DIALÉTICA NEGATIVA E MATERIALISMO DIALÉTICO: DA SUBJETIVIDADE DECOMPOSTA À
OBJETIVIDADE PERVERTIDA
I Teoria crítica frankfurtiana: dialética negativa e fundamentos
Parece contraditório ou pejorativo no primeiro momento definir a dialética
acrescida do termo ‘negativa'. Entretanto, essa definição, no âmbito da teoria
crítica adorniana, encontra sua razão de ser em grande profundidade. Em 1966,
na obra "Dialética Negativa", o filósofo e sociólogo Theodor Adorno apresenta
um estudo epistemológico substancial, referente ao conceito da dialética
perpassado pela tradição da teoria do conhecimento e seus efeitos
epistemológicos, práticos e teóricos, sobretudo, na interface com as clássicas
dicotomias: materialismo e idealismo, sujeito e objeto. Embora a discussão
original tenha traduzido um diálogo com o existencialismo heideggeriano e seus
pensadores afins (destacando-se Husserl, Popper, Wittgenstein e Sartre), Adorno
privilegia, as vertentes kantiana, hegeliana, marxiana e freudiana na
perspectiva de denunciar a incompreensão destes fundamentos que levam
estudiosos tanto da perspectiva positivista quanto da existencialista a
fomentarem o relativismo metafísico em prejuízo à compreensão do lugar que
ocupam o idealismo e o materialismo na discussão (Adorno,_1984). Muito embora o
debate se dê no plano teórico, subjacente a isso, carece explicitar o momento
em que se deu, na visão de Adorno, certo diagnóstico da época em que se pensou
a dialética negativa (Nobre,_1999).
Este debate acontece como desdobramento de um contexto propício para se
questionarem os rumos do capitalismo – tardio ou não – ancorado em uma proposta
nova relativa à visão de homem permeada pelos ventos do liberalismo após a
Segunda Guerra Mundial (Adorno, 1984). Desse modo, seria arbitrário adentrar na
discussão sobre as motivações que levaram à ideia da dialética negativa, sem
antes mencionar os fundamentos do livro "Dialética do Esclarecimento", de 1947,
que, embora uma obra conjunta com Horkheimer, a priori, lança bases teóricas
que influenciarão o arcabouço teórico geral de Adorno de modo coerente.
Para Nobre_e_Marin_(2012), a tessitura da "Dialética do Esclarecimento"
considera essenciais alguns fatores, destacando-se, sobretudo: o prenúncio de
uma ontologia com vertentes antropológicas e a urgência de um olhar
interdisciplinar sobre o legado adorniano (p. 101). Na "Dialética do
Esclarecimento", a propositura é acompanhada por certa perda da centralidade na
economia política e uma crise de identidade no aspecto humano político. A
preocupação com o fator humano enquanto possibilidade imanente de ir além das
explicações econômicas para entender a ideologia revela-se, segundo Nobre_e
Marin_(2012), em uma perspectiva antropológica e de caráter interdisciplinar. O
que, segundo os autores, encontra, sobretudo na Psicanálise, uma fonte
inesgotável de conceitos que possibilitam refletir sobre o homem da "pseudo-
individualidade". Assim, a noção da relação entre dialética e trabalho é
acrescida pela ambivalência psicanalítica da autopreservação versus
autodestruição, natureza versus criação; permeada pela angústia do conflito: o
trabalho representa a repressão como condição para a liberdade ou a dominação.
Essa base se estende à obra "Dialética Negativa" de Adorno_(1984), em que se
constata também uma coerência conceitual e (a)estética entre conteúdo e forma.
Para Silva_(2009):
Pode-se, por exemplo, perguntar por que a dialética negativa se
afasta de todos os temas estéticos, o que, aliás, não deixaria de ter
um impacto sobre a tradição, uma vez que parte considerável da
literatura secundária procura esclarecer essa relação. Pode-se
procurar entender como é possível que a consequência lógica atue
contra o princípio de unidade e o domínio do conceito, o que é
agravado pelo fato de o pensamento de Adorno ser fundamentalmente
erguido ao largo dos conceitos rigidamente definidos. Pode-se
questionar o sentido de atribuir a algo do âmbito da lógica um
sentido que lhe é avesso, o de encanto (p. 56).
Para este autor, a dialética negativa preconiza conceitualmente uma espécie de
"antissistema", o que faz com que o conteúdo epistemológico e filosófico seja
coerente com seu "formato" (a)estético. Desde a discussão em torno da
"Dialética do Esclarecimento", àquela que preconiza a elaboração da Dialética
Negativa, seguramente o estilo adorniano enfrenta desafios em uma razão
estipulada pelo formato tradicional conceitual do saber. Nesse sentido, importa
que o autor enfrente o véu da dialética fetichizada, idealizada, demonstrando
sua insuficiência perante a essência da dialética imanente e inesgotável.
Longe de ser apenas redundante e pejorativo, o termo, dialética negativa mantém
fidelidade ao processo dinâmico e contraditório que envolve o conceito, a
sociedade e o homem, ao tempo que compõe um conjunto de fatores
substancialmente filosóficos e epistemológicos que dispõem prestar contas ante
o risco de banalização da própria filosofia fenomenológica e, sobretudo, do
idealismo (tanto kantiano quanto hegeliano) pelo pensamento metafísico e
hermenêutico (Adorno,_1984, pp. 13-16). Assim, para o autor, está em questão a
penúria do conhecimento revisionista neo-hegeliano e, sobretudo, neokantiano
que, contraditoriamente, arrisca relativizar o idealismo e o que tem de mais
precioso: contradições que revelam identidade, fazendo emergir elementos de
denúncia aos limites da prática e seu empobrecimento, a idealização da
dialética e da práxis fetichizadas (Adorno,_1995). A "dinâmica" resvala em
princípios regidos por antinomias kantianas à medida que estas confrontam a
racionalidade ante a realidade, de modo a compor ideias referentes às
instâncias universais e particulares, que atuam em duplo revés: sujeito e
objeto, essência e aparência, juízo sintético e juízo analítico; compondo a
proposição (a)dialética. Nesse processo, na relação entre ação e reflexão
(inflexão) identificam-se elementos ligados à representação e seus riscos de
sobrepujar a realidade, por proposições de argumentos práticos da verdade
(Adorno,_1995). Essa elaboração, como diria Kant, pode revelar o potencial
risco de inebriar contradições inerentes à própria racionalidade que rege as
ações: o perigo do dogmatismo diante do empirismo que reduz tudo à experiência
por medo do próprio abstracionismo (Kant,_2003).
À parte a discussão entre o ser e o existir, o sujeito cognoscitivo e o objeto
cognoscente e suas interpretações vinculadas à metafísica, antecede uma
polêmica histórica que diz respeito às dicotomias entre idealismo versus
materialismo e abstracionismo versus idealismo. Isso adverte contra o risco de
banalizar o pensamento kantiano fadando-o à metafísica existencialista que
traduz a banalização histórica a que se sujeita o idealismo clássico;
obstaculiza as contradições inerentes à relação entre teoria e prática,
experiência e ação pragmática, relação esta que resvala na relação entre
positivismo e abstracionismo; constituindo uma aporia enfrentada como pedra
angular de dentro do arcabouço teórico da teoria crítica de Adorno ante uma
apropriação geral da perspectiva sócio-histórica do materialismo dialético
marxiano, que tende a banalizá-lo e o projetar, em nome da ação política, ao
patamar do senso comum (Zanolla,_2007).
As diferenças conceituais entre as abordagens do materialismo histórico
dialético de Engels e Marx e a dialética negativa de Adorno, estas basilares
para a teoria crítica frankfurtiana, confrontam o abstracionismo relativista
amparadas na história da sociedade, da constituição humana e do conhecimento
como um todo; emergindo fatores estruturais objetivos e subjetivos de sua
composição. A celeuma instaurada pela visão hermenêutica do existencialismo,
criticada por Adorno em torno da dialética, não exaure riscos e limites ao
abstraimento da realidade do materialismo histórico, antes, arrisca relativizar
a relação entre sujeito e objeto, ao tempo que descaracteriza o sentido da
contradição em termos conceituais e práticos: "A dialética não é um ponto de
vista" (Adorno,_1984, p. 13). Essa advertência retoma a complexidade da
dialética perpassada por elaborações clássicas como de Kant_(2003), para quem
os objetos representam sentidos além de seus conceitos e imagens; o que, por
si, segundo Adorno_(1995), exige trato rigoroso e histórico indispensável para
compreender o percurso que se desdobra ao "status da dialética materialista" e,
consequentemente, à "dialética negativa". Para tanto, necessário se faz
compreender as motivações que levaram à inserção de Adorno na Escola de
Frankfurt, bem como a apropriação da Psicanálise como elemento
contraditoriamente relevante à consolidação da dialética negativa como
ampliação da dialética sócio-histórico-materialista (Zanolla,_2007).
Em 1971, o filósofo Horkheimer, aliado de Adorno, em carta ao historiador
Martin Jay, confidenciou a razão principal que levou à criação do Instituto de
Investigação Social em 1923, mais tarde denominado Escola de Frankfurt. Segundo
o autor, naquela época, um grupo com formação diferente e interessado em teoria
social uniu-se em torno da convicção de que a "formulação do negativo" era mais
importante que suas carreiras acadêmicas; o que o motivou, sobretudo, à
aproximação com a perspectiva da dialética materialista e sua crítica à
sociedade. Para Horkheimer, o objetivo dos estudos dos frankfurtianos era dar
uma resposta às indagações marxistas sobre as possibilidades da transição
revolucionária em meio ao dogmatismo e ao desafio dos sistemas políticos que,
aparentemente, se rendiam a "apelações do absoluto" – no sentido da conciliação
de elementos opostos em termos teóricos e políticos –, que, de qualquer
maneira, ligavam-se a um tipo de "apelação enfática da verdade", uma
positivação de ideias e ações para além do tradicional positivismo (Jay,_1973,
pp. 9-10). Assim, retoma-se Adorno e Horkheimer na obra "Dialética do
Esclarecimento" (1985): "O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que
descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente
humano, está se afundando em uma espécie de barbárie" (p. 11). Devido ao
fracasso da ideia de um sujeito revolucionário em sentido amplo, a teoria
crítica frankfurtiana concebe eleger, além do universo objetivo, fatores
subjetivos que prestem contas dos impeditivos à verdadeira revolução social e
humana, mudança esta, cada vez mais, "relegada às calendas gregas" (Adorno,
1995).
Para Nobre_(1999), é preciso investigar não apenas a possibilidade da
filosofia, mas as condições da crítica imanente defendida por Adorno, com a
intenção de estabelecer o sentido do seu percurso intelectual e identificar a
identidade e legitimidade de sua obra à parte do arcabouço geral frankfurtiano.
A preocupação com aspectos subjetivos na compreensão da realidade advém de um
olhar incomum e polêmico acerca dos processos alienantes que regem a sociedade.
Daí a perda da centralidade no aspecto econômico como elemento de contraste
(Nobre;_Marin,_2012). Assim, Adorno alerta para o perigo de transformar
interpretações subjetivistas em pontos de vista determinados por identificações
do pensamento adequadas à realidade deliberada (Adorno,_1995). Confronta a
idealização da relação clássica entre universal e particular como prenúncio do
embate teórico e prático entre sujeito e objeto. Dinâmica esta que é histórica
e, a priori, justifica análises realizadas acerca de qualquer fenômeno a partir
da teoria do conhecimento (Adorno,_1995, p. 181). A totalidade conceitual,
(a)estética, aparece como uma ilusão a ser superada na sua aparência: "Pensar
quer dizer identificar" (aprisionar), e ainda, "A contradição é o não idêntico"
(Adorno,_1984, p. 15).
Para Nobre_(1999), o mérito da "Dialética Negativa" está em repensar
criticamente a relação entre "exposição e coisa", forma e conteúdo,
subjetividade e objetividade; fundamental para um pensamento que pretende
libertar a dialética de sua natureza conceitual afirmativa. Ideia esta que em
Adorno, coerentemente, resvala na relação contraditória entre sujeito e objeto.
A não identidade do presente torna-se pressuposto para uma futura identidade.
Para Nobre_(1999), a dialética negativa apresenta o princípio da não identidade
no qual a crítica. O aspecto conceitual deve sempre ser identificado como
contraditório e passível de uma leitura imanente da relação entre sujeito e
objeto.
Nesse sentido, o investimento em estudos sobre a subjetividade faz jus ao
pensamento hegeliano, inaugura uma "fenomenologia caracterizada pelo pensamento
inimigo da positividade, como um princípio negativo". O vir a ser "prenuncia-se
a partir do ser" (Adorno,_1984, p. 46). Para Adorno, a decadência do indivíduo
ideal é permeada pela indiferença em relação ao sentido do sujeito (ente) e do
ser como "quintessência do indivíduo" (1995, p. 186). Reside aí a fragilidade
da ideia de identidade do sujeito revolucionário: o delírio de seu potencial
transformador como impeditivo real de transformação. Funda-se o sentido da
pseudoindividualidade. Desse modo, ser e sujeito diferem em termos
materialistas, idealistas, metafísicos e existencialistas. O sujeito fracassa
porque é demasiado subjetivado em um contexto carente de objetividade, portanto
de subjetividade real, o que o faz coisificado por exigência do "pecado
original da metafísica objetivante" (Adorno,_1984, p. 70). Pelo processo de
alienação, ocorre uma inversão de sentidos. A objetividade se subjetiva e vice-
versa, traduzindo uma dinâmica que, pela mediação cega, relativiza ambas as
instâncias, consolida a coisificação humana pela idealização do objeto,
qualquer que seja.
Diante das contradições e do predomínio da subjetividade "histórico
objetificante", em várias de suas obras, sobretudo na "Dialética Negativa",
Adorno recorre à psicologia freudiana para refletir acerca da cega e idealizada
realidade, que, segundo ele, é desprovida de sujeitos reais. O princípio da não
identidade remete à necessidade de desmistificação do "ser sujeito da
compreensão absoluta" (1984, p. 84). A identidade fetichizada determina a forma
originária da ideologia amparada racionalmente pela Psicologia.
A Psicologia, apesar de parecer oposta ao universal, cede, ante sua
pressão, aos núcleos da interioridade e neste sentido, não é um
constituinte da realidade, senão um produto. No entanto, tanto o
objetivismo dialético como o positivista são tão míopes como
superiores frente a ela. Desde o momento em que a objetividade
dominante é inadequada objetivamente aos indivíduos, a única forma de
realizar-se é através destes, portanto, psicológica (Adorno,_1984, p.
350).
Uma vez que a Psicologia se apresenta como área do conhecimento a acrescentar a
discussão da subjetividade como elemento inerente à capacidade de o sujeito
superar a condição conformista (Adorno,_1955) e ainda, apesar das críticas à
Psicologia em geral, cabe à psicanálise, como área do saber psicológico, por
sua especificidade, representar uma "psicologia social mais crítica" (Freud,
1973a). "Mais que colaborativa, a psicanálise freudiana, destrói tão a fundo a
aparência da individualidade, que estes só podem resistir em termos filosóficos
e sociológicos" (Adorno,_1984, p. 350). Isso, obrigatoriamente, retoma mais uma
vez o pensamento de Kant, autor privilegiado por Freud, que colabora para a
elaboração dos conceitos de consciente e inconsciente, remanescentes dos
conceitos de juízo sintético e analítico; o que retoma contraditoriamente, por
sua vez, a natureza do ser hegeliano: "Certamente, o antipsicologismo hegeliano
descobriu a prioridade empírica do socialmente universal, a mesma que Durkheim
expressaria anos depois solidamente sem influência da reflexão dialética"
(1984, p. 350).
Essa visão peculiar acrescenta à dialética negativa contribuição aos estudos da
subjetividade e ao materialismo histórico dialético. Não obstante, para Marx_e
Engels_(1999), fugir ao abstracionismo do idealismo filosófico por meio da
abordagem materialista seria pressuposto básico para compreender os mecanismos
culturais e políticos de dominação. Assim, as relações produtivas resumem a
ideia de subjetividade: "A essência subjetiva da propriedade privada, é a
propriedade privada como atividade, sendo para si, como sujeito, como pessoa, é
o trabalho" (p. 85). Em contrapartida, para Adorno, o risco maior da negação do
subjetivismo em nome do objetivismo é a objetificação da subjetividade como
elemento ideológico. Ou seja, o fetiche da práxis, em que o sujeito se apropria
da dialética, o que faz com que se confunda experiência com realidade. Na
prática, isso acontece com atividades ligadas à militância (ativismo
irrefletido), artísticas, políticas, científicas e intelectuais; qualquer ação
que envolva a elaboração pelo trabalho (Adorno,_1995).
Os fatores subjetivos do âmbito da Psicologia motivaram Adorno a estudar as
particularidades da personalidade como um padrão ideológico articulado
psiquicamente pela sociedade e pela cultura. Embora fosse crítico do
conhecimento conservador, Adorno não poderia ignorar categorias da Psicologia
tradicional como escalas de avaliações gerais do comportamento, diagnósticos,
dados referentes a atitudes e elementos de classificação da personalidade
(Adorno,_1965). Não obstante, percebe-se coerência nos motivos que levaram
Adorno a se voltar para estudos subjetivos que pudessem contribuir para
compreender as contradições da realidade e do próprio materialismo.
Ciente dos limites inerentes à consolidação da subjetividade no contexto da
Revolução Industrial, demarcada por fatores históricos determinantes das
condições objetivas vinculadas às relações produtivas, Adorno_(1995) identifica
uma realidade específica – determinada pela luta de classes em um contexto em
que a dominação pré-liberal não contava ainda com uma indústria cultural tão
amplamente estruturada, como no século XX. Supõe-se, com base nas pesquisas de
Adorno_(1955), que os meios objetivos utilizados para tentar romper com a
alienação foram insuficientes para modificar a estrutura da personalidade do
sujeito alienado, coisificado e fascista em potencial; além disso, as relações
produtivas emergem resultantes de elementos também psíquicos (desejos,
necessidades, emoções, sentimentos, crenças e tabus), de um homem que adere
facilmente às ideologias.
Para Adorno_e_Horkheimer_(1985), desde a "Dialética do Esclarecimento", a
dominação racional administrada não encerra a capacidade do sujeito de superar
a situação ideológica por ela e em meio a ela. Essa contradição perpassou o
trabalho dos frankfurtianos e encontra coerência na crítica à mistificação da
dialética tanto em termos idealistas quanto materialistas, atingindo a
categoria de práxis. Demonstra isso insuficiência de elementos teóricos
tradicionais para compreender a ação política enquanto manifestação do desejo
da dominação do e pelo homem moderno. Por esses argumentos, é impossível
compreender a crítica frankfurtiana e a consolidação da dialética negativa
alheia a alguns pensadores clássicos. De fato, neste sentido, Adorno_(1965)
revela uma visão interdisciplinar no âmbito da teoria frankfurtiana (Nobre;
Marin,_2012). Na concepção adorniana, apenas com um trabalho conjunto, de todas
as ciências sociais, seria possível compreender os processos sociais e as
atitudes alienantes inerentes à dinâmica subjetiva. Seria impossível conceber a
dialética negativa se negligenciadas teorias fundamentais que a consolidam,
para além do materialismo marxiano, do positivismo comteano e do idealismo
hegeliano (Zanolla,_2007). Assim, a priori, desmistifica-se certa dicotomização
extremista acerca das contradições entre o materialismo e o idealismo como
manifestação do embate entre o universo subjetivo e o objetivo. Considerar o
universo da subjetividade, bem como fatores da Psicologia para compreender
processos alienantes no contexto da dialética negativa remete, inicialmente, a
elaborações de Weber_(1991). Para o autor, os motivos que levam às relações de
dominação são administráveis e racionais (p. 139).
Segundo Adorno_(1995), a filosofia de Weber – sábia e de mentalidade positiva –
indica o desinteresse da ciência pela investigação além da consciência de si
mesma do cientificismo. O subjetivismo weberiano, segundo Adorno, por mais que
seja nominalista – um conhecimento que estima os conceitos –, possibilita
apreender algo de constitutivo acima da vantagem meramente operacional (p.
160). Embora seja considerado um autor subjetivista, Weber apresenta o objeto
de maneira cristalizada por excesso de definições e determinações, acumulando
conceitos operativos. No entanto, sua metodologia expressa elementos centrais
para a dialética negativa de Adorno, por exemplo, no que se refere ao conceito
de capitalismo, que é decisivo em todos os sentidos: em Weber é distinto de
categorias isoladas e subjetivas com tendência a adquirir o desejo do lucro e,
neste ponto, deixa-se captar pelo conceito histórico materialista (p. 164).
Isso traz a alienação como base do conteúdo ideológico. O mérito de Weber está
na sua contradição: "Precisamente assim, acredita-se ser o seu pensamento como
um tertium, por cima da alternativa entre positivismo e idealismo" (p. 169).
Não por acaso, em Weber, configura-se uma ação moderna, influenciada pelo
pensamento clássico kantiano.
Reconhecer o papel da subjetividade para consolidar o materialismo exige
traduzir as contradições da razão explicitadas no prefácio da obra "Crítica da
Razão Pura", a princípio, aparentemente alusiva ao pragmatismo: "Tão só o
resultado possibilita de imediato julgar se a elaboração dos conhecimentos
pertencentes aos domínios próprios da razão segue ou não o caminho seguro da
ciência" (Kant,_2003, p. 25). Essa contradição do pragmatismo é elemento
significativo na consolidação do conceito de dialética negativa. Para Adorno, a
obra kantiana leva a uma ética, que, embora contraditória – pelo risco de
determinar uma espécie de "dialética da vontade" –, permite uma resistência
imanente ao sujeito: "Toda a ética kantiana adoece por não permitir a razão
como um motor da prática. Isso a faz permanecer abaixo da fascinação do pálido
teoricismo contra o que discorreu de modo complementar ao primado da razão
prática", [...] ou "A lógica é uma práxis impermeabilizada contra si mesma" (p.
229). A crítica da razão pura parte tanto da/pela razão, como contra a razão.
Apresenta-se como possibilidade concreta de abstração da realidade tal qual é
dada a conhecer: contradição. O comportamento do sujeito em relação ao objeto é
contraditório, porém, somente sua limitação pode indicar ampliação (Zanolla,
2007).
Para Adorno_(1984), vulgares interpretações do pensamento kantiano apontando-
o como abstracionista subtraem o que de mais importante sinaliza: a
possibilidade de transcender o fator subjetivo do pesquisador na relação com o
objeto. As contradições do pensamento kantiano, os equívocos de sua
interpretação e a crítica traduzindo-o apenas como sendo de caráter
abstracionista no trato com o conhecimento, bem como o contexto do ideário
liberal e a ascensão dos valores iluministas fizeram com que, em geral, na
modernidade, os críticos recebessem positivamente as contribuições de Hegel,
outro importante pensador, para a teoria crítica. Para Adorno, "O que para
Hegel e Marx foi insuficiente teoricamente se comunicou à práxis histórica"
(1984, p. 148). Por mais que a dialética hegeliana possa ser injustamente
relegada pelos militantes do materialismo ao lugar comum do idealismo vulgar
que incoerentemente a positiva; negar, de algum modo, a importância de Hegel na
elaboração do pensamento dialético é impraticável:
Crítico da separação kantiana de conteúdo e forma; quer Hegel, uma
filosofia sem forma independizada, sem um método a manipular com
independência da coisa; e, no entanto, procedeu metodicamente. A
dialética não é de fato nem só método nem tampouco algo real
entendido ingenuamente. [...] A dialética como procedimento significa
pensar em contradições a causa da contradição experimentada na coisa
e contra ela. Sendo contradição em realidade é também contradição na
realidade. Porém esta dialética não é conciliável com Hegel. Seu
movimento não tem a identidade da diferença de cada objeto com seu
conceito, mas, desconfia do idêntico (Adorno,_1984, p. 148).
A formulação consistente da dialética social material deve-se à agregação do
fator histórico como desdobramento da fenomenologia de Hegel (Marx, 1982).
Apesar de suas contradições no âmbito da fenomenologia, o idealismo hegeliano
foi um determinante para desmistificar a realidade. Em Hegel, a consciência não
é pressuposta e, sim, coloca-se em movimento pela experiência. Segundo Adorno_
(1984), o problema de Hegel reside em que o sentido da totalidade volta-se para
a liberdade de acordo com o ideal racional, o que o torna, contraditoriamente,
voltado para o teor afirmativo do conhecimento. Ainda assim: "A única forma de
escapar ao confinamento do idealismo é de dentro deste, chamando-o por seu nome
a repetir seu próprio proceder dedutivo e demonstrando sua desunião e falsidade
em desapego à ideia de totalidade" (Adorno,_1984, p. 149).
Para Adorno_(1984), o mérito de Hegel – bem como sua ruína – foi tentar
conciliar filosofia e experiência com a sociedade real. Apesar de traduzir uma
filosofia da ação, um dos problemas reside em que, mediante o pensamento
crítico, o indivíduo tende a se cristalizar no contexto da história, arriscando
determinar sua existência (Hegel,_1999, pp. 223-236). Se assim o for, ocorre a
idealização da história, pois o próprio Hegel atestava a supremacia da verdade
sobre o fator histórico, como era prenunciado por Marx: "Marx não só denuncia a
transfiguração que Hegel opera, senão também a realidade a que se aplica. A
história humana como história de um crescente domínio da natureza prossegue a
inconsciente história natural, a devorar e ser devorado" (Adorno,_1984, p.
354).
A ascendência do pensamento marxista na teoria crítica, sobretudo na elaboração
da dialética negativa, é complexa e polêmica, em particular, por três aspectos
importantes. Primeiro, em relação ao que pontuou Horkheimer a certa dívida da
teoria crítica para com o marxismo, no sentido da fidelidade à continuidade do
pensamento dialético de Marx, longe de reafirmá-lo como incontestável (Jay,
1973); em segundo, uma questão central que passa pela epistemologia e não pode
ser negligenciada: o risco de positivar a teoria marxista em nome da práxis; e,
terceiro, a carência de elementos ligados ao tema da subjetividade para estudar
a dominação e a alienação na perspectiva marxista (Adorno,_1955; 1973; 1984;
1995).
Assim, a dívida com o marxismo exprime uma concepção formulada de dentro e
"para" o materialismo histórico dialético; um compromisso de diagnosticar a
ameaça da barbárie objetiva que possui tendências subjetivas. Mesmo que para
isso fosse preciso fazer frente a concepções apaixonadas, extremistas,
reformuladas ou fetichizadas dos próprios marxistas (Adorno;_Horkheimer,_1985).
Isso diz respeito à relação entre teoria crítica e marxismo; denuncia o perigo
da positivação do método materialista em nome da idealização da práxis,
discussão que envolve mediações entre objeto, sujeito e método. Para Adorno, é
preciso também desmistificar o método e os conceitos marxistas (Adorno,_1984,
p. 355).
Diante da complexidade, restringir a análise do pensamento marxista às relações
econômicas de produção seria incoerente. Muito embora Adorno demarque um
diagnóstico de perda da centralidade econômica na contemporaneidade, a
apreensão da realidade com base nas categorias marxistas abrange desde o fator
econômico-político às relações que perpassam a constituição e a cristalização
da realidade das relações humanas. Marx_(1982) compreende que objeto e método
são elementos necessários e encadeadores no mesmo processo de conhecimento. As
possibilidades de superação do movimento real, da ideologia, não se limitam à
dimensão objetiva, aparente do objeto. Para Marx_(1982), a metodologia
científica compreende a essência ideológica do real e torna-se supérflua se a
aparência exterior e a essência coincidirem. A existência da formulação
dialética acrescida dos fatores históricos materiais deve aderir ao objeto,
desmascarando seu fetichismo e contradições.
Se existe, para Marx, possibilidade de consciência em relação ao movimento do
objeto e aos limites do método, qual seria então o risco de fetichização do
objeto, já que o positivismo há muito é fator de critica da ciência marxista?
Adorno_(1995) contribui para o debate retomando que a insuficiência do
pensamento marxista não está propriamente no seu método, mas, ao contrário,
naquilo que ele atesta de maneira coerente, reside nos limites históricos que
precedem e procedem à elaboração do método materialista dialético, lacuna
referente aos processos psicossociais de constituição da subjetividade
formatada pelo contexto de ampliação das relações produtivas que, por ocasião
da reestruturação do sistema capitalista liberal, inaugura novos mecanismos
culturais de dominação, sobretudo, a partir da Segunda Guerra Mundial. O
fetichismo do método marxista não o invalida, ao contrário, fortalece os
pressupostos que indicam sua razão de ser e conceber a sociedade
historicamente, o que cobra uma teoria voltada para a compreensão do indivíduo,
ou do pseudoindivíduo. Entretanto, a idealização do método marxiano dificulta
apreender a própria dinâmica histórica e cristaliza a práxis. A fragilidade
metodológica não está no positivismo em si (posto que este também enquadra
pressupostos materialistas), mas em qualquer conhecimento que se positiva
(mitifica).
O aspecto positivo não está na teoria positivista em si (pois, quanto a isso,
ela cumpriu seu papel de teoria legitimadora da ciência), mas na renúncia em
considerar as contradições envolvidas no seu próprio arcabouço teórico (Comte,
1996). Para a teoria crítica, este conhecimento tradicional sintetiza a
pretensão conservadora de generalizar e especializar o saber como fim; o que
fez com que houvesse uma conciliação dos aspectos universais e particulares,
redundando numa espécie de totalitarismo do conhecimento, privilégio não apenas
do positivismo clássico, como de toda a ciência – sobretudo, daquela que mais
se julga livre da contradição. Neste ponto, coloca-se a questão da positivação
do marxismo via sua vulgarização ou, como preferiria Adorno_(1984), no
"fanatismo pela dialética". Daí advém a proposta de estudar não apenas
possibilidades filosóficas da dialética negativa, mas as condições reais de
possibilidades no sentido imanente (Nobre,_1999).
Uma das principais contribuições da Escola de Frankfurt ao marxismo com base em
Weber, Hegel e Kant é mostrar que as complexas relações de dominação social, no
aspecto subjetivo, não são contempladas por meio da categoria de mediação
(Zanolla,_2012). A mediação, apresentada como um fenômeno que leva à
conscientização, pelos psicólogos sociais, desprovida do seu caráter dialético
negativo, ou seja, do reconhecimento do potencial idealista e fetichizante da
dialética materialista, representa uma análise totalitária das relações sociais
e da práxis. Uma traidora conciliação entre o universal e o particular
(Zanolla,_2012). Essa mediação ilusória concilia positivamente sujeito e
objeto, uma relação abstrata que sela o "conformismo do todo" (Adorno, 1995).
Daí a necessidade de reconhecer a primazia do objeto, contraditoriamente, com
base no retorno ao pensamento kantiano, uma retomada do que denomina Adorno_
(1995) de Giro Copernicano.
A ideia do giro copernicano promove uma reviravolta epistemológica na teoria de
Adorno e redimensiona o lugar da subjetividade na teoria marxiana; razão pela
qual o autor centra esforços na tentativa de compreender os limites subjetivos
ao potencial crítico e revolucionário da humanidade. O giro copernicano repõe a
complexa relação entre materialismo e idealismo em um conjunto que possui como
núcleo a retomada do mundo sensível kantiano. É a retomada da subjetividade
contra ela mesma. Isso configura emergir o reducionismo e a inversão da
dialética materialista ao abstracionismo da mediação social objetificante. Se
assim o for, na perspectiva da dialética negativa, a dialética materialista foi
traída pelos seus fiéis adoradores ao ignorarem o potencial conformista pela
subjetividade esquecida em nome da objetividade sonhada. Todavia, recorrer à
subjetividade para compreender o processo alienante não impede que, em Adorno,
prevaleça o princípio sócio-histórico marxiano de vislumbrar a superação: do
sujeito, espera-se consciência, do objeto, não (Adorno,_1995).
O raciocínio marxiano preconiza a dialética entre o homem e a sociedade em uma
dinâmica complexa: "Portanto, pensar e ser são decerto diferentes, mas,
simultaneamente estão em unidade um com o outro" (Adorno,_1995, p. 95). O
próprio Marx_(1982), em "O capital", alerta para dificuldades encontradas por
alguns intelectuais em entender a mediação perpassada pelo seu método: "O
método empregado nesta obra, conforme demonstram as interpretações
contraditórias, não foi bem compreendido" (p. 173). Desmistificar o
conhecimento configura prática do próprio Marx_(1982) em relação ao seu
"mestre" Hegel. Assim, reconhece a importância da filosofia alemã, alegando que
os limites relativos ao conceito de dialética na fenomenologia não impediram a
Hegel ser o primeiro a elaborar suas formas gerais do movimento, com vistas à
consciência. De certa forma, Marx sente-se na obrigação de desmistificar a obra
hegeliana para desmistificar a sua própria. "Em Hegel, a dialética está de
cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a
substância racional dentro do invólucro místico" (p. 176). O caráter
revolucionário, ao tempo que contraditório de Marx em relação a Hegel, não foi
ignorado por Adorno: "A teoria marxiana da unidade valia para o agora ou nunca,
talvez a partir do pressentimento de que, de outro modo, poderia ser tarde
demais. [...] O pudor de Marx perante as receitas teóricas para a práxis, mal
foi menor que o de descrever positivamente uma sociedade de classes" (Adorno,
1995, p. 228).
A contribuição marxista para a teoria do conhecimento e para a ação social não
está em questão para a dialética negativa na teoria crítica frankfurtiana, mas
sua insuficiência em relação às formas de apreensão que acabam contribuindo com
a manutenção do poder por meio de contradições dos mecanismos culturais de
dominação que fetichizam a práxis e a dialética materialista, sim (Adorno,
1994b). Isso justifica os argumentos de Nobre_(1999) acerca da importância de
se reunirem forças interdisciplinares no arcabouço da teoria crítica
frankfurtiana. Não obstante, corrobora também o reconhecimento da importância
de diversas áreas científicas ligadas ao estudo do indivíduo, para melhor
entender a alienação e a resistência dos aparelhos ideológicos; este foi outro
motivo pelo qual a teoria crítica ampliou seus termos de referência e buscou,
na psicanálise, preencher lacunas referentes ao funcionamento psíquico. A
psicanálise é mais que uma alternativa à psicologia na compreensão do senso
crítico da dialética negativa; retoma o giro copernicano, referindo-se à
necessidade de se voltar para a compreensão do sujeito para entender o universo
objetivo, material, ou seja, kantianamente "a volta ao sujeito no seu
contrário" (Adorno,_1995, p. 202).
Em que pese sua importância, a psicanálise não é imune à crítica adorniana;
compõe o arcabouço adorniano como elemento que denuncia contradições e também
arrisca definições abstratas acerca do indivíduo, entretanto, "é a única que
investiga a sério as condições subjetivas da irracionalidade objetiva" (Adorno,
1955, p. 136). A crítica em relação à identidade do sujeito idealizada e
mediada socialmente, e, ainda, a ideia do aparelho psíquico regido por uma
dinâmica conflituosa que liga o (in)consciente à ideologia, fez com que a
possibilidade de tencionar as instâncias objetiva e subjetiva se tornasse mais
real. Assim, a intenção da concepção dialética negativa de sanar a dívida com o
marxismo, no que tange à subjetividade, "só poderia ser concretizada com uma
abordagem tão controversa quanto insuficiente como a psicanalítica" (p. 136-
138). Em psicanálise, o conflito entre id (fator externo/social) e ego (fator
interno/individual) é identificado como possibilidade de lidar com o universo
subjetivo, de maneira que este não seja mecanicamente submetido ao universo
objetivo (alienante), e, sim, reconhecido dialeticamente em meio a ele. A
preocupação de Freud_(1973b) com a contradição da civilização – o progresso
desumano –, ligada ao desenvolvimento técnico e suas dificuldades para domar os
instintos agressivos, foi amplamente explorada no conjunto das obras de Adorno
e Horkheimer. Entretanto, é digna de nota a advertência de Nobre_e_Marin_
(2012):
Para além da já mencionada diferença de estrutura – Horkheimer e
Adorno desenvolvem uma teoria da mimese e não uma teoria das pulsões,
o que está longe de ser um problema meramente terminológico –, pode-
se pensar em uma série de outras diferenças analíticas relevantes,
como o papel de grande destaque concedido ao "terror" quando
comparado ao esquema freudiano, o que acarreta arquitetônicas
pulsionais bastante diversas. Se Horkheimer e Adorno pretendem
responder a problemas de inspiração freudiana, partem também do
pressuposto de que a teoria freudiana sozinha não é capaz de
respondê- los, ao mesmo tempo em que a tradução das constelações
conceituais freudianas em teoria social tem ao final por resultado
uma radical transformação desse ponto de partida (p. 120).
Daí a importância do caráter dialético, histórico e antropológico, proveniente
da psicanálise crítica. Ao investigar as sociedades primitivas, reud_(1973a)
considera o aspecto sociológico por "contorno definido": "Toda a história da
civilização é uma exposição de estradas que empreendem homens para dominar os
seus desejos não realizados, de acordo com as exigências da realidade" (p.
1864). Esse contorno permite aos estudiosos da psicanálise aproveitar
intensamente essa rica relação da psique com a realidade social. O próprio
autor afirma que o desaparecimento do fator social e o predomínio do fator
sexual convertem as soluções neuróticas em caricaturas inutilizáveis para a
resolução dos problemas do homem, acrescentando que: "A psicanálise tem como
objeto a psique individual, mas seu trabalho não pode abrir mão dos fundamentos
efetivos da relação entre indivíduo e sociedade" (p. 1865).
É claro que a preferência pela psicanálise como método psicológico não
contemplou unicamente os esforços de entender a sociedade vigente, tanto que na
obra "La personalidad autoritária", Adorno_(1965) utilizou uma metodologia com
conceitos e análises psicanalíticos, sem negligenciar a contribuição da
psicologia tradicional. Embora o foco fosse o aspecto sociopolítico
totalitarista, a cultura, os grupos, as atitudes políticas e a ideologia
coletiva, era no comportamento individual que o estudo buscava suas respostas.
Isso é importante para elucidar elementos que levam a ações tolerantes ou
intolerantes em determinadas situações de alienação e, ainda, entender em que
medida certos conflitos de grupos políticos – que aparentemente possuem
diferenças sociais –, em nome da práxis ou não, derivam de fatores semelhantes
em âmbito externo e interno, constituindo-se em ações autoritárias ou
emancipatórias.
Devido à abordagem desmistificadora, a psicanálise denuncia o perigo da
conciliação simbiótica (psicótica) entre indivíduo e sociedade, sujeito e
objeto, ou a perda do universo subjetivo na absorção do universo objetivo,
efeito que demonstra uma conduta narcisista, postulando a idealização do ego
pela supervalorização das ideias, da própria práxis e do sujeito (Adorno,_1955;
1995). Retoma-se assim, psiquicamente, pelo princípio da não identidade
(sujeito neurótico e autocrítico), a dialética entre alienação e consciência,
preconizada teoricamente pela dialética negativa (1995, p. 89). O sujeito
egocêntrico é o homem indiferenciado, onipotente, narcisista, voltado para si
em busca de uma identidade cristalizada, ilusória e prepotente. Essa
idealização é, segundo a teoria crítica, insustentável, porque traduz o sujeito
voltado para o instinto primário, cujo objetivo principal é a satisfação
instintual de necessidades mais imediatas: "Os objetivos são idênticos aos
objetivos instintivos primários, e não pode ser traduzido para contradizê-los
em muitos aspectos" (Adorno,_1995, p. 153).
Assim, uma vez que o repertório teórico dos frankfurtianos tem na concepção do
materialismo dialético um de seus principais embasamentos para o trabalho
enquanto experiência, o sócio-historicismo vulgar é denunciado pela dialética
negativa por cegar a práxis e arriscar sobrepujar o próprio marxismo do ponto
de vista político e conceitual.
II Dialética Negativa e Dialética Materialista - problema e método
Segundo a teoria crítica adorniana, qualquer conhecimento, seja relacionado ao
método científico ou à filosofia, possui em si uma "representação preliminar",
implica repetição do instrumento ou do pensamento. Para Adorno_(1994a), "Há
muito as reflexões críticas sobre o instrumento têm deixado de afetar o objeto
do conhecimento científico, para limitar-se simplesmente a ser acessível a todo
o conhecimento: à validez dos juízos científicos" (p. 76). Assim, tratar um
problema nascido de um pressuposto filosófico específico presume uma lógica não
menos importante do que analisar as condições de validade dos procedimentos de
investigação do saber científico.
Segundo Abbagnano_(1998), o que demarca a interpretação da metodologia como
conhecimento está na lógica pós-cartesiana. Gerado na sociedade renascentista,
o método cartesiano merece ser destacado ao se discutirem os fundamentos que
justificam a dialética negativa por, classicamente, "tentar bem conduzir a
razão" e procurar a "verdade" nas ciências, em um momento em que a Escolástica
dominava o cenário intelectual. O pensamento naturalista e "aplicável" de
Descartes demonstra uma relação inseparável com o objeto, o que o torna
idealista.
Horkheimer_(2000) assinala que "os problemas epistemologicamente insolúveis do
espírito se fazem sentir em todas as formas de idealismo" (p. 173). Ainda
assim, algumas restrições a especulações míticas acerca do significado do
espírito podem transformar o seu objeto em abstração do real. "A saída para
esse problema seria enfrentar a contradição do dualismo entre natureza e
espírito" (p. 174). Para Adorno_(1995), o "homem divino", o sujeito cartesiano,
carrega em si a contradição de "responder à sinistra pergunta de como se pode
pensar, e ainda assim seguir vivendo: pelo fato de se pensar" (p. 23). Isso
dito de forma extrema seria: "Eu não penso, e até isto é pensar" (p. 24). Esse
paradoxo põe, mais uma vez, a dualidade universal versus particular. A partir
daí, tanto a epistemologia como a ciência meramente empírica tornamse tão
necessárias quanto insuficientes para a teoria crítica.
Em consonância com a defesa da dialética negativa, e denunciando o
"materialismo da imediatez", Adorno refere-se à Sociologia como uma área que
deixa a desejar do ponto de vista dos estudos acerca do caráter subjetivo da
alienação: "A dialética não é sociologia do saber" (1984, p. 195). Em 1968,
Adorno participou do 16º Congresso de Sociologia Alemã, no qual tratou, segundo
ele, de um problema epistemológico: saber se a atual fase (após a Segunda
Guerra Mundial), consonante ou não com os princípios marxistas, deveria chamar-
se Capitalismo Tardio, ou Sociedade Industrial (Adorno,_1994b, p. 62). O autor
desmistifica, ali, duas ideias vulgares: a teoria crítica confronta-se
diretamente com o marxismo, e esta é pessimista em relação à revolução social.
O fato é que, após a Segunda Guerra Mundial, a reestruturação do papel do
Estado, da indústria e do mundo do trabalho implicou modificações na estrutura
das classes sociais – principalmente nos países ocidentais (Ianni, 1993). Isso
configurou um problema para o método de Marx: será que as relações de produção
se revelaram mais potentes do que este previra?
Para Adorno_(1994b), os métodos empíricos de análise acerca do problema são
sempre insuficientes assim como o modo que o objeto de Marx era bem delineado
pelo contexto político, histórico e social. O problema não está na pesquisa
objetiva e materialista, mas no seu não aprofundamento, que, cego pelo
dogmatismo otimista, perde de vista a própria dialética a que veio. Prova disso
é que, à parte o desenvolvimento da civilização, as contradições sociais
demonstram que a globalização da sociedade permanece fiel à dominação
totalitária denunciada por Marx desde os primórdios: "A consciência reificada
não termina onde o conceito de reificação ocupa um lugar de honra" (Adorno,
1994b, p. 69). A teoria psicanalítica mais uma vez pode contribuir para o
entendimento desse dilema.
A consciência não é uma aquisição permanente, pelo contrário, na perspectiva
freudiana, sua existência, entre outras coisas, depende da luta pulsional
individual estendida coletivamente, na negação e afirmação do ego, instância
dominada ao tempo que negada, conflito necessário consciente elaborado da
satisfação plena, integral; interditada pelas normas sociais; isso requer
reconhecer no processo pulsional uma dinâmica dialética. Assim, Freud contribui
para a desmistificação do homem/sujeito e consequentemente, segundo Adorno,
para o esclarecimento das contradições da práxis. Melhor dizendo, para ele, a
identidade do sujeito só existe na afirmação e negação do que ela poderá vir ou
não a ser de acordo com condições diversas: é bom que se diga que o sujeito
consciente (de modo permanente) consiste em fantasia. Reconhecer isso é
condição para a autoemancipação do sujeito. Essa dialética negativa, no plano
subjetivo, apresenta ao sujeito a consciência da realidade e sua positividade;
a precária liberdade que, limitada e ilusória, pode levar ao reconhecimento da
repressão e também: "Fazer algo libertador positivo, pois, como um dado ou como
inevitável entre outros dados, é imediatamente oposto a convertê-lo a si"
(Adorno,_1994a, p. 231). Por isso, o objeto se sobrepõe ao sujeito, pelo fato
de este ser dominado, alienado pela realidade objetal.
Adorno_e_Horkheimer_(1985) concordam que a positividade pode ser dupla, ou
seja, não apenas do conhecimento científico tradicional, mas de interpretações
vulgares da dialética materialista. Para os autores, o totalitarismo é um
conceito que merece destaque, seu caráter universal satisfaz teórica e
empiricamente as necessidades apriorísticas da positividade, de maneira a
adaptar teoria e prática à política do nacionalismo exacerbado, ao
comportamento violento e preconceituoso; tanto o conceito quanto a ação levam à
ofuscação da realidade, impedindo a transformação. Nessa perspectiva, há que se
fazer justiça ao pensamento marxista, denunciando o perigo de positivação da
própria dialética. Para Adorno:
Em certo sentido, a lógica dialética é mais positivista que o
positivismo, apesar do desprezo em que este a tem, já que respeita
como pensamento o que há que pensar o objeto, inclusive quando este
não se apega às regras mentais. Estas mesmas ficam afetadas pela
análise do objeto. O pensamento não necessita ater-se exclusivamente
à sua própria legalidade, senão que pode pensar contra si mesmo sem
renunciar à própria identidade. Se fosse possível uma definição da
dialética, poderia ser esta (Adorno,_1984, p. 144).
O autor afirma que a dialética não é apenas um método, tampouco algo material
entendido ingenuamente, de maneira abstrata. A dialética além do procedimento
significa pensar contradições sobre a causa da contradição experimentada na e
contra a coisa, sendo contradição da realidade e contradição pela realidade (p.
148). Demonstrar apenas teoricamente o caráter negativo da dialética é correr o
mesmo risco de alguns marxistas ao criticar o idealismo em nome da prática,
tendo como base o materialismo. Pode-se transformar a dialética em um método
meramente aplicável, um modelo; ou, em um segundo caso, pode-se resumi-la em
teoria – contra a teoria – pelo idealismo em nome da prática e contra a
experiência. É assim que a totalidade se inverte conceitual e materialmente
pelo absolutismo do totalitarismo. A crítica neoliberal feita ao liberalismo
demonstra essa inversão da contradição no âmbito estrutural e político. Nesse
caso, o sistema apropria-se da própria crítica contra ela, negligenciando o
aspecto histórico, ou contextual do problema (Paulo_Neto,_1999).
O fato de Adorno criticar a conciliação conceitual ou metodológica entre teoria
e prática não significa que abra mão do método, do conceito, ou da técnica, mas
mantém-se fiel à própria contradição da práxis. Nesse caso, "A crítica negativa
deve preparar um conceito positivo do esclarecimento, que o solte do emaranhado
que o prende à dominação cega, mesmo que, para isso, tenha que tomar
consciência de si mesma, se os homens não querem ser completamente traídos"
(Adorno;_Horkheimer,_1985, p. 15). A crítica deve ser feita reciprocamente
(sujeito e objeto), considerando kantianamente as possibilidades limitantes do
julgamento ideológico da própria análise do sujeito para com o objeto. Assim,
enxergar o fenômeno weberianamente como um "ser objeto" torna-se
(im)possibilidade metodológica. Contraditoriamente, o oposto da crítica também
é verdadeiro: tal a complexidade da inversão do problema, que os motivos para o
não reconhecimento das contradições do conceito de práxis estão na extrema
defesa de seu sentido negativo que, segundo Adorno_(1984), residem no equívoco
de absolutizar a teoria, ou acusá-la de anacrônica e insuficiente, retirando
sua base histórica e dialética. A única maneira de lutar contra o pensamento
afirmativo é descortiná-lo mediante sua aparência; demonstrar a própria
condição falsa de ser um pensamento teórico edificante (Adorno,_1995, p. 45).
Essa discussão demonstra que, se existe alguém esperando ancorar-se em lições
para o entendimento de um "método perfeito" referente à dialética negativa,
perde seu tempo. Pelo bem da prevalência do instinto vital humano (a elaboração
do conflito eterno), o "remédio", como diria Adorno_(1994b), ainda não foi
encontrado. "Eis aí a esperança tão cobrada aos frankfurtianos pelos
positivadores do conhecimento, materialistas ou idealistas. Se os dogmáticos da
teoria do conhecimento ainda não perceberam o sentido do totalitarismo em
oposição ao universal, não será uma ou outra teoria a responsável por isso
talvez a composição de todas" (Zanolla,_2007, p. 77).
Diante de tais pressupostos, permanece a ideia de que a dialética negativa
persegue um projeto ou método inacabados. Se em Marx, originalmente, podese
identificar uma "dialética objetiva e imanente" (Adorno,_1984, p. 198), a
objetividade como mediação para a consolidação da subjetividade emancipada é
representada na indigência racional do homem perante a sociedade. Em que pese
isso, a possibilidade de romper com a falsa consciência está na desmistificação
do próprio conceito de dialética enquanto "método perfeito da experiência
ideal"; o que ampliaria possibilidades de denunciar uma prática a qual
adialeticamente se reflete uma situação delirante da objetificação humana,
persistente e definida por Adorno_(1995) como "eu epistemológico".