Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil
A idéia de que a religião se constitui como fenômeno socioantropológico no
processo histórico da modernização do Ocidente já foi de tal modo trabalhada
pela literatura que hoje pode ser considerada consensual1. O paradigma
weberiano da "secularização" deu a essa noção sua formulação mais analítica.
Como se sabe, segundo esse paradigma interpretativo a objetivação da religião
como uma esfera diferenciada da vida social é fruto de um movimento histórico
inaugurado pela modernidade e exponencialmente estimulado pelo ascetismo
protestante. Para Weber, as religiões éticas, caracterizadas pela sua concepção
abstrata da salvação, teriam sido responsáveis pela racionalização da imagem de
um mundo sem Deus e pela projeção da experiência mística para o além2.
Duas conseqüências desse processo de desmistificação da experiência religiosa
são freqüentemente reiteradas pela literatura como conquistas históricas
irreversíveis: por um lado, a força secularizadora da ética protestante teria
promovido uma forma subjetivada de experiência religiosa; por outro, a reforma
protestante, conjugada à emergência dos Estados modernos e da ciência, teria
aprofundado o processo de diferenciação das esferas político-econômico-
científicas em relação à religiosa, o que retiraria definitivamente a religião
do espaço público. À luz de dados relativos ao campo religioso brasileiro, são
essas duas premissas que gostaríamos de discutir neste trabalho. Antes, porém,
convém expor mais claramente os termos do problema.
Embora a emancipação da esfera secular das instituições religiosas tenha sido
um resultado iniludível do processo de modernização que culminou com a
separação jurídica entre Estado e Igreja, alguns autores criticam a dimensão
normativa do paradigma weberiano da secularização. Segundo José Casanova,
uma vez que a secularização foi concebida como um processo
teleológico universal cujo resultado era conhecido de antemão (o
declínio religioso e sua privatização), os cientistas sociais não se
interessaram em estudar os diferentes caminhos que as sociedades
tomam3.
Em artigo anterior retomei essa crítica aos usos e abusos do conceito de
secularização, procurando demonstrar que sua dimensão prescritiva o torna
inútil para a teoria social, uma vez que é despropositada a pretensão de
"medir" o quanto de secularização existe em uma sociedade4. Neste ensaio
procuro avançar um pouco nessa direção, pontuando as particularidades desse
processo de diferenciação no caso brasileiro.
Embora a diferenciação das esferas sociais certamente constitua uma dimensão
fundamental da ordem social moderna, não pode ser reduzida a um movimento de
simples retração do religioso. Vários autores têm demonstrado que a
secularização é apenas um dos elementos de um processo histórico amplo, que
inclui a emergência de um mercado impessoal, de um Estado mais distante da
regulação moral, de uma vida intelectual que dispensa a idéia de Deus e de uma
experiência de individuação urbana mais escolarizada e autônoma. O viés do
legado protestante implícito no paradigma da secularização faz da emergência da
sociedade civil uma extensão da lógica secularizadora do próprio
protestantismo.
Ora, autores como Habermas mostram que é possível prescindir do paradigma da
secularização para pensar o processo de diferenciação das esferas, em
particular a emergência da distinção "esfera pública/esfera privada". Segundo
Habermas, embora a distinção grega entre cité (esfera da pólis) e oikos (esfera
doméstica) tenha chegado até nós como um modelo, só encontrou aplicação efetiva
na prática do direito com a aparição do Estado moderno e de uma esfera civil5.
Dessa forma, uma das diferenciações mais importantes para a compreensão da
ordem social moderna, para além da separação entre Estado e Igreja, é a
distinção entre a esfera pública do Estado e a esfera privada da sociedade. E é
nesse sentido que a religião se torna uma questão privada: ela é excluída da
esfera do Estado.
Mas o processo de diferenciação não termina aí. Habermas aponta que a partir do
século XVIII emerge uma outra distinção, representada pela esfera das pessoas
privadas reunidas em um público, a esfera pública burguesa ou sociedade civil,
que tem como conseqüência mais expressiva a interiorização da família no espaço
privado. Ainda que, segundo o autor, a sociedade de massa tenha fragilizado os
fundamentos da esfera pública, turvando as distinções entre o público e o
privado, parece-me que se tomarmos essa concepção tripartite Estado/
sociedade/esfera privada como intrínseca à ordem social moderna o problema
das relações entre religião e sociedade pode ser proposto em termos analíticos
mais adequados e não-normativos: em vez de admitir como um pressuposto a
privatização da prática religiosa seu confinamento à esfera familiar ,
trata-se de identificar as configurações específicas que as formas religiosas
assumem em cada sociedade em função de seus modos particulares de produzir
historicamente a diferenciação dessas esferas e articulá-las6. No Brasil, como
veremos mais adiante, o processo que levou à separação entre Estado e Igreja
alocou a religião na sociedade civil.
Como bem observou Casanova, não resta dúvida de que a liberdade religiosa,
entendida como liberdade de consciência, "foi cronologicamente a 'primeira
liberdade' e por conseguinte a precondição de todas as liberdades modernas". Da
mesma maneira, o "direito à privacidade", fundamento do liberalismo moderno,
depende das garantias conferidas à liberdade d e consciência7. A liberdade de
consciência e o direito à privacidade são, pois, os direitos fundadores e
legitimadores do Estado liberal moderno. No entanto, essa constatação é apenas
um ponto de partida. Do contrário, o problema das relações entre religião e
sociedade seria reduzido à questão de uma separação institucional juridicamente
perfeita entre Estado e Igreja.
É possível arrolar os mais diversos exemplos históricos para demonstrar que a
emergência de Estados seculares não tem como decorrência necessária e mecânica
a privatização da religião na esfera doméstica. Na verdade, o direito
inviolável à privacidade e a liberdade de consciência são condições modernas
que às próprias religiões interessa preservar. Veremos a seguir que é
exatamente em nome desses direitos que se constitui historicamente, na primeira
metade do século XX, o pluralismo religioso brasileiro. No processo de
constituição do nosso Estado moderno como esfera política própria, ao passo que
houve um retraimento do catolicismo para o espaço social, produziu-se um
intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de
matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente.
Assim, no processo mesmo de constituição do Estado brasileiro como esfera
separada da Igreja Católica, manifestações variadas de "feitiçaria",
"curandeirismo" e "batuques" só puderam ser descriminalizadas quando, em nome
do direito à liberdade de culto, passaram a se constituir institucionalmente
como religiões.
Procuraremos demonstrar que no Brasil o processo de diferenciação das esferas
sociais não implicou a erradicação da magia, mas uma forma particular de
enquadramento daquilo que era percebido como "magia" naquilo se convencionava
chamar de "religião", cujo modelo de referência era o cristianismo. Buscaremos
ainda mostrar que tal processo não redundou na retirada das religiões do espaço
público: ao contrário, resultou na produção de novas formas religiosas, com
expressão pública variável conforme o contexto e as suas formas específicas de
organização institucional. Argumentaremos que o compromisso normativo
resultante do movimento de produção de novas institucionalidades religiosas
em meio a um conflituoso debate público em torno do que poderia ser ou não
compreendido como "mágico" e dos seus efeitos sobre a ordem social nunca
levou a uma desmistificação da experiência religiosa (seja nos termos do tipo
ideal weberiano da ética protestante, seja nos termos práticos e políticos da
Igreja Católica) capaz de promover, de maneira generalizada, formas religiosas
subjetivadas.
PLURALISMO RELIGIOSO
A literatura sobre o campo religioso brasileiro tem demonstrado que as
fronteiras institucionais que distinguem as religiões não-católicas entre si
resultam de um processo histórico de alianças e conflitos entre atores
religiosos e não-religiosos8. Nesse processo, as formas religiosas foram se
constituindo e se modificando em função de um jogo de forças que opôs a
eficácia simbólica daquilo que contextualmente fosse definido como mágico e a
legitimidade social do que fosse assumido como religioso. Assim, embora as
análises antropológicas mais recentes tendam a fixar essas cosmovisões e seus
rituais como inerentes às identidades religiosas supondo implicitamente que
essas práticas já nasceram como "religiões" definidas , pode-se perceber a
partir dos dados históricos apresentados pela literatura que as
particularidades dos contextos locais, as personalidades e as trajetórias dos
agentes mediadores que procuram institucionalizar certas práticas e os limites
colocados pelas diretrizes jurídico-políticas do Estado promoveram arranjos
muitas vezes difíceis de enquadrar nas tipologias religiosas produzidas pelos
modelos acadêmicos, como veremos adiante9.
A questão que devemos nos colocar em primeiro lugar é aquela proposta por
Giumbelli em seu estudo sobre o espiritismo10: a partir de quais critérios um
momento histórico reconhece algo como religião? Dito de outro modo: onde,
quando e por quem os sistemas classificatórios são inventados e de que maneira
adquirem legitimidade para serem aceitos como tais? Nesse sentido, sabe-se que
uma das dimensões históricas fundamentais da conformação das práticas
religiosas no Brasil diz respeito ao processo de constituição do Estado
republicano e às leis penais e sanitárias que visavam disciplinar o espaço
público.
Em seu trabalho sobre a criminalização das práticas mágico-curativas no Brasil,
Schritzmeyer demonstra que desde os primeiros momentos da constituição da
República o combate à feitiçaria e ao curandeirismo fez parte do processo de
estabelecimento de uma ordem pública moderna11. A jovem República tinha diante
de si a difícil tarefa de transformar as naturezas brutas de negros, mulatos e
índios (e imigrantes) em uma só sociedade civil, a qual se fundamentaria
sobretudo na produção de sujeitos passíveis de serem submetidos à normatividade
das leis e na moralidade da religião (cristã). Tratou-se então de absorver e
reinterpretar o conhecimento antropológico disponível para discernir o mais
claramente possível aqueles que poderiam ser objeto da normatividade legal:
feiticeiros, curandeiros, charlatões, exploradores da credulidade pública ou
simples vítimas. Como bem demonstrou o trabalho pioneiro de Maggie12, tal
exercício classificatório foi amplamente empreendido pela jurisprudência
brasileira, que, auxiliada pelas autoridades policiais, esquadrinhou os espaços
públicos e privados para que os hábitos da população fossem conhecidos,
classificados e disciplinados ou tipificados criminalmente.
Se a liberdade religiosa foi cronologicamente a "primeira", a que serviu de
modelo para todas as outras formas de liberdade civil, a constitucionalidade
jurídica da República se viu às voltas com o problema de separar, no confuso
quadro das práticas da população, o que era "religião", portanto com direito a
proteção legal, daquilo que era "magia", prática anti-social e anômica a ser
então combatida. Em contrapartida, as diversas forças sociais médicos,
advogados, curandeiros, filhos-de-santo etc. procuravam influir como podiam
nesses processos classificatórios ao mesmo tempo simbólicos e políticos.
Na verdade, a extensa agenda do regime republicano para laicizar o Estado e
excluir critérios religiosos da cidadania começou por ocupar-se exclusivamente
da Igreja Católica. Todas as deliberações legais sobre a religião visavam
separar os atos civis e os atos religiosos católicos (matrimônio, batismo,
sepultamento, educação, saúde etc.) e fiscalizar o patrimônio da Igreja e das
ordens religiosas católicas. Com efeito, desde a Constituição de 1891 se
estabelece uma luta contínua entre forças católicas e legisladores em torno de
certos privilégios constitucionais da Igreja Católica, sobretudo em relação à
obrigatoriedade e à indissolubilidade do matrimônio religioso e ao ensino de
religião nas escolas públicas. Outras religiões não foram objeto de debate
sistemático, a não ser o protestantismo, que naquele momento já disputava seu
lugar no espaço público, sobretudo por meio da atividade educacional13.
Portanto, a noção genérica de "religião" a partir da qual se garantiram
legalmente a liberdade religiosa e a expressão dos cultos teve como matriz o
intenso debate jurídico sobre a melhor maneira de regular os bens, as obras e
as formas de associação da Igreja Católica. Na formulação de Giumbelli, as
disputas em torno da liberdade religiosa que constituíram o espaço civil
republicano nunca versaram sobre "qual religião teria liberdade, mas quase
sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religião [católica]"14, uma vez
que não havia então qualquer outro culto estabelecido, nem se concebiam outras
práticas populares como religiosas. A Igreja Católica temia a influência do
positivismo e das ideologias secularizantes e agnósticas sobre a nova
constitucionalidade do regime republicano. Assim, começou desde cedo a se mover
em diversas frentes, procurando influenciar os meios pensantes, os escalões
governamentais e as elites por meio da criação de colégios católicos15. Em sua
tentativa de "cristianizar" a Constituição, a Igreja apoiava-se no exemplo
norte-americano: "Como aos americanos, nos assiste a nós o 'jus' de considerar
o princípio cristão como elemento essencial e fundamental do direito
brasileiro", escrevia em 1931 o pensador católico Tristão de Athayde, citando
Rui Barbosa16.
Mas se religião consistia consensualmente apenas naqueles cultos praticados
pela Igreja Católica, como regulamentar as outras práticas que se expressavam
no espaço público? A Constituição de 1891, ao dissolver o vínculo entre Igreja
e Estado, suprimiu as subvenções oficiais, mas autorizou toda confissão
religiosa a associar-se para esse fim e adquirir bens. Impediu no entanto a
institucionalização de associações religiosas em templos ou igrejas,
atribuindo-lhes o mesmo estatuto de outras entidades da sociedade civil17.
Assim, ao longo do processo de institucionalização coube a essas organizações o
ônus de demonstrar ao Estado que não representavam uma ameaça à saúde e à ordem
pública, ainda que praticassem curas, danças e batuques e elas o fizeram
argumentando que essas práticas deviam ser consideradas religiosas.
Giumbelli afirma que o próprio processo repressivo operante entre 1920 e 1940
teria contribuído para o reconhecimento do estatuto religioso das práticas
espíritas, que no início do século XX não tinham a menor pretensão de se fazer
reconhecer como religião18. No entanto, ao propagar suas atividades de
assistência aos necessitados em "gabinetes clínicos", os espíritas desafiaram
um dos pilares da ordem pública urbana: o controle da saúde pública mediante o
cerceamento do exercício ilegal da medicina19. Ao examinar casos de denúncias
nesse sentido julgados nos tribunais, o autor aponta que se travou um debate em
torno das formas legítimas e ilegítimas de praticar o espiritismo cujo fulcro
era a oposição entre religião e magia (espiritismo como doutrina e como
curandeirismo), substrato da distinção entre crença e exploração da credulidade
pública20. A descriminalização da mediunidade e das práticas curativas a ela
associadas será resultante de um processo de transformação do espiritismo em
uma forma de culto religioso. Se o médium é um crente (nos espíritos que dão
assistência e curam), não há em seu ato nenhum estelionato, visto que se trata
de um rito religioso, instrumento da ação divina.
Processos muito semelhantes constituíram o estatuto religioso da umbanda em São
Paulo no período 1920-50. Também organizados como associações civis para se
proteger das sanções legais, os terreiros foram pouco a pouco assumindo
estatuto de religiões, mas para tanto abrigaram-se sob a rubrica do
espiritismo, cujas práticas eram mais facilmente aceitas como religiosas do que
aquelas de origem africana, marcadas pela idéia de magia. Em seu trabalho sobre
a institucionalização da umbanda em São Paulo, Negrão relata que entre 1920 e
1940 as associações umbandistas eram registradas em cartório como espíritas,
pois só assim podiam exercer publicamente suas atividades sem sofrer
perseguição policial21. Assim, a umbanda não emerge desde o primeiro momento
como uma religião sincrética que respondia a um tipo peculiar de sociedade
urbana, de classe e individualista , como pretende a interpretação de autores
como Ortiz22. Negrão prefere uma análise menos culturalista e reificadora,
tomando as relações conflituosas no campo umbandista entre os centros
(interessados em seu sucesso prático por meio dos recursos mágicos) e as
federações (interessadas em proteger certas práticas da repressão policial e
torná-las aceitáveis para a sociedade envolvente) como fatores que promoveram
as variadas formas religiosas que essas práticas acabaram por assumir. Foram
portanto os próprios mecanismos reguladores criados pelo Estado republicano que
constituíram arranjos religiosos como a umbanda, como aponta Maggie23.
De acordo com Giumbelli, a diferença entre as práticas tipificadas como
"curandeirismo" ou "feitiçaria" e as práticas genericamente tratadas como
espíritas pode ser explicada pela divisão de competências entre os aparelhos
médico e judiciário, o primeiro responsabilizando-se pela autuação dos crimes
contra a saúde pública e o segundo lidando com o controle da desordem pública e
as acusações de feitiçaria24. No interior desse quadro legal, as diferentes
associações selecionavam estrategicamente os arranjos rituais que melhor
funcionassem para o tenso equilíbrio entre aquilo que devia ser feito para
angariar reconhecimento no âmbito local das relações sociais e aquilo que devia
ser evitado para não sofrer acusações que pudessem cair na órbita do poder
público. Veremos adiante como essa tensão permanente entre os interesses
particulares e locais relacionados ao "sucesso" de uma casa de culto e as
necessidades de legitimidade inerentes às suas variadas formas de publicização
(desde autorizações para ocupar espaços públicos até concessões de meios de
comunicação) alimentou continuamente as mudanças nas configurações rituais dos
diferentes cultos.
Embora todas as práticas de curandeirismo fossem tratadas sob a rubrica
genérica de "espiritismo", parecia haver um consenso silencioso de que aquelas
associadas aos negros chamadas genericamente de "macumba", "magia negra",
"feitiço" agravavam o ilícito por implicar benefícios materiais e muitas
vezes incidir em crime ou dolo25. A República Velha se encerra com uma
generalizada disposição hostil e repressiva contra essas práticas. A partir do
Estado Novo a repressão se torna mais intensa e, segundo Negrão, mais
especificamente voltada para as práticas percebidas como marcadamente negras,
associadas ao crime e às drogas26. Não é por acaso que em 1931 se cria no Rio
de Janeiro a Inspetoria de Entorpecentes e Mistificação, dedicada à repressão
ao uso de tóxicos e à prática de sortilégios.
Esse marco jurídico-legal em construção, que procurou categorizar e tipificar
as práticas populares segundo as necessidades da ordem e da saúde públicas, foi
aos poucos sedimentando os parâmetros segundo os quais as próprias práticas
puderam se exercer na sociedade civil em construção. As práticas de cura
realizadas pelos médiuns acabaram por escapar às condenações legais por terem
sido tipificadas como religiosas, enquanto aquelas que derivavam para a órbita
policial passíveis de ser percebidas como desordem pública foram
tipificadas como mágicas. Essa polarização se expressou nas possibilidades de
institucionalização disponíveis para as práticas populares: às associações que
se registrassem em cartório assegurava-se o caráter de organizações religiosas,
de modo que ficavam protegidas da repressão; já as práticas de macumba só
podiam ser registradas nas delegacias de polícia.
A ordenação do espaço civil republicano dependeu da capacidade do Estado de
reorganizar a vida urbana, regulamentar a ocupação e o uso dos espaços públicos
pela população e manter a ordem pública. Mas a promulgação de leis não teve um
caráter apenas repressivo27. A "religião" não se impôs simplesmente no marco
legal de cima para baixo, obrigando toda e qualquer prática a assumi-la como
forma de estar na sociedade. Na verdade, a eficácia e a adequação da definição
do religioso dependiam da compreensão ou da negociação sobre o sentido dos
fenômenos que se pretendia regular. Assim, para combater o que era concebido
como crime e manter uma população saudável, o Estado construiu aos poucos uma
ordem jurídica negociada a partir dos saberes acumulados pelos "homens da lei"
e pelos médicos.
Schritzmeyer e Giumbelli fazem uma análise detalhada das diversas correntes das
ciências em formação no período a antropologia, a medicina e a psicologia
que se ocuparam do problema das práticas mágicas28. Para melhor avaliar os
perigos e ameaças inerentes a essas práticas, era preciso conhecê-las de
maneira mais aprofundada e rigorosa do ponto de vista da ciência. É
interessante notar que o foco da atenção tanto dos estudos médicos quanto dos
saberes antropológicos que orientaram as disposições do direito foi o transe
mediúnico. Evidentemente, não por acaso: era preciso decidir o grau de
tolerância possível para com esse fenômeno, uma vez que a criminalização das
práticas de curandeiros e feiticeiros dependia da justa qualificação de sua
intenção dolosa. Cabia portanto fundamentar melhor as críticas que o saber
médico mantinha contra as práticas de transe para definir com mais precisão seu
estatuto.
No caso do espiritismo, Giumbelli mostra que o transe fora por muito tempo
tratado pelas teorias psiquiátricas e psicológicas como fenômeno patológico ou
hipnótico, de modo que fenômenos espíritas como a psicografia e a mediunidade
eram explicados pela doutrina da alteração da consciência29. Mas na virada do
século XX as fronteiras entre hipnotismo e espiritismo foram se tornando cada
vez mais nítidas, e cresceu o entendimento de que o hipnotismo devia ser
mantido nas mãos dos médicos, pois sua generalização seria uma ameaça à saúde
pública. Já no caso das práticas categorizadas genericamente como "macumba" o
debate sobre o transe se desenvolveu preferencialmente no campo das ciências
jurídicas, relacionando-se a crimes contra pessoas ou patrimônio.
Em meio ao debate sobre o estatuto científico do transe distinguiu-se uma forma
particular desse fenômeno: a possessão, marcada historicamente pela revolta do
negro30 e relacionada às práticas de feitiçaria. Ainda que no período colonial
a Igreja Católica houvesse tolerado os cânticos e as danças dos negros
africanos nos dias santos, os transes eram percebidos como formas de possessão
demoníaca e associados à bruxaria conforme o modelo europeu, condenada pela
Inquisição31. Ora, pode-se afirmar que no contexto cientificista da primeira
metade do século XX era mais fácil aceitar como legítima a "mediunidade"
concebida como resultante de processos biopsicológicos universais estudados
pelas ciências da mente do que a "possessão". Na história do Ocidente, essa
categoria, vinculada ao repertório cristão, opusera as heresias diabólicas ao
êxtase místico, e no caso brasileiro foi associada a sacrifícios de animais,
sortilégios e invocações secretas dos negros escravos e libertos. Dessa forma,
a matriz cristã contribuiu para a condenação moral desse tipo deformado e
invertido de transe, concebido como uma ruptura patológica da individualidade
humana.
O modo de conceber o transe operou portanto a partir de duas matrizes: a
científica e a religiosa. Na chave da ciência, se o transe espírita podia ser
concebido como fenômeno universal da mente humana o hipnotismo operado por
mãos incompetentes, incorrendo no crime de exercício ilegal da medicina
(charlatanismo), a "possessão" era da ordem das patologias raciais, podendo
levar à degeneração e ao crime. Na chave da religião, se o espiritismo pôde ser
aceito como crença foi porque ao atender pobres e doentes não evidenciava
intenção de dolo. Já as práticas de negros, uma vez centradas em possessão,
batuques e danças "diabólicos", não podiam ser percebidas como ritos
religiosos, derivando pois para a categoria inversa, a magia, voltada para o
mal e francamente ameaçadora. Assim, pelo menos nas cidades remodeladas sob as
políticas higienistas e o controle disciplinar do espaço público, como Rio de
Janeiro e São Paulo, as práticas desses agrupamentos de negros foram associadas
ao crime e duramente combatidas. A umbanda pode ser compreendida como uma
configuração resultante desse processo, mas o seu reconhecimento como religião
independente teve de esperar até os anos 1950-60.
O processo que tornou as práticas negras legítimas e as transformou em
religiões étnicas resultou de um debate que se desenvolveu ao longo da primeira
metade do século XX. Segundo Giumbelli, esse debate teve maior impacto nas
regiões Norte e Nordeste, onde os intelectuais exerceram maior influência e
foram mais felizes em suas tentativas de conferir legitimidade às associações
negras32. Já nas primeiras décadas do século os candomblés baianos mereceram a
atenção dos estudiosos, os quais passaram a ser incorporados a seus quadros
mediante títulos honoríficos. Em contraste, como mostra Prandi, na cidade de
São Paulo o candomblé não existiu como "alternativa religiosa" pelo menos até a
década de 197033. Pode-se pois avançar a hipótese de que as práticas
popularizadas pelas casas baianas tenham sido desde cedo apreendidas pelos
estudiosos como religiões primitivas, e não como simples bizarrices ou desvios.
Não é por acaso que Nina Rodrigues dá a seu livro de 1900 o título Animismo
fetichista dos negros da Bahia.
Se o processo de descriminalização das práticas mediúnicas espíritas se deu
mediante um debate médico-jurídico que terminou por produzir uma dissociação
entre "fraude" (exercício ilegal da medicina) e "forma de culto" (crença em
divindades), no caso da possessão a transformação em rito religioso resultou de
um debate entre as ciências médicas e antropológicas. Como se sabe, o paradigma
de Nina Rodrigues aprisionara o entendimento desse fenômeno no campo da
medicina legal e lhe deu um substrato biológico. Segundo Giumbelli, foi a
passagem do modelo biológico para o modelo psicológico e cultural, pelas mãos
de Arthur Ramos, que permitiu uma mudança de paradigma. Assim, segundo o autor,
duas dinâmicas diferenciadas produziram a mutação da percepção das práticas
mediúnicas em práticas religiosas: a lógica legal, que produziu uma matriz de
ordenamentos e representação das práticas em função de sua ameaça à ordem
pública, e a lógica culturalista, mobilizada pelos intelectuais, que sobretudo
a partir da década de 1930 se voltam para as expressões culturais populares de
modo a dar forma aos regionalismos34.
Mediante esse breve panorama histórico buscamos mostrar que as particularidades
da formação do Estado e da sociedade civil no Brasil construíram o pluralismo
religioso a partir da repressão médico-legal a práticas percebidas como
mágicas, ameaçadoras da moralidade pública. Dessa forma, o modo como hoje se
apresentam as "alternativas" religiosas resulta em grande parte de um processo
de codificação de práticas no qual médiuns e pais e mães-de-santo levaram em
conta os constrangimentos de um quadro jurídico-legal em transformação, os
consensos historicamente construídos sobre o que oferece perigo e o que pode
ser aceito como prática religiosa, os repertórios de práticas pessoais
construídos ao longo de suas trajetórias de vida e as expectativas do público e
dos concorrentes. Configuraram-se assim "estilos" de culto derivados de
determinadas combinações dos códigos culturais disponíveis. Procuraremos
demonstrar a seguir que as noções de "fronteiras" ou "alternativas" religiosas
perdem muito de sua consistência empírica quando analisadas desse ponto de
vista.
PLURALISMO E ESPAÇO PÚBLICO
Vimos que no processo formação do espaço público brasileiro apresentar-se como
religião foi a única forma de institucionalização possível para a expressão de
práticas que associavam formas heteróclitas de cura e rituais centrados no
transe. A literatura sobre o tema parece indicar que a combinação de cura e
transe produziu formas rituais que na prática tornam muito fluidas as
diferenças entre os cultos. Assim, se tomarmos o ponto de vista dos agentes o
modo como se auto-representam e produzem práticas rituais veremos que os
modelos distintivos das religiões (relativos a crenças, ritos, cosmologias,
valores e modos de conduta), tais como construídos pela antropologia, perdem
grande parte de sua força analítica.
Um dos exemplos mais ilustrativos desse argumento é oferecido por Beatriz Góes
Dantas ao relatar o caso de Bilina em seu livro Vovó Nagô e Papai Branco35, no
qual a autora procura mostrar que nos terreiros de Sergipe a "pureza nagô"
depende sobretudo das linhas de filiação reivindicadas pelas mães-de-santo.
Bilina é neta de uma escrava que se empenhou em fazer com que ela fosse
continuadora das tradições africanas cultivadas em seu terreiro na cidade de
Laranjeiras, em Sergipe. Sua mãe, crioula, teve um filho com o senhor das
terras, e todos os seus outros filhos, inclusive Bilina, o chamavam de "papai
branco", eram por ele sustentados e receberam seu sobrenome. Ainda jovem, ela
vai trabalhar como doméstica no Rio de Janeiro. Com a morte da avó, abre-se o
processo de sucessão de seu terreiro e ela é chamada a ocupar o posto. Sua
legitimidade é contestada por outra pretendente, Inácia, que sob a proteção dos
velhos africanos se vê como legítima continuadora da tradição, uma vez que
Bilina se desligara dos processos tradicionais de aprendizagem desde a sua
adolescência. Com efeito, ela ainda não havia sido iniciada. Mesmo assim, o
argumento do conhecimento adquirido por revelação e predestinação prevalece
sobre o da senioridade, e ela é escolhida como sucessora.
Essas duas fontes de legitimidade produzem combinações diversas de organização
de cultos e ritos que estão sempre em disputa em nome da pureza, sob acusações
mútuas de feitiçaria. No caso do candomblé de Bilina, a "pureza nagô" se
constrói pela supressão de elementos rituais caracterizados pela literatura
como tradicionalmente africanos reclusão na camarinha, raspagem da cabeça,
feitura do santo, sacrifício de animais etc. e pela introdução de outros não
pertencentes a esse repertório, como o batismo. Estudos sobre as disputas de
legitimidade na umbanda apontam para o mesmo processo. Negrão observa que os
terreiros geralmente são constituídos e mantidos por pequenos grupos de
parentela, que variam entre dez e trinta pessoas e recebem como clientela um
número mais ou menos equivalente36. Eles se caracterizam pela fluidez
organizacional e pela independência do pai ou mãe-de-santo na definição do
rito. Se no caso de Bilina a codificação ritual operava a partir da categoria
"pureza nagô", nos casos relatados por Negrão a codificação se faz em nome do
combate à "mistificação", de que são acusados os que simulariam o transe, e ao
"charlatanismo", imputado àqueles que teriam má formação iniciática e
explorariam a "credulidade pública". Também aqui as escolhas dos elementos
rituais são feitas num contexto de acusações recíprocas, ratificadas pelo
sucesso ou fracasso junto a uma clientela.
Esses dois exemplos são ilustrativos do modo como o processo jurídico-legal
constituiu os parâmetros dentro dos quais as lógicas de produção de
legitimidade podem se mover nas práticas concretas. Evidenciam que os arranjos
rituais definidores de um "estilo religioso" próprio a uma casa de culto estão
imersos numa lógica concorrencial que se expressa em termos de acusações mútuas
de "mistificação" e "charlatanismo" as mesmas categorias utilizadas
historicamente pelo Estado para fundamentar a repressão à feitiçaria. Dessa
forma, pode-se afirmar que no plano das relações de concorrência se manifesta o
consenso historicamente consolidado no plano das relações jurídico-legais
acerca das linhas que separam o interesse público do interesse privado37, ou
seja, reitera-se a mesma oposição entre religião e magia analisada
anteriormente. O depoimento de uma mãe-de-santo registrado por Negrão é
bastante ilustrativo nesse sentido:
Quando a gente entra em roncó, a gente presta um juramento que nunca
a gente vai dizer não aos nossos pais. Eu recebi o decá de mãe-de-
santo. Uma semana depois, uma outra filha-de-santo, como recebeu
todos os orixás, abriu terreiro. Não recebeu o decá. Então eu acho
assim, se fosse uma religião, uma coisa certa, estas pessoas não
fariam isso, não existiria tanto charlatão38.
A lealdade à mãe-de-santo, garantida pelo decá, é vista como elemento
fundamental de legitimidade da prática, isto é, como a linha que separa
religião de charlatanismo. Ora, é fácil perceber que o uso da lógica da
lealdade como princípio organizador das práticas de um terreiro não permite a
expansão de sua combinação ritual para além dos estreitos limites das relações
socais mais próximas. Com efeito, alguns exemplos arrolados por Negrão mostram
como essa lógica conduz a um contínuo movimento de cisões39. Somente quando os
agentes são capazes de formular combinações simbólicas e rituais inclusivas e
universalizadoras os cultos podem expandir-se para um conjunto abrangente de
relações e ganhar maior visibilidade.
Embora a idéia de "continuum religioso" elaborada por Cândido Procópio Ferreira
de Camargo tenha captado perfeitamente esse movimento combinatório de códigos
espíritas, cristãos e afros que os agentes realizam, situou-o num quadro
explicativo temporal e aculturativo da secularização que supunha a passagem
histórica da magia para a religião internalizada40. Ora, o que podemos ver é a
coexistência de múltiplas práticas combinatórias que partilham o mesmo código
mas se situam em posições estruturais diversas nessa relação entre Estado,
sociedade civil e mundo da vida. Mas qual seria a natureza desse código41?
CARIDADE E FEITIÇO
No processo histórico de construção da sociedade civil brasileira, os limites
do Estado para implementar uma política social e assistencial abrangente o
levaram a apoiar-se reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro
dessa "devolução" das funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se
no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde
que se apropriou do código cristão da "caridade"42. As associações civis, a
começar pelos centros espíritas, lançaram mão da homeopatia e de rituais
mediúnicos para, em nome da caridade, proceder ao atendimento terapêutico e à
proteção dos necessitados43. Mas ao contrário das práticas católicas,
organizadas em torno de hospitais, asilos e dispensários e apoiadas na formação
científica de seus quadros, os terreiros e centros exerceram suas atividades no
mais das vezes no ambíguo campo da oposição magia/religião44. Nesse contexto,
"caridade" passa a significar a prática gratuita e desinteressada de ajuda ao
pobre ato religioso de compaixão , enquanto a "feitiçaria" é seu oposto
ato pecuniário egoísta que engana os crédulos. Assim, cabe a cada liderança das
casas de culto ou terreiros definir, na luta pela clientela, a posição relativa
de suas práticas nesse espectro.
Os relatos reunidos pela literatura sociológica e antropológica sobre o modo
como as lideranças religiosas representam suas práticas e as outras indicam que
a variação da posição de um grupo em sua relação com o Estado e a sociedade
civil relaciona-se diretamente a uma variação na combinação do código
"caridade/feitiço": quanto mais pública e abrangente se quer essa prática, mais
será acionado o código "religião/caridade"; quanto mais local for ela, mais
será acionado o código "magia/feitiçaria". Embora esses códigos pertençam ao
mesmo campo das representações coletivamente assimiladas o campo da religião
ou da cultura nacional , o da feitiçaria, talvez porque opere segundo uma
lógica na qual "dar para um é tirar de outro", não tem a mesma capacidade de
universalização das relações que o código cristão da caridade.
A INVERSÃO PROTESTANTE
No campo protestante, a noção de "assistência social" também opera na chave da
caridade, mas a variação da Igreja Universal do Reino de Deus me parece ser a
mais interessante45. Sua originalidade nesse campo reside no fato de ter
produzido uma dupla inversão dos termos até aqui analisados: por um lado, seus
ritos generalizaram a "feitiçaria" no espaço público por via dos meios de
comunicação; por outro, fizeram coincidir caridade e prosperidade econômica46.
Em suas práticas rituais mais importantes, a Igreja Universal recupera e
ressignifica duas categorias clássicas do cristianismo: o exorcismo e o
donativo em dinheiro.
Sabe-se que na tradição cristã o grande adversário da religião é Satã, que
encarna todos os obstáculos à salvação. Ao assumir-se historicamente como a
verdadeira religião, o cristianismo assimilou como demônios todas as divindades
de outros credos. Assim, o maior crime de Satã é perpetuar o paganismo. A prova
mais segura da verdade da fé cristã está no poder concedido a seus fiéis de
exorcizar os possuídos pelos demônios47. O exorcismo dos "demônios pagãos"
personificados nos exus constitui um dos principais momentos dos ritos da
Igreja Universal48. Mediante esse procedimento, ela anexa todo o repertório
disponível de códigos mediúnicos e os universaliza na idéia mais abstrata de
Mal. A transmutação de exus em personificação do Mal e sua expulsão deslocam a
lógica simbólica do feitiço que opera no plano das relações entre homens e
deuses do domínio do humano para o da luta cósmica entre o Bem e o Mal: o
exorcismo combate tudo aquilo que afasta os homens da vida eterna no Paraíso.
Anexada dessa forma ao código cristão da salvação, a feitiçaria deixa de ser
uma prática acusatória pontual, exibindo-se na cena pública como rito religioso
e prática desinteressada.
Um outro deslocamento simbólico importante refere-se à oferta em dinheiro. No
caso dos terreiros, a "cobrança pelos serviços" personaliza o pagamento,
tornando-o suspeito de interesse privado e de exploração dolosa. No caso da
Igreja Universal, esse ato é entendido como "doação": uma demonstração de fé
endereçada diretamente a Deus para desafiá-lo. A oferta instaura uma aliança
entre Deus e o homem, pela qual aquele fica obrigado a uma imediata
restituição. Na interpretação de Gomes, Deus não pode subtrair-se ao jogo, de
modo que "a oferta cria uma pretensão que deve, impreterivelmente, ser
alcançada, um direito"49. Enquanto nos terreiros o dinheiro deve permanecer
como um mediador invisível do sacrifício (um meio de aquisição de velas,
animais etc. para as cerimônias), no pentecostalismo da Igreja Universal o
próprio dinheiro é o objeto de sacrifício. Com efeito, é esse o nome que se dá
à oferta. Mas sacrificar dinheiro e bens significa na verdade colocá-los em
risco, ou aceitar o risco da privação apostando na restituição divina: quanto
maior o risco, maior a fé e conseqüentemente maior a recompensa. Segundo Gomes,
na Igreja Universal é a idéia de posse que dá sentido ao exorcismo e à oferta.
Prosperidade, saúde e amor são um destino humano por vontade de Deus; assim,
"tomar posse" significa realizar aquilo para o que se está destinado. A Igreja
viabiliza a reintegração de posse a que os homens têm direito ao "desamarrar"
aqueles que estão desprovidos das bênçãos divinas em razão da ação perturbadora
dos demônios.
A idéia de troca implícita nessas relações entre homens e Deus é pois
ressignificada. Nos códigos afros são ofertados presentes velas, bebidas,
cigarros, comida para agradar os deuses, torná-los generosos com os homens.
Essa circulação demasiadamente humana de bens, o caráter metonímico do
sacrifício, que muitas vezes implica a morte de animais, sofre a suspeição de
animismo ou selvageria. Já o modo sacrificial que o dinheiro assume nos ritos
da Igreja Universal retira do sacrifício seu caráter violento e bárbaro e o
transmuta em uma abstrata relação de risco, como em um investimento
econômico50. Nesse processo de universalização, o dinheiro se desfetichiza e ao
mesmo tempo a noção de caridade cristã como proteção aos pobres concebida em
termos comunitários se transforma num direito individual dos pobres. Sacrificar
ritualmente o dinheiro (reduzir incertezas mediante risco) e exorcizar o
feitiço (indexar os demônios pagãos à idéia de salvação) são formas de
discursos práticos que negociam com outras proposições, o que repõe em jogo as
fronteiras entre magia e religião.
PLURALISMO E RELIGIOSIDADE
Se as "fronteiras" religiosas perdem muito de sua consistência empírica quando
analisadas do ponto de vista da luta concorrencial entre os agentes, quando o
foco se desloca para a experiência dos freqüentadores e usuários das casas de
culto elas simplesmente parecem não existir. Buscamos demonstrar acima que o
campo dessas práticas foi ganhando forma e inteligibilidade no interior de um
universo jurídico-legal que definiu o "religioso" em referência ao católico.
Nesse sentido, a "crença em Deus", unidade mínima do que pode ser aceito como
"religião", é um referente universal de todas as práticas: "Todas as religiões
são boas porque todas conduzem a Deus", diz um lema kardecista ou, diríamos
nós, todas as religiões são percebidas como religiões porque supõem a crença em
Deus.
Já está assentado na literatura sobre o tema o fato de que tanto pais e mães-
de-santo como espíritas geralmente se auto-representam como católicos. No
entanto, se toda combinação de práticas rituais pode ser reconhecida como
religiosa ao apresentar-se como forma de expressão de crenças, ritos civis como
batismo, casamento e sepultamento ainda são amplamente reconhecidos como
monopólio da Igreja Católica51. Esse duplo substrato a fé em Deus e os ritos
civis faz do catolicismo a língua universal da tradução de qualquer prática
em rito religioso e o referencial de uma publicização legítima. Essa
convertibilidade, percebida quase como natural, é potencializada pelos vínculos
históricos que, como vimos, ligaram tendas de umbanda, roças de candomblé e
centros espíritas no processo histórico de suas institucionalizações como
religiões.
Observando esse mesmo processo do ponto de vista dos freqüentadores, percebe-se
com clareza ainda maior que o "pluralismo religioso", pelo menos no que diz
respeito ao espectro dos códigos afros, espíritas e cristãos, constitui um
mesmo sistema de combinações rituais. Em sua descrição do campo religioso
brasileiro, Brumana observa que os indivíduos freqüentam livremente todo tipo
de "religião", de acordo com suas necessidades e problemas conjunturais. Como
diz um de seus informantes, "todas as religiões são boas, mas cada qual para
uma ocasião":
Para alguém que não tem problemas na vida, a melhor é a católica.
[...] para alguém com problemas financeiros a melhor é a dos crentes
porque eles se ajudam como irmãos. [...] para os que sofrem de
enxaqueca a melhor religião é o espiritismo. [...] Se Deus deixar,
quando se está completamente curado, volta-se para o catolicismo52.
Esse depoimento é paradigmático, pois permite perceber que as noções de
"devoção" e "conversão", que orientaram grande parte das análises sobre os
fenômenos religiosos, não descrevem com precisão o que ocorre no campo das
práticas. Nesse campo, os "adeptos" não são sujeitos de "convicções" religiosas
e a mudança de religião não pode ser tratada em termos de "conversão". Essa
noção, como vários autores já apontaram, projeta sobre os diferentes cultos o
modelo protestante weberiano como forma doutrinária internalizada53. Ora, o
depoimento demonstra que o indivíduo combina matrizes simbólicas disponíveis de
maneira estratégica e contextual, sem que isso implique mudança de ordem
subjetiva. Depoimentos coletados por Negrão também expressam essa percepção:
Eu era mesa-branca [e] com quatorze anos passei para umbanda porque a
mesa-branca foi muito fraca para os meus orixás [...].
Minha umbanda é kardecista porque eu sigo mais ou menos o ritmo [do
kardecismo], só que aqui a gente só tem uma diferença: se usa velas,
tem as imagens e [...] todo mundo usa umas saias bem compridas
54.
Chama a atenção nesses depoimentos o modo como são pontuadas as diferenças
entre os cultos: presença/ausência de velas, roupas, um ou outro orixá. Fica
evidente que os arranjos religiosos se fazem no plano ritual e não no
doutrinário. A circulação entre tendas, templos e terreiros depende da
avaliação conjuntural da força relativa dos ritos no que diz respeito às
questões de saúde e prosperidade. A "inversão protestante" situa o
neopentecostalismo nesse mesmo campo de transformações. Sua força simbólica
reside, como vimos, na capacidade de alargar a definição cristã do religioso de
modo a incorporar códigos afros. Nessa operação ritual a vitalidade dos poderes
da "feitiçaria" é ao mesmo tempo conservada e neutralizada.
O privilégio da dimensão ritual na experiência religiosa nos permite supor que
a circulação entre cultos não necessariamente põe em jogo processos de
desenraizamento e individuação de sujeitos, implícitos na teoria weberiana da
conversão. Com efeito, análises recentes do pentecostalismo têm enfatizado sua
dimensão mais performática que doutrinária. Observando rituais como o de
"louvor" e o da glossolalia na Igreja Universal, Corten conclui que eles contém
um efeito estético no qual se produz um "exorcismo" da pobreza55. Trata-se de
enunciados sem conteúdo informativo, que dependem da qualidade da performance
para se tornar aceitáveis e convencer o público de sua eficácia. A importância
das configurações rituais na experiência religiosa confere a essas práticas uma
fluidez e uma volubilidade que são captadas de maneira muito imprecisa pela
idéia de "alternativas religiosas" entendida aqui como conjunto distintivo de
religiões cujos universos de valores e práticas estão em relação concorrencial.
Com efeito, do ponto de vista da experiência a pessoa não se percebe "mudando
de crença", mas operando repertórios adequados a situações conjunturais ou a
escolhas mais ou menos estéticas.
A recente expansão da Igreja Universal do Reino de Deus não parece ter
modificado os termos da equação. Análises como a de Maximiano mostram a
importância do cenário e da oratória nos modos de persuasão simbólicos desse
culto, em que o conteúdo dos discursos cede lugar ao tom de voz, ao ritmo da
frase e ao gesto56. A dimensão performática desse culto o situa na cadeia das
variações rituais que partilham os mesmos códigos: a diferença aqui está em sua
capacidade renovada de indexar ao religioso códigos percebidos como mágicos. O
catolicismo havia feito isso no passado por meio da categoria "superstição":
crenças "falsas" a corrigir. Com o declínio da figura do demônio na cosmogonia
católica e o deslocamento da idéia de mal para o mundo social, o
neopentecostalismo pôde recuperar para si o ritual exorcista e indexar os
códigos afros à idéia de mal.
CONCLUSÕES
Em face das disputas históricas que marcaram as distinções entre o religioso e
o mágico no país, podemos perceber como a idéia weberiana de "secularização" é
insuficiente para explicar a construção do espaço público no Brasil. A
instauração de um Estado secular produziu ao mesmo tempo um espaço civil e
novas religiões. A demarcação das fronteiras religiosas foi resultado de um
processo histórico de diferenciação entre magia e religião, e seus limites se
deslocam continuamente em função dos consensos produzidos a cada momento. O
pluralismo religioso, convencionalmente compreendido como tolerância com a
diversidade de cultos e como respeito à liberdade de consciência, se constituiu
às avessas no Brasil: não foi fundamento do Estado moderno, mas seu produto.
Ainda que para determinadas práticas o "tornar-se religião" tenha representado
a única forma socialmente legítima de existirem no espaço público, não se pode
inferir que essas práticas assumiram em seu modus faciendi a forma daquilo que
a literatura especializada convencionou chamar de "religião": um sistema
doutrinário de crenças em deuses. Com efeito, as formas de crença supostas pela
literatura subjetivadas e racionalizadas não parecem dar conta do modo como
os sujeitos circulam entre casas de culto e se apropriam das práticas rituais
disponíveis. As lutas pela legitimidade social lançam mão de códigos
compartilhados (o jogo entre caridade e feitiço) a fim de produzir poder social
e simbólico em cada situação. Ocorre porém que esses códigos parecem funcionar
com sinais trocados: quanto maior o poder social (investido no ideal da
caridade/gratuidade), menor o poder simbólico (força mágica do feitiço/
dinheiro). A recente expansão do neopentecostalismo não modificou os termos
dessa equação; antes, produziu uma equação com maior capacidade de
generalização.
Embora tenha perdido legitimidade para organizar o mundo público, a Igreja
Católica foi uma importante matriz no processo de constituição da esfera
pública no Brasil. Ela não deixa de ser Igreja depois da República: ainda hoje
é legitimada como responsável pelos ritos civis socialmente válidos. Assim,
embora a oposição entre crença e superstição não possa servir de fundamento
para o controle das práticas rituais não-católicas, a distinção entre
sacramento e rito ainda é reconhecida como perfeitamente legítima. Na medida em
que estão na base da formação de nossa esfera pública, alguns códigos católicos
ainda são percebidos como aqueles aceitáveis para expressar ou demandar algo no
espaço público. Ainda reverberam em nossa idéia de bem comum associações entre
religião e verdade, de um lado, e entre feitiçaria e falsidade, de outro.
Segundo Corten, a glossolalia pentecostal constitui enunciados que ainda estão
fora da linguagem política reconhecida, mas quando certas narrativas começarem
a se impor, tais como a "teologia da prosperidade", essa condição pode mudar57.
O uso intensivo dos meios de comunicação pelos pentecostais e seus ritos
performáticos, como o louvor, o testemunho e o exorcismo, produzem um discurso
que não funciona nem como verdade nem como normatividade, mas como mise-en-
scène da soberania divina, da força da fé. Se a "teologia da libertação"
produziu a categoria do pobre como ator político na cena pública (ainda que a
libertação projete a salvação para fora da história), a "teologia da
prosperidade" produz o pobre como ator econômico e o torna responsável por sua
própria salvação58. Seu modo de ritualizar o dinheiro (via sacrifício) e
fortalecer a eficácia da ação (via incorporação da feitiçaria no exorcismo) lhe
dá uma amplitude discursiva que a teologia da libertação não foi capaz de
alcançar por se recusar a essa negociação com as "heresias" populares.
Nessa nova configuração, os códigos referentes à saúde e à prosperidade, como
uma ética do mundo dos pobres, têm apresentado grande capacidade de
mobilização. Esse capital social tem ampliado as manifestações públicas dessas
práticas, cujos ritos conquistam estádios de futebol, televisões e diversas
instituições públicas. Mas sua potencialidade propriamente política, isto é,
sua capacidade de constituir atores organizados que demandem junto ao Estado
uma regulação específica, ainda não me parece claramente definida em
contraste com a atuação da teologia da libertação nos anos 1970-80, quando
esteve na base de inúmeros movimentos sociais organizados. Apesar da crescente
presença dos pentecostais na arena política e nos meios de comunicação59, o
mesmo não parece acontecer com a "teologia da prosperidade" e seus ritos de
exorcismo. Mas não resta dúvida de que, pelo menos entre as camadas mais
pobres, emerge uma forma de conceber a inclusão e a "boa vida" cuja influência
na esfera pública ainda não foi corretamente avaliada.
[1] Cf. Weber, Max. La ética protestante y el espíritu del capitalismo.
Barcelona: Península, 1969 [ 1904]; Tambiah, Stanley J. Magic,
science, religion ad the scope of rationality. Cambridge University Press,
1990; Casanova, José. Public religions in the modern world.
Chicago: University of Chicago Press, 1994.
[2] Weber, Max. Ensaios de sociologia. 5a ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982
[1913], p. 325.
[3] Casanova, op. cit., p. 25.
[4] Montero, Paula. "Max Weber e os dilemas da secularização". Novos Estudos,
no 65, 2003, p. 36.
[5] Habermas, Jürgen. L'espace public. Paris: Payot, 1978.
[6] Não há consenso na análise social acerca da terminologia mais adequada para
distinguir o público do privado. Segundo Casanova (op. cit., p. 42), na
tradição política liberal a distinção sempre foi referida à separação
constitucional entre Estado e Igreja; o republicanismo clássico reduz o público
ao governamental; o campo histórico-antropológico trata a esfera da
sociabilidade como esfera pública; e o ponto de vista das feministas opõe a
família ao mercado. Para o autor, os desacordos advêm da dificuldade de
encaixar a estrutura tripartite "Estado/família/sociedade civil" numa oposição
binária que deriva da antiga oposição grega. A esfera da sociedade civil, que
articula as outras duas, cria interpenetrações variadas entre elas. Na
interpretação de Sérgio Costa (As cores de Ercília. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2002, p. 27), para Habermas não há distinção apriorística entre o público e o
privado, já que a esfera pública "é ubíqua, perpassando todos os níveis da
sociedade e incorporando todos os discursos, visões de mundo e interpretações
que adquirem visibilidade e expressão pública".
[7] Casanova, op. cit., p. 90.
[8] Cf. Giumbelli, Emerson A. O cuidado dos mortos: uma história da condenação
> e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997; Dantas, Beatriz G. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da
África no Brasil. São Paulo: Graal, 1988; Maggie, Yvonne. Medo
do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992; Negrão, Lísias. Entre a cruz e a encruzilhada:
formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Edusp, 1996; Schritzmeyer, Ana Lúcia P. Sortilégios de saberes: curandeiros e
juízes nos tribunais brasileiros. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, 2004.
[9] Roger Bastide foi um dos primeiros autores a conferir essa dimensão
histórico-simbólica ao problema do sincretismo. Segundo ele, não são as
"civilizações" que entram em contato, mas "seres humanos" com desejos de
prestígio, distinção, ascensão social. Bastide enfatiza que os "empréstimos"
são mentais e não se manifestam fora dos limites da experiência dos indivíduos
em situação. Assim, sua antropologia propõe metodologicamente a comparação
entre configurações sincréticas distintas em diferentes momentos e lugares.
Embora sua proposta possa ser considerada um avanço importante em relação às
abordagens culturalistas anteriores, o autor não conseguiu realizar plenamente
seu programa teórico, talvez porque tenha concebido uma "civilização africana"
anterior e definível de maneira autônoma quanto às relações sócio-históricas
que a construíram no Brasil. Cf. Bastide, Roger. The African religion of
Brazil: toward a sociology of the interpenetration of civilizations. Baltimore:
John Hopkins University Press, 1978 [1960].
[10] Giumbelli, op. cit., p. 29.
[11] Schritzmeyer, op. cit. Segundo Emerson Giumbelli (O fim da religião:
controvérsias acerca das "seitas" e da "liberdade religiosa" no Brasil e na
França. Rio de Janeiro: tese de doutorado, Museu Nacional, 2000, p. 217), a
Constituição de 1891 é a base da ordenação jurídica do estatuto da religião na
República; as constituições posteriores trouxeram apenas alguns acréscimos e
qualificações.
[12] Maggie, op. cit.
[13] Embora Pedro II tenha encorajado a vinda de missionários protestantes ao
Brasil, estes não exerceram influência expressiva nas disputas em torno das
liberdades religiosas. Durante o Império, os protestantes estiveram associados
sobretudo às comunidades de imigração, no início basicamente alemãs. No século
XX, por influência norte-americana, batistas e metodistas se difundiram de
maneira mais ou menos intensa, constituindo ilhas protestantes em áreas
tradicionalmente católicas. Segundo João Camilo de Oliveira Torres (História
das idéias religiosas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968, p. 279), os
protestantes, apesar de numericamente expressivos em muitos lugares, tiveram
uma influência extremamente reduzida no plano das idéias e inexistente no plano
político. Sua presença mais marcante se deu por meio dos "colégios americanos"
batistas e metodistas, que nos primeiros anos da República se estabeleceram em
várias cidades do Brasil.
[14] Giumbelli, O fim da religião, op. cit., p. 249.
[15] Cf. Lustosa, Oscar F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo:
Paulinas, 1991, pp. 45, 47.
[16] Apud Cifuentes, Rafael L. Relações entre a Igreja e o Estado. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1971, p. 241.
[17] Cf. Giumbelli, O fim da religião, op. cit., p. 252.
[18] Giumbelli, op. cit., p. 122.
[19] No início do século XX a política pública de saneamento foi fundamental
para viabilizar a vida urbana. Essa política, cujo paradigma foi a colaboração
entre o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, e o sanitarista Osvaldo
Cruz durante a Presidência de Rodrigues Alves (1902-06), abrangeu várias
dimensões: a remodelação urbana, com abertura de avenidas, reforma do porto e
desativação de cortiços; a mudança de hábitos da população mediante a proibição
de certas atividades em locais públicos, tais como venda de miúdos e ordenha de
vacas, urinar e cuspir na rua e algumas diversões populares; a reorganização
dos serviços sanitários, que ganharam maior poder de fiscalização e repressão
sobre as condições de higiene e as práticas curativas irregulares. É nesse
contexto que se produz a figura jurídica do "charlatanismo" (cf. Giumbelli, op.
cit., p. 135).
[20] Essa oposição entre crença e credulidade remonta historicamente às noções
de idolatria e feitiçaria mobilizadas pelos missionários católicos na América e
na África para combater as "falsas crenças" encontradas nos ritos nativos. A
antropologia evolucionista absorveu essa categorização ao identificar a
superstição como falso racionalismo causal. A crítica iluminista à religião
fixou na literatura filosófica e ensaística a idéia de que a religião é uma
forma de ludibriar as consciências e a magia uma forma de fascinar os crédulos.
[21] Negrão, op. cit.
[22] Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis: Vozes,
1978.
[23] Maggie, op. cit., p. 24.
[24] Giumbelli, op. cit., p. 275.
[25] Maggie (op. cit., p. 24) enfatiza que os processos penais no Rio de
Janeiro não se referiam à repressão a cultos, mas à necessidade de identificar
feiticeiros e puni-los.
[26] Negrão, op. cit., p. 74.
[27] Roberto Kant de Lima (A polícia da cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Biblioteca da Polícia Militar, 1994, pp. 56-57) observa que nas
primeiras décadas da República "ocorreu uma clara mudança da teoria legal,
graças à qual a polícia passou de uma organização repressiva e punitiva para
uma força policial 'científica', disciplinadora e profissional", com funções de
vigilância e prevenção. Assim, era preciso ter critérios para discernir o
potencial de periculosidade das condutas. Sob a influência dos conceitos da
criminologia do século XIX, oriundos da "escola positivista" de autores como
Lombroso, desenvolveu-se a idéia do "criminoso nato", identificável pelas suas
características anatômicas.
[28] Schritzmeyer, op. cit.; Giumbelli, op. cit.
[29] Giumbelli, op. cit.
[30] Na primeira metade do século XIX temia-se que as reuniões de negros
facilitassem a organização de levantes. Em seu trabalho sobre a capoeira,
Letícia Reis observa que as elites, talvez valendo-se do modelo da maçonaria,
percebiam os capoeiras como uma espécie de sociedade secreta de negros, cujo
posto mais alto pertencia àquele que tirasse mais vidas. Mais para o final do
século a capoeira é qualificada pela polícia como "seita sangrenta" (Reis,
Letícia. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo:
Publisher Brasil, 1997, p. 72).
[31] A atitude negativa dos europeus para com a África negra tem raízes
antigas. Na doutrina teológica cristã medieval, o mito hamítico, segundo o qual
os africanos descenderiam de Ham, o filho mais novo e maldito de Noé, cuja
descendência se viu obrigada a migrar para a Etiópia, fixou na consciência do
Ocidente a idéia da África como terra do pecado e a do negro como ser
degenerado e irredimível. Cf. Dias, Jill R. "África e os africanos no
imaginário europeu". In: África nas vésperas do mundo moderno. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, s/d.
[32] Giumbelli, op. cit.
[33] Prandi, Reginaldo. Os candomblés em São Paulo. São Paulo: Edusp, 1991, p.
15.
[34] Giumbelli, op. cit.
[35] Dantas, op. cit.
[36] Negrão, op. cit., p. 280.
[37] Aqui estamos operando implicitamente com a dupla dimensão categorial de
sociedade em Habermas, como sociedade civil e como mundo da vida. As relações
entre esses dois planos não podem ser definidas de antemão, mas assumimos o
ponto de vista histórico-antropológico que trata a esfera da sociabilidade como
esfera pública. Nesse sentido, do mundo da vida em direção à sociedade civil
teríamos uma tendência à expansão da publicização, que, apoiada em formas
institucionais variadas, vai modelando as opiniões e percepções até se tornar
(ou não) propriamente política, na medida em que submete demandas ao Estado
(cf. Lavalle, Adrián G. "Jürgen Habermas e a virtualização da publicidade".
Margem, no 16, 2002).
[38] Negrão, op. cit., grifo nosso. "Roncó": retiro durante o processo de
iniciação; "decá": autorização dada pela mãe-de-santo para que a filha-de-santo
abra seu próprio terreiro.
[39] Eis um exemplo: "Tem outros que começaram aqui, mas quando se viram um
pouquinho melhor acham que já podem andar pelo mundo [...]. terreiro é como
passarinho: ganhou asas, voa" (ibidem).
[40] Camargo, Candido Procópio. Kardecismo e umbanda. São Paulo: Pioneira,1961.
[41] Embora se possa afirmar que alguns códigos religiosos sejam mais
universais do que outros (como, por exemplo, a idéia católica de salvação, que
inclui todos os homens, em contraposição à figura do filho-de-santo, que inclui
apenas o iniciado), não se pode simplesmente deduzir do código religioso o
potencial universalizador de uma prática. Na medida em que é da natureza do
código combinar-se e ressignificar-se mediante as práticas rituais, o que hoje
pode ter alcance local amanhã pode funcionar num sentido generalizador. O uso
da noção de código procura evitar o dualismo implícito na teoria weberiana das
religiões, que as tipifica em universais (transformadoras e abstratas) e locais
(conformistas e estereotipadas). A noção de código não supõe um conteúdo fixo,
já que seu sentido é atualizado na prática.
[42] Virtude teologal que conduz ao amor a Deus e ao nosso semelhante,
especialmente os pobres e desprotegidos.
[43] Segundo Emerson Giumbelli (Caridade, assistência social, política e
cidadania: práticas e reflexões no espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1998), foi em nome da "caridade" que os espíritas formularam suas
acusações de charlatanismo, supertição e magia contra práticas por eles
consideradas ilegítimas. Mas essas práticas foram com o tempo se transformando
até chegarem a se identificar, em contexto mais recente, com a noção de
"direitos civis".
[44] É interessante observar que enquanto a Igreja Católica, já no final do
XIX, começa a estimular no mundo todo a formação científica do médico e da
enfermeira católicos, o espiritismo e as religiões não-letradas lançam mão do
"maravilhoso" na busca do sucesso dos rituais terapêuticos.
[45] O pentecostalismo está no Brasil desde 1910 com a chegada da Congregação
Cristã. Segundo Ronaldo de Almeida (A universalização do Reino de Deus.
Campinas: dissertação de mestrado, Unicamp, 1996), na década de 1950 o
missionário norte-americano Harold William trouxe a Igreja do Evangelho
Quadrangular, e a cura divina tornou-se então um dos eixos principais da
pregação do pentecostalismo, facilitando sua expansão. Mas foi na década de
1980 que o pentecostalismo ganhou a visibilidade que tem hoje, não apenas em
razão de seu crescimento numérico, mas também pela sua presença na esfera
pública e nos meios de comunicação.
[46] Embora praticada abertamente, essa coincidência está longe de ter
conquistado legitimidade social, como mostram as acusações de charlatanismo,
extorsão, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito contra a Igreja
Universal, freqüentemente veiculadas na imprensa.
[47] Cf. Nogueira, Carlos Roberto F. O diabo no imaginário cristão. Bauru:
Edusc, 2000, p. 32. Para o autor, a história do Diabo confunde-se com a
história do próprio cristianismo. Essa idéia sofrerá no Ocidente sucessivas
metamorfoses: o Romantismo transformará Satã no espírito livre; no século XIX,
certas seitas esotéricas farão dos cultos satânicos uma forma de rebeldia.
Segundo ele, os Estados Unidos são o país que hoje abriga os grupos mais
organizados de satanistas, existindo "seminários diabólicos" para treinar
pastores em paróquias satânicas em várias cidades norte-americanas.
[48] A Igreja Universal chama de demônio os exus, orixás, caboclos e guias que
circulam nos cultos de matriz afro. A primeira fase do rito chama o demônio
pelo nome e o leva a manifestar-se. Segundo Ronaldo de Almeida ("A guerra de
possessão". In: Oro, Ari Pedro, Corten, André e Dozon, Jean-Pierre (orgs.). A
Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo:
Paulinas, 2003), embora o protestantismo histórico, em particular o calvinismo,
tenha abolido qualquer forma de imanência do sagrado, o surgimento do
pentecostalismo (a partir dos Estados Unidos no século XIX) reintroduziu uma
forma de possessão por meio da incorporação do Espírito Santo e da sua
expressão na glossolalia. Assim, a Igreja Universal apenas produziu um
deslocamento simbólico da possessão, do Espírito Santo para o Diabo.
[49] Gomes, Wilson. "Nem anjos nem demônios". In: Antoniazzi, Alberto e outros.
Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo.
Petrópolis: Vozes, 1994, p. 239.
[50] Com o desenvolvimento das teorias matemáticas sobre a probabilidade, o
risco torna-se potencial objeto de medida. Nesse sentido, torna-se instrumento
da economia para cálculo de investimentos financeiros. Ligada ao sentido do
cálculo das possibilidades, a idéia de risco associou-se à idéia de "escolha
racional", já que se supõe possível calcular as possibilidades de perdas e
ganhos.
[51] A Constituição de 1891 reconheceu apenas o casamento civil, mas a de 1946
reintroduziu o reconhecimento dos efeitos civis do casamento religioso e a de
1988 reiterou essa condição.
[52] Brumana, Fernando G. "Spirits from de margins: umbanda in São Paulo".
Uppsala Acta Universitatis Upsaliensis/Uppsala Studies in Cultural
Anthropology, no 12, 1987, p. 28.
[53] Ao analisar processos de conversão na África, Robert W. Heffner
(Conversion to Christianity: historical perspectives on a great transformation.
Berkeley: University of California Press, 1993, p. 15) apontou a insuficiência
do modelo weberiano, que tende a supor uma homologia entre o que ele chama de
"racionalização cultural" (sistematização e formalização de verdades culturais
à luz de valores e ideais, ou religião como doutrina) e "racionalidade da
experiência" (internalização de doutrinas ou verdades prefiguradas).
[54] Negrão, op. cit., pp. 310, 315.
[55] Corten, André. Os pobres e o espírito santo: o pentecostalismo no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1996, p. 151.
[56] Maximiano, Maria Aparecida. Os procedimentos argumentativos nos discursos
da Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo: dissertação de mestrado,
Departamento de Lingüística da USP, 2002.
[57] Corten, op. cit., p. 182. Segundo o autor, a "teologia da prosperidade"
consiste basicamente em prosperidade no plano da saúde conquistada pela cura
divina, e constitui uma ética do mundo dos pobres (p. 155).
[58] Segundo Corten (ibidem), a teologia da libertação, que é uma teologia
profética (anuncia o fim do mundo e a salvação), constrói a categoria "pobre"
como grito de indignação e garantia divina de salvação, produzindo assim uma
emoção para os pobres, enquanto a teologia da prosperidade produziria uma
emoção dos pobres.
[59] Em 1996 os pentecostais elegeram dezoito deputados federais, os quais,
associados aos dezesseis eleitos pelos protestantes históricos, formaram um
bloco conhecido como "bancada evangélica". Graças ao apoio que deram ao governo
Sarney, conseguiram várias concessões de emissoras de rádio e televisão. Cf.
Pierucci, Antônio Flávio. "Representantes de Deus em Brasília: a bancada
evangélica na Constituinte". Ciências Sociais Hoje, 1989.