FILOSOFIA DA ARTE E ARTE DE FILOSOFAR. ARTE, LINGUAGEM E RELIGIÃO EM FICHTE E
SCHELLING (1807-1812)
1 Da filosofia primeira à filosofia da religião
A controvérsia entre Fichte e Schelling começa, explicitamente, a partir de
1800.1 A publicação, em 1809, das "Investigações sobre a liberdade humana" de
Schelling abre uma nova fase nesta polêmica, cujos elementos fundamentais
tornam-se evidentes na exposição fichtiana da doutrina da ciência de 1810, e
nas reflexões seguintes que Fichte realiza até 1813. É nestes anos que a
avaliação crítica da filosofia de Schelling encontra a reflexão sobre a relação
entre liberdade e necessidade e entre finito e infinito, que aparece também no
escrito de Schelling de 1809.
A filosofia primeira, e em particular uma diferente compreensão do absoluto, de
sua relação com a manifestação (Erscheinung) e, mais em geral, uma diferente
avaliação das tarefas e da essência da filosofia transcendental, parecem ser
dominantes na disputa entre os dois filósofos nos primeiros dez anos do século
xix. Mas as divergências entre eles envolvem também as variadas implicações, os
variados aspectos e consequências aparentemente secundárias de seus sistemas
filosóficos, como o problema da introdução no estudo da filosofia ou a
interpretação da relação entre história e especulação.2
A distância que separa Fichte e Schelling, a qual, ao mesmo tempo, aproxima-os,
torna-se evidente quando se considera uma diferente função da figura retórica
da analogia na apresentação das características fundamentais da ciência
filosófica. A analogia, que nos dois autores agrega a estética, a filosofia da
linguagem e a filosofia da religião, é um significante que põe o problema do
significado, ou seja, põe o problema da relação entre finito e infinito
(Schelling) e o da relação entre saber absoluto e saber particular (Fichte). Em
ambos os casos, o problema da analogia irá sempre envolver a explicitação das
potencialidades simbólicas da finitude. Mas é apenas aparentemente que se trata
de um assunto exclusivamente estético ou linguístico-filosófico. A questão da
analogia envolve, portanto, uma reflexão que se coloca no nível da filosofia
primeira e da filosofia da religião. De fato, em Fichte e em Schelling, uma
concepção diferente da linguagem, bem como da possibilidade de doar uma forma a
algo que é percebido imediatamente (arte, estética), envolve uma diferente
compreensão da condição inter-humana dessa própria forma; ou seja, uma
diferente compreensão das estruturas da comunidade humana que vai recebê-la.
Isso se encontra, em Fichte e Schelling, na reflexão sobre o conceito de Igreja
(comunidade) e do cristianismo como manifestação realizada do absoluto na
história.
Nesse sentido, uma compreensão multifacetada da polêmica entre Fichte e
Schelling deve juntar a filosofia primeira, a filosofia da linguagem (também a
estética) e a filosofia da história. Investigarei, a seguir, essa relação em
Fichte e Schelling a partir de algumas passagens das "Investigações" do próprio
Schelling (§2). Depois analisarei a função do conceito de analogia e de símbolo
nesse contexto (§3) e, no final, tratarei da diferente compreensão da Igreja
como símbolo do absoluto na "Filosofia da arte" de Schelling e na "Ética"
fichtiana de 1798 e 1812 (§4).
2 A filosofia transcendental e o absoluto
A definição dos limites e da extensão da filosofia transcendental representa um
ponto fundamental sobre o qual Fichte e Schelling consumam a polêmica entre
eles. Segundo Fichte, a filosofia transcendental deve elaborar uma análise e
uma visão acerca dos princípios do saber. Em Schelling, a filosofia
transcendental apresenta-se na forma de uma extensão dos princípios do
idealismo na compreensão da natureza.3 Schelling sustenta que a filosofia
transcendental não pode ser reduzida a um idealismo. Ela é também um realismo
que coincide com o idealismo relativo às leis do desenvolvimento do raciocínio
filosófico.4 Fichte entende que o idealismo é uma compreensão do absoluto a
partir de seu reflexo (Reflex) fundamental. Schelling considera que a filosofia
transcendental é um desdobramento, paralelo e recíproco, de um ponto de vista
reflexivo e do desenvolvimento real da natureza, ou seja, da forma do absoluto
(reflexão, subjetividade) e da sua existência (natureza, realidade). A doutrina
da ciência tem de se sobrepor ao eu visando a um aprofundamento intensivo da
compreensão dos princípios de seus próprios princípios.5 O eu não permanece um
sujeito absoluto, mas torna-se uma forma de concretização da razão. A filosofia
schellinguiana da identidade esclarece que a sobreposição da subjetividade
acontece por meio da postulação de uma unidade indiferente da razão – unidade
do real e do ideal – diante da qual a subjetividade não faz sentido se não for
posta em relação a outro de si: a natureza.6
Na "Freiheitsschrift", essas questões se encontram com uma problematização
ética (relativa à origem do arbítrio e à origem da distinção entre bem e mal) e
teológica (relativa à possibilidade do mal em Deus). Para enfrentar essas
questões, Fichte utiliza, segundo Schelling, uma unidade abstrata da razão por
meio da qual as vontades individuais se juntam numa vontade geral e
indiferenciada que, por sua vez, é compreendida como ordem moral do mundo.7
Contudo, este conceito não consegue, conforme Schelling, juntar a fundamentação
da liberdade com a visão dos princípios da natureza. Por causa disso, "a
conexão do conceito de liberdade com a visão complexa do mundo continua a ser o
objeto de uma investigação necessária" e "a mola inconsciente e invisível atrás
de cada tendência para o conhecimento a partir do nível mais baixo", isto é da
filosofia.8 A visão fichtiana, ainda que tenha uma importância histórica,
segundo Schelling, é cheia de falhas e contradições. Fichte, de fato, encontra
na vontade o ser originário, que contém todas as determinações que possam ser
atribuídas à liberdade (como ausência de fundamento, eternidade, independência,
autoafirmação). Mas esta resposta apenas idealista não esgota o fenômeno da
liberdade. Com certeza Fichte chega a demonstrar que a atividade do eu, a
liberdade e a vida, são o verdadeiro real. Mas daí não surge a demonstração
contrária, segundo a qual "todo real (a natureza, o mundo das coisas) tem
fundamento na atividade, na vida e na liberdade, ou, em termos fichtianos, que
a egoidade é a totalidade e que a totalidade é a egoidade".9 Em outras
palavras, a vontade pura não seria outro, senão o resultado de uma tentativa
desajeitada de juntar a imprescindível afirmação da autonomia da vontade dos
indivíduos particulares com a exigência de encontrar uma unidade capaz de
sintetizar natureza e liberdade. Mas ela representaria uma indevida
transferência dos traços de um eu individual à natureza objetiva.
Schelling amplia os resultados da filosofia transcendental por meio de dois
gestos. O primeiro pode ser chamado de retórico e programático e tenta
satisfazer uma exigência que ocorre em Fichte também. O segundo evidencia o
núcleo especulativo do lado retórico. Pelo primeiro gesto, Schelling apresenta
a sua filosofia como uma reprise idealista de Spinoza.10 Apenas mediante um
espinosismo observado e interpretado do ponto de vista idealista é possível
reconhecer a unidade do sensível e do espiritual. A filosofia da natureza
principia e cumpre a ciência filosófica, chegando a compreender na liberdade "o
último ato potencial com o qual toda natureza se transforma na sensação, na
inteligência e, enfim, na vontade".11 Assim, a filosofia da natureza põe a
liberdade como pressuposto essencial do realismo, pois "só quem tem apreciado o
sabor da liberdade pode advertir o desejo de torná-la análoga a todas as
coisas, de estendê-la a todo o universo".12
Trata-se de compreender como é possível pôr a liberdade como o fundamento do
realismo e de definir as condições capazes de tornar tudo (e também o mundo das
coisas e da natureza) análogo à liberdade. "Apenas com os princípios de uma
verdadeira filosofia da natureza se pode desenvolver a visão que satisfaz
completamente nossa questão".13 De fato, a filosofia da natureza é capaz de
sustentar a distinção entre a essência tal como existe e a essência como
fundamento da existência da própria essência no mesmo sentido da Darstellung de
1801.
Deus – o absoluto, a essência – tem o fundamento de sua existência em si mesmo.
Mas esse fundamento não é o fundamento de Deus, senão apenas de sua existência,
ou seja, de sua natureza. Na medida em que Deus existe, esse fundamento o
precede e o justifica. Mas não no sentido que o fundamento seja causa de Deus,
mas no da possibilidade da manifestação da sua natureza: como Deus tem em si
mesmo o fundamento, ele pode existir. Porém, na medida em que tudo o que existe
é o próprio Deus, Deus é o prius do fundamento. De fato, não teria fundamento
para alguém "se Deus não existisse actu".14 Há um fundamento apenas em graça da
existência de Deus na forma de uma atividade (ou de um devir imanente) que não
tem fundamento nenhum e que tem que ser fundamentado. Este seria o sentido do
ablativo absoluto "actu" com que Schelling define a existência de Deus.
O raciocínio schellinguiano sobre a liberdade e o mal depende da legitimidade
da afirmação de um ser que precede todo fundamento e toda dualidade.15 A
essência do fundamento deve, de fato, ser também capaz de dividir a si mesma em
dois começos diferentes. Os dois surgem a partir da natureza de Deus, a qual é
a "cobiça do eterno-um de parir a si mesmo". Mas um começo gera o intelecto, ou
seja, uma força que tende a condensar Deus à sua essência. O outro produz a
separação das forças. No primeiro caso, a cobiça torna-se um desejo, intelecto,
vontade e amor. No segundo, a cobiça é tal e, como simples natureza de Deus, é
princípio do que é obscuro, irracional e, neste sentido, é princípio do mal.
Mal e bem podem, então, descender de um elemento unitário. Deus, de fato, pode
ser compreendido como indiferença entre dois atos diferentes. Esses atos são
não idênticos, mas, como Schelling escreve, são "ao mesmo modo".16 Como
atuações de uma única potencialidade os dois estão em relação com a essência de
uma maneira idêntica. Os dois começos são, neste sentido, idênticos, e ao mesmo
tempo, diferentes, graças a uma idêntica relação com o fundamento originário
(Urgrund); numa palavra: são análogos.
Schelling mesmo esclarece essa passagem: a relação entre essência e natureza
pode ser compreendida "analogicamente como aquela entre a força de gravidade e
a luz na natureza".17 Só que, nesse caso, a analogia não tem uma função
explicativa, mas envolve a própria constituição ontológica da natureza. As
"analogias físicas", que são analisadas em vários lugares das "Investigações"
de 1809, determinam, por assim dizer, as variadas fases da ontogênese da
subjetividade concreta como potência suprema do desenvolvimento do idealismo e
do realismo no mesmo sentido do "System des transzendentalen Idealismus".
Por essa razão, Schelling, que fica muito próximo da tradição da filosofia da
linguagem alemã de Böhme a Hamann,18 pode afirmar que o mundo se manifesta não
apenas como "palavra vivente, como a própria linguagem de Deus, mas também como
palavra falada", do mesmo jeito que "na maioria das linguagens a expressão da
razão e o discurso são a mesma coisa".19 Surgem daí os três níveis do
raciocínio de Schelling: a) a concepção do absoluto como indiferença; b) o fato
de que essa concepção envolve a constituição ontológica do mundo; c) a inter-
relação entre a constituição do mundo e os resultados da exposição científica
da relação entre absoluto e manifestação. Tudo isso implica a possibilidade de
estabelecer uma analogia – desenvolvida na "Filosofia da arte" – entre o
discurso divino e o mundo como expressão dele.20 Não é por acaso que Schelling
chega a escrever que "cada mineral é um autêntico problema filosófico",21 no
sentido em que as categorias elaboradas pela filosofia, e que pertencem à
explicação especulativa da relação entre princípio e saber, coincidem com as
determinações materiais da própria natureza. Então, toda compreensão da
natureza destaca a mesma dinâmica da especulação filosófica.
Assim, pelo menos em Schelling, a constituição da realidade como discurso
significante, ou seja, a possibilidade de considerar o mundo como estruturado
linguisticamente, não reflete uma perspectiva antimetafísica, mas se põe acima
de uma metafísica realista do absoluto, entendida como extensão e alongamento
da filosofia transcendental, em que as leis da constituição do mundo como
manifestação do absoluto correspondem às leis lógicas necessárias para a sua
compreensão científica e à linguagem que a expõe.
Essa é a tese que Fichte criticará. Já em uma carta a Schelling de dezembro de
1800, Fichte explica que, do ponto de vista da doutrina da ciência, tornar a
natureza como um "analogon" do pensamento é o "fundamento dessa e de outras
divergências entre nós", é um "erro". De fato, o "eu não pode [...] ser
explicado a partir disso".22 Ou seja: não é possível definir a constituição da
natureza por meio das leis necessárias para a compreensão do eu; ou melhor:
toda explicação da natureza tem sempre que ser conduzida indiretamente como
explicação da rede de limitações que tornam o eu um sujeito concreto, o qual
tem uma relação necessária com a natureza. E, claro, não porque inexiste um ser
que fique fora do eu,23 mas porque não há ser que não permaneça numa relação
com uma subjetividade que o compreende concretamente.
Daí se consegue um horizonte teórico geral e constante das críticas de Fichte a
Schelling, que também permanece constante nos anos seguintes. O absoluto não
pode ser duplicado, mas "através do seu ser tem esgotado o seu para (Von)".24
Em outras palavras, o absoluto não pode sair fora de si. Ele é neste sentido
absoluto: está dissolvido de toda relação e, portanto, de toda existência. O
absoluto não expressa, nem possibilita começo nenhum. "Deus não existe, mas
existe apenas o seu fenômeno".25 Pois "a nossa filosofia é consequente. Não se
pode atribuir o ser a ninguém, nem imediatamente, nem mediatamente".26 Apenas a
reflexão filosófica, que põe o problema da compreensão do absoluto, o leva a
existir, mas não enquanto absoluto, mas sim enquanto fenômeno. O ser do
fenômeno, porém, é somente uma forma do ser, um ser fora do ser. A sua
constituição ontológica deve ser esclarecida mediante o eu como fato absoluto.
A explicação desse fato fica na base de toda reflexão sobre o ser e envolve
toda compreensão sobre ele.27
Segundo Fichte, Schelling postula a existência de um único absoluto. Porém, ao
mesmo tempo introduz tacitamente um segundo ser ou, como já vimos, uma
repetição do ser por meio de dois começos. Schelling não esclarece que essa
repetição diz respeito ao fenômeno, à reflexão, à compreensão do ser, mas não
alcança o próprio ser, do qual não é possível uma compreensão direta.28 O ser
pode ser semantizado,29 isto é, problematizado no contexto de uma visão
reflexiva. Porém, essa problematização transforma o ser na lei do saber que
observa a si mesmo e exprime a estrutura essencial de referência ao outro de
si, sem poder afirmar nada sobre a constituição do que sabe no saber.
Essa argumentação, que Fichte desenvolve contra Spinoza, mas que pode a
fortiori funcionar contra Schelling,30 revela a dimensão tipicamente
transcendental e recursiva da doutrina da ciência.31 Na doutrina da ciência, de
fato, não há afirmações sobre o ser que sejam diferentes da justificativa mesma
de haver uma afirmação sobre o ser. A demonstração da existência não acontece
com respeito ao próprio ser, mas em relação à sua manifestação. A existência do
fenômeno não pode ser observada no processo da constituição histórica e
linguística da natureza senão focando a atenção para uma operabilidade geral da
razão, que, por sua vez, não justifica a natureza, mas as condições para sua
compreensão de um ponto de vista transcendental. Portanto, Fichte considera a
natureza não como Folge (consequência) do absoluto, mas como reflexibilidade
(Reflexibilität) do saber como imagem dele.
Sobre essa base, Fichte nega tanto a possibilidade de estabelecer uma analogia
entre o saber e a natureza, como aquela de considerar a natureza como algo que
está estruturado linguisticamente. A linguagem, de fato, é considerada como um
organismo, característica fundamental do qual é a designação simbólica do mundo
suprassensível. Uma linguagem, então, é tão desenvolvida, quanto mais é capaz
de expressar uma correspondência entre a referência empírica da designação
linguística e o significado inteligível dela; ou seja, na medida em que é capaz
de esclarecer a designação empírica como reflexo de uma lei que não é
empírica.32 Também a linguagem que Fichte emprega na exposição da doutrina da
ciência não tem que ser uma expressão analógica de um discurso (Rede) feito
para um absoluto pessoal, mas indica as habilidades simbólicas de quem constrói
e ensina a própria doutrina da ciência, isto é, o Wissenschaftslehrer. A função
dele, de fato, deve ser aquela de elevar os seus alunos ao ponto de vista
transcendental por meio de símbolos, analogias e metáforas, que são empregadas
para dobrar as determinações de uma língua natural ao novo mundo aberto pela
filosofia transcendental.33 Claro que aqui não fica implícita só a tradição da
filosofia da linguagem alemã (Böhme, Hamann, Herder); pode-se encontrar também
Jacobi. Este, embora concordasse com Hamann e com a sua concepção do mundo como
palavra divina, considera inevitável a dimensão abstrata e instrumental da
linguagem.34 Ao mesmo tempo, a compreensão fichtiana da linguagem é
condicionada pelas teorias transcendentais que foram formuladas por Bernhardi
nos primeiros anos do século xix segundo os princípios da doutrina da
ciência.35 Uma vez que Fichte poderia ficar longe das sugestões do Linguistic
turn, a sua concepção instrumental da linguagem parece mais coerente com o
projeto de uma filosofia transcendental. De fato, a teoria fichtiana do
absoluto ficaria longe de um realismo metafísico que tende a compreender o
absoluto como um ser que existe realmente e que fica fechado em si mesmo, mas
muito próximo a um modelo teórico que, na problematização do absoluto, torna-se
consciente das suas potencialidades práticas.36
Essa primeira série de considerações evidencia, além disso, uma diferente
função da analogia em Fichte e Schelling. Segundo Schelling, analógica é a
relação metafísica entre absoluto e manifestação. Ora, a relação analógica
determina também as maneiras pelas quais a manifestação se articula na
história. Em Fichte, pelo contrário, o recurso à analogia tem uma função
instrumental e ela é empregada na reconfiguração da relação entre a
manifestação e si mesma como uma operabilidade geral da razão, a partir da qual
é, então, possível olhar a manifestação como imagem do absoluto. Nesse sentido,
a visão de Schelling e aquela de Fichte são especulares. O discurso de
Schelling sobre a dimensão simbólica da finitude é condicionado pela analogia.
Em Fichte, as potencialidades analógicas da linguagem ficam condicionadas pela
própria estrutura da razão, enquanto apresentação fenomênica do absoluto que
tem que compreender a si mesma enquanto tal.
3 Simbolizações do absoluto
A concepção da linguagem proposta por Fichte não tem, então, o mesmo
significado especulativo daquela de Schelling. De fato, Fichte explica a função
da linguagem na construção da doutrina da ciência no contexto da definição da
"Kunst des Philosophierens" (a arte de filosofar). A arte de filosofar abarca o
conjunto dos requisitos necessários para acessar a perspectiva da doutrina da
ciência. Schelling foca isso nas "Lições sobre o método de estudo acadêmico".
Porém, em Fichte a linguagem tem uma função heurística e simbólica. Em
Schelling, a linguagem está em relação com o descer ao tempo das ideias
eternas. Em Fichte, a língua natural e a tradição exprimem a necessidade de
inventar novas palavras e uma nova língua capazes de exprimir os progressos da
filosofia.37 Em Schelling, ao contrário, a tradição é o reflexo de uma queda e
de uma historicização do absoluto.38
Tudo isso parece evidente quando se considera que a concepção do símbolo, da
analogia e da metáfora, que Fichte desenvolve a partir de 1810, é muito mais
limitada do que a schellinguiana e, em especial, aquela da "Filosofia da arte",
de Schelling.
Em Fichte, as metáforas, as analogias e os símbolos têm a função de tornar
possível a passagem entre o saber comum e o saber completamente novo que pode
ser obtido na perspectiva transcendental. O conhecimento científico, como o das
regras e das leis da conexão do fenômeno com a sua causa, envolve um emprego da
linguagem capaz de acionar uma dinâmica que produz conexões que fazem sentido
sem ter uma referência aos objetos que existem de fato.39 Com efeito, a
linguagem expositiva da doutrina da ciência é uma linguagem figurada ou, nas
palavras de Fichte, uma linguagem simbólica (sinnbildlich).40
O emprego simbólico da linguagem caracteriza, em primeiro lugar, a atividade do
professor (Wissenschaftslehrer), o qual habilita os alunos por meio do emprego
de construções linguísticas particulares que são capazes de mediar o complexo
de conhecimentos oferecido pela consciência comum e o nível suprassensível da
doutrina da ciência, a qual, num contexto de relações puras, representa o
terminus ad quem da formação científica. Um autêntico professor da doutrina da
ciência (Wissenschaftslehrer) deve ser capaz de produzir "metáforas viventes".
Ele tem que ter um domínio da linguagem que possibilita uma exposição dos
conteúdos da doutrina da ciência capaz de sempre tocar diferentes alunos.41
Nesse sentido, Fichte aproxima-se da tradição da retórica antiga; suas
metáforas correspondem ao esquema próprio da analogia proportionalis que pode
ser expresso na fórmula A: B = C: X.42
Do ponto de vista de quem tem que apreender a doutrina da ciência, o emprego
simbólico da linguagem solicita uma reflexão sobre o dado empírico e uma
consideração crítica dessa própria reflexão. A recepção produtiva das
expressões simbólicas da doutrina da ciência exige um exercício e uma atenção
para as conexões entre a representação e os fenômenos.43 A construção de novas
conexões entre complexos de implicações conhecidos representa o instrumento
principal para conseguir os objetivos da compreensão: não se trata da
compreensão de fenômenos determinados, mas consiste em apreender as regras da
multiplicidade fenomênica que não tem que ser necessariamente percebida. A
figuração linguística não implica só a extensão ou a repetição mecânica de
esquemas epistemológicos notórios. Ela exige, antes, que quem acolhe a
expressão figurada troque as estruturas fundamentais do próprio conhecimento,
passando de um conhecimento já obtido a um conhecimento completamente novo.
A expressão figurada, na verdade, não poderia ser traduzida num conjunto de
proposições que têm um significado literal. Nem o aumento do conhecimento que
surge por meio da expressão figurada pode ser reconduzido a uma relação
unilateral entre os complexos de implicações das palavras que a constituem. O
sucesso das analogias do Wissenschaftslehrer exige a cooperação do aluno. Esse
aluno tem que intuir o que há de "ressoado" nas expressões do próprio
Wissenschaftslehrer e tem que se dispor, dessa maneira, a acessar a "densidade"
das implicações que definem a dinâmica simbólica presente na expressão
figurada.44 O aluno não é passivo, nem fica paralisado por causa da expressão
figurada da qual recebe as sugestões. Ele compreende concretamente a figuração
linguística apenas quando se torna capaz de "fazer algo" de novo a respeito da
consciência ordinária e em razão da expressão figurada; ou, como Fichte escreve
na WL/11, no momento em que ele sabe "aplicar" a intuição que surge a partir da
própria figuração linguística.
O aumento do conhecimento provocado pela simbolização linguística não consiste,
portanto, numa extensão do conhecimento, mas na capacidade de empregar de uma
maneira diferente os esquemas epistemológicos adquiridos. Nessa capacidade de
fazer algo diferentemente, consiste a autêntica "descoberta" exigida para o
aluno da doutrina da ciência. O progresso do conhecimento implícito no emprego
figurativo da linguagem consiste na capacidade de experimentar, ou seja, de
formular hipóteses que permitiriam a compreensão de uma maneira legítima sobre
os fenômenos que não são vinculados a um dado da percepção;45 e isso na medida
em que a linguagem figurada descreve as coisas, mas não consiste numa asserção
sobre os fatos.
Nesse contexto, torna-se possível diferenciar o emprego fichtiano das
diferentes figuras retóricas: a dimensão simbólica geral da linguagem permite
formular metáforas e, a partir destas, estabelecer analogias entre o que se
percebe empiricamente e o que não é empírico e que deve ser evidenciado pela
doutrina da ciência.
A interpretação do mesmo problema, oferecida por Schelling na "Filosofia da
arte", é diferente. Pode ser mais complexa e não fica restrita a uma
compreensão dos diferentes níveis ou dos possíveis empregos da linguagem
ordinária. Schelling investiga, de fato, a relação entre filosofia, linguagem,
arte e religião. No §39 da "Philosophie der Kunst", a linguagem é somente uma
modalidade possível de articular simbolicamente o finito, mas não esgota
completamente o próprio horizonte do simbólico, que tem compreendido como
capacidade de representar o absoluto como indiferença entre particular e
geral.46 Mesmo essa representação, que em Schelling é chamada de mitologia, é
diferenciada da linguagem comum e se torna uma "linguagem superior" que fornece
a matéria seja à filosofia, seja à arte.47
A linguagem é um esquema, ou seja, uma expressão de determinações particulares
do pensamento que pode ser efetuada pelo emprego de signos gerais.48 O esquema
deve ser distinguido da alegoria, em que o particular exprime uma referência
constante para o geral e é absorvido no próprio geral.49 O esquema e a alegoria
têm que ser, além disso, diferentes do símbolo. É aí que geral e particular
coincidem. A imagem alegórica diferencia-se do original somente na medida em
que não tem a mesma determinação espacial do próprio original.50
A concepção schellinguiana do absoluto como ponto de indiferença entre dois
começos que podem ser articulados na história não é compatível com a
possibilidade de considerar alegoria, símbolo e esquema como três figuras
retóricas equivalentes, nem como três momentos diferentes de um progresso
linear; nem, enfim, como três especificações da constituição transcendental do
sujeito representante. Elas são, mais propriamente, três articulações
diferentes da manifestação do absoluto. O símbolo, que em Fichte foi a base
para formar a doutrina da ciência e uma indicação da abertura da razão teórica
num horizonte prático, torna-se, em Schelling, uma expressão da impossibilidade
de uma representação realizada da integração e da reciprocidade do dado
histórico e do raciocínio especulativo, do particular e do geral, do finito e
do infinito, que é necessária para sustentar uma concepção do absoluto como
indiferença. O símbolo caracteriza a arte e a religião grega, em que o geral já
é o particular; o finito coincide com o infinito e o presente coincide com o
passado e o futuro. Se, num primeiro momento, o símbolo pode ser interpretado
como síntese do esquema e da alegoria, agora o símbolo contrapõe-se a eles.
Esquema e alegoria são, de fato, capazes de exprimir melhor a distinção e a
separação entre finito e infinito, e a estrutura essencialmente referencial do
finito. Mas a significação típica do esquema não é suficiente para refletir a
complexidade da mitologia. O esquema articula o geral como propriedade de um
indivíduo, o qual, aplicando o esquema, realiza o particular. No caso da
alegoria, ao contrário, o processo é o inverso. A representação particular é
alegórica, remete a além de si, e tende a se anular no que ela significa. O
esquema exprime uma ação poiética, ou seja, uma ideia que é realizada num
produto exterior. A alegoria exprime uma praxis, isto é, uma ação que visa para
um terminus ad quem que nunca pode ser realizado; nesse sentido, a alegoria se
esgota nesse próprio pôr.
Há duas consequências interessantes nesse raciocínio. A primeira envolve a
preeminência do símbolo; embora ele mantenha uma preeminência lógica e
transcendental, o símbolo é subordinado ao esquema e à alegoria de acordo com
as suas potencialidades representativas. Schelling deve restringir sua
concepção da linguagem como símbolo e substituir essa concepção por um conceito
de mitologia como linguagem superior que privilegia a alegoria – o que parece
mais coerente com uma compreensão do absoluto como indiferença. A segunda
consequência envolve o problema da relação entre história e absoluto. A
"filosofia da identidade" não pode se limitar a uma representação geral do
absoluto (o que segundo Schelling é a representação filosófica) como
indiferença do geral e do particular. É preciso produzir uma representação
dessa indiferença no próprio particular, que é compreendido como concretização
histórica de uma ideia. De maneira mais específica, a concepção schellinguiana
implica uma valorização da representação do absoluto em que história e
especulação vão coincidir ou, melhor, daquela representação em que o absoluto é
intuído como história: o cristianismo cuja natureza é precisamente alegórica.51
Então, ao passo que Fichte aprofunda os princípios do saber na doutrina da
ciência por meio de uma concepção da linguagem como abertura essencial do
finito (do saber factual) à sua razão não empírica – o que é evidenciado de uma
maneira específica na flexibilidade das exposições da doutrina da ciência –, em
Schelling a tentativa de uma radicalização da filosofia da natureza numa
filosofia da identidade envolve uma "simbologia do absoluto" e encerra o
processo de significação do absoluto numa concepção da história como totalidade
das manifestações de um único núcleo especulativo. Essa importante divergência
entre o projeto fichtiano e o de Schelling vai afetar a compreensão da igreja
como lugar em que o absoluto se manifesta como símbolo. Assim, desenvolverei as
implicações filosófico-religiosas da divergência estética e especulativa que
caracteriza o trabalho dos dois autores.
4 Igreja e símbolo
A valorização da história é imanente ao desenvolvimento especulativo da
filosofia de Schelling, também de um ponto de vista metodológico. A
"construção" de um fenômeno como manifestação do absoluto, de fato, é acrescida
à "apresentação da unidade do geral e do particular"52 e pode ser efetuada
tanto mostrando como em cada particular está presente uma mesma forma absoluta
(por exemplo, o puro espaço na construção de uma figura geométrica), como
mostrando que o universal de cada unidade particular (como, por exemplo, um
triângulo em si em relação a um triângulo particular) é o mesmo do particular
(e então cada triângulo particular perante todos os triângulos particulares).
Não é difícil interpretar esse conceito como uma repetição da distinção, típica
da "Filosofia da arte", entre símbolo (conceito geral de construção) e alegoria
(particular que é refutado em seu significado geral). Por essa razão, o
cristianismo pode ser descrito por meio de uma "construção histórica". No
cristianismo, de fato, a manifestação particular do absoluto significa o geral
como unidade de particular e geral.
Como já foi dito, no cristianismo a intuição do universal e a do universal como
processo histórico coincidem. Além disso, o fato de que a intuição cristã da
história estabelece unicamente sua direção, deixando indefinida sua realização,
torna o cristianismo tipicamente alegórico: ele é expressão de uma referência
infinita do significante ao significado que não vai cumprir o próprio processo
de significação.53
O cristianismo, stricto sensu, não tem símbolos, mas ações simbólicas, ou seja,
representações cujo conteúdo é um agir que manifesta a ligação entre um fato
histórico-concreto e a sua essência. O agir revelado na intuição cristã da
história manifesta-se como uma obra de arte viva, um drama espiritual no qual
todo mundo participa.54 A comunidade evidenciada nessa dinâmica é a Igreja. Ela
é, em geral, símbolo e, em particular, alegoria do absoluto. É no culto que é
expressa a característica simbólica da comunidade da Igreja e, na medida em que
no agir inteiro da comunidade da Igreja é o reino de Deus que é manifestado
como reino visível, a potencialidade simbólica da Igreja implica que sua
estrutura seja hierárquica. Numa palavra, a Igreja, cuja característica geral é
aquela de ser símbolo vivo do reino de Deus, tende para o catolicismo: uma
entidade hierárquica, totalizante e representativa de um processo de
significação infinita.55 Não é por acaso que Schelling considera a Igreja como
símbolo e não imediatamente como alegoria. A Igreja, de fato, não é a resolução
de símbolos que já existem, mas o horizonte que permite às ações particulares
terem um significado, ou seja, existirem como alegorias; mais propriamente,
serem assumidas no reino da significação.56
O significado histórico-especulativo que Schelling atribui ao catolicismo não
pode ficar mais distante do tratamento fichtiano da relação entre símbolo e
Igreja. Ao "papismo" da Igreja católica,57 Fichte contrapõe o protestantismo,
que é capaz de compreender o símbolo como abertura do finito à sua infinita
razão prático-teórica e, nesse sentido, como representação da ligação entre
sensível e suprassensível. Em Schelling, pelo contrário, o símbolo é a
expressão histórico-concreta da manifestação do absoluto na mitologia; em
Fichte, o símbolo é coerente com sua concepção da linguagem. O símbolo é uma
construção que reflete, com certeza, a concretude histórica do gênero humano,
mas ele é, ao mesmo tempo, expressão de uma constante perfectibilidade, tanto
de si mesmo como expressão linguística e representativa, como do que é
representado nessa representação, ou seja, da manifestação da ideia ética no
mundo sensível.
Se em Schelling a estrutura simbólica da Igreja manifesta uma relação
específica entre particular e geral, em Fichte o símbolo exprime um grau mínimo
de moralidade e de racionalidade, que são necessários a fim de que "todos
possam condicionar a moralidade de todos; em primeiro lugar em relação à sua
ação [...] e, depois, sobre a sua convicção e visão".58 Na "Sittenlehre"
fichtiana, de 1798, trata-se de um dever particular do sujeito concreto. Nas
lições de 1812 a mesma exigência é integrada na fenomenologia da "Ética", ou
seja, no percurso que define as condições de possibilidade da manifestação da
ideia ética num agir individual. Para tanto, o símbolo, embora tenha uma raiz
histórica, reflete a entrada da ideia ética no mundo sensível por meio de
"espíritos geniais", que pela primeira vez conseguem exprimir em representações
o próprio ideal ético,59 e aperfeiçoada para "espíritos simbólicos",60 cuja
tarefa é tornar sempre mais coerente a representação simbólica e a própria
ideia ética que deve ser encarnada por todos.
Em relação a esse ponto, o símbolo difere da revelação. A revelação apresenta-
se, de fato, como algo que pela primeira vez existe por meio do conceito, a
qual tem que ser comunicada a uma pessoa singular por uma linguagem ainda
desconhecida. O símbolo, ao contrário, é algo que mantém unida uma comunidade,
ou melhor, é a condição de possibilidade da manifestação de Deus num horizonte
comunitário.61 A revelação, em contrapartida, é uma manifestação concreta e
factual mediante a visibilidade, a compreensibilidade e a comunicação dessa
manifestação.
Daí deriva uma complicação da relação entre moralidade e religião. É verdade
que, em Fichte, existe uma identificação entre moralidade e religião. O símbolo
e a revelação são modos pelos quais a ideia ética se manifesta como imagem de
Deus. Mas essa identificação é paralela à afirmação de um destino religioso da
moralidade. A ação ética é, de fato, aprofundada a uma intenção ético-religiosa
que pressupõe uma fé em Deus como ordem moral do mundo.62 Então, não seria um
erro falar de um destino cristológico da doutrina da ciência, pois a
compreensão das manifestações da liberdade "exige para si mesma a encarnação
concreta de uma liberdade que esteja unida à sua própria destinação. Essa
encarnação é, segundo Fichte, Jesus".63
Assim, enquanto o fato da encarnação já é uma ação que permite exercitar a
moralidade reforçando a convicção de todas as pessoas por meio de uma ação
concreta, como Fichte já sustentava no escrito de 1791, "Sobre as intenções da
morte de Jesus", o símbolo promove a moralidade na medida em que comunica uma
exigência e, nesse sentido, torna possível a participação de um conjunto de
indivíduos na realização de um fim comum que coincide com o fato realizado na
revelação. Daí deriva que a formação da Igreja corresponde bem mais a uma
formação histórica do que a uma possibilidade permanente de uma comunidade cujo
fundamento está na estrutura transcendental do eu como imagem do absoluto.
Não é por acaso, então, que a descrição fichtiana recupera algumas formas
argumentativas das exposições da doutrina da ciência: a estrutura simbólica
envolvida em cada comunicação linguística e representativa sempre permite mais
determinações metafóricas e analógicas capazes de manifestar numa maneira
assentida, e sempre mais coerente, o significado implícito no símbolo. Então, é
sempre possível que uma comunidade seja formada por meio de um símbolo, cuja
estrutura representativa não é dada, mas formada e renovada pelo próprio juntar
e formar da comunidade. O fato de que, segundo Fichte, essa seja uma
característica da religião protestante, e que o protestantismo seja mais
coerente com o nível em que chega a modernidade, pode ser demonstrado numa
análise das conexões entre as formas representativas do cristianismo e as
estruturas históricas, antropológicas, teológicas e especulativas que as
condicionam.64
Porém, Schelling já confirma tudo isso ao escrever que "o espírito da época
moderna tende evidentemente a anular todas as formas simplesmente finitas",65 e
que "o protestantismo não poderia criar uma união positiva, nem uma
manifestação simbólica exterior na forma de uma igreja".66 É verdade que o
catolicismo se torna muito mais coerente com a dimensão alegórica da relação
entre finito e infinito. Mas a significação infinita da alegoria não anula o
problema da relação entre o absoluto e a sua dimensão histórica que é expressa
pelo cristianismo. E isto significa que as categorias estéticas e linguísticas
empregadas por Schelling não são mais suficientes nem ao desenvolvimento da
filosofia primeira, que no começo do século xix não pode parar na simetria do
histórico e do especulativo, nem na filosofia da religião, pois nesse nível a
relação entre religião histórica e religião absoluta não pode ser resolvida e
dissolvida. A dimensão católica da Igreja põe o problema da totalização da
história no absoluto, mas não anula a tensão entre o absoluto e a história.
O fato de que, para justificar o discurso de Schelling, seja necessária a
justificativa da relação entre história e absoluto, e que essa justificativa
pode se dar no espaço de um saber que deve ser compreendido em seus princípios,
parece algo inevitável a ser realizado. E parece inevitável também o perigo de
se fechar numa filosofia transcendental à la Fichte.67 Mas Schelling também
poderia realizar um percurso alternativo, ou seja, aquele da "Filosofia da
revelação", em que há uma forte tentativa de reduzir o especulativo ao âmbito
histórico, isto é, a um aniquilamento da tensão entre esses dois elementos. A
demonstração de uma tentativa desse tipo, que fica na base da dissolução
pósidealista do problema da religião absoluta e, por conseguinte, da
possibilidade de refletir sobre o triunfo do significado realizado, ou da
identidade, ou da autotransparência do espírito, não faz parte deste
trabalho.68 Aqui é suficiente que se tenha demonstrado como a polêmica entre
Fichte e Schelling não diz respeito somente às questões de princípio, mas
também às diversas dimensões do desenvolvimento sistemático do pensamento
desses autores. Assim, foram apresentados os instrumentos que ambos empregam
para realizar seus projetos filosóficos, e, sobretudo, suas reflexões sobre o
cumprimento das suas propostas.
1 Zöller_(2003,_pp._169-170).
2Uma tratação da relação entre a filosofia primeira de Schelling e as suas
consequências no âmbito da filosofia da religião foi desenvolvida por Olivetti_
(1974). Olivetti considera a filosofia de Schelling como expressão de uma
tendência geral da filosofia idealista e romântica, conforme a qual "a inquieta
busca do originariamente idêntico, a insatisfeita exigência de significado, é
um tema que se ergue imediatamente da problematização romântica da relação
entre indivíduo e universo, que não se esgota na configuração idealista que se
põe sob o signo da idealidade" (p. 9). Retomando e aprofundando as teses de
Löwith, Olivetti tenta mostrar como a filosofia de Schelling pode ser
interpretada como a última tentativa para resolver a relação entre indivíduo e
universo no espaço de uma filosofia especulativa do absoluto. O caminho
especulativo de Schelling, que passa da filosofia da identidade à filosofia
positiva, demonstra, porém, que uma solução puramente especulativa do problema
não seja possível, justamente porque a pura especulação não consegue dar conta
do elemento histórico da religião que, quer em Schelling, quer em Hegel, Fichte
ou Schleiermacher, apresenta, sem demonstrá-la, a totalização a que a
especulação anseia. Olivetti, porém, limita-se em descrever a posição de
Schelling, mas não considera, nem histórica, nem teoricamente, a relação entre
Fichte e Schelling entre 1809 e 1813.
3BW, pp. 104-5. Servir-nos-emos no presente artigo das abreviaturas indicadas
nas Referências.
4STI, pp. 341-2.
5BW, pp. 110, 113.
6BW, p. 121.
7UMF, p. 338.
8Idem.
9UMF, p. 351.
10Sobre a continuidade entre a exigência fichtiana e a reprise schellinguiana,
cf. Sandkaulen_(2004) e Zöller_(2004). Sandkaulen, em especial, destaca a
retomada fichtiana de Espinosa nas últimas exposições da doutrina da ciência
como instrumento para tentar aproximar o ponto de vista transcendental da
doutrina da ciência a uma ontologia vizinha do realismo jacobiano. Sobre a
valorização do pensamento de Espinosa na filosofia clássica alemã, cf. Olivetti
(1974), que destaca também o papel desempenhado pelos "Discursos sobre a
religião" de Schleiermacher, e os capítulos de Walther_(1992), para um
aprofundamento da perspectiva histórica.
11UMF, p. 350.
12UMF, p. 352.
13UMF, p. 357.
14UMF, p. 358.
15UMF, p. 406.
16UMF, p. 408.
17UMF, p. 358.
18Sobre isso, cf. Bär_(1999,_pp._158-159).
19PK, p. 133
20Idem.
21VAS, p. 78.
22BW, p. 110.
23Como sustenta Schelling em vas, pp. 140-141.
24WL/10, p. 30.
25WL/10, p. 32.
26WL/10, p. 33.
27WL/10, p. 131.
28wl/11, pp. 31-35.
29Para um esclarecimento dessa expressão, cf. Ivaldo_(2003), que lê o percurso
da doutrina da ciência como uma definição das condições de possibilidade para
formular um discurso sobre o ser, ainda que seja um discurso formulado no
âmbito do fenômeno.
30Esta interpretação de Espinosa como um Schelling disfarçado foi sugerida por
Ivaldo_(1988).
31Sobre a recursividade da doutrina da ciência, cf. Bertinetto_(2007), que
compreende a doutrina da ciência como discurso que visa justificar e legitimar
a si mesmo por meio da compreensão dos seus pressupostos.
32RDN, p. 320.
33wl/11, p. 18.
34Sobre isso, cf. Olivetti (1970).
35 Bernhardi_(1801) e Bernhardi_(1805). Sobre Bernhardi e a filosofia
transcendental, veja Perconti_(1999), que, todavia, não trata da relação entre
Bernhardi e Fichte.
36Essa é a tese de Olivetti_(1992,_p._85), que interpreta a filosofia da
linguagem envolvida na doutrina da ciência de Fichte como consequência da
dimensão originariamente intersubjetiva da consciência concreta.
37GA, I, 2, p. 118.
38VAS, pp. 29-30.
39Idem.
40WL/11, p. 19.
41GA, IV , 4, p. 21.
42Sobre isso e, mais em geral, sobre o emprego fichtiano da analogia, cf.
Österreich-Traub_(2006,_pp._93-95).
43GA, IV , 4, p. 22.
44Os conceitos de "ressonância" e "densidade" são empregados no sentido de
Black_(1983,_pp._97-135).
45GA IV, 2, p. 23.
46PK, p. 54.
47PK, p. 56. Para uma apresentação detalhada da função e do desenvolvimento da
mitologia em Schelling, cf. Curtine_(2007).
48PK, p. 56.
49PK, p. 55.
50Na medida em que esquema, símbolo e alegoria, representam três diferentes
formas da imaginação, é possível estabelecer entre eles uma Stufenfolge que
reflete as articulações do pensamento e, ao mesmo tempo, as da natureza e das
relações entre o eu e o mundo. O pensamento em si mesmo já é esquematizante, o
agir é alegórico, a arte é simbólica. Uma mesma distinção é válida para a
ciência (dividida em aritmética, geometria e filosofia), para a arte (música,
pintura, plástica) e para a poesia (dividida em lírica, épica e dramática).
51VAS, p. 171.
52VAS, p. 92.
53PK, p. 75, p. 78; vas, p. 171, p. 181.
54PK, p. 82.
55PK, p. 83.
56VAS, p. 183.
57SL/98, p. 242.
58SL/12, p. 380.
59SL/12, p. 382.
60SL/12, p. 383.
61Idem.
62Cf. Ghia_(2003,_pp._79-80), que destaca esta dinâmica como o movimento
fundamental da filosofia da religião de Fichte no seu entrelaçamento com a
ética.
63 Ivaldo_(2000,_pp._133-134).
64Cf. Olivetti_(1967). Olivetti reconduz a diferença entre protestantismo e
catolicismo justamente a uma maneira diferente de compreender a relação entre
história e especulação. Ao passo que no protestantismo a liberdade tem uma
função central, atestando uma prevalência da dimensão especulativa e subjetiva
sobre a histórica, no catolicismo a afirmação da liberdade fica subordinada à
representação, isto é, a um elemento histórico que não pode ser recuado. Não
apenas o desenvolvimento da filosofia moderna, mas o da arte e o da arquitetura
sacra também ficam caracterizados por esta tensão (cf. por ex. p. 107).
65VAS, p. 200.
66Idem.
67Este perigo está assinalado com muita clareza por Olivetti_(1967,_p._287).
68Cf. Olivetti_(1974,_p._22), que alega que a Filosofia da revelação fica já
para além da tensão entre história e especulação, destacando o fracasso do
chamado "idealismo alemão".
Abreviações
Fichte
GA = "Johann Gottlieb Fichtes Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der
Wissenschaften". Ed. R. Lauth, H. Jacob, H. Gliwitzky. Stuttgart-Bad Cannstatt:
Fromman-Holzboog, 1962-. I, Werke; II, Nachgelassene Werke; III, Cartas; IV,
Nachschriften.
RDN = "Reden an die deutsche Nation". In I.E. Fichte (Ed.). Fichtes Werke, vol.
VII. Berlin: de Gruyter, 1971.
SL/12 = "Sittenlehre 1812". GA II, 13.
SL/98 = "Das System der Sittenlehre nach den Principien der
Wissenschaftslehre". Ed. H. J. Verweyen. Hamburg: Meiner, 1995.
WL/10 = "Wissenschaftslehre 1810". Ed. H.G. von Manz: Die späten
Wissenschaftlichen Vorlesungen, T. I. (1809-1811). Stuttgart-Bad Cannstatt:
Fromman-Holzboog, 2000.
WL/11 = "Wissenschaftslehre 1811". Ed. G. Rametta. Milano: Guerini, 1999.
Schelling
BW = "Fichte-Schelling Carteggio e scritti polemici". Ed. F. Moiso. Milano:
Guerini, 1989.
PK = "Philosophie der Kunst". In: O. Weiss (ed.). F.W.J. Schelling, Werke.
Auswahl in drei Bänden, Vol. 3. Leipzig: Eckardt, 1907.
STI = "System des transzendentalen Idealismus". In: K.F.A. Schelling (ed.).
Schellings sämmtliche Werke, Vol. 3. Stuttgart-Augsburg: Cotta 1860.
UMF = "Philosophische Untersuchungen über die menschliche Freiheit". In: K.F.A.
Schelling (ed.) Schellings sämmtliche Werke, Vol. 7. Stuttgart-Augsburg: Cotta,
1860.
VAS = "Vorlesungen über das akademische Studium". Stuttgart: Cotta, 1813.