótimo da mente; de forma
recíproca, um habitus ótimo da mente é a virtude. Do mesmo modo, o
mesmo (Boécio) no seu segundo <livro> dos tópicos:45 seja a questão,
<a saber>, se a virtude é um habitus de uma mente bem constituída. A
questão da definição etc.46
Nesse extrato, Abelardo glosa o "De diuisione" e o "De differentiis topicis" de
Boécio, nos quais se encontram as duas mesmas expressões usadas no seu tratado
"Ethica sive Scito teipsum", a saber, respectivamente, "a virtude é um habitus
ótimo da mente" (habitus mentis optimus uirtus est) e "a virtude é um habitus
de uma mente bem constituída" (uirtus mentis bene constitutae sit habitus).
Nesse caso, não há dúvida que nosso autor toma emprestado ao Romano essas duas
fórmulas. Ora, a questão permanece: onde Boécio pega essas locuções para
definir a virtude? Não há indicação sobre isso por parte dele, mas é possível,
como vimos, que Cícero o inspirou, já que verossimilmente cunhou o termo
habitus para traduzir a e{[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-
gf01.jpg], tal como descrita por Aristóteles nas "Categorias" 8.47 Por outro
lado, Abelardo também pode ter sido influenciado por Sêneca ou Agostinho, que
retomam o essencial do pensamento do orador sobre o assunto.48
É possível ainda ter alguma dúvida acerca da influência real exercida pelos
estoicos sobre a concepção abelardiana da virtude como habitus excelente da
mente, já que o essencial das expressões usadas por Abelardo para descrevê-la
encontra-se, como vimos, nos tratados de Boécio. Todavia, uma coisa parece
certa. Aristóteles manteria essas características do habitus de ser, ao mesmo
tempo, espiritual e perfeito, pelo menos quando se trata da virtude.49 Mas,
também, não se pode esquecer o contexto nitidamente estoico, no qual aparece a
discussão sobre a virtude, notadamente no "Dialogus", onde nosso autor refere-
se diretamente ao "De inventione" (II, 52) de Cícero na sua análise do honesto
(honestum) e do útil (utilis).50 Enfim, não há dúvida a respeito da filiação
estoica da expressão usada pelo orador romano para definir, como vimos, a
virtude como "habitus do espírito conforme a natureza e a razão" (animi habitus
naturae modo atque rationi consentaneus).51
Se existe uma noção distintamente estoica, até mesmo especificamente da escola
do Pórtico, é sem dúvida nenhuma a da virtude em conformidade com a natureza (
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf15.jpg]) e de acordo ou
em harmonia ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf16.jpg]-
conuenientia) com a razão. Encontram-se vários fragmentos, confirmando o
domínio estoico dessa concepção.52 O comentador contemporâneo Kidd afirma sobre
isso:
[...] as right reason is identical with God [...] a man will never
make sufficient progress untill he has conceived a right idea of God
([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf17.jpg]).53
This is what the Stoics mean by physis and what they must mean by
their common definition of the end ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-
512X-kr-56-131-0075-gf18.jpg]) for man, [/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0075-gf19.jpg], i.e. to live in harmony with
nature. [...] the end ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-
131-0075-gf18.jpg]) as before is to live in harmony with nature,
which is precisely to live in accordance with virtue [...].54
Para os estoicos, é claro que a parte diretriz ([/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0075-gf20.jpg]) é de natureza psíquica, e que a virtude
constitui, uma vez adquirida, um dos seus componentes em potência.55 Além
disso, já que as virtudes são, para esses pensadores, estritamente saberes ou
conhecimentos, o caráter racional delas é conforme a natureza ([/img/revistas/
kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf21.jpg]) e a razão universal ([/img/
revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf17.jpg]). Em suma, viver em
harmonia com a natureza é, portanto, viver de acordo com a virtude.
Agostinho assume essa tese estoica da parte diretriz,56 acrescendo não somente
os julgamentos morais, mas também as paixões ou afecções, que são, ao inverso
da concepção aristotélica, todas negativas. Por seu lado, Abelardo recupera,
por meio do Filósofo do seu "Dialogus", a visão da Stoa, segundo a qual a
virtude como habitus é conforme a natureza e a razão. Ele mantém
particularmente que o filósofo obedecia às leis naturais de acordo com a razão
antes do advento da Escritura e que deve continuar a exercer essa faculdade
racional mesmo após a Revelação.
Filósofo: [...] é o papel próprio dos filósofos buscarem a verdade
por meios racionais e seguir, para todas as coisas, não a opinião dos
homens, mas a direção da razão. [...] Logo depois de ter sido
instruído ali (em nossas escolas), tanto quanto podia, sobre o bem
supremo e o mal supremo e sobre o que faz o homem beato ou miserável,
examinei cuidadosamente as diferentes escolas religiosas perto de
mim, entre as quais o mundo está agora dividido. Depois de ter
examinado e comparado todas elas, decidi seguir o que é mais conforme
a razão57. [...] Daí vossa predicação, a saber, a cristã, é altamente
recomendada, pois conseguiu converter à fé aqueles que mais se
apoiavam e abundavam em razões, a saber, os imbuídos nos estudos das
artes liberais e os armados de razões.58
No mesmo tratado, nosso autor também se refere à lei natural que o filósofo
deve seguir.
Filósofo: É certo que antes da transmissão da lei ou da observância
dos sacramentos legais, a maioria das pessoas, contente com a lei
natural [...], cumpriu a justiça [...]. [...] Assim, quando devemos
viver com os outros, temos também de nos submeter a suas instituições
que mencionamos, assim como obedecemos aos direitos naturais.59
É claro que tanto os platônicos quanto os aristotélicos também podem defender
teses similares. Mas a ideia de observar as leis naturais e obedecer ao direito
igualmente natural, assim como seguir os preceitos da razão, mesmo depois do
advento da lei mosaica, são temas predominantes no sistema filosófico estoico
de todos os períodos confundidos, que seja no estoicismo antigo, médio ou
imperial.
4 Conclusão
A nossa análise mostra que a definição da virtude de Abelardo é, para o
essencial, de natureza aristotélica. De maneira mais precisa, vem diretamente
das "Categorias" do Estagirita, traduzidas por Boécio. Os comentários e as
monografias deste último autor também exercem um papel determinante na
concepção abelardiana da virtude.
Vimos que Cícero retoma em parte a característica fundamental dessa explicação
quando indica, no "De inventione", que a virtude é um habitus do espírito. Por
outro lado, Agostinho, que influenciou bastante a ética de Abelardo com a sua
teoria, entre outras coisas, da intenção, retoma literalmente a definição
ciceroniana encontrada no "De inventione" numa obra de juventude intitulada "De
diversis quaestionibus LXXXIII".60
Nessa altura, é importante notar que os estoicos antigos não usam o termo e{[/
img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf01.jpg], traduzido em latim
por habitus, para descrever a virtude, mas, sim, [/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0075-gf11.jpg], que os latinos rendem por dispositio. Para
os defensores do Pórtico, [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-
gf01.jpg] refere-se a outras realidades; usam antes [/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0075-gf11.jpg] para definir a virtude. Nesse caso, a
virtude como disposição mantém o essencial das características aristotélicas,
tratando-se de uma natureza estável, imutável, quase permanente e adquirida.61
Abelardo tem acesso aos tratados em questão, nos quais se encontra a concepção
da virtude de Aristóteles, assim como os acréscimos de natureza estoica feita
por Cícero. Observamos no presente estudo que nosso protagonista recupera,
notadamente no "Dialogus", vários desses componentes do Pórtico, como a
identificação explícita da virtude com o honesto ou a perfeição62 e, sobretudo,
com a ideia de que ela é conforme a natureza e a razão. Nesses casos, trata-se
da concepção do Filósofo do tratado, a qual não corresponde necessariamente ao
próprio ponto de vista do autor, apesar do fato de que essas características
estoicas não se opõem verdadeiramente à visão de Aristóteles.
Sem rejeitar inteiramente a análise estoica, Abelardo aparentemente prefere,
afinal de contas, a posição aristotélica para descrever a natureza da virtude.
É o que se destaca no mesmo "Dialogus", quando nosso autor expõe as quatro
virtudes cardeais sob a influência parcial do "De inventione" (II, LIII, 160-
164) de Cícero.63 Nessa ocasião, Abelardo não retoma a concepção estoica,
segundo a qual todas as virtudes são conhecimentos ou saberes. De acordo com a
escola do Pórtico, que dá assim continuidade à visão socrático-platônica, todas
as virtudes reduzem-se a uma única, isto é, um saber ([/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf07.jpg]). Essa concepção é conhecida como
"teoria da unidade da virtude".64 Agostinho parece sofrer essa influência, ao
circunscrever todas as virtudes à única caridade (charitas). Por sua vez,
Abelardo é muito cauteloso, distanciando-se dessa teoria. Retomando a tese de
Aristóteles, defende antes que as virtudes cardeais são o resultado da prática
e da aplicação, salvo a prudência ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-
131-0075-gf22.jpg]-prudentia) e suas subespécies, que constituem saberes. Esse
tema é esclarecido na sua "Logica 'Ingredientibus'":
É conhecido que Aristóteles distingue os saberes das virtudes, ao
passo que Sócrates coloque a prudência como a quarta espécie da
virtude. Daí Boécio diz no seu Comentário: "Aristóteles declara na
sua Ética que as virtudes não são saberes, como em Sócrates, mas,
sim, habitus".65 Mas Aristóteles separa nitidamente o saber da
virtude, pois o saber consiste no discernimento e na cognição do que
deve ou não ser feito. Por outro lado, a virtude consiste na execução
do que o saber percebe e a razão convence. Se não for o caso, a
virtude seria sem mérito, ao dizer que é um saber.66
Ainda que o início desse trecho seja enganador, já que os saberes também são,
segundo Aristóteles, habitus, Abelardo pretende dizer aqui que as virtudes
morais, como a justiça, a temperança, a coragem e suas subespécies respectivas,
não são saberes ou conhecimentos, mas, sim, habitus resultantes da prática e da
aplicação. Ao inverso, a prudência, como os outros conhecimentos, constitui
antes uma virtude dianoética ou intelectual, embora também seja um habitus.
Como o confirma o resto da citação, é graças ao esforço fornecido pela prática
para adquirir as virtudes morais que podemos recolher o mérito. Nesse ponto
decisivo sobre a natureza da virtude, Abelardo não hesita a defender a
concepção aristotélica, em detrimento da dos estoicos. Em suma, ao descrever a
virtude, Abelardo navega em dois universos teóricos distintos, nos quais o
contexto e algumas descrições são, por vezes, claramente estoicos. Todavia, não
hesita em considerar o essencial dessa qualidade sob a perspectiva
aristotélica.
1Cf. Peter_Abelard's_Ethics",_1971.
2Cf. Peter_Abailard,_1977; Abaelardus_(1855,_pp._1339-1610).
3Cf. Petrus_Abaelardus._"Dialogus"_(1970).
4"Peter_Abaelards_philosophische_Schriften"_(1919-1927). Uma parte da glosa
sobre o "De interpretatione", publicada por Geyer nessa edição (pp. 497-503) é
espúria e não é de Abelardo. Minio-Paluello_(1958) corrige e completa essa
edição de Geyer.
5Esse último comentário foi descoberto e publicado por Dal Pra (Pietro
Abelardo,_1954, pp. xxvi-xxxvii e pp. 205-330). Na origem, a "Logica
'Ingredientibus'" também incluía, talvez, um comentário sobre proposições
hipotéticas. Cf. Luscombe_(1988,_p._281).
6"Peter_Abaelards_philosophische_Schriften",_1933.
7Petrus_Abaelardus._"Dialectica"_(1970). Esse tratado é incompleto; faltam
essencialmente o início e o fim.
8Abelardo refere-se aqui à qualidade afetiva ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-
512X-kr-56-131-0075-gf02.jpg]) e à paixão ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-
512X-kr-56-131-0075-gf03.jpg])) propriamente dita como terceiro gênero da
categoria da qualidade. Cf. Aristóteles. Categorias 8, 9a 27-10a 10.
9Nossa tradução. "Habere quoque loco nominis ponitur, ac si diceretur
'habitus'. Cuius habitus tres sunt significationes. Est enim habitus qui cum
dispositione sub prima specie qualitatis ponitur, est etiam habitus
privationis. Praeterea habitus hoc loco dicuntur quaedam proprietates, quae
teste Boethio veniunt ex rebus extrinsecis, quae habentur, ut ex armis, quae
habeo, quaedam mihi inest proprietas, quae Habere vocatur sive armatum esse.
Hoc enim loco armatum esse non passionem designat, a qua sumptum est 'armor,
armaris', sed proprietatem quandam quae Habere dicitur post passionem innata et
permanens, non transitoria, sicut est passio" ("Glossae super Predicamenta
Aristotelis". In: Peter_Abaelards_Philosophische_Schriften,_1919-1927, p. 258).
10Aristóteles. "Categorias" 10, 11b 20, 25-35.
11 Ibid. Ver igualmente a "Metafísica", livro f, capítulo 22, onde Aristóteles
distingue de maneira mais precisa os três sentidos de privação ([/img/revistas/
kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf05.jpg]) Cf. Hamelin_(1976,_pp._236_et
seq.).
12Petrus_Abaelardus._"Dialectica"_(1970,_pp._108-109).
13Aristóteles. "Categorias" 10, 12a 28-32.
14Cf. Agostinho. "Confissões" III, 7, 12 e VII, 12, 18 et seq.
15Cf. Agostinho. "De moribus Manichaeorum" 2, 2; "Contra epistolam Manichaeorum
quam vocant fundamenti" 40, 46; "De natura boni contra Manichaeos" 20; "De
civitate Dei contra paganos" 19, 13. "Moral evil is thus a privation of right
order in the created will. This doctrine of evil as a privation was the
doctrine of Plotinus, and in it Augustine found the answer to the Manichees"
(Copleston,_1985, p. 85).
16A concepção estoica sobre essa questão é distinta da de Aristóteles. Os
estoicos podem aceitar que o nada não é algo, mas rejeitam que o oposto de algo
seja exclusivamente o nada. Alguns deles estimam que os universais, por
exemplo, não pertencem ao mundo ontológico do algo (τɩ), mas não são por isso
nada. Eles os colocam antes no universo dos não algo, que não são nada, mas,
sim, entidades formadas, entre outras coisas, pela mente. Cf. Long & Sedley
(1987,_pp._166-168). Por seu lado, Colish_(1990,_pp._184-186) indica que a
teoria do dizível ([/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-
gf23.jpg]) estoica também teve uma influência marcante sobre a concepção
agostiniana do mal como ausência ou privação.
17Cf. Aristóteles. "Categorias" 6, 5b 1-10.
18Cf. Aristóteles. "Categorias" 7, 8a 11-35.
19Cf. Aristóteles. "Categorias" 15, 15b 18-35.
20Nossa tradução. "'Habitus' autem vocabulum multiplicem significationem apud
philosophos habuit. Est enim habitus quem simul cum dispositione speciem
qualitatis posuimus. Est etiam habitus privationis, ut visio, cuius est
privatio cecitas. Est quoque Habitus generalissimum pro quo 'habere'
Aristoteles posuit, de quo in presenti nobis est disserendum, cuius multos
modos secundum Aristotilem supra posuimus; de qua tamen annumeratione
mo<do>rum, utrum Aristotili sit deputanda propter suprapositam causam, an
potius Boetio, qui predicamenta transtulit, vel alicui fortasse philosophorum
ascribenda, magna solet esse dissensio" (Petrus_Abaelardus._"Dialectica",_1970,
p. 109).
21Nossa tradução. "PHILOSOPHUS. Virtus, inquiunt, est habitus animi optimus
[...]; habitum vero hunc dicimus, quem aristotiles in Categoriis distinxit, cum
in habitu et dispositione primam qualitatis speciem comprehendit. Est igitur
habitus qualitas rei non naturaliter insita, sed studio ac deliberatione
conquisita et difficile mobilis. [...] Hic etiam virtutem omnem difficile
mobilem esse asserens, cum in predicto qualitatis tractatu Aristotilem
exponeret scientias et virtutes inter habitus collocantem: 'Virtus enim',
inquit (Boethius), 'nisi difficile mutabilis non est'" (Petrus_Abaelardus.
"Dialogus",_1970, pp. 115-116).
22Nossa tradução. "Aristoteles in tractatu Qualitatis: Differt autem habitus a
dispositione, quod permanentior et diuturnior est. Tales vero sunt scientiae et
virtutes. Scientia enim videtur permanentium et eorum quae difficile moventur,
ut si perfecte qui vel mediocriter scientiam sumat, nisi forte grandis
permutatio facta sit vel ab aegritudine vel ab aliquo huiusmodi. Similiter
autem et virtus ut justitia vel castitas et singula talium non videntur facile
posse moveri neque permutari". Capitulum 144 (Quod peccator sit ille tamen qui
assiduus est in peccatis, et contra). Abaelardus_(1855,_p._1591A). Cf. Peter
Abailard_(1977,_p._497).
23Aristóteles. "Categorias" 8, 8b 29-32. In: Aristóteles_(1995,_p._53).
24Nossa tradução. "Vt enim philosophis placuit, nequaquam uirtus in nobis
dicenda est, nisi sit habitus mentis optimus, siue habitus bene constitute
mentis. Quid uero habitum uel dispositionem dixerint, Aristoteles in prima
specie qualitatis diligenter distinxit, docendo uidelicet eas qualitates que
non natutaliter nobis insunt, set per applicacionem nostram ueniunt, habitus
vel disposiciones uocari. Habitus quidem, si sint difficile mobiles, quales,
inquit, sunt sciencie uel uirtutes. Disposiciones uero, si e contra fuerint
facile mobiles" ("Peter_Abelard's_Ethics",_1971, p 128). Cf. Petrus_Abaelardus.
"Dialectica",_1970, p. 93.
25Aristóteles. "Categorias" 8, 9a 8-10. In: Aristóteles_(1995,_p._53).
26Cf. Petrus_Abaelardus._"Dialogus"_(1970,_pp._115-116); "Peter Abelard's
Ethics" (1971, p. 128).
27Cf. "Peter_Abelard's_Ethics"_(1971,_p._128).
28Cf. "Peter_Abelard's_Ethics"_(1971,_pp._3-5).
29Cf. "Glossae super Predicamenta Aristotelis". In: Peter_Abaelards
Philosophische_Schriften_(1919-1927, pp. 227-228).
30"PHILOSOPHUS. Sic profecto nostris visum est maioribus, sicut in secundo
Rethorice sue M. Tullius plenius exsequitur" (Petrus_Abaelardus._"Dialogus",
1970, p. 105).
31Cícero indica anteriormente na mesma obra ("De invent." II, LII, 157-158) que
devem ser procurados, em relação ao honesto e ao útil, três tipos de coisas. Em
primeiro lugar, a virtude, o saber e a verdade, que pertencem ao domínio do
honesto, devem ser buscados por si mesmos. Em seguida, a riqueza e outros bens
parecidos têm de ser procurados não por causa da sua natureza, mas, sim, em
razão da sua utilidade e do seu benefício. Enfim, há coisas que participam das
duas primeiras categorias, como a amizade e a boa reputação, que também devem
ser buscadas por si mesmas, devido a sua natureza e a sua utilidade. O que deve
ser evitado são as coisas que se opõem a essas três esferas, ou seja, o que é
indigno (turpitudo) e inútil. Em relação à passagem de Cícero, as coisas
simples (simplex) são, portanto, da primeira e da segunda categoria, sendo
respectivamente do honesto e do útil, ao passo que as coisas mistas ou
complexas pertencem à última classe e também fazem parte do honesto.
32Nossa tradução. "Quod aut totum aut aliqua ex parte propter se petitur,
honestum nominabimus. Quare, cum ejus duae partes sint, quarum altera simplex,
altera juncta sit, simplicem prius consideremus. Est igitur in eo genere omnes
res una vi atque uno nomine amplexa virtus. Nam virtus est animi habitus
naturae modo atque rationi consentaneus. Quamobrem omnibus ejus partibus
cognitis tota vis erit simplicis honestatis considerata" ("De inventione" II,
LIII, 159. In: Cicéron,_1932, p. 256).
33Nossa tradução. "Habitum autem appellamus animi aut corporis constantem et
absolutam aliqua in re perfectionem, ut virtutem aut artis alicujus
perceptionem aut quamvis scientiam et item corporis aliquam commoditatem non
natura datam, sed studio et industria partam" ("De inventione", I, XXV, 36. In:
Cicéron,_1932, p. 54).
34Nossa tradução. "Habitus autem quoniam in aliqua perfecta et constanti animi
aut corporis absolutione consistit, quo in genere est virtus, scientia et quae
contraria sunt [...]" ("De inventione" II, IX, 30. In: Cicéron,_1932, p. 148).
35Cf. Long & Sedley_(1987,_pp._200-201;_367-373).
36Voltamos mais adiante sobre essa questão da natureza da virtude para os
estoicos, que modificam o vocabulário de Aristóteles, apesar de se referir a
uma mesma realidade.
37Cf. Long & Sedley_(1987,_p._286).
38Cf. Petrus_Abaelardus._"Dialogus"_(1970,_pp_115-116). "Peter_Abelard's
Ethics"_(1971,_p._128). Ver também Petrus_Abaelardus._"Dialectica"_(1970,_p.
93).
39Cf. Aristóteles. "Categorias" 8, 8b 29-32.
40Cf. "De diversis quaestionibus LXXXIII", Quaestio 31 (Sententia Ciceronis,
quemadmodum virtutes animi ab illo divisae ac definitae sint).
41Cf. "De inventione" II, LIII, 159.
42Cf. "Cartas a Lucílio" 95. Ver também Hamelin (1996, pp. 118-132).
43Boethius. in: "Categorias Aristotelis" iii. In: Boethius_(1847,_p._242B-C).
44Boethius. "De divisione". In: Boethius_(1847,_p._885B).
45Boethius. "De differentiis topicis" ii. In: Boethius_(1847,_p._1188C).
46Nossa tradução. "Boethius in commento super hunc locum: Virtus enim nisi
difficile mutabilis non est. Neque enim qui semel iuste iudicat iustus est,
neque qui semel adulterium facit est adulter, sed cum ista uoluntas
cogitatioque /498/ permanserit. Aristoteles enim uirtutes non putat scientias,
ut Socrates. Idem in libro divisionum: Ut in se ipsa diuisio sicut terminus
conuertatur. Conuertitur enim terminus sic: uirtus est mentis habitue optimus;
rursus, habitus mentis optimus uirtus est. Item idem in secundo topicorum: Sit
quaestio an uirtus mentis bene constitutae sit habitus. Quaestio de
diffinitione etc". Peter_Abailard_(1977,_pp._497-498). Cf. Abaelardus_(1855,_p.
1591A-B).
47"Nous sommes enclins à penser que Cicéron est sinon le premier de tous les
philosophes latins, du moins le premier penseur important d'expression latine à
traduire le grec hexis par le terme latin habitus" (Hamelin,_1996, p. 103).
48Hamelin_(1996,_pp._118-132;_162-205).
49Cf. Aristóteles. "Categorias" 8 in toto.
50Cf. Petrus_Abaelardus._"Dialogus"_(1970,_p._105).
51Cf. Cicero. "De inventione" II, LIII, 159.
52Cf. Long & Sedley_(1987,_pp._349-355;_389-394).
53 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf17.jpg] pode se
referir, no estoicismo, a Deus, à razão, à natureza, entre outras coisas. O [/
img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0075-gf17.jpg] macrocósmico
inclui, em certo sentido, o [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-
0075-gf17.jpg] microcósmico ou a razão do homem.
54Kidd_(1971,_pp._158-162).
55Plutarque. "De la vertu morale" (441B-C). In: Long & Sedley_(1987,_pp.
373-374).
56Cf. Colish_(1990,_p._237).
57Segundo o tradutor Payer, Abelardo seguiria aqui a definição ciceroniana da
virtude tal como encontrada no "De inventione" II, LIII, 159. Concordamos em
boa parte com esse comentário. Cf. Abelard_(1979,_p._21,_nota_4).
58Nossa tradução. "PHILOSOPHUS. [...] quoniam id suum est philosophorum
rationibus veritatem investigare et in omnibus non opinionem hominum, sed
rationis sequi ducatum". [...] "Hic de summo bono et de summo malo et de his,
que vel beatum hominem vel miserum faciunt, quoad potui, instructus statim apud
me diversas etiam fidei sectas, quibus nunc mundus divisus est, studiose
scrutatus sum, et omnibus inspectis et invicem collatis illud sequi decrevi,
quod consentaneum magis sit rationi". [...] "Unde maxime vestra, id est
xristiana, predicatio commendatur, quod eos ad finem convertere potuit, qui
rationibus plurimum nitebantur et habundabant, omnium videlicet liberalium
artium studiis inbuti, rationibus armati" (Petrus_Abaelardus._"Dialogus",_1970,
pp. 41-42, 91).
59Nossa tradução. "Constat ante ipsam legis traditionem vel sacramentorum
legalium observationes plerosque lege naturali contentos [...] iustitiam
coluisse [...]". [...] "Unde fit, ut, cum quibuscumque vivendum est nobis,
eorum quoque instituta, que diximus, sicut et naturalia iura teneamus" (Petrus
Abaelardus._"Dialogus",_1970, pp. 53, 125).
60Cf. "De diversis quaestionibus LXXXIII", Quaestio 31 (Sententia Ciceronis,
quemadmodum virtutes animi ab illo divisae ac definitae sint).
61Cf. Simplicius. In Ar. Cat. 237, 25-238, 20. In: Long & Sedley_(1987,_p.
286). Plutarch. Virt. Mor. 440E-441D. In: Long & Sedley_(1987,_pp._373-
374).
62Lembramos que ajrethv significa, entre outras coisas, tanto a virtude quanto
a perfeição.
63Cf. Petrus_Abaelardus._"Dialogus"_(1970,_pp._117-120).
64Essa teoria não deve ser confundida com a doutrina da conexão das virtudes
defendida, por exemplo, por Aristóteles.
65Boethius. "In Categorias Aristotelis" iii. In: Boethius_(1847,_p._242C).
66Nossa tradução. "Nota, quod Aristoteles scientias dividat a virtutibus, cum
Socrates ponat prudentiam quartam speciem virtutis. Unde Boethius in Commento:
'Aristoteles, inquit, virtutes non scientias, ut Socrates, sed habitus in
Ethicis suis esse declarat'. Bene autem Aristoteles scientiam a virtute
dividit, quia scientia in discretione et cognitione, quid faciendum sit, quid
non, consistit, virtus autem in executione eius quod scientia percepit et ratio
persuadet, alioquin virtus sine merito esset, si videlicet scientiam virtutem
diceremus" ("Glossae super Predicamenta Aristotelis". In: Peter_Abaelards
Philosophische_Schriften,_1919-1927, pp. 227-228).