Aprendendo a lição: uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da
Juventude
Nenhuma sociedade é perfeita. Por natureza, todas comportam uma
impureza incompatível com as normas que proclamam, e que se traduz de
modo concreto numa certa dose de injustiça, de insensibilidade, de
crueldade. Como avaliar essa dose? A pesquisa etnográfica consegue.
(Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos)
No bairro do Brás, na cidade de São Paulo, funcionam algumas das "Varas
Especiais da Infância e da Juventude" (VEIJ). Para lá, são encaminhados jovens
com menos de 18 anos que cometem o que o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) chama de "ato infracional". Por ato infracional, entende-se "a conduta
descrita como crime ou contravenção penal" (ECA, cap. 1, art. 103).
As VEIJ abrigam as audiências para apurar a culpabilidade ou não do jovem e
então decidir qual medida sócio-educativa lhe deve ser aplicada. Tais
audiências são palcos privilegiados de disputas políticas que apresentam atores
já tradicionais no cenário dos conflitos envolvendo direitos da infância e da
adolescência. Configuram-se como momento singular, onde temos reunidos, numa
mesma cena, representantes da sociedade e do Estado juízes, promotores e
procuradores , os próprios jovens e, em alguns casos, suas famílias.
Aproveitando o crédito dado por Lévi-Strauss à pesquisa etnográfica, na citação
que abre este ensaio, pretendemos, a partir de uma etnografia dessas
audiências, mostrar como o Poder Judiciário tem um papel fundamental na
constituição da identidade de "menor infrator". Ainda que utilizando
instrumentos legítimos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, muitas
vezes o Judiciário o faz de maneira enviesada. Uma análise mais atenta das
audiências mostra como as relações estabelecidas nessa etapa do processo são
marcadas pela assimetria entre os atores, pela reafirmação constante das
hierarquias, por uma grande disputa e abuso de poder. O resultado mais
evidente, em grande parte dos casos, é a condução de audiências de forma pouco
convencional.
A análise ora apresentada é fruto da observação de "audiências de
conhecimento", isto é, audiências realizadas para apurar a culpabilidade ou não
do acusado. Sessões dessa natureza, pautadas por um conjunto de regras e normas
cujo objetivo formal é a aplicação da lei, são o espaço oficial para a
resolução de conflitos. Em outras palavras, numa audiência de conhecimento, o
juiz apura, após a leitura do processo na presença de um promotor público, um
procurador da Procuradoria de Assistência Judiciária gratuita, ou de um
advogado constituído, do próprio jovem acusado e em alguns casos seus pais ou
algum parente próximo , se esse jovem cometeu ou não um ato infracional. Se a
culpa for verificada, o juiz aplica uma medida sócio-educativa prevista pelo
ECA.
Esse espaço, contudo, mostrou-se um campo rico em teatralidade e dramaticidade,
onde além da ação legal do Estado, representado aqui pelo Poder Judiciário, nos
deparamos com todo um sistema simbólico específico que estabelece diálogos
muito particulares com as noções de menoridade, punição, culpabilidade e a
própria idéia de Estado.
Essa percepção sugere, em primeiro lugar, que a pesquisa etnográfica pode
contribuir para ampliar a compreensão dos mecanismos de funcionamento das
"Varas Especiais da Infância e da Juventude", colocando em perspectiva a tarefa
primordial que seria a aplicação da lei e a resolução de conflitos, para
iluminar aspectos que envolvem disputas de poder, posições políticas e
afirmação de valores. Nesse sentido, abandonamos aqui a idéia de que um
tribunal seria um espaço neutro para a resolução de conflitos, nos opondo ao
que Bourdieu identificou como "a representação nativa que descreve o tribunal
como um espaço separado e delimitado em que o conflito se converte em diálogo
de peritos e o processo, como um progresso ordenado com vista à verdade."2
Propomos uma interpretação das cenas apresentadas em cada audiência como uma
tentativa de lê-las na sua chave mais dramática: voltar o olhar para as tensões
e intenções, os valores em jogo e as disputas de poder que nos chamam a ver,
também nos termos de Bourdieu, o efeito simbólico do ato jurídico.
DA ANTROPOLOGIA E DO DIREITO (OU COMO DOMESTICAR SEU PENSAMENTO)
Lançar mão da antropologia, não só dos seus métodos de pesquisa, mas também de
seu arsenal teórico, para analisar o discurso do direito e de seu campo de
atuação é, na verdade, promover o encontro entre duas disciplinas que se
colocam em lados opostos no que se refere à dimensão simbólica do poder.
Podemos dizer que o direito opera na chave da "razão prática". Numa lógica de
causa e efeito, a aplicação da lei baseia-se numa correspondência direta entre
dado, fato, prova e a imagem de justiça. Para a antropologia, contudo, a idéia
de "realidade dos fatos", pura e simplesmente não cabe, ou pelo menos não vem a
ser uma preocupação exclusiva. Como aponta Clifford Geertz, há uma espécie de
preconceito advindo da idéia de que "o 'simbólico' se opõe ao 'real' como o
extravagante ao sóbrio, o figurativo ao literal, o obscuro ao simples, o
decorativo ao substancial". Ainda nas palavras do autor, a dramaturgia do poder
não é exterior ao seu funcionamento. O real, segundo ele, é tão imaginado como
o imaginário.3 Para falar do poder, a antropologia busca elementos que
constroem sua simbologia dramática.
A despeito da diferença de idade entre as duas, não é de hoje que a
antropologia e o direito têm encontrado espaços comuns de debate. Esses
encontros, contudo, têm se dado de maneiras muito diferentes. Nesse sentido,
propomos uma pequena reflexão acerca da trajetória das aproximações e
estranhamentos entre as duas disciplinas.
***
Para os juristas4, há uma relação imediata entre direito e sociedade. Na
verdade, mais do que isso, não há sociedade sem direito. Pois, para que o homem
"viva em sociedade", é imprescindível que os diversos interesses manifestos na
vida social, bem como os conflitos advindos desses interesses, sejam
orquestrados e resolvidos. Logo, o direito teria primordialmente a função de
ordenação social, sendo o Estado o meio para garantir essa ordenação. A
existência do Leviatã assegura, pela violência ou, mais especificamente, pelo
monopólio dela, que os homens não vivam na condição de "guerra de todos contra
todos".
Isso posto, poderíamos, de forma generalizante, assumir as premissas de que sob
a ótica jurídica não há sociedade sem Estado e de que o direito, na sua forma
de cultura legal, por conseqüência, é um valor universal. Ainda que
explorássemos as nuanças dos debates mais recentes sobre a universalidade do
direito e dos modos de organização social sob essa perspectiva, tentando com
isso relativizar a posição das ciências jurídicas, é certo que do ponto de
vista formal da disciplina poderíamos confirmar essas duas premissas5. Não se
trata de dizer que há por parte do direito uma preocupação em universalizar o
modelo, estendendo-o a sociedades que não a ocidental. Mas sim apontar uma
perspectiva de certa maneira ainda evolucionista e exclusiva por parte da
disciplina, uma vez que esta não "dá conta" de sociedades que não têm uma
organização social baseada num modelo que compreenda a figura do Estado.
Desse modo, não precisamos ir muito longe para perceber por que o ideário do
direito despertaria o interesse da antropologia. Se o primeiro parte de um
modelo universal para pensar a organização social, a segunda percorre o trajeto
inverso ao encontrar nesses modelos particularidades que põem em xeque a sua
própria generalização.
Se, para o advogado, a lei interessa na medida em que separa o certo do errado,
o lícito do ilícito, para o antropólogo a lei ou a legislação representam
apenas o aspecto formal do controle social, mais uma manifestação desse
conjunto de valores que poderíamos chamar de "cultura" (ainda que a definição
desse termo seja um desafio constituinte para a antropologia). Não se trata
aqui de menosprezar a importância da lei, mas apenas apontar que a ela somam-se
outros mecanismos de efetivação de autoridade e imposição da regra. Em outras
palavras, podemos dizer que o controle se dá pela via legal, mas também por uma
série de outros reguladores sociais que atuam em esferas de poder alternativas
àquelas gerenciadas pelo Estado, ligados, por exemplo, a noções como valor,
tradição, hierarquia, legitimidade e obediência.
O interesse da antropologia pelo universo das leis e sua aplicação na resolução
de conflitos não é recente. Junto com os subcampos da disciplina que aparecem
após a Segunda Guerra Mundial como, por exemplo, a antropologia política e a
antropologia da religião , está a antropologia do direito. 6 Assim como para o
restante da disciplina, os primeiros objetos de estudo da antropologia jurídica
foram as sociedades tradicionais ou ditas primitivas. As publicações de Crime
and custom in sauvage society, de Bronislaw Malinowski, em 1926, e
posteriormente de The Cheyenne Way: conflict and law in a primitive
jurisprudence, de Llewellyn & Hoebel, em 1941, marcam o início dos chamados
estudos de antropologia jurídica 7 para as escolas britânica e americana,
respectivamente. De maneira geral, nesses estudos, encontramos uma análise das
normas legais que regem as sociedades e de como são aplicadas na resolução de
conflitos ou disputas. Ao estudar as chamadas sociedades sem Estado sem
instituições formais como o Poder Judiciário, na maioria das vezes de tradição
oral, onde as leis não estão documentadas , o antropólogo se vê obrigado a
identificá-las "em ação": seria na mediação e resolução de conflitos que os
mecanismos de contenção e de ordenação social se revelariam. Por isso, no caso
específico da antropologia jurídica, o foco principal é o " estudo de
processos, e em particular os processos de acordo de disputas"8.
A idéia de observar a lei em ação sublinha o valor da pesquisa etnográfica na
promoção de uma análise antropológica de um fato jurídico. É como se
precisássemos assistir à aplicação da lei para interpretar seu funcionamento.
Logo, se os juristas naturalizam o direito, o trabalho do antropólogo é mostrá-
lo como uma construção pautada e orientada por um conjunto específico de
valores: o direito seria mais canal de compreensão de uma determinada cultura
ou de um aspecto cultural específico. Para tanto, coloca em xeque tais valores
que se apresentam sob a forma de leis, desvendando a simbologia de poder
manifesta nas relações entre partes conflitantes. Para os advogados, há, na
dinâmica dos processos judiciais, espaço para a "interpretação da lei". A
antropologia sugere que a ação de interpretar deve ser ampliada; tal
perspectiva nos propõe uma reflexão sobre a interpretação das ações jurídicas,
dos seus discursos, sobre as variações na aplicação da lei e, no limite, sobre
a própria idéia de justiça.
Formalmente, a atuação da pesquisa antropológica no campo do direito pode ser
classificada em três categorias: a chamada "antropologia legal", o campo de
atuação mais antigo e tradicional da antropologia no direito, que compreenderia
os estudos do direito em sociedades simples. Os trabalhos citados acima
poderiam ser classificados de tal maneira. A definição "antropologia jurídica"
refere-se aos estudos que fazem uso das técnicas de pesquisa da antropologia e
seu repertório teórico para estudar as instituições do Poder Judiciário e do
universo do direito como a polícia, as prisões ou as cortes. Finalmente, o
"direito comparado" constitui também um campo de atuação para o antropólogo, na
medida em que exige justamente o exercício do relativismo cultural próprio da
disciplina9.
Partindo dessa definição, poderíamos tomar a análise aqui proposta como um
trabalho de antropologia jurídica. Entretanto, interessam menos os limites que
tal rótulo pode colocar e mais as possibilidades que se abrem quando
interpretamos o discurso jurídico que se apresenta nas audiências. Na verdade,
nos valemos do que Clifford Geertz chama de "saber local", isto é, uma
tentativa de explicar fenômenos sociais "colocando-os em estruturas locais de
saber" 10, ou do que Pierre Bourdieu chama de "sistema simbólico particular",
para então apreender "o universo social especifico (no qual o direito) se
produz e se exerce"11.
A CRIANÇA E A LEI, O DESENVOLVIMENTO DA LEGISLAÇÃO
O Brasil conta hoje com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
instrumento legal criado pela Constituição Federal brasileira de 1988, Lei
8.069, em vigor desde 13 de julho de 1990. A criação dessa lei veio determinar
tratamento específico às crianças (até 12 anos de idade) e adolescentes (até 18
anos de idade) e teve grande impacto nas políticas de atendimento ao jovem, no
tratamento que este passou a receber da justiça e nas garantias dos seus
direitos fundamentais. Não devemos, no entanto, ter a percepção da criação do
ECA como um movimento brasileiro isolado, e sim como parte de um processo
mundial de consolidação dos direitos dos jovens. A revisão da legislação
brasileira está diretamente ligada a um movimento mundial de atenção, ampliação
e valorização dos direitos infantis, pautados por uma nova concepção de direito
e cidadania, que tem seu desenrolar ao longo do século XX, vinculado a uma nova
percepção da criança como ser humano em fase de desenvolvimento, com
particularidades, necessidades especiais e que conseqüentemente deve ter
direitos especiais, que vão ao encontro das necessidades dessa fase de
desenvolvimento. Nesse contexto, a criança e o adolescente adquirem status de
cidadãos plenos, com direitos que devem ser respeitados e protegidos, e passam
a ser encarados como prioridade absoluta da sociedade política e civilmente
organizada.
Como aponta Marques, há um consenso entre os autores que tratam do tema sobre a
caracterização da Constituição Federal de 1988, e do ECA em 1990, como marcos
históricos na criação de uma nova idéia de cidadania de crianças e adolescentes
12.
A criação e decreto do estatuto acarreta não só uma série de mudanças na
prática da lei, mas supostamente também na relação de responsabilidade entre
crianças e jovens, Estado e sociedade civil. O ECA apresenta uma nova forma de
tratamento e de nomeação. Numa tentativa de desfazer estereótipos criados a
partir da associação entre menor, crime e delinqüência, fala-se agora em ato
infracional em vez de crime, adolescente ou pessoa em desenvolvimento em
contraposição à expressão menor ou delinqüente juvenil. A mudança na
conceituação e essa conotação transitória que a infração adquire revelam também
a perspectiva de ressocialização presente na nova lei. Esta sempre foi uma
aposta do ECA.
O estatuto propõe, além disso, uma reestruturação dos instrumentos de justiça,
estabelecendo a criação de "Varas Especiais da Infância e da Juventude", em
oposição à justiça comum. Os menores de 18 anos, além de inimputáveis
penalmente, devem agora ser julgados de acordo com as infrações previstas no
Código Penal, mas num fórum de justiça especial.
Uma vez constatada a infração, o juiz pode aplicar ao adolescente alguma das
seguintes medidas sócio-educativas: advertência; obrigação de reparar o dano;
prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção; regime de
semiliberdade; internação em estabelecimento educacional 13.
Foi estabelecido pelo ECA que deve haver uma correspondência entre a medida
aplicada e a gravidade do ato infracional cometido. Além do quê, devem-se
priorizar medidas que possam ser cumpridas em meio aberto, isto é, que não
impliquem a internação e a privação da liberdade14.
Vamos nos deter aqui em dois aspectos sociais que considero marcas fortes do
estatuto e que são "bons para pensar" o sistema de justiça: o primeiro é a
substituição do caráter punitivo das medidas por uma postura sócio-educativa.
Vimos que a maior parte das medidas previstas no ECA não se configura como
supressão da liberdade. Mesmo a internação é pensada como uma medida sócio-
educativa, pois traduz a intenção do Estado em se responsabilizar pelo
adolescente. O segundo é a consolidação da idéia da criança como "sujeito de
direitos em condição peculiar de desenvolvimento", em contraposição à idéia de
adolescentes em situação irregular, possíveis objetos de tutela do Estado. Em
ambos os casos, podemos observar o efeito que essa mudanças provocam no aparato
judicial. Como veremos adiante, as medidas sócio-educativas não garantem o
desaparecimento puro e simples da idéia de punição, mas ela é transferida para
outra esfera de ação; continua vindo pela mão dos juízes, mas de uma maneira
que poderíamos classificar de criativa, se não fosse perversa.
Fica claro então porque o ECA é tão importante. Além de conhecer a legislação e
seu contexto de criação, é preciso compreender seu valor simbólico, tendo em
vista os atores em questão e, mais do que isso, compreender os conflitos
operacionais que ele causa e explicita. Trata-se de analisar o uso dessa
legislação e o campo de relações que ela mobiliza.
Em 2005, o Estatuto da Criança e do Adolescente completou quinze anos e segue
alvo de um debate controverso. Não há dúvida de que se trata de uma legislação
moderna. Contudo, mesmo após esses anos, ele está longe de ser aplicado na sua
plenitude.
As causas e conseqüências dessa lacuna entre o principio e sua efetivação são
de natureza variada. Aqui, nos ocuparemos em tratar daquelas relacionadas aos
itens que o próprio documento define como "da prática do ato infracional" e "do
acesso à justiça", isto é, situações que envolvem o jovem em conflito com a lei
e sua relação com o sistema de justiça. Mais especificamente, o que importa
aqui é a apropriação do ECA, bem como sua aplicação por parte dos atores do
sistema de justiça.
Remontar às audiências é uma oportunidade de ver o ECA em ação ou talvez
melhor: assistir ao ECA em cena.
AS "VARAS ESPECIAIS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE"
Ainda do lado de fora do prédio, mães, pais, irmãos e amigos aguardam,
aglomerados na porta ou sentados na calçada, o horário das audiências que
vieram acompanhar, ou pelo menos quando não são autorizados a entrar no fórum
o resultado dessas audiências.
Logo na entrada, há um detector de metais. Mediante a apresentação da minha
"carteirinha" da universidade, tenho minha bolsa revistada e sou autorizada a
subir. O que encontro no andar de cima é um espaço confuso e denso. De um lado,
uma espécie de grande sala de espera, com cadeiras fixadas ao chão, dispostas
como numa sala de cinema, ocupadas pelos parentes dos jovens que estão ali para
serem julgados. Mais à frente estão outras salas, de onde não param de entrar e
sair pessoas em busca de informações. A sala maior abriga a Procuradoria de
Assistência Judiciária (PAJ), uma outra menor, quase sempre vazia, é a sala da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
De maneira geral, a tensão que marca esse ambiente é diferente daquela que
caracteriza o espaço institucional. O medo na sala de espera das VEIJ não era
de uma rebelião ou de algum tipo de atitude violenta por parte dos jovens que
aguardavam a audiência. A tensão estava muito mais ligada ao medo de ser
internado ou voltar para a Febem; de ter seu filho, irmão ou parente internado.
Soma-se a isso a sensação de não poder fazer nada a respeito, de, na maioria
dos casos, depender totalmente da assistência judiciária gratuita e da sua
pouca disponibilidade em função do número de casos que atende.
Seja pela disposição do espaço físico ou pela distância que a dinâmica do fórum
guarda da vida cotidiana, a apreensão que se cria na espera deixa claro o quão
intimidante é o protocolo da justiça.
A confusão que marca esse primeiro ambiente tem fim quando entramos no corredor
que abriga as VEIJ. Esse corredor é separado por uma porta sempre fechada,
controlada por um vigia. Nesse ambiente, o silêncio predomina. Não se ouvem as
conversas que se ouviam do outro lado da porta, nem se vê a mesma circulação de
pessoas. Além das VEIJ, "do outro lado da porta" está a sala onde os jovens
acusados esperam pelas audiências.
Uma vez na sala de audiência, encontramos um cenário onde os personagens/atores
se mantêm fixos caso a caso. Em volta de uma mesa sentam-se acusação, defesa,
réu e juiz. A tarefa de acusação é desempenhada pela figura do promotor de
justiça. Representantes do Ministério Público, os promotores são fiscais da lei
que representam os interesses da sociedade (vale lembrar que a categoria
"sociedade" inclui, pelo menos a princípio, os jovens em julgamento).
Em alguns casos, do mesmo lado da mesa estão as vítimas ou eventuais
testemunhas. Do outro lado, está o adolescente acusado (réu) a quem o direito
chama de parte interessada (embora ele não pareça ser a única).
Como veremos, no drama das audiências os jovens entram em cena apenas como
coadjuvantes. A seu lado está o advogado de defesa e, na maioria dos casos,
algum parente. Em função da baixa renda dos jovens e de suas famílias, o
advogado de defesa é, na maioria das vezes, da Procuradoria de Assistência
Judiciária do Estado de São Paulo. A PAJ exerce o papel da defensoria pública,
ou seja, fornece advogado para a população que não tem condição de custear um
advogado particular (também chamado de advogado constituído). No processo, sua
função é mesma de um advogado particular: fazer a defesa do adolescente.
Na época da pesquisa, a PAJ contava com o trabalho de 12 procuradores, mais
alguns estagiários, que respondiam por cerca de 85% a 90% da demanda de defesa
no referido fórum. Apenas o restante dos casos era atendido por um advogado
constituído. A assistência judiciária gratuita é prevista no ECA e na
Constituição Federal. O grupo de procuradores da PAJ, nas VEIJ, é composto por
pessoas jovens, comprometidas com uma "causa", que, diferentemente da maioria
dos advogados constituídos, conhecem perfeitamente o ECA. Como veremos a
seguir, têm uma postura clara em relação ao estatuto e à atuação dos juízes e
promotores.
De frente para ambos os lados e num nível acima encontra-se a mesa do juiz.
Logo a seu lado, está o escrivão, que registra toda a audiência numa ata a ser
assinada ao final por todos os presentes. O juiz é o que se chama de "sujeito
imparcial do processo" já que "a qualidade de terceiro estranho ao conflito em
causa é essencial à condição de juiz"15. Como sujeito imparcial, o juiz
representa o interesse coletivo, orientado para a justa resolução do litígio. A
magistratura é o conjunto de juízes que integram o Poder Judiciário. No caso
dos juízes das VEIJ, eles já estão na magistratura há muito tempo, atuaram em
outras cidades paulistas ou até de outras varas judiciais. Cada juiz tem seu
"estilo" na condução das audiências. Grosso modo, mantém-se fiel a ele em todos
os casos, sem atentar às diferenças entre um adolescente e outro, entre uma
audiência e outra.
Uma vez apresentados os atores, vale a pena refletir sobre seu espaço de
atuação. A melhor forma de fazê-lo é recorrer às cenas. Apresentamos aqui uma
série de oito casos que reconstroem audiências acompanhadas em diferentes VEIJ.
A escolha desses casos, entre outros observados, não foi aleatória; além de
ilustrativos no que diz respeito à apresentação dos atores, da cena e da
própria dinâmica das audiências, são especialmente emblemáticos, uma vez que
expõem vários dos aspectos que queremos explorar neste ensaio.
As rápidas informações sobre o acusado que introduzem cada caso foram obtidas
no início da audiência, durante a leitura que o juiz faz do processo. Por essa
razão, variam em termos de precisão e extensão.
CASO 1
Dois meninos entram na sala. O primeiro, com 15 anos, está na quinta série,
seus pais são separados, vive com a mãe. O segundo tem 13 anos, os pais também
são separados, vive com o pai, mas visita a mãe toda semana. Ambos são acusados
de assalto qualificado junto com um outro rapaz, maior de idade.
Juiz ' Vocês participaram desse assalto?
Menino 1 ' Meu amigo me convidou pra ir com ele, o de maior fez tudo.
Juiz ' É a primeira vez que eles aparecem aqui...
Promotor ' Eles alegam que o outro fez tudo, mas o que eles estavam fazendo lá?
Tem que dar internação.
Meninos começam a chorar.
Juiz ' Pai, o que você garante?
Pai ' Vamos ficar em cima.
Juiz ' Eu vou dar uma LA (liberdade assistida).
Juiz se levanta e em voz alta ameaça os meninos e seus pais:
Juiz ' Vocês se livraram dessa vez, mas da próxima não vai ter jeito. Pai, você
tem que grudar igual carrapato. Mãe, você tem que ser igual a uma galinha, tem
que por embaixo do braço. Entendido? Guardem seus filhos ou vocês vão perdê-
los. Fica uma LA então.
Mãe ' Jesus tava aqui.
Mãe pede pra fazer um auto que tinha prometido para Jesus, ajoelha e reza na
sala de audiência, levanta e abraça o filho.
Todos se levantam, assinam papéis e saem da sala.
Juiz ' O próximo já tá aí?
CASO 2
Menino de 17 anos, não estuda desde 1994, tem um irmão, mora com a mãe, o pai
morreu. Trabalha como marceneiro.
Juiz ' Seu processo diz que no dia 8 de janeiro de 1999 você entrou num bar
armado e roubou um maço de cigarros, algum dinheiro e um relógio. É verdade
isso?
Menino ' É verdade.
Juiz ' E por que você fez isso?
Menino ' Mataram meu pai e eu quero matar o homem que matou meu pai. Os
policias fizeram um acordo com ele porque ele é traficante. Queria matar e
deixar um dinheiro para minha mãe.
Juiz ' O caminho tem que ser o da justiça e não o da vingança. Procure um
advogado e coloque esse homem na cadeia. Mesmo que não funcione, é a lei. Além
disso, tem a justiça lá de cima.
Todas as partes lêem o que diz o relatório sobre o menino no momento da prisão,
e do período em que esteve internado na Unidade da Febem Imigrantes, enquanto
aguardava o julgamento. Juiz oferece para as partes:
Juiz ' LA com obrigação de estudar, tá bom?
CASO 3
Menino de 17 anos, quinta série, trabalha como mecânico. Pais são separados,
vive com a mãe, mas quem veio para a audiência foi a irmã. Foi julgado por
receptação de peças de automóveis roubadas e por isso cumpria uma LA.
Juiz ' Aqui diz que você foi pego indo para um show com uma espingarda e estava
cumprindo LA. É verdade?
Menino ' É.
Promotor ' O cara tá em LA e vai procurar confusão?
Juiz não ouve nem consulta advogado de acusação, nem de defesa.
Juiz 'Eu vou dar mais um ano de LA, obrigação de trabalhar numa escola sete
horas por semana e obrigação de estudar.
Juiz levanta, anda até o menino e em voz alta diz:
Juiz ' Se você aparecer aqui de novo... você está proibido de sair de casa,
você tá me entendendo?
Irmã começa a chorar.
Juiz ' Olha pra sua irmã, o que você está vendo? Eu vejo uma irmã sofrendo, uma
irmã envergonhada por ter um irmão nessa vida, é isso que você quer para a sua
família? Você quer ver sua família sofrer, ter vergonha de você?
Menino começa a chorar também.
Juiz ' Ficamos assim então.
Depois de assinar os papéis menino e irmã saem da sala.
Juiz ' Vocês acham que eu me excedi?
CASO 4
Menino de 16 anos, não estuda, tem sete irmãos, mora com a avó, "avó é a mãe",
lê a juíza. A mãe morreu, não conhece o pai.
Juíza descreve de maneira informal o acontecido:
Juiz ' Você e um outro menino estavam andando num veículo roubado e foram
parados pela polícia?
Menino ' É.
Juiz ' Por que você estava num carro roubado?
Menino ' Fui eu e o de maior, a gente não sabia que o carro era roubado.
Juiz ' Você não sabia que o carro era roubado? Como então vocês conseguiram o
carro?
Menino ' ...
Juiz ' Você sabe que roubar é crime?
Menino 'Sei.
Juiz ' Você mora com quem?
Menino ' Com a minha mãe.
Juiz ' (Fala para os dois advogados) Ele fala que não sabia que o carro era
roubado, não dá né? Ele tem família, então entrega para a mãe (fala alto).
Mãe chora. Nesse mesmo momento juíza atende o celular, conversa um pouco e, ao
desligar, olha para o menino e determina que ele fique em regime de
semiliberdade, sem consultar nenhum dos dois advogados presentes.
CASO 5
Menino, 17 anos, mora em Santos com a mãe.
Juiz ' Eu te recomendo falar a verdade, pois se você falar a verdade vai ser
melhor pra você. Se você mentir, você pode se prejudicar.
Juiz ' Aqui diz que você roubou uma fita, picolés e um carrinho. Isso é
verdade?
Menino 'Sim senhor.
Juiz ' Era um arrastão?
Menino ' Sim senhor.
Juiz ' Você já foi interno da Febem, não é verdade?
Menino ' Peguei artigo 12(tráfico de drogas).
Juiz ' Você usa drogas?
Menino ' Usei crack, mas parei.
Juiz ' Desde quando você usa?
Menino ' Usei dos 10 até os 16.
Juiz ' Parou e tá numa boa? Você trabalha?
Menino ' Sim.
Juiz ' Bom, seu caso será julgado por Santos.
CASO 6
Menino, 15 anos, acompanhado do pai.
Juiz ' Eu te aconselho a falar a verdade. Se você falar a verdade você pode se
beneficiar, se você mentir, você pode se prejudicar. Estou lendo aqui que você
está sendo acusado pelo roubo de uma moto, isso aconteceu?
Menino ' Não. Eu tenho uma moto igual a da menina que foi roubada, ela deve ter
se confundido, mas eu não roubei a moto dela.
Juiz ' Você estava em LA (liberdade assistida). Por quê?
Menino ' Porque eu roubei um cd player. Eu tô fazendo a coisa certa, acordo
todo dia às 7h da manhã para fazer curso, depois vou para escola. O que o
senhor acha?
Juiz ' Quem tem que achar é você e pelo visto ainda não caiu sua ficha.
Nesse momento, a advogada da PAJ que defendia o menino na audiência diz ao juiz
que vem acompanhando a liberdade assistida desse jovem, que ele tem feito os
cursos propostos pelo agente da LA e que tem ido à escola regularmente. Ela
pode garantir que ele está se esforçando. Finalmente, pede se o juiz não pode
desinterná-lo naquele mesmo dia.
O juiz diz que não. Decide manter o menino interno na Unidade de Acolhimento
Inicial, aguardando a próxima audiência.
CASO 7
Menino, 16 anos, veio acompanhado da mãe. Advogada constituída.
Juiz ' Eu estou lendo aqui que você tentou furtar um carro e depois atirou em
duas vítimas. Isso de fato ocorreu?
Menino ' Ocorreu, mas eu só atirei porque eles tentaram me segurar e me
bateram, foi aí que eu atirei.
Juiz ' Ah, você acha que eles foram injustos com você?
Menino ' Não.
Juiz ' Por que não?
Menino ' Porque eu tava furtando o carro deles.
Juiz ' A arma era sua?
Menino ' Era.
Juiz 'Você já terminou uma LA. O que eles te ensinaram na LA?
Menino ' Eles me ensinaram tudo de bom, mas eu tava precisando do dinheiro
porque bati o carro do meu colega.
Mãe começa a chorar e advogada de defesa pede ao juiz que pergunte ao menino se
ele tinha consciência do que estava fazendo.
Juiz ' Isso não é um tribunal do júri, quem vai julgar sou eu, a doutora não
precisa fazer esse tipo de pergunta.
Juiz ' Você vai ser internado e quando sair na rua de novo, não se meta em
encrenca, não é esse tipo de comportamento que uma pessoa de bem deve ter.
Menino ' Quanto tempo eu vou ficar internado?
Juiz ' O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que a medida de internação
seja reavaliada a cada seis meses. O período máximo de internação é de três
anos.
Menino ' Eu vou ser internado?
Juiz ' Vai.
CASO 8
Dois meninos. O primeiro, de 16 anos, vem acompanhado do pai e da mãe. O outro,
também de 16, está acompanhado só da mãe.
Juiz ' Estou lendo aqui que vocês roubaram 16 reais de um casal que andava na
rua. Isso é verdade?
Menino 1 ' É verdade. A gente tava bêbado e queria dinheiro pra ir no
fliperama.
Pai ' Se o senhor me dá licença, a gente dá mesada pra ele, ele tem tudo o que
precisa, foi uma besteira isso o que eles fizeram, uma bobagem.
Juiz ' Quem é o dono da sua liberdade? Cada um é o dono da própria liberdade.
Hoje em dia não faz diferença se você é rico ou pobre, veja, por exemplo, o
caso do juiz Lalau. Eu sou livre porque sou honesto.
Juiz 'Vocês estavam na UAI (Unidade de Atendimento Inicial). O que essa
experiência trouxe pra vocês?
Menino 1 ' Esses quatro dias na Febem foram muito bons pra eu refletir.
Juiz ' Vocês usam drogas?
Menino 2 ' Eu usava maconha, mas parei de fumar porque minha mãe ficava triste.
Juiz ' Espero que vocês tenham aprendido a lição, vocês não têm aparência
alguma de serem violentos, deve ter sido besteira típica de adolescentes, mas
não façam mais isso.
Meninos são liberados e vão embora com os respectivos pais.
Antes de partirmos para análise, é necessário que sejam feitas duas ressalvas.
A primeira diz respeito à particularidade das VEIJ onde foi feita a pesquisa:
vários informantes classificaram-nas de casos particulares, seja pela "dureza"
do Ministério Público, seja pela maneira peculiar como se dá o andamento dos
processos legais. A segunda ressalva refere-se aos juízes. Além dos valores em
jogo, a atuação do juiz no transcorrer das audiências pode ser descrita como
indissociável de aspectos da sua personalidade. Alguns falam alto, outros
gritam, alguns se levantam da mesa, outros mantêm o mesmo tom de voz durante
toda a audiência. Alguns são mais "secos", outros têm jargões que repetem em
toda audiência, independente do caso que se apresenta. Enfim, ao longo da
pesquisa encontrei juízes diferentes e personalidades diferentes. Tais
particularidades não puderam ser contempladas neste trabalho, tivemos que
deixá-las de lado pra privilegiar as recorrências16.
Grosso modo, podemos descrever as audiências observadas da seguinte maneira: o
caso é apresentado, o jovem é questionado quanto à veracidade das acusações que
lhe são feitas, sendo a resposta, na maioria das vezes, afirmativa. Uma vez
admitido o ato infracional por parte do acusado, o juiz determina a medida
sócio-educativa que o adolescente vai receber. Teoricamente, acusação e defesa
poderiam apresentar argumentos contra ou em favor do acusado, além de
reivindicar uma medida mais leve ou mais dura. Na prática, no entanto, a
apuração da culpabilidade em si parece uma mera formalidade. A solução para o
conflito apresentado na audiência é resultado da decisão quase que exclusiva do
juiz.
Na verdade, essa dinâmica não se fazia completamente clara na observação das
primeiras audiências, especialmente porque se tratava do início da pesquisa.
Fui aprendê-la de fato somente após ouvir a explicação que um juiz dava a um
advogado constituído durante uma audiência. O adolescente representado pelo
advogado era acusado de ter cometido um seqüestro relâmpago e de ter ameaçado a
vítima com uma arma de fogo. O juiz determinou que o adolescente fosse
internado na Febem, afinal tinha cometido um ato infracional grave. O advogado
então pediu a palavra e tentou defender seu cliente, afirmando que ele nunca
tinha feito nada parecido e que por isso mereceria uma medida mais leve. Antes
mesmo que o advogado pudesse terminar seu argumento, o juiz o interrompeu para
explicar:
Imagino que essa seja a primeira vez que o doutor vem aqui. Aqui as
coisas são um pouco diferentes, o doutor não precisa defender seu
cliente dessa forma, aqui nós sempre buscamos um acordo. Se o doutor
não quiser fazer parte desse acordo, pode até vir a prejudicar seu
cliente.
A explicação era perfeita. De fato, era assim que as audiências eram
conduzidas. No entanto, o que o juiz chamava de "acordo", era, na verdade, sua
supremacia na tomada de decisão.
Esse "papel principal" ocupado pelo juiz no processo de decisão não é
exclusividade das VEIJ. Outros estudos apontam o lugar primordial e
determinante do magistrado17.
No caso das VEIJ, esse tipo de conduta não só se repete, mas é potencializada,
praticamente anulando a participação de qualquer outro ator no desenvolvimento
da audiência que não seja a do próprio juiz. Isso, no entanto, não significa
que as outras partes estejam menos envolvidas com o processo, mas o poder de
atuação naquele espaço específico é desigual aquele é o espaço do juiz.
Nos termos jurídicos, o processo é um "instrumento para a resolução imparcial
de conflitos que se verificam na vida social"18. A idéia de "aplicação da lei"
como desfecho desses processos oculta os interesses, as disputas e as pressões
que estão em jogo. Na verdade, o que temos nas audiências é uma disputa
política sobre a questão, mais do que uma contenda por esse ou aquele caso. O
confronto que resulta na aplicação de uma medida sócio-educativa coloca de um
lado promotores e juízes e de outro a procuradoria.
Gregori aponta que, no que se refere às audiências, "o problema maior parece
ser a incapacidade dos adolescentes e dos seus acompanhantes familiares e
educadores de fazer frente à manipulação do ritual pelos protagonistas
juiz, promotor e advogado , que transformam sistematicamente o menino não em
'sujeito', mas em objeto de intervenções19."
Diagnosticar esse lugar de objeto de disputa e de intervenção reservado para os
jovens é de fato importante uma vez que essa transfiguração em "objeto" se opõe
à idéia do adolescente como sujeito de direitos, grande mudança conquistada
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, é preciso fazer uma
distinção entre as diferentes motivações envolvidas nessa disputa, bem como
verificar de que maneira essas motivações se traduzem em estilos diferentes de
intervenção.
HORA DA LIÇÃO
Um bom ponto de partida para essa reflexão seria a informalidade com a qual são
conduzidas as audiências. Além de saltar ao olhar não familiarizado, essa
informalidade opõe, de saída, juízes e procuradores. O que estamos chamando de
informalidade inclui atender ao celular no meio da audiência, falar alto com a
mãe do adolescente, tecer comentários com o escrivão, a breve duração
(normalmente, as audiências duram cerca de 20 minutos), mas também a pouca
preocupação com as garantias processuais. O conjunto dessas garantias foi uma
das conquistas do ECA. O estatuto prevê a igualdade do adolescente na relação
processual (cap. III, art. 111), isto é, além do direito a ser representado por
um advogado, o jovem pode "confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir
todas as provas necessárias à sua defesa". Contudo, a presença de testemunhas
nas audiências era fato raríssimo (quando apareciam eram sempre de acusação) e,
sobretudo, parecia não haver tempo, espaço ou interesse na produção de provas
ou nas eventuais testemunhas de defesa.
Nesse sentido, o maior objetivo das audiências parece ser o de dar uma "lição".
Essa talvez seja a palavra-chave para compreendê-las. Tudo o que aconteceu até
então parece ter importância menor; é a "lição" dada pelo juiz o grande saldo
da audiência. Para isso, ele repassa a trajetória de vida do jovem, cita dados
biográficos como a morte do pai, "a batalha da mãe para mantê-lo no bom
caminho", passagens anteriores pela Febem, o futuro que o espera, recorre à
nobreza que reside em falar a verdade, altera o tom de voz e enfatiza o
gestual, numa tentativa de imprimir dramaticidade ao momento. Em diversas
ocasiões, o juiz acaba fazendo parentes e meninos chorarem, "pela vergonha de
ter um filho criminoso". Pode-se dizer que, como numa peça de teatro, quanto
mais elementos em cena, melhor é a "qualidade de encenação"20 e,
conseqüentemente, mais real torna-se a história. O processo parece catártico:
todos choram, joga-se com as emoções, cria-se um cenário onde só o bem pode
triunfar.
A atuação do juiz não só ofusca a participação dos advogados de defesa e de
acusação, mas também estabelece condutas informais que se tornam um padrão na
resolução dos casos.
A informalidade nas cortes juvenis é um fenômeno apontado por procuradores,
promotores e juízes. Contudo, é percebida de maneira diferente por cada uma
dessa partes. Os juízes, por exemplo, não associam informalidade ao tema das
garantias processuais. Nas palavras de um juiz, o que tratamos como
informalidade na condução das audiências, na verdade tem um outro sentido:
Não é bem a informalidade, os critérios são diferentes, é ficar
chamando a atenção do jovem, é recompor uma série de padrões pra ele,
você me viu falar de verdade, quem é o dono da sua liberdade, é isso
que você quer da sua vida? Pra nós é uma função obrigatória, porque
aqui nós estamos recompondo, tentando refazer condutas, limites
posturas, diferente da esfera penal. Na esfera penal, o sujeito
praticou um crime ele vai receber uma pena, não importa o que ocorra,
ou o que deixe de acontecer, porque para cada crime, uma pena. Aqui
não, aqui nós vamos aplicar uma medida. Se então é ressocialização,
então nós temos uma função pedagógica, diferentemente da esfera
penal. Por isso que aqui nós somos um pouquinho professores,
orientadores, uma série de outras coisas diferentes de um juiz
criminal21.
Para a PAJ, no entanto, a informalidade está associada à rapidez com que cada
audiência é conduzida e conseqüentemente é o fator responsável pela supressão
das garantias processuais. De acordo com um procurador:
"Se você analisar o respeito que os juízes têm às garantias
processuais, de defesa dos adultos que respondem processo criminal e
está sujeita a uma pena, ela é muito maior do que o respeito que os
juízes têm das garantias do adolescente. Parte dessa idéia equivocada
que a medida de internação não teria uma carga punitiva, que eu
particularmente entendo que ela tenha, embora o objetivo dela seja
sócio-educativo, é inegável que ela tem uma carga de constrangimento.
Eles não percebendo isso, acabam sendo muito menos rigorosos na
apuração dos fatos [e] na observância das formalidades legais do que
deveriam ser".
Retomando os casos apresentados, conseguimos entender por que os juízes se
considerariam um pouco professores, ou orientadores. Em se tratando de lição,
não há melhor caracterização. Não importa o caso que se apresente, a conduta é
sempre a mesma. Somos levados a pensar que, para os juízes, a suspeita de estar
em conflito com a lei por si só já estabelece uma identidade sob a qual são
classificados todos os jovens que passam pelas VEIJ. Culpados ou não,
reincidentes ou primários, os jovens estão ali e só por isso merecem
desconfiança, um susto e, acima de tudo, uma lição.
Vimos, por exemplo, que em um dos casos apresentados a infração não seria
julgada pela vara em São Paulo (isso é sabido pelo juiz desde o início da
audiência). No entanto, mesmo assim, o jovem é levado a dar detalhes do
acontecimento e do seu eventual envolvimento com as drogas. As drogas, aliás,
são assunto obrigatório em qualquer audiência. Mesmo que o ato infracional pelo
qual o jovem é acusado não tenha nenhuma ligação com o consumo de drogas, o
juiz sempre os questiona, bem como retoma o assunto ao final da audiência, na
"hora da lição". Ao fazer isso, os juízes expõem ainda mais os jovens. Eles
estão lá para ser julgados por um ato infracional específico, mas acabam sendo
julgados moralmente mesmo quando têm sua inocência comprovada por outros
aspectos da sua vida. O que está em questão não é só o ato, mas sua conduta
como um todo. No limite, é esse o desvio que se tenta corrigir.
A idéia de falar a verdade é um ponto importante na relação entre juiz e réu.
Mesmo quando não há necessidade, os jovens acabam revelando fatos que podem
lhes prejudicar no andamento do processo como, por exemplo, confessar infrações
cometidas anteriormente. Tais revelações podem servir de indicativo para o juiz
de que aquele jovem já está no "caminho do crime", o que pode acarretar numa
medida sócio-educativa mais dura para o adolescente.
A pressão colocada sobre a idéia de verdade não está só no ambiente das VEIJ;
ela perpassa todo o universo judiciário, incluindo o período de internação
provisória.
De acordo com um procurador,
existe uma cultura arraigada entre os adolescentes no sentido de que
têm que confessar, ao contrário do que acontece na justiça de maiores
é difícil explicar por quê; existe uma pressão por parte do juiz,
você assistiu à audiência da 1ª Vara onde o juiz fala "se você
confessar eu te ajudo" e só essa fala do juiz vale muito mais do que
o advogado conversando horas com o cliente dele, agora desde que o
menino entra na Unidade de Internação da Febem existe essa
perspectiva um pouco moralizante "olha você tem sempre que dizer a
verdade, assim você vai se beneficiar" e a própria cultura
institucional tem um peso muito grande, ou seja, o menino que vem pra
audiência já passou algum tempo observando essa cultura de
confirmação mesmo.
Alguns juízes, no entanto, enxergam o falar a verdade "como um processo de
auto-conscientização". Todavia, esse processo, da maneira como é apresentado,
traz necessariamente a figura do juiz como mediador. O adolescente participa
falando "a verdade" e o juiz entra com a auto-conscientização, uma vez que é
ele quem interpreta a verdade e tem o poder de utilizá-la da maneira que bem
entender.
Como contrapartida à informalidade, assistimos à cristalização de certas
atitudes que acabam por constituir uma maneira pessoal, particular e não menos
estigmatizante de interpretação e aplicação do ECA.
O problema não é a lição em si isso, em algum grau, parece fazer parte do
ofício da magistratura , mas o lugar privilegiado que ela ocupa na condução do
processo. "Dar uma lição" é um gesto obviamente associado à punição, mas
parece, na verdade, uma espécie de compensação pelo fato de o réu ter cometido
um ato infracional e, ainda assim, livrar-se da internação.
Normalmente, leva-se uma lição quando se está recebendo uma medida sócio-
educativa que não implique a supressão da liberdade. De fato, podemos dizer
que, para os juízes, apenas a internação se apresenta como um mecanismo efetivo
de punição; as outras medidas não têm esse caráter, podem dar a impressão ao
jovem de que ele não será punido pela infração. Por isso, toda medida que não
seja a internação acaba vindo acompanhada de uma lição.
Voltemos à fala do procurador. Além da lição, o aspecto formal da condução de
uma audiência é também um problema. A maneira como são conduzidos os processos
acaba por pressionar a procuradoria. Esta trabalha basicamente com duas
possibilidades: o réu fala a verdade e continua internado na unidade de
atendimento inicial, aguardando a continuidade do processo; ou assume um ato
infracional (em alguns casos que não cometeu) e consegue a desinternação no
mesmo dia, saindo das VEIJ com uma liberdade assistida. Tal impasse explicaria
a suposta recomendação que os jovens recebem para admitir o ato infracional na
frente do juiz. Os procuradores afirmam que apenas expõem as opções:
se você admitir a infração hoje, você já sai daqui com uma liberdade
assistida, se você negar, você vai ficar internado mais 30 dias
chegando lá nessa 2ª audiência, vindo os policiais, o juiz vai te dar
a mesma LA que você poderia estar recendo hoje.
CRITÉRIOS
Primeiro, nós analisamos a ocorrência do ato infracional, provada a
autoria, aí passa-se à análise do auto para que a medida seja
aplicada. A gente leva em conta alguns requisitos: a gravidade do ato
infracional, o envolvimento do adolescente no mundo infracional, se
ele já está inserido nesse mundo infracional ou se ele está de
passagem. Se o ato que ocorreu foi um ato momentâneo ou se ele já
está nesse sistema infracional há algum tempo. A gente leva em conta
o respaldo familiar, se a família tem condições de tirar o jovem
dessa criminalidade ou se efetivamente o Estado precisa tomar as
vezes da família pra ajudar a família a reformular a postura,
caráter, limites, uma série de coisas. Então, nós levamos em conta
vários aspectos, sempre nos baseando também em matéria subjetiva que
é a conceituação que um jovem tem a respeito das coisas. Muitas
vezes, você chamar a atenção verbalmente de alguém, é muito mais
sério para aquele ser humano do que você pegar e prender a pessoa
....
A fala reproduzida acima diz respeito aos critérios utilizados para
determinação de uma medida sócio-educativa. Sabemos que os juízes não utilizam
o ECA de forma homogênea, tampouco objetiva. As variáveis que condicionam a
medida a ser aplicada estão, de fato, ligadas ao tipo de infração cometida, tal
como recomenda o estatuto. Como vimos na declaração acima, a presença na
audiência dos pais do adolescente conta como ponto positivo; o vínculo com a
escola e a relação série/idade são levados em consideração. Esses critérios
podem ser interpretados como uma preocupação do Poder Judiciário com a
estrutura familiar do jovem, a disposição e condição da família em se
responsabilizar pelo acompanhamento e educação do filho. Entretanto, a
determinação de uma medida ou de outra, principalmente em se tratando das
infrações mais leves, é também fruto de uma interpretação, ou de um diagnóstico
imediato da situação: o que o nosso "nativo" chamou de "conceituação que um
jovem tem das coisas". Essa conceituação pode ser interpretada como "sentimento
de culpa": o juiz procura, ao longo da audiência, verificar o arrependimento do
jovem, o impacto do acontecido sobre ele. Com efeito, o garoto mostrar
arrependimento, chorar e ter vergonha, também conta pontos, podendo amenizar a
medida a ser aplicada. Nos casos em que as medidas são efetivamente brandas,
esse parece ser visto como um desfecho de sucesso, sinal de que a lição foi bem
assimilada. Logo, o objetivo é menos a punição e mais o teatro bem feito e a
lição bem dada. Na ótica dos juízes, essa dinâmica parece mais eficaz do que as
medidas previstas na lei.
SENTIMENTO DE JUSTIÇA
Geertz alerta que, para falar apropriadamente sobre as bases culturais do
direito, é preciso levar em consideração o "sentimento de justiça" 22 local. O
antropólogo não se refere apenas ao contexto, mas ao que significa "fazer
justiça" nesse contexto. No caso tratado aqui, é possível traçar um caminho
do mais amplo ao mais particular que leve a uma definição mais precisa do que
seria esse sentimento de justiça. Começamos pelo modelo ocidental de direito e
de justiça e a relação que o Brasil estabelece com as leis em geral23;
prosseguimos com a distribuição desigual da renda no país, o que já seria
suficiente para questionar se esse meio ambiente social permitiria a ação
igualitária do direito. Além disso, temos o sentimento de insegurança advindo
da violência das metrópoles, as polêmicas que envolvem o Estatuto da Criança e
do Adolescente, as rebeliões na Febem e, finalmente, a figura do "menor
infrator" como protagonista de ações criminosas. A combinação desses elementos
forma o que poderíamos chamar de sentimento de justiça em relação aos jovens em
conflito com a lei. Tal sentimento tem o poder de influenciar desde a postura
do Ministério Público até as decisões dos juízes; se transveste de um
sentimento de impunidade, cobrança social e clamor por justiça.
As dificuldades de efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente tanto
da sua aplicação por parte do Judiciário, quanto na sua concretização enquanto
instrumento reabilitador provocam uma percepção equivocada sobre o seu papel
na reeducação e reinserção social dos jovens em conflito com a lei. Hoje, o ECA
é associado à inimputabilidade. A medida sócio-educativa idealizada para não
ser uma punição penal é vista como punição alguma. Com efeito, essa demanda
punitiva se configura em valores sociais que penetram o ambiente das audiências
e, por conseguinte, o universo dos juízes. Disputando espaço com a tecnicidade
da aplicação da lei, criam um rito discriminatório que atende a estereótipos e
preconceitos.
A atitude dos juízes, no entanto, não pode ser interpretada apenas na chave da
punição. Vimos que o aparato público de efetivação das medidas prevista no ECA
é insuficiente e ineficaz. A PAJ atende mais casos do que a sua estrutura
permite, os postos de liberdade assistida, em sua maioria, não conseguem levar
a cabo os projetos educativos e a Febem, não é, em nenhum sentido, uma
instituição de educação e reabilitação. A percepção dessa realidade parece
guiar a ação dos juízes que apelam para o recurso da "lição" como forma de
compensar essa incapacidade, tentando condensar o processo de educação e
ressocialização nos possíveis efeitos do seu discurso. É claro que tal postura
dá margem a atitudes que não são exatamente a "interpretação da lei", mas a
manifestação dos valores pessoais de cada juiz e o direcionamento político do
próprio Ministério Público, traduzidas numa conduta responsável por
constrangimentos que podem ser tão intransigentes quanto a aplicação de uma
medida sócio-educativa severa.
[1] Este artigo é uma adaptação de um capítulo da minha dissertação de
mestrado, "Rituais da Violência - a Febem como espaço do Medo em São Paulo",
defendida no departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo,
em abril de 2002. A despeito da distância entre a dissertação e a publicação
deste artigo, posso afirmar que o panorama das Varas Especiais da Infância e da
Juventude mudou muito pouco desde então. Por conta do tamanho e formato deste
texto, foram suprimidas discussões importantes sobre a legislação mundial para
a infância e juventude, sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como
reflexões sobre as especificidades de uma etnografia quando o direito é o
objeto.
[2] Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1989, p.228.
[3] Geertz, Cliford. O saber local. 3ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2000,
p.170.
[4] Definem-se como juristas "as pessoas versadas nas ciências jurídicas, como
o professor de direito, o jurisconsulto, o juiz, o membro do Ministério
Público, o advogado". Cintra, Antonio Carlos de Araújo, Grinover, Ada
Pellegrini & Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 16ª ed.,
São Paulo, Editora Melhoramentos, 2000, p. 219. Como em todas
as profissões, diferentes profissionais relacionam-se de maneiras diversas com
o direito, alguns se dedicando mais à sua aplicação prática, enquanto outros a
reflexões mais filosóficas sobre a disciplina.
[5] Os livros utilizados atualmente nos cursos de direito são, talvez, a melhor
ilustração. Segundo Cintra, Grinover e Dinamarco, "nas fases primitivas da
civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente forte para superar
os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade dos
particulares: por isso, não inexistia um órgão estatal que, com soberania e
autoridade, garantisse o cumprimento do direito, como não havia sequer as leis
(normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares). Assim, quem
pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua
própria força e na medida dela, tratar de conseguir por si mesmo a satisfação
de sua pretensão. [...] A esse regime chama-se autotutela (ou autodefesa) e
hoje, encarando-a do ponto de vista da cultura do século xx, é fácil ver como
era precária e aleatória, pois não garantia a justiça, mas a vitória do mais
forte, mais astuto ou mais ousado sobre o mais fraco ou mais tímido." (Op.
cit., p.21).
[6] Nader, Laura (ed.). Law in culture and society. 1ª ed. [1969], Berkeley/Los
Angeles, University of California Press, 1997.
[7] Gulliver cita, entre outras, as monografias de Barton (1919), Ifugao Law,
Rattray (1929), Ashanti Law and Constitution e Hogbin (1934), Law and Order in
Polynesia. (Gulliver, P. H. "Case studies of Law in non-Western societies:
introduction". In: Nader, Laura (ed.). Law in culture and society. 1ª ed.
[1969], Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1997).
[8] Idem, p. 13.
[9] Shirley, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo, Editora Saraiva,
1987.
[10] Geertz, Clifford, op. cit, p.13.
[11] Bourdieu, Pierre, op. cit., p.211.
[12] A autora faz ainda uma rica revisão bibliográfica sobre o assunto.
[13] As três primeiras medidas são determinadas no caso de infrações pouco
graves. Já a liberdade assistida (LA) implica o comparecimento do jovem nessa
condição a um posto de assistência social, determinado pelo juiz, pelo menos
uma vez por mês, por um período mínimo de seis meses. O regime de semiliberdade
é uma "meia internação": o juiz determina a internação numa instituição
educacional, mas esse interno tem liberdade para, durante o dia, estar fora da
instituição (estudando ou trabalhando preferencialmente), tendo a obrigação de
retornar e passar a noite na instituição. A internação, por sua vez, acarreta a
supressão da liberdade e deve ser aplicada como último recurso; como resposta a
atos infracionais graves. Mesmo nesse caso, só é permitida para adolescentes
(de 12 a 18 anos) e nunca para crianças com menos de 12 anos.
[14] É fundamental ressaltar que a internação aparece como a última opção e "
[...] constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de
brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento" (ECA, art. 121). O que significa que ela deveria ser o último
recurso utilizado no julgamento de menores de 18 anos. O número de internações
e a eficácia desta medida em seu caráter sócio-educativo são talvez alguns dos
maiores motivos de conflitos entre o Ministério Público e a PAJ.
[15] Cintra et alli, op. cit., p. 293.
[16] Falo em recorrências, pois julgo significativo o número de audiências que
acompanhei. Ao longo dos quatro meses em que pesquisei no Fórum do Brás, pude
assistir à uma média de 80 audiências.
[17] Ver Adorno, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo.
Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.43, p.45-63, nov. 1995, e
Schritzmeyer, Ana Lúcia Pastore. Controlando o poder de matar: uma leitura
antropológica do tribunal do júri ritual lúdico e teatralizado. Tese de
Doutorado apresentada à FFLCH-USP. São Paulo, 2001.
[18] Cintra, op. cit., p. 292
[19] Gregori, Maria Filomena. Meninos nas ruas: a experiência da viração. Tese
de doutoramento apresentada à FFLCH-USP, São Paulo, 1997, p. 248.
[20] Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Editora
LTC, 1989.
[21] As entrevistas com juízes e procuradores apresentadas nesse trabalho foram
todas realizadas em junho de 2001. Na época, não discuti com os entrevistados
se poderia identificá-los. Logo, ainda que corra o risco de enfraquecer o
argumento do trabalho, em nome de uma certa "etiqueta de pesquisa", optei por
não fazê-lo sem a devida autorização. Pelo mesmo motivo, achei preferível não
editar os depoimentos.
[22] Geertz, Cliford. O saber local. 3ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2000.
[23] Roberto DaMatta mostra como, no Brasil, o sistema legal tem significado
diverso para os diferentes setores da sociedade. O autor observa uma vertente
individualizante presente no aparato legal "aos indivíduos, à lei, às pessoas,
tudo". DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro, Editora
Rocco, 1997.