Sobre o poder global
"A mera preservação da existência social exige, na livre competição, uma
expansão constante. Quem não sobe, cai. E a expansão significa o domínio
sobre os mais próximos e sua redução ao estado de dependência. [...] o que
temos é um mecanismo social muito simples que, uma vez posto em movimento,
funciona com a regularidade de um relógio."
Norbert Elias, O processo civilizador
Foi no início da década de 1970 que Charles Kindleberger e Robert Gilpin
formularam a tese fundamental que mais tarde foi chamada de "teoria da
estabilidade hegemônica". O mundo enfrentava as primeiras manifestações da
crise internacional que se seguiu ao fim do sistema de Bretton Woods e à
derrota dos Estados Unidos no Vietnã, e os dois autores estavam preocupados com
a possibilidade de que se repetissem a crise e a Grande Depressão dos anos
1930, por falta de uma liderança mundial. Foi quando Kindleberger afirmou que o
bom funcionamento de "uma economia liberal mundial necessita de um
estabilizador e de um só país estabilizador"2 um país que provesse o sistema
mundial de alguns "bens públicos" indispensáveis para o seu funcionamento, como
uma moeda internacional e o livre-comércio, ou da coordenação das políticas
econômicas nacionais e da promoção de políticas anticíclicas de eficácia
global. A tese de Kindleberger tinha uma natureza claramente normativa, mas se
apoiava numa leitura teórica e comparativa da história do sistema capitalista.
Como sintetizou Gilpin: "a experiência histórica sugere que, na ausência de uma
potência liberal dominante, a cooperação econômica internacional mostrou-se
extremamente difícil de ser alcançada ou mantida"3. Kindleberger falou
inicialmente de uma "liderança" ou "primazia", mas depois um número cada vez
maior de autores passou a utilizar o conceito de "hegemonia mundial". Às vezes
com a conotação pura e simples de um poder acima de todos os demais; outras
vezes com uma conotação mais "gramsciana", de um poder global legitimado pelos
demais Estados, graças à eficácia "convergente" de sua governança mundial.
A tese não era completamente nova, pois já havia sido formulada quase que
literalmente por Edward Carr em 1939 no seu clássico ensaio A crise dos vinte
anos. Carr era um realista e estava discutindo o problema da manutenção da paz
entre Estados soberanos no momento em que começava a II Guerra Mundial , mas
sua conclusão era muito parecida com a de Kindleberger e Gilpin: "a condição da
legislação internacional é o super-Estado"4. Uma tradução para o campo
internacional do velho e conhecido argumento hobbesiano: "Antes que se designem
o justo e o injusto, deve haver alguma força coercitiva". Alguns anos depois,
Raymond Aron praticamente afirmava o mesmo ao dizer que não haveria paz mundial
"enquanto a humanidade não tivesse se unido num Estado Universal"5. Aron
privilegiava o "império da lei", conforme a visão cosmopolita e liberal de
Kant, mas reconhecia a importância da "política de poder", como o próprio Kant,
que também dissera no seu devido tempo que "o homem é um animal que, ao viver
entre outros da mesma espécie, tem necessidade de um senhor que o obrigue a
obedecer a uma vontade universalmente válida". Todos falavam em preservação da
paz, e não do bom funcionamento da economia internacional, como Kindleberger e
Gilpin, mas todos reconheciam, em última instância, a necessidade de algum tipo
de poder político supranacional como condição de uma ordem mundial estável,
fosse ela econômica ou política.
Durante a década de 1980, a "teoria da estabilidade hegemônica" foi submetida a
uma crítica minuciosa por suas inconsistências teóricas e históricas. Vários
autores questionaram a idéia de que Inglaterra houvesse promovido
intencionalmente a adesão dos demais países ao padrão-ouro no século XIX, e
demonstraram historicamente que na maioria dos casos o comportamento dos países
hegemônicos se orientou pelos seus próprios interesses nacionais, por vezes
transformando-se mais em obstáculo do que em condição da estabilidade
internacional6. Susan Strange, em particular, mostrou que as crises sistêmicas
ao longo da história têm sido causadas muito mais por fatores internos à
sociedade e à economia do país hegemônico do que pelo comportamento dos países
que usufruem e contestam o sistema7. Nessa mesma linha, Andrew Walter conclui
que
a função hegemônica do estabelecimento e da manutenção de regras
devia ser vista como de limitado valor descritivo. A distinção entre
os papéis da imposição de regras, do estímulo à coordenação política
entre os Estados e da gestão e de uma cautelosa supervisão do sistema
monetário e financeiro internacional nos habilitava a entender melhor
as diferentes pretensões à hegemonia que haviam se apresentado8.
Por outro lado, a história das últimas décadas do século XX também contradisse
a teoria da estabilidade hegemônica. Nestes últimos trinta anos, em particular
após a segunda metade dos anos 1980, o mundo esteve sob a "liderança"
incontestável de uma só potência, orientada por um forte commitment liberal.
Como propunha Kindleberger, durante esse período os Estados Unidos arbitraram
isoladamente o sistema monetário internacional, promoveram ativamente a
abertura e a desregulação das economias nacionais e o livre-comércio,
incentivaram a convergência das políticas macroeconômicas e atuaram pelo
menos em parte como last resort lender em todas as crises financeiras que
abalaram o mundo dos negócios, mantendo, ao mesmo tempo, um poder
incontrastável nos planos industrial, tecnológico, militar, financeiro e
cultural. Apesar de tudo isso, o mundo viveu nesse período uma conjuntura de
grande instabilidade sistêmica, tanto no campo financeiro como no das relações
político-militares.
A despeito das críticas teóricas e das inconsistências históricas, a
preocupação inicial de Kindleberger e Gilpin tornou-se o denominador comum de
uma extensa literatura sobretudo nos Estados Unidos acerca da "crise da
hegemonia norte-americana". E sua tese comum a respeito da necessidade mundial
de "países estabilizadores" ou "hegemônicos" transformou-se no foco de um longo
debate acadêmico sobre o conceito e as funções das "hegemonias mundiais", que
algum tempo depois se prolongou na discussão sobre o que se convencionou chamar
de "governança global".
De um lado se alinharam, desde o início, os "realistas" ou "neo-realistas" de
variados matizes, aprofundando a discussão sobre a origem e o poder dos Estados
hegemônicos e sobre as formas de sua "gestão global", baseadas na sua
capacidade material e no seu controle sobre as matérias-primas estratégicas, os
capitais de investimento, as tecnologias de ponta, as armas e as informações.
Kindleberger e Gilpin pertenciam a esse grupo, inaugurado por Edward Carr. Mas
aí também se incluíam os "estruturalistas", como Susan Strange, que criticavam
a teoria da estabilidade hegemônica mas reconheciam a existência de "poderes
estruturais globais", controlados por sucessivas potências dominantes e capazes
de induzir comportamentos coletivos sem necessidade do uso da força. Da mesma
forma, um grupo de autores marxistas ou neomarxistas, como Immanuel Wallerstein
e Giovanni Arrighi, partia do conceito e da história do "modern world system"
para concluir que ao longo dos últimos quinhentos anos a competição entre os
Estados nacionais europeus só não degenerou em caos político e econômico graças
ao comando de três grandes potências hegemônicas capazes de organizar ou
"governar" o funcionamento hierárquico do sistema mundial criado na Europa
durante o século XVI algo como "ciclos hegemônicos" comandados sucessivamente
pelos Países Baixos, no século XVII, pela Grã-Bretanha, no século XIX, e pelos
Estados Unidos, no século XX9. Mais recentemente, Antonio Negri e Michael Hardt
introduziram no campo marxista a tese de que o mundo já estaria sendo governado
por uma nova forma de "império" pós-nacional, uma espécie original de "supra-
estrutura política" correspondente a uma economia mundial que já teria sido
globalizada pela ação desnacionalizante do "capital"10.
Numa posição oposta à dos realistas colocaram-se, desde a primeira hora, os
"liberais" ou "pluralistas", como Joseph Nye e Robert Keohane, os verdadeiros
pais da idéia de "governança global". Estavam convencidos como Negri e Hardt,
muito mais tarde da perda de importância dos Estados nacionais e da
possibilidade de criação de uma nova ordem política e econômica mundial,
estabilizada e gerida com base em "regimes supranacionais" legítimos, capazes
de funcionar com eficácia mesmo na ausência de potências hegemônicas. Segundo
Keohane e Nye, verdadeiras "tramas de regras, normas e procedimentos que
regularizariam comportamentos e controlariam efeitos [...] e que, uma vez
estabelecidas, seriam difíceis de erradicar ou rearranjar". Mas mesmo eles
reconheciam a existência de situações "em que não há normas e procedimentos
consensuais ou em que as exceções às regras são mais importantes que os casos
de aderência"11. Nessas circunstâncias, a hierarquia e o poder dos Estados
permaneceriam decisivos para a definição dos regimes e das soluções impostas à
comunidade internacional. Uma qualificação necessária, mas que reabre o
problema da coordenação ou governança de um sistema que segue sendo
interestatal. Raymond Aron tentou resolver essa dificuldade propondo uma
distinção entre dois tipos de subsistemas internacionais que coexistiriam lado
a lado: um mais "homogêneo" e o outro mais "heterogêneo", dependendo do grau em
que os Estados envolvidos compartilhassem ou não concepções e valores
internacionais. Mas Aron não consegue explicar por que as grandes divergências
e guerras quase sempre se deram no âmbito dos sistemas "homogêneos", o que
reforça a tese realista de que não haveria possibilidade de governança mundial
sem uma clara definição da supremacia entre as grandes potências.
Resumindo, não há dúvida de que a teoria da estabilidade hegemônica não resiste
à prova da história e de que os conceitos de "hegemonia" e "ciclos hegemônicos"
parecem excessivamente associados a uma visão funcionalista do "sistema
mundial". Como se o "hegemon" fosse um "ente virtual" mais do que real, uma
espécie de exigência funcional do sistema político criado pela Paz de Vestfália
e do sistema econômico criado pela expansão e globalização das economias
nacionais européias: a exigência funcional de um "poder estabilizador" da
economia e de um "poder pacificador" das relações entre os Estados soberanos.
Mas quais foram, ao longo da história, esses poderes ou gestores globais? Como
foi que eles definiram as normas e regras próprias dos "regimes de governança
mundial"? Que relação haveria entre esses poderes e o processo de globalização
dos mercados e da economia capitalista? São perguntas que permanecem sem
respostas a menos que se faça uma reconstituição analítica cuidadosa do
processo de organização dos primeiros Estados e economias nacionais capazes de
se expandir para fora de si mesmos e impor sua liderança ou hegemonia sobre os
demais Estados do sistema mundial.
ORIGEM E EXPANSÃO DO PODER E DA ECONOMIA GLOBAIS
Ao estudar a formação dos primeiros "mercados nacionais" europeus, no terceiro
volume de Civilização material, economia e capitalismo dos séculos XV-XVIII,
Fernand Braudel defende a tese de que
a economia nacional é um espaço político que foi transformado pelo
Estado, em virtude das necessidades e inovações da vida material, num
espaço econômico coerente, unificado, cujas atividades passaram a se
desenvolver em conjunto numa mesma direção.
E conclui que "só a Inglaterra realizou essa façanha precocemente", mediante "a
revolução que criou o mercado nacional inglês"12. O essencial nesse ponto é que
Braudel afirma que os primeiros mercados e economias nacionais, que nasceram na
Europa, não foram uma obra espontânea ou expansiva da divisão do trabalho
provocada pela tendência dos indivíduos à troca de mercadorias: foram uma obra
do poder e uma estratégia política do Estado, que recortou e extraiu o novo
"espaço econômico" de um conjunto mais amplo e preexistente, que Braudel chamou
de "economia-mundo européia". Karl Marx descreve esse mesmo momento do
nascimento da economia nacional inglesa no Capítulo XXIV do Capital, em que
trata do processo da acumulação originária:
As diversas etapas da acumulação originária tiveram seu centro, por
ordem cronológica mais ou menos precisa, na Espanha, Portugal,
Holanda, França e Inglaterra. Mas foi na Inglaterra, em fins do
século XVII, que esse processo se resumiu e sintetizou
sistematicamente no "sistema colonial", no "sistema da dívida
pública", no "moderno sistema tributário" e no "sistema
protecionista". Em grande medida, todos esses métodos se baseiam na
mais avassaladora das forças. Todos eles se valem dopoder do Estado.
Nesse novo contexto econômico nacional, diz Marx,
a dívida pública se converte numa das mais poderosas alavancas da
acumulação originária. Funciona como uma varinha mágica que infunde
virtude procriadora ao dinheiro improdutivo e o converte em capital
sem expô-lo aos riscos [...], como se fosse um capital chovido do
céu13.
A relação entre o Poder e o Dinheiro, ou entre príncipes e banqueiros, é muito
antiga e remonta às cidades do Norte da Itália, onde nasce o sistema bancário
moderno, ligado ao comércio de longa distância e à administração das dívidas do
Vaticano. Daí vêm os primeiros empréstimos para as guerras travadas pelos donos
do poder, como Eduardo II da Inglaterra, que no século XIV se endividou com a
banca de Siena para financiar a tomada do País de Gales. Saiu vitorioso da
guerra mas não pagou sua dívida, o que levou o sistema bancário de Siena à
falência e transferiu para Florença a hegemonia financeira da Itália. Isso se
repetiu muitas vezes, como na relação de Carlos V com os banqueiros alemães que
financiaram a contínua expansão de suas guerras e territórios, até o momento em
que ele decretou a moratória de 1557, responsável pela falência da Casa dos
Fugger.
Mas o que Marx descreve no século XVII é uma relação absolutamente diferente
entre o poder e o dinheiro, que só foi possível depois da "revolução econômica"
de que fala Braudel. Uma vez que a Inglaterra virou uma ilha e constituiu sua
economia nacional, a relação entre os governantes e os banqueiros mudou de
natureza. Nessa nova realidade não mais se tratava de uma relação e de um
endividamento pessoais do príncipe com uma casa bancária de qualquer
nacionalidade: a relação de endividamento se dava entre o Estado e os bancos de
uma mesma unidade territorial ou de uma mesma economia nacional. A dívida
pública tornou-se portanto interna, administrada por algum tipo precursor de
Banco Central, e pôde se transformar na base do sistema bancário e de crédito
da Inglaterra.
Como conseqüência, nasce um "interesse nacional" inglês que é simultaneamente
econômico e político, e essa unidade se transforma numa força propulsora
gigantesca e sem equivalente na história passada da acumulação do poder e da
riqueza, uma força que ultrapassará as fronteiras nacionais da Inglaterra.
Trata-se de um verdadeiro salto qualitativo na história do poder, do dinheiro e
do sistema mundial. Inicia-se então a escalada do poder nacional inglês na
direção do poder global ou da hegemonia mundial. E essa expansão é que criará
as bases "materiais" de uma nova "economia mundial", diferente da "economia-
mundo" de que fala Braudel, que ainda era organizada em torno das grandes
cidades mercantis da Itália e do Norte da Europa.
Na hora dessa revolução, no entanto, a Inglaterra não estava só. Pelo
contrário, já existiam um "sistema político" e uma rede de Estados europeus que
vinham se consolidando desde o século XIV mediante uma sucessão quase infinita
de conflitos que culminaram na Guerra dos 30 Anos (1618-48), o verdadeiro berço
das soberanias nacionais. Foi a Paz de Vestfália, assinada em 1648, que
consagrou o princípio da "soberania nacional" e gerou o "sistema político-
estatal europeu". Mas ao consagrar o princípio da soberania criou um sistema de
poder anárquico, no qual o exercício do "equilíbrio de poder" e a guerra se
tornaram as duas formas conhecidas e possíveis de resolução dos conflitos entre
os Estados soberanos. Configurou-se, assim, uma forma primitiva de governança
supranacional.
Portanto, o novo sistema estatal nasceu competitivo e movido pela possibilidade
permanente da guerra. É nesse contexto que se deve compreender a radicalização
do mercantilismo inglês praticado por Cromwell logo depois da revolução de
1648. Naquele momento, criar uma economia nacional consistiu sobretudo numa
estratégia de guerra de um país inferiorizado frente ao poder econômico
holandês e ao poder militar de Luís XIV. A partir daí, e da explosão do poder
inglês, todos os demais Estados europeus tentaram repetir a mesma estratégia,
de modo que se multiplicou o número das economias nacionais, mas sem o mesmo
sucesso dos ingleses.
Em síntese, as primeiras "economias nacionais" nasceram como uma estratégia de
guerra defensiva dos primeiros Estados territoriais europeus e depois se
transformaram numa imposição do sistema político interestatal, cuja regra
número um era a continuidade e a intensificação permanente da competição
político-militar entre seus Estados-membros. Como resultado, desde o início o
sistema político europeu esteve sob o controle compartido ou competitivo de uns
poucos Estados que impuseram aos demais sua liderança político-militar e
econômica. Foram as grandes potências, que nunca passaram de seis ou sete, que
desde o início se transformaram no núcleo dominante de todo o sistema. Na
entrada do século XVIII, depois da decadência de Portugal, Espanha, Suécia e
Polônia, esse pequeno clube ficou restrito a França, Holanda, Inglaterra,
Rússia, Áustria e Prússia, delimitados em conjunto por suas fronteiras
militarizadas com o Império Otomano. Mas mesmo entre esses países já existia
uma hierarquia, na qual a França de Luís XIV se destacava ao lado da Holanda e
da Inglaterra. Em 1748 Frederico II da Prússia dizia, sem nenhum tipo de
dúvida, que "a Inglaterra e a França eram os poderes que determinavam o que
acontecia na Europa". Por outro lado, a mobilidade dentro desse sistema sempre
foi muito lenta e as "barreiras à entrada" de novos "sócios" criadas pelas
potências ganhadoras sempre muito altas.
Nesse ponto da história põe-se uma questão teórica decisiva para a discussão do
problema da "governabilidade mundial": por que surge e se mantém, ao longo da
história desse tipo de sistema político, a vontade imperial de expansão dos
Estados e economias nacionais que está na origem de todas as guerras? O
sociólogo norte-americano Charles Tilly, um dos maiores pesquisadores da origem
do sistema estatal, responde:
Os europeus seguiram uma lógica padronizada de provocação da guerra:
todo aquele que controlava meios substanciais de coerção tentava
garantir uma área segura dentro da qual poderia desfrutar dos lucros
da coerção e mais uma zona-tampão fortificada, para proteger a área
segura. Quando as potências adjacentes estavam perseguindo a mesma
lógica, o resultado era a guerra14.
Mas Tilly não explica por que os príncipes e Estados sentem a necessidade
inicial de criação de suas primeiras "zonas de segurança". Ele afirma que a
guerra é uma conseqüência inevitável do processo de expansão territorial dos
Estados, mas tampouco explica a razão da própria expansão. Apesar disso, não é
difícil entender que a criação das "zonas-tampão" responde a uma necessidade e
a um sentimento defensivo e que a guerra não é uma conseqüência da expansão
territorial dos Estados, como pensa Tilly, mas a sua principal causa. A guerra
não está no fim do processo de expansão territorial: está na sua própria origem
e acaba se transformando na sua primeira causa ou primeiro motor.
Norbert Elias expõe essa tese de forma extremamente clara no seu Processo
civilizador, como vimos na epígrafe deste texto. Em síntese, toda grande
potência estará sempre obrigada a seguir expandindo o seu poder, mesmo em
períodos de paz. Em primeiro lugar porque a guerra é uma possibilidade
constante e inevitável das relações entre as grandes potências; em segundo
lugar porque ela só pode ser protelada pela conquista ou acumulação de mais
poder; e em terceiro lugar porque nesse sistema, como sentenciou Elias, "quem
não sobe, cai"15.
Resumindo nosso ponto de vista, o sistema político e econômico mundial não foi
produto de uma simples e progressiva somatória de territórios, mercados, países
e regiões. Historicamente, foi uma criação do poder: do poder expansivo e
conquistador de alguns Estados/economias nacionais europeus que durante o
século XVII se transformaram no pequeno grupo das grandes potências. Até o
século XIX o sistema mundial se restringia quase que exclusivamente aos Estados
europeus, aos quais se agregaram, no século XIX, os novos Estados independentes
americanos. Mas foi só na primeira metade do século XX que o sistema incorporou
no seu núcleo central duas potências "expansivas" extra-européias, os Estados
Unidos e o Japão, um pouco antes que o Estado nacional se generalizasse, já na
segunda metade do século XX, como a forma dominante de organização do poder
político territorial através do mundo.
Além disso, do nosso ponto de vista, o sistema mundial não existiria na sua
forma atual caso não tivesse ocorrido na Europa um casamento entre os Estados e
as economias nacionais. E a partir desse momento o que muitas vezes se chama de
"globalização" é o processo e o resultado de uma competição secular entre esses
Estados/economias nacionais. A hierarquia, a competição e a guerra dentro do
núcleo central do sistema mundial marcaram o ritmo e a tendência do conjunto na
direção de um império ou Estado universal e de uma economia global. Mas esse
movimento não tem nada a ver com o avanço de uma espécie de "razão hegeliana"
de natureza global e convergente. Ao contrário, é um movimento que avança
sempre liderado por algum Estado/economia nacional em particular. Por isso
mesmo nunca se completa, já que sempre acaba se deparando com a resistência das
demais "vocações imperiais" do sistema. Os ganhadores transitórios dessa
competição sempre foram os que conseguiram chegar mais longe e garantir de
forma mais permanente o controle de "territórios políticos e econômicos"
supranacionais, mantidos na forma de colônias, domínios ou periferias
independentes, mas pouco soberanas. Contudo, só duas das grandes potências
lograram impor o seu poder e expandir as fronteiras de suas economias nacionais
até quase o limite da constituição de um império mundial: a Inglaterra e os
Estados Unidos. Esse processo deu um passo enorme depois da generalização do
padrão-ouro e da desregulação financeira promovida pela Inglaterra na década de
1870. E deu outro passo gigantesco depois da generalização do padrão "dólar
flexível" e da desregulação financeira promovida pelos Estados Unidos a partir
da década de 1970.
POSSIBILIDADES E LIMITES DE UMA "GOVERNANÇA MUNDIAL"
Para discutir as possibilidades reais de "governança" desse sistema mundial que
estamos examinando, é necessário partir das premissas teóricas acima
apresentadas para poder analisar melhor a experiência histórica conhecida. Como
vimos, trata-se de um sistema movido por duas forças político-econômicas
contraditórias. Por um lado atua a tendência na direção de um império ou Estado
universal, que não tem nada a ver com o sonho federativo e cosmopolita de Kant:
seria sempre um império imposto por um Estado aos demais Estados nacionais. E
nesse caso o projeto da "governança coletiva" teria de enfrentar o problema de
que "os impérios não têm interesse em operar dentro de um sistema
internacional; eles aspiram a ser o próprio sistema internacional"16. Por outro
lado, porém, o sistema mundial sempre contou com uma contratendência aos
projetos imperiais que aponta na direção da anarquia criada pela Paz de
Vestfália e de sua recusa a qualquer tipo de poder superior às soberanias
nacionais. Mas a experiência histórica ensina que se não houve império mundial
tampouco houve caos, porque o sistema se hierarquizou e criou, na prática,
várias formas individuais ou coletivas de gestão supranacional da paz, da
guerra e da economia. Formas de gestão imperfeitas e transitórias, quase sempre
atropeladas e destruídas por novos impulsos da tendência imperial.
É no âmbito dessa dinâmica contraditória do sistema mundial que se deve pensar
o que foi, ou possa ser, uma situação de hegemonia e de governabilidade
globais. Um hegemon não pode ser nem nunca será apenas um gerente funcional,
nem tampouco uma forma ou função institucional que possa ser ocupada por
qualquer tipo de governante coletivo. Ao contrário, a hegemonia mundial foi e
sempre será uma posição de poder disputada e transitória, e nunca será o
resultado de um consenso ou de uma eleição democrática. A posição hegemônica,
portanto é uma conquista, uma vitória do Estado mais poderoso num determinado
momento, e nesse sentido é ao mesmo tempo um "ponto" na curva ascendente desse
Estado rumo ao império mundial. É um típico ponto de passagem, um momento de
negociação ou um movimento tático imposto pela estratégia ascensional dos
candidatos ao império global. Mas foi quando ocuparam essa posição transitória
que os países hegemônicos puderam exercer as funções de um governo global, mais
ou menos favoráveis ao desenvolvimento econômico e político dos demais membros
do sistema.
Por outro lado, na história do sistema mundial só houve hegemonia de fato
quando ocorreu coincidência ou convergência dos interesses e valores da
potência ascendente com os das demais grandes potências transitoriamente
derrotadas ou superadas pela escalada imperial dos dois únicos grandes
vitoriosos dessa história: a Inglaterra e os Estados Unidos. Só nos momentos
excepcionais em que se deu essa convergência é que se pode ao mesmo tempo falar
de hegemonia e pensar na possibilidade da existência eficaz de regimes
internacionais capazes de sustentar ou regular algum tipo de governança
mundial. Assim, só se pode falar de uma verdadeira hegemonia mundial em dois
momentos da história do sistema moderno: entre 1870 e 1900 e entre 1945 e 1973.
E foi só nesses momentos de convergência e harmonia de interesses que
eventualmente existiram "regimes internacionais" e instituições multilaterais
eficazes. Fora dessas circunstâncias na ausência de harmonia e convergência
de interesses entre as grandes potências , a "governança mundial" suporia a
existência de um único sistema político, em que as divergências pudessem ser
resolvidas democraticamente. Mas no sistema mundial em que vivemos a única
possibilidade de existência de uma jurisdição política unificada seria sob a
égide de um império global, que é, por definição, o oposto de um sistema
internacional.
Mesmo assim, a cooperação mantida entre as grandes potências nesses dois únicos
períodos hegemônicos da história baseou-se em situações objetivas, regras e
instituições completamente diferentes. No caso da hegemonia inglesa não
existiram regimes nem instituições multilaterais ou supranacionais, e a
cooperação resultou das próprias características da Inglaterra, que tinha uma
economia extremamente aberta e dependente do seu comércio externo. E a própria
estabilidade da libra sempre dependeu dos superávits obtidos pela economia
colonial da Índia e da cooperação dos bancos centrais da França e Alemanha. O
sistema monetário internacional baseado na moeda inglesa não foi objeto de
nenhum tipo de acordo ou regime monetário pactuado entre as grandes potências.
Ao contrário, foi um sistema que nasceu da adesão progressiva dos demais
Estados/economias europeus, obrigados a utilizar a libra nas suas novas
investidas comerciais e imperiais sobre um mundo que já era "território
econômico" inglês. Foi um período em que a coordenação mundial da Inglaterra
foi feita sem regimes ou instituições multilaterais, apenas com o uso dos
"poderes estruturais" de que dispunha a Inglaterra e de que fala Susan
Strange17.
Em toda a história do "sistema mundial moderno", o único período em que foi
tentado o exercício de uma "governança global", com base num sistema de regimes
e instituições supranacionais, foi entre 1945 e 1973, durante a hegemonia dos
Estados Unidos, conquistada com a vitória na II Guerra Mundial. Mas ainda assim
é preciso lembrar que vários desses regimes e instituições concebidos na
primeira hora da vitória militar jamais se concretizaram, como no caso da
Organização Mundial do Comércio e da própria implementação de alguns dos
acordos de Bretton Woods. Na verdade, a economia norte-americana sempre foi
fechada, ao contrário da inglesa; só na segunda metade do século XX é que ela
acelerou seu processo de globalização, na hora em que os Estados Unidos
exerceram seu poder político para organizar uma "ordem mundial", na qual a
cooperação e a convergência entre os principais países capitalistas se deveram
muito mais à ameaça da Guerra Fria e ao medo da mobilização das grandes massas
insatisfeitas, dentro e fora da Europa, do que à opção por um regime
democrático de "governança internacional".
A partir dos anos 1980 os Estados Unidos abandonaram o sistema monetário
internacional pactuado em Bretton Woods, e o fim desse "regime monetário" não
levou o sistema a nenhuma crise terminal. Pelo contrário, destravou a vocação
imperial dos Estados Unidos, que desde então acumulam contínuos ganhos de poder
com o novo sistema monetário "dólar flexível". E com o desaparecimento do
"regime geopolítico bipolar" em 1991 desapareceu também a base ético-ideológica
em que se fundara a cooperação entre as grandes potências capitalistas. A
década de 1990 talvez tenha sido o momento da história em que o sistema mundial
chegou mais perto do seu limite imperial, dos pontos de vista político,
econômico e ideológico. Mas desde 2000 estamos assistindo à rapidíssima
reversão desse processo e à volta da outra tendência do sistema: a tendência à
anarquia. O que parecia ter sido a vitória final do liberalismo anglo-saxão foi
cedendo lugar, uma vez mais, à defesa dos interesses nacionais e das zonas de
influência de cada uma das grandes potências. O que parecia ter sido uma
vitória quase religiosa do liberalismo foi, de fato, o fim de uma era "quase
religiosa" e a volta ao mundo nu e cru das soberanias e dos interesses
nacionais. Por outro lado, desde a década de 1980, mas em particular nos anos
de 1990, desapareceu completamente a convergência de interesses econômicos
entre as grandes potências. Nesse período a economia norte-americana cresceu de
forma quase contínua, enquanto as economias das demais potências estagnaram e a
possibilidade de mobilidade da periferia dentro do sistema ficou praticamente
reduzida aos casos da Índia e da China, dois países que questionam
potencialmente a liderança norte-americana.
Sob todos os pontos de vista, o mundo nunca esteve tão longe de qualquer coisa
que se possa chamar de hegemonia ou ordem mundial. A potência imperial do
momento defende há duas décadas a desregulação de todos os mercados e sistemas
de comunicação, energia e transportes. E vem abandonando sucessivamente todos
os acordos, compromissos e regimes internacionais que afetem sua capacidade de
ação unilateral. Sua moeda agora é rigorosamente universal e não obedece a
nenhum regime, apenas às decisões soberanas do FED. Sua economia nacional
conquistou espaços fundamentais na direção da globalização da sua moeda, dívida
e sistema de tributação. Mas ao mesmo tempo estilhaçou-se o apoio à sua
liderança moral-internacional, e cada uma das grandes potências se dedica hoje
a "recolher os cacos" e a redefinir seus interesses e espaços de influência, de
costas para os Estados Unidos.
Nesse cenário internacional, a idéia ou projeto de uma "governança mundial"
mantém a beleza ética kantiana e segue sendo uma bandeira ou utopia política
válida, mas não é uma realidade provável. Sua existência, quase impossível
neste momento, não pode servir de base para nenhum tipo de cálculo estratégico
durante a próxima década talvez durante as próximas. A menos que seja o caso
da governabilidade mundial preconizada pelos conservadores, como Nial Ferguson,
professor de Harvard e um dos mais festejados historiadores britânicos
contemporâneos:
Em vez de se retrair como um caramujo dentro de uma concha
eletrônica, os Estados Unidos deveriam se devotar a uma participação
mais ampla. Assim como o livre-comércio, isso não ocorre
naturalmente, mas requer sólidos alicerces institucionais de lei e
ordem. O papel que cabe aos Estados Unidos como um império é
estabelecer essas instituições onde elas não existam, se necessário
como na Alemanha e no Japão em 1945 com uso de força militar18.
A mesma utopia e o mesmo projeto "liberal" dos fisiocratas franceses do século
XVII, que também achavam que o bom funcionamento de uma economia de mercado
requereria uma "governança tirânica" que eliminasse os conflitos da vida
política. Mas de preferência um tirano que fosse economista, liberal e
fisiocrata.
[1] Este trabalho foi originalmente escrito para o seminário "Innovation
systems and development strategies for the Third Millenium", realizado no Rio
de Janeiro de 3 a 5 de novembro de 2003.
[2] Kindleberger, Charles. The world in depression, 1929-39. Berkeley:
University of California Press, 1973, p. 304.
[3] Gilpin, Robert. The political economy of the international relations.
Princeton: Princeton University Press, 1987, p. 88.
[4] Carr, Edward H. The twenty years crisis, 1919-39. Nova York: Perennial,
2001, p. 211.
[5] Aron, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1962, p. 47.
[6] Cf. McKeown, Timothy J. "Hegemonic stability theory and 19th century tariff
levels in Europe". International Organization, vol. 37, no 1, 1983; Rogowski, Ronald. "Structure, growth and power: three rationalist
accounts". International Organization, vol. 37, no 4, 1983; Stein, Arthur. "The hegemon's dilemma: Great Britain, the United
States, and the international economic order". International Organization, vol.
38, no 2, 1984; Russet, Bruce. "The mysterious case of
vanishing hegemony or, is Mark Twain really dead?". International Organization,
vol. 39, no 2, 1985; Snidal, Duncan. "The limits of hegemonic
stability theory". International Organization, vol. 39, no 4, 1985.
[7] Strange, Susan. "The persistent myth of lost hegemony". International
Organization, vol. 41, no 4 1987.
[8] Walter, Andrew. World power and world money. Londres: Harvester Wheatsheaf,
1993, p. 249.
[9] Wallerstein, Immanuel. The modern world system. Nova York: Academic Press,
1974; Arrighi, Giovanni. "A crisis of hegemony". In: Amim,
Samir e outros. Dynamics of global crisis. Londres: The MacMillan Press, 1982. Ver também Arrighi, Giovanni. O longo século XX. Rio de
Janeiro/São Paulo: Contraponto/Unesp, 1994.
[10] Hardt, Michael e Negri, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[11] Keohane, Robert e Nye, Joseph. Power and Interdependence: world politics
in transition. Boston: Little Brown, 1977, pp. 19, 55 e 20.
[12] Braudel, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987,
pp. 85 e 82.
[13] Marx, Karl. El Capital.México: Fondo de Cultura Económica, 1980, pp. 638 e
685.
[14] Tilly, Charles. Coerção, capital e Estados europeus. São Paulo: Unesp,
1993, p. 127.
[15] Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1976, vol. 2.
[16] Kissinger, 2001, p. 84.
[17] Strange, op. cit.
[18] Ferguson, Nial. The cash nexus. Londres: Penguin Books, 2001, p. 416.