O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil
Fui convidado pelos amigos da ONG Usina para discutir os processos de
autoconstrução, esse calcanhar-de-aquiles do movimento habitacional. Vou,
portanto, provocar vocês. Minha abordagem sobre as relações entre a
autoconstrução urbana e os processos de acumulação de capital no Brasil é
conhecida. Pelo menos por aqueles que tiveram o custo de pagar pelo livro
Crítica à razão dualista. Não surpreende que tenha sido resultado do contato
com arquitetos, por isso vocês são os culpados. Esse contato surgiu ainda
quando estávamos numa fase missionária: começamos um grupo da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo (FAU) e mais alguns sociólogos a fundar escolas de
arquitetura e urbanismo por todo o Estado de São Paulo. Santos foi objeto dessa
investida.
Havia um grupo muito interessante, com Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Sérgio e
Mayumi Souza Lima e dois sociólogos intrometidos como eu e Gabriel Bolaffi, que
logo depois saiu, e Danielle Ardaillon ficou como minha assistente. Na ocasião
os arquitetos haviam realizado uma pesquisa em Cubatão e Santos sobre habitação
popular, a eterna dor-de-cotovelo desse grupo. Uma pesquisa bem feita; não sei
se tinha representatividade estatística, mas isso não era muito importante. O
fato é que eles me deram os resultados tabulados para ler e comentar.
Aí caiu a ficha: a maior parte das habitações era própria. No quesito "casa
própria, alugada ou cedida", "casa própria" era a enorme maioria. Pensei: "Esse
treco não bate, alguma coisa está errada. Isso não é um país socialista, então
deve ter alguma coisa errada".
Fui em busca dos outros dados e, como a pesquisa havia sido feita por
arquitetos, interessados em habitação popular, com mania pela preservação das
aptidões culturais e produtivas dos trabalhadores, havia um quesito bastante
interessante sobre a forma como as casas tinham sido construídas. Eram
construídas em mutirões, ou autoconstrução de forma mais geral. Não como esses
de hoje, mas os mutirões da tradição: você chama o compadre no fim de semana,
toma uma cerveja, come uma lingüiça frita e vai fazendo a casa aos pouquinhos.
Caiu a ficha. Crítica à razão dualista partiu dessa constatação. Quer dizer, a
primeira pergunta ficava sem resposta, mas a segunda resposta fechava o quadro:
a industrialização estava se fazendo, com base na autoconstrução, como um modo
de rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho.
Eu diria que a industrialização brasileira foi sustentada por duas fortes
vertentes. A primeira foi a vertente estatal, pela qual o Estado transferia
renda de certos setores e subsidiava a implantação industrial. E a segunda eram
os recursos da própria classe trabalhadora, que autoconstruía sua habitação e
com isso rebaixava o custo de reprodução.
Isso não é um argumento só teórico. É um argumento que se encontra e se ancora
na prática com a qual se fazem os inquéritos e as pesquisas sobre o custo de
vida. Nas pesquisas sobre custo de vida, hoje bastante amplas (naquele tempo já
eram suficientemente sofisticadas, feitas em diversos níveis e graus de
abrangência diferentes), o item habitação quase desaparece. Isso vai se
refletir diretamente na avaliação do custo de sobrevivência. É assim que a lei
define: salário mínimo é a cesta de bens necessária para a reprodução de uma
família clássica, de tipo nuclear. Quando os governos, para orientar a política
econômica, calculam o salário mínimo, o custo da habitação desaparece e
influencia na fixação do valor. É isso que tem o efeito de rebaixar o salário.
O círculo se fechava. O capital se reproduz com o rebaixamento do custo da
força de trabalho ou, em outras palavras, com o rebaixamento do salário. Desse
ponto de vista, a autoconstrução era estranhamente um mecanismo de acumulação
primitiva, pois a casa construída daquela forma não se transformava em capital.
De início, o fenômeno era mais claro na economia agrária. No binômio latifúndio
e minifúndio, a habitação era um bem autoconstruído. Só no caso das grandes
culturas comerciais nos engenhos e usinas de açúcar do Nordeste agrário e do
Nordeste açucareiro, nas fazendas de café , a habitação era um custo para o
empresário, um custo do capital. Na larga formação semicamponesa do Brasil,
porém, a habitação era autoconstruída, portanto seu custo jamais esteve
presente no produto do semicampesinato brasileiro.
Essa forma como a economia rural resolvia o problema da habitação transportou-
se para a cidade. Vejam bem que, a partir dos anos 1970, quando isso que se
conhece hoje como agronegócio começou a crescer, uma das primeiras coisas a
ocorrer foi justamente a expulsão dos moradores de dentro das propriedades.
Esse processo foi se intensificando e hoje não sobra nada dele. Nas grandes
explorações do agronegócio, não há moradia interna às propriedades. Sobre esse
assunto há um livro que talvez devesse voltar a ser lido: Bóia-fria: acumulação
e miséria, da Maria da Conceição d'Incao. A obra desatou uma literatura sobre
essa figura nova, o operário rural.
Mas foi uma das primeiras coisas: o agronegócio expulsou o trabalhador da
propriedade. Alguém poderia pensar que era para aproveitar mais terras, mas a
quantidade de terra ocupada pela construção dos trabalhadores rurais era
insignificante. A questão é outra: expulsar do custo de produção aquele custo
da habitação que existia na formação do preço e na formação do lucro do
agronegócio. Além, claro, de livrar o empresário das outras obrigações que era
obrigado a assumir por tradição, no velho sistema do dom, isto é, da troca, ou
em registro brasileiro e buarqueano, com a troca de favores que cimenta uma
espécie de consentimento entre o campesinato e os proprietários rurais.
A pergunta a fazer agora é se esses processos continuam vigentes, se têm alguma
significação, se a acumulação de capital no Brasil continua a repousar uma de
suas pernas sobre a autoconstrução.
Não preciso falar de corda em casa de enforcado. Não vou ensinar a arquitetos e
urbanistas que as nossas periferias são um atestado de que a acumulação
continua a apoiar-se sobre essas formas. A enorme expansão das cidades e das
periferias prova que algo do processo de acumulação não ele totalmente já
é, sobretudo, um processo de reprodução do próprio capital. Mas em alguma
medida ele continua a fundar-se nesse pé, como se extraísse (o termo é
inadequado, mas é só para usar a analogia) sobreproduto dos trabalhadores
urbanos, de forma a baratear uma outra coisa muito cara a vocês todos: a
cidade. Isso quando não barateia diretamente o custo de reprodução da força de
trabalho, o que ele também faz e continua a fazer.
Nós sabemos a conseqüência desse barateamento. A conseqüência é que isso não é
mais uma cidade. É um acampamento. Essa forma de barateamento resultou nas
nossas periferias, que são feiíssimas, horrorosas. Inviabilizam a própria vida
das pessoas. Em certa medida, portanto, esse processo continua a sustentar-se
na autoconstrução.
Mas isso não é mais a mesma coisa. Apesar de as aparências serem as mesmas as
aparências são as casas autoconstruídas, essas aglomerações infernais, onde a
promiscuidade e a vida privada não têm fronteiras (há quem goste disso, há
certa antropologia que faz elogio disso, mas a mim horroriza e creio que deve
horrorizar a quem mora lá também) , são habitações precárias, é a "viração"
como norma.
Mas então surge a pergunta: isso serve como processo de enriquecimento? De
acumulação e produção do capital no Brasil? De que maneira ainda pode ter
significação?
É importante saber onde a autoconstrução incide com mais força. Metade da força
de trabalho da População Economicamente Ativa vive nessa situação, que a
literatura dos anos 1970 chamava de "setor informal". Se no passado a gente
podia dizer que a cidade ia se construindo dessa maneira e resolvendo a questão
da habitação por meio de uma espécie de insuficiência de capital
insuficiência da acumulação capitalista e aquilo pavimentava o chão da
transformação de tudo em mercadoria, hoje o processo é inverso. Estamos diante
de uma situação em que esse trabalho informal é potencializado pela revolução
tecnológica.
Alguém pode pensar que estou delirando. Mas todos os processos são comandados
hoje por esse trabalho virtual. Vejam o que é vendido nas ruas. São produtos
industrializados. O máximo que se aproxima da natureza é laranja, quando há
excedente no Ceagesp. Portanto estão todos comandados pela reprodução do
capital. Então, como lhe servem?
Eu diria que, ao contrário do paradigma anterior, estamos diante de um trabalho
que agora é comandado pela superacumulação de capital. Se eu fosse neoclássico,
diria que é comandado por "excesso de capital", como não sou, digo pela
"superacumulação de capital". Superacumulação não significa só (embora
signifique também) que há máquinas, equipamentos, processos em excesso.
Superacumulação, em Marx, quer dizer excesso de trabalho desempregado. E é
motivado pela enorme aceleração das forças produtivas.
Dá-se então essa esdrúxula combinação, em que a revolução tecnológica
desemprega do ponto de vista formal, mas não desocupa diferença essencial e
importante. Há um autor latino-americano (quase um clássico latino-americano),
José Nun, que propôs uma tese interessantíssima: a massa marginal, baseada numa
discussão que começou entre ele e ninguém menos do que Fernando Henrique
Cardoso. Nun assumiu a tese de que o crescente excesso de população é
disfuncional em relação à acumulação de capital. Ele dizia: o capital não
precisa mais dessas massas, portanto é uma massa marginal. FHC retrucou com
"pompa e circunstância" e respondeu com Marx: disse que Nun não havia aprendido
direito o que era exército industrial de reserva. Aí deu-lhe uma lição de
marxismo. Imaginem então, nos anos 70, FHC dando lição de marxismo!
Temos uma espécie de superacumulação, mas isso não significa desocupação.
Segundo a Pesquisa de Emprego e Desemprego do Seade-Dieese, a maioria dos
desempregados não está desocupada. E a ocupação é uma espécie de força de
trabalho virtual, potencializada pela revolução tecnológica. Então se dá esta
estranha relação: há superacumulação de capital no sentido de uma massa
informal sem relações trabalhistas , mas que está ocupada, não está
inteiramente desocupada. Os desempregados são a fração que as pesquisas
mostrarão como pessoas que não têm emprego formal. Cruzamos com o que eles
fazem no cotidiano, e vemos que a maior parte dos desempregados está ocupada,
vendendo bagulhos na rua, fazendo qualquer coisa.
E isso serve, sim, aos processos de acumulação de capital. Quem vai ao estádio
de futebol tem de se perguntar se aqueles que estão ali vendendo Coca-Cola,
guaraná, cerveja, água mineral, têm alguma coisa a ver com o que a Brahma, a
Coca-Cola e a Antártica vendem no Brasil todo. Se vocês disserem que não têm
nada a ver, então, como no Irã, eu dou meu braço para vocês cortarem. Para
alguns setores produtivos, esse enorme exército informal tem funcionalidade
para reproduzir o capital.
O capital tem uma força de trabalho virtual que só é acionada no ato da
comercialização, no momento em que a circulação se faz presente. No outro
momento, essa força de trabalho está desocupada, e isso não tem mais custos
para o capital. A grande questão é que o trabalho "informal" não custa ao
capital. Enquanto o outro, "formal", custa. O informal não custa nada e realiza
funções basicamente de circulação da mercadoria. A produção é pelos meios do
capital e de reprodução do capital, mas a circulação é vastamente irrigada por
esse enorme exército informal.
Como, ao longo da história brasileira, se tentou sair dessa situação?
A primeira coisa a notar (e isso vocês sabem de sobra) é que nunca houve
política pública sistemática que atacasse o problema da habitação, salvo na
ditadura militar, o que é paradoxal. Por duas necessidades: a primeira, uma
necessidade exatamente de ocupar mão-de-obra, pois se tratava de uma estratégia
de emprego, e não de habitação; a segunda, uma estratégia de legitimação do
regime. A casa popular, segundo os marqueteiros, é o sonho de todos os
brasileiros, então vamos lhes dar sonhos na forma de casas.
Saiu então o Banco Nacional da Habitação (BNH), que se dividia em duas
vertentes. A primeira, alimentada pela caderneta de poupança, deu no mercado de
habitação para as vastas classes médias. Foi aí que começou a se desatar o novo
ritmo da construção civil. Servia aos objetivos da ditadura porque dava
emprego. Na maior parte dos casos, emprego não formalizado, mas dava emprego
quase permanente, porque o operário pulava de obra em obra. Aqui na FAU muita
gente estudou o enigma: por que não se industrializa a construção civil? Vocês
sabem que não é por impossibilidade tecnológica, mas porque o custo da mão-de-
obra é baixíssimo. Vemos na rua, em prédios em construção, levas e levas de
operários dos mais desqualificados, a transportar tijolo com as mãos. A segunda
solução, popular, deu na Cohab, nas companhias de habitação da vida, que o
regime estimulou por todos os estados e municípios. E produziram esses milhares
de conjuntos feios, monótonos, tristes. Então foram essas as duas soluções. A
experiência do BNH acabou. O Sarney, num momento de extrema "criatividade",
extinguiu o BNH, jogando a "criança junto com a água do banho". Depois disso,
tirou-se da agenda política qualquer solução de habitação popular.
Até chegarem as ONGs e a economia solidária e se descobrir que o mutirão tem
virtudes. De retomada de uma tradição popular, o mutirão virou política
oficial.
O mutirão é uma espécie de dialética negativa em operação. A dialética negativa
age assim: ao invés de elevar o nível da contradição, ela o rebaixa. Elevar o
nível da contradição significaria atacar o problema da habitação pelos meios do
capital. Rebaixar o nível da contradição significa atacar o problema da
habitação por meio dos pobres trabalhadores.
E aí se chega ao seguinte paradoxo: não se cria um mercado imobiliário. Mercado
imobiliário no Brasil só existe da classe média para cima. Nas classes
populares, não existe. É impossível existir, porque você está de posse
exatamente daquilo que não é mercadoria. A casa não pode ser trocada, não tem
valor de troca, tem apenas valor de uso, a finalidade de habitar.
A habitação popular não tem valor de troca porque é impedida por dois
processos. Impedida, em primeiro lugar, pelo próprio rebaixamento. Se
decompusermos o custo de uma habitação popular, ele é basicamente força de
trabalho do próprio futuro e feliz proprietário. Aí chegamos ao paradoxo de que
isso não cria valor, não se constitui em mercadoria.
O outro obstáculo é que a renda é baixíssima em todo o conjunto das populações
pobres. Portanto, não há mercado imobiliário. Os dados que estão em exposição
na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram como é a
distribuição de renda no Brasil. Além disso, temos os dados das pesquisas que a
Usina está realizando. Esses dados mostram que a maior parte dos mutuários
desses mutirões está abaixo da linha de pobreza, ou seja, ganha menos de dois
reais por dia. E a maior parte está desempregada.
Não há renda para criar um mercado imobiliário. Mas é nessas condições que o
Estado adota o mutirão como política oficial de habitação.
Vocês têm todo o direito de discordar das minhas agressões, mas, se a solução
do mutirão se generalizasse, nós estaríamos caminhando para um inferno urbano.
Se ela se universalizar, será a negação da solução da habitação. Como fez a
Catarina da Rússia, seria pintar de verde e amarelo todas as favelas do Brasil.
É nisso que o mutirão vai dar quando for transformado em política oficial. Por
enquanto, e felizmente, ele é só a vitrine da virtude. Generalizar-se seria
rumar no sentido contrário. Mesmo porque o paradoxo é que, para o mutirão
transformar-se em solução universal de política pública, supõe que todos
estejam desempregados. O que é um formidável tiro pela culatra. Ou como diz o
título inicial, o mutirão é o vício da virtude.
Portanto, cuidado. A universalização dessa proposta supõe que a maior parte da
força de trabalho esteja desempregada e possa, portanto, utilizar as horas de
folga para construir a própria habitação. E isso é o oposto do que pensam ou
desejam todos que estão fazendo essa experiência.
Em outras palavras, é pôr a contradição em outro lugar. É preciso endereçar a
construção da habitação decididamente para seu caráter de mercadoria. Isso fala
o velho e jurássico socialista, porque a pior coisa no mundo da mercadoria é
quando você não é mercadoria.
Não estamos tratando do anticapital. Se se tratasse de uma solução no sentido
de um sistema alternativo, tudo bem. Mas não. Isso funcionaliza a pobreza,
tornando-a plástica e capaz de ser adaptada, cooptada, usada em cada momento e
depois abandonada.
Para que essas soluções virtuosas funcionem (estou trabalhando com as
informações de relatórios, evidentemente parciais, do trabalho da Usina), é
preciso um altíssimo grau de coerção. Essa coerção é uma espécie de ilusão
necessária. É preciso criar uma comunidade, uma identidade que não existe, e
essa criação vai na direção oposta dos processos de mercantilização da
sociedade. Esse tipo de viração que a população vive não plasma nenhuma
experiência, no sentido thompsoniano. Plasma apenas a experiência da carência.
Então vem a violência como recurso para fundar a comunidade.
Uma liderança de Santa Maria Gorete, mutirão em Fortaleza, diz o seguinte:
"Hitler não estava errado, é preciso coagir para manter a unidade da
comunidade". Não exageremos, ela não está falando de câmaras de gás, está
falando da ilusão do povo. É preciso que exista um ente místico chamado povo
para o mutirão funcionar, e esse povo é a comunidade. Cria-se aquela comunidade
ilusória, que não resiste um dia depois de concluídas as casas, para obrigar
cada um a doar o próprio trabalho: isso não é formação de cidadania. Sinto
muito, está no pólo oposto.
E, ainda que seja exagerado chamar essa senhora de "adepta de Hitler", ela
trabalha com o mesmo método. O método da ilusão necessária para forjar uma
identidade que não é real, que não subsiste senão pelo lado das carências.
Quando essa ilusão desaparece, assim que a casa foi enfim conseguida,
desaparece a coesão, desaparece a identidade com aquele projeto. São formas,
portanto, que estão na linha limítrofe, às vezes aparecendo como exercício de
cidadania, às vezes como forma de violência.
Refiro-me aqui não aos processos desses mutirões virtuosos, não faria essa
ofensa a quem faz esse enorme esforço, mas à generalização dessas soluções, que
é uma espécie de estado de exceção, caracterizado por aquilo que Giorgio
Agamben chama de "a vida nua": você inclui pela exclusão. Em geral quando
dizemos "estão excluídos da sociedade", há um erro. Temos uma operação de
inclusão à medida que eles são excluídos.
Quais são os critérios para participar de um mutirão desses? Como ele não é uma
solução universal, tem de selecionar. E quais são os critérios para a seleção?
São os da exclusão. É a necessidade, o primeiro deles. O segundo é quantas
horas você pode dar para o trabalho chamado "comunitário" atenção às aspas.
Isso significa que se privilegia quem está desempregado. É um território
extremamente ambíguo, escorregadio. Um descuido e patina-se para a violência.
Esses são processos que estarão em curso se essas soluções forem
universalizadas.
O mutirão é uma espécie de apelo aos náufragos: "salvem-se pendurando-se nos
próprios cabelos". Como imagem, é ótima. Como solução, é péssima.
SESSÃO DE DEBATES
João Marcos Lopes (USINA) Se você estiver disposto, gostaria de passar a
palavra para quem quiser salvar alguma coisa do que restou...
Francisco de Oliveira Estou aqui para perturbar. Se for para dizer amém,
chame o Duda Mendonça.
Carlos (GEOGRAFIA, FFLCH-USP) O senhor poderia estabelecer uma comparação
entre esse problema e o surgimento do antivalor?
Valentina Denizo (CDHU) Uma coisa é fazer mutirão apesar do Estado, outra é
fazer o mutirão pelo Estado. São duas coisas totalmente diferentes. A forma de
acesso ao mutirão é um conjunto de processos de clientelismo e cooptação. É uma
guerra para disputar quem chega primeiro a essa alternativa de acesso à
moradia. Outra questão: o mutirão serve a quem? Como moradia, apesar de ser
muito barata, ela ainda é bastante inacessível aos estratos mais baixos de
renda. Como se tem uma política de cobrar 20% a 30% do salário por vinte anos,
quem faz mutirão e quem não faz mutirão acaba pagando a mesma coisa. Quem está
internalizando esse benefício é o poder público, e não a população. Nos casos
em que não existe autogestão ou formas que possibilitam uma organização social
maior, é só uma modalidade de execução da moradia.
Regina Hirata (NEPP/UNICAMP) Já que o mutirão não é uma alternativa de
política pública adequada, gostaria de alguma especulação ou comentário sobre o
que seria o uso do Estatuto da Cidade fazendo regularização fundiária nas
favelas.
Paulo (não anunciou vínculo acadêmico ou profissional) O mutirão difere muito
em todo o país. Houve em São Paulo uma experiência de mutirão e autogestão. Foi
um avanço, na medida em que o movimento conseguia se apropriar de recursos do
poder público e ter participação popular. O mutirão é uma estratégia de luta.
Consegue-se uma contrapartida da comunidade e uma apropriação pela comunidade
do projeto que está sendo realizado. Gostaria de saber, sob essa ótica, como o
senhor vê a questão da autogestão, dos mutirões autogeridos pela própria
comunidade.
Francisco de Oliveira Bom, vamos por partes. Se me lembro bem, a primeira
pergunta diz respeito ao antivalor. São duas coisas opostas: o antivalor
sustenta-se na centralidade do trabalho. É por isso que ele é antivalor e essas
formas de autoconstrução não são antivalor, elas são, em linguagem marxista,
não-valor. Em outras palavras, a autoconstrução não agrega valor para a casa
construída.
Portanto, o que o antivalor fez no percurso do desenvolvimento capitalista dos
anos 30 até os anos 80? Foi uma forma de redistribuir renda no interior do
capitalismo mediante a negação da mercadoria.
O mutirão não é uma forma de redistribuição de renda no interior do
capitalismo. O mutirão come as forças do próprio trabalho. O estatuto
conceitual das duas coisas é radicalmente diferente. No antivalor, você passa
necessariamente pela mercadoria e cria a forma de distribuição que se opõe a
ela. A autoconstrução não se opõe a nada essa é a questão. No capitalismo, ou
se criam obstáculos ao capital, ou não se faz transformação alguma. E não é por
outra razão que todas as reformas neoliberais apontam exatamente para isso.
Eu disse que o mutirão singulariza um estado de exceção, no qual se é incluído
por exclusão. Se está incluído, a renda é baixa. Porque no mutirão você está
disposto a doar um maior número de horas que seu vizinho. Então é outro
processo, diferente do que eu chamei de antivalor, porque no antivalor você não
cede nada, usa um instrumento para capturar riqueza e renda da sociedade e,
diga-se logo em poucas palavras, capturar parte do lucro produzido pelo sistema
e redistribuir esse lucro no interior da classe trabalhadora. São dois
processos bem diferentes.
Eu não quero entrar nos capítulos de consciência porque antigamente quem
cuidava disso era padre e hoje é psicanalista. Estou tentando objetivar as
forças sobre as quais repousa o processo de acumulação.
A "outra forma de provisão habitacional" tem de ser radical, ou não se
distribui renda no Brasil. E esse tema é decisivo. Trata-se do seguinte: todo
crédito ou empréstimo é um adiantamento sobre a renda futura. Se você faz um
empréstimo, supõe que o mutuário terá renda futura para pagar.
Qual a outra forma de provisão? É uma forma clássica: empréstimo a custo zero.
Trata-se de redistribuir renda no Brasil, e o mutirão não redistribui renda,
porque suga forças do próprio trabalhador. É preciso tirar renda de outros
setores da sociedade. É o que esse governo não quer enfrentar, tampouco os
outros que o antecederam. Ou você arranca renda de outras partes da sociedade e
opera a redistribuição ou esses enormes esforços dos mutirões que eu não
quero desconsiderar darão em nada, porque não redistribuem renda. É disso que
trata um sistema como esse.
A outra forma, portanto, é uma provisão mediante fundos públicos, direta e com
juro zero. Lula não está fazendo o Fome Zero? Pois seria muito melhor tomar
todo esse dinheiro e entregar à Caixa Econômica Federal, para não haver
apadrinhamento. Com o dinheiro do Fome Zero daria para subsidiar o custo da
Caixa Econômica e entregar a habitação ao mutuário com juro zero, porque isso
não supõe necessariamente que ele terá renda futura. Muda em primeiro lugar a
relação, alimenta a cadeia produtiva de outra maneira e pode ter efeitos
virtuosos. Nada é assegurado, mas pode ter efeitos virtuosos.
Os mutirões não se universalizam porque supõem que todas as pessoas estejam
desempregadas. E isso não é só suposição, é real. Dados da pesquisa feita pela
Usina estão aí para mostrar. A maior parte dos mutirantes é composta de
desempregados, que podem doar horas de trabalho. Para quem não está
desempregado essa solução não vale, não se torna universal. A outra, sim, é a
solução que pode se universalizar. Não sejamos cínicos nem achemos que estamos
no país das maravilhas: com essa distribuição de renda, não há como pagar. Tem
de ser a custo zero. É dessa radicalidade que o Brasil precisa. E não é uma
radicalidade não-capitalista.
Eu falei em geral da autoconstrução. O mutirão de hoje é um caso particular de
autoconstrução. A autoconstrução em geral é o que vigora na favelização, que
tomou conta das cidades. E o mutirão é uma forma particular que resgata uma
experiência popular e pretende transformá-la em solução. Essa solução vem de
duas constatações inteiramente falsas. A primeira é de que não há recursos
estatais para resolver o problema da habitação. Como não há recursos (é o mote
de todas as reformas que estão por aí: vamos reformar a universidade porque não
há recursos para a educação superior), ao invés de ampliar, vamos encolher. É o
mesmo mote presente em todos os recursos neoliberais: salvemos a habitação com
base no resgate de uma experiência popular do passado.
É falso. É falso porque no ano passado foram pagos 150 bilhões de reais em
juros da dívida pública. Não foi em pagamento da dívida pública, foram juros da
dívida. Então é falso que não há recursos.
Isso está sendo transformado em política pública. Aí a autoconstrução ganha
formas mais organizadas, essas que vocês estão chamando de mutirão autogerido.
Em benefício de quem se dá a autogestão? Eu não tenho dúvida nenhuma em dizer
que o primeiro beneficiado é o próprio mutuário. É claro. Mas isso não pode ser
pensado como solução universalizável, porque seus pressupostos só valem para
alguns nichos bem específicos. Só valem exatamente porque ficou impossível
criar um mercado imobiliário nos estratos mais pobres do Brasil. É impossível
até nas classes médias.
Cadê o instituto da hipoteca? Quase não existe devido às restrições que a
distribuição de renda impõe. Nos Estados Unidos você compra uma casa com o
sistema hipotecário. Quem experimentou pagar hipoteca no Brasil danou-se. Os
que tiveram essa experiência quase morreram sufocados, porque não existe um
mercado secundário de hipotecas, por exemplo. Só existe um mercado primário
ligado ao sistema bancário. Imaginem isso nos estratos mais pobres da
população. Então a solução só é virtuosa porque é excepcional.
Jorge Oseki (NAP-PLAC) Havia uma pergunta, se não me engano, sobre a
regularização de terrenos em favelas.
Francisco de Oliveira Vejam bem. Evidente que depois dessa fala vocês
precisam tomar um banho de pipoca, porque isto aqui é um banho de pessimismo.
Mas isso é tratar a cidade como exceção. Quer dizer: você tem um urbanismo
desse tipo, que foi construído pelas carências, pelo desrespeito ao Estatuto do
Trabalho, pela burla e fraude permanente (e não estou falando de questões
morais) que é o sistema de trabalho no Brasil. A cidade foi construída dessa
maneira. Mas daí a regularizar essa situação, a sancionar essa situação
regularizando o problema fundiário, vai uma grande distância. De novo, é adotar
a exceção como regra.
Vocês têm todo o direito de dizer: "Tudo o que ele diz é muito radical e eu não
tenho condições de realizar". Na verdade, trata-se de expropriar terra urbana e
redistribuí-la, e não de regularização fundiária em favelas. Ali é o "mundo do
não". Digo isso com base nas pesquisas que meus colegas e minhas colegas da
sociologia fazem. Ali não passa uma relação mercantil: o que existe é a relação
privada. A maior parte das relações não é pactuada num contrato. Em Pernambuco
se diz que "bainha de peixeira é barriga dos outros". Isto é: quando não há
contrato, o que se impõe é a violência privada.
Isso dá na violência que campeia nossas cidades. Nós, da classe média, temos
muito medo, mas a violência campeia entre os pobres. Eles se matam todos os
dias para resolver conflitos que não têm contrato, conflitos que só podem ser
resolvidos com violência privada. E nós vamos regularizar essa situação? Eu sou
contra, definitivamente contra.
É preciso atacar noutra frente. Desfazer esse nó por outro lugar. Claro que
essa postura de tornar o excepcional regular não é capaz de deter a expansão
desse campo de conflito, numa sociedade em expansão. Se for numa sociedade que
vai estagnar, permanecer na mesma, tudo bem, dá para resolver. Mas esse não é o
objetivo de todos que lutam por mais emprego, por melhor distribuição de renda,
enfim, pela expansão da sociedade e da economia. O objetivo é crescimento. E se
isso é verdade, essa forma de regularização tem tudo para não dar certo. Ela
vai aquietar durante algum tempo e logo depois o ciclo satânico recomeçará. E
sem piedade.
Eu não preciso falar disso. Vocês estão aqui assistindo a quantas ondas de
expansão da periferia? Vide a memória, os estudos, as pesquisas feitas aqui. E
ela vai continuar se expandindo, se persistirem as condições de desigualdade da
sociedade brasileira.
A regularização é um procedimento piedoso e virtuoso. Ou vocês todos entram num
convento para salvar as almas ou então salvem apenas os corpos.
Pedro Fiori Arantes (USINA) Foi uma bela provocação, creio que a esquerda
precisa deste debate, no qual as idéias e o conhecimento possam ser trocados
com toda a franqueza. Sem dúvida, o que você apresentou aqui vai exigir
reflexão. Vão surgir diversas disposições de "responder ao Chico", no bom
sentido. Já estamos ali nos juntando para escrever um artigo para esclarecer
algumas coisas.
A princípio, gostaria de fazer duas perguntas.
Como você entende o livro A questão da habitação, de Engels? Nessa obra, ele
não trata especificamente da autoconstrução, apesar de falar dos "grupos
mutualistas de trabalhadores". Mas fala do problema da habitação como um todo
a partir de 1870, na Inglaterra. Parece que você às vezes isola a
autoconstrução da discussão do problema da habitação como um todo.
Há um parágrafo de Engels muito parecido com a Crítica à razão dualista, no
qual ele fala que o rebaixamento dos salários em uma sociedade capitalista (ou
a redução do custo da reprodução da força de trabalho) se dá em qualquer
circunstância em que o trabalhador reduza seus gastos, entre eles o da
habitação e, no caso, do aluguel. "Qualquer circunstância" significa a produção
pelo Estado, a produção pelo capitalista ou a autoconstrução pelas sociedades
mutualistas. Nesse sentido, gostaria de compreender por que você não expande
sua interpretação para todas essas dimensões, como Engels. Você centra na
autoconstrução como se fosse um fenômeno da periferia do capitalismo, e Engels
aborda o centro do capitalismo, como foi feito na produção maciça de habitação
no Welfare State, no qual se tratava da redução do custo da força de trabalho.
Por que você receita a crítica de Engels apenas à autoconstrução e não a toda a
habitação no capitalismo? Engels tenta mostrar como os burgueses querem
resolver o problema da habitação fazendo com que os trabalhadores se tornem
proprietários mas continuem assalariados.
A outra pergunta é: por que você não considera a relação entre o mutirão e o
restante da construção civil, as empreiteiras?
Quando você chega no plano da revolução, que é o da expropriação maciça da
propriedade, provavelmente ninguém aqui está em desacordo. Nosso objetivo não é
fazer mutirão por toda a vida, mas poder chegar a um momento em que se faça
justiça social, distribuição de renda. Em Cuba a reforma urbana foi muito
simples. Primeiro decretou-se o fim dos aluguéis, depois o fim dos despejos e a
expropriação das demais propriedades em que o núcleo familiar não residisse.
Não estou em desacordo sobre o que você apresentou. Mas isso se dá numa outra
sociedade. Aqui no Brasil, mexer na propriedade da terra é bastante
incendiário.
Portanto, por que em sua interpretação não aparecem as questões do capital
ligado à construção civil, às empreiteiras? E por que não aparecem as ações dos
movimentos populares?
De certa maneira, a política desaparece em sua interpretação. Pois o mutirão
foi politizado. Estamos aqui discutindo as diferenças entre os anos 80, 90 e
agora. Nos anos 80 o mutirão foi um caminho para a disputa pelo fundo público,
um caminho para publicizar o problema da falta de moradia. E isso tudo se deu
através do mutirão, da autogestão, na ação dos movimentos populares.
De certa maneira é estranho, e creio que você se baseia em algumas informações
equivocadas. Por exemplo: dizer que no mutirão há apenas o valor do trabalho na
mão-de-obra. Hoje essa mão-de-obra está em torno de 20% do total do trabalho.
Já temos 50% a 70% do valor da mão-de-obra contratada por empresas que
trabalham no mutirão durante a semana, já que o mutirão se dá no fim de semana
(lógico que há aí o sobretrabalho, que será debatido mais adiante).
Também me parecem estranhas as informações sobre a forma como o movimento
seleciona as famílias. Talvez num outro momento possamos visitar um mutirão,
conversar e discutir sobre alguns dados da pesquisa com mais cuidado.
Vale dizer que o mutirão não é uma política hegemônica, nunca foi. A
justificativa para isso não ter ocorrido, muitas vezes apontada pela professora
Ermínia Maricato, é o poder das empreiteiras. Isso também tem de ser
enfrentado. Temos de discutir o mutirão inserido no problema da habitação, o
mutirão dentro do problema da construção civil, dentro das lutas dos movimentos
populares e do poder das empreiteiras. Creio que, fazendo essa
contextualização, diversas das questões que você apresentou não se sustentam.
Jorge Oseki (NAP-PLAC) Vou fazer algumas questões, mas antes gostaria de
dizer que sou leitor seu, aluno, ex-aluno, já trabalhamos juntos.
Para nós, arquitetos, como para Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, a cidade é
mais-valia. Não existe arquitetura como produto necessário na cidade, a cidade
é mesmo mais-valia pura. Nós, arquitetos, somos mediação dessa mais-valia, de
sua extração.
Porém, desde os anos 70, a autoconstrução é a lei. É o processo genérico de
acumulação primitiva não estamos questionando isso. Na década de 80, no
processo do mutirão, que é um processo absolutamente arcaico, localizado em
lugares distantes, encontramos mutirantes construindo um espaço excepcional, um
espaço bonito você que é um esteta como eu compreende o que quero dizer. Isso
em espaços que em geral são desorganizados e feios. É isso que nos causa
espanto, que nos inspira: por que ali num processo que é "furado", que é
sobretrabalho, com toda essa sobredeterminação se consegue criar uma
alternativa?
Ela não é generalizável pelo seguinte: autogestão generalizável é socialismo,
certo? Estamos bastante longe disso. É um processo de autogestão. Isso não é
residual, é autogestão de uma unidade produtora. É um canteiro, uma unidade de
produção autogerida. É gramsciano, romântico, muito bem, mas é um fato
sociológico que deve ser analisado. E é um fato arquitetônico, porque há um
salto qualitativo brutal, não se sabe bem o porquê. Seja pela genialidade dos
participantes do processo ou pela boa vontade deles.
É muito virtuoso, você precisaria ver. Não digo isso por ter participado, mas
porque é um fato. As relações de produção nesse canteiro (apesar de
inicialmente eu ter considerado o mutirão uma coisa meio boba, meio pré-
capitalista) funcionam de maneira consistente e antiestatista, anti-Estado,
antipoder. Não é anticapital, realmente, talvez em termos de trabalho, mas é
antipoder. Por isso ela não pode se generalizar, porque generalizar isso seria
generalizar, digamos, os sovietes, ou a comuna de Paris, e não se trata disso.
O fato de ser autogestão não é irrelevante. Trata-se da produção de um espaço
de qualidade. Há diferenças entre morar numa favela e num prédio de
apartamentos que qualquer um de nós gostaria de morar. É preciso diferenciar o
mutirão, que é uma forma completamente arcaica, da autogestão, que é uma coisa
avançada.
A forma que você acredita ser "canônica", na qual o Estado financia a habitação
popular, e na qual acreditávamos, não funciona nem nos países centrais. O
subsídio necessário para construir conjuntos habitacionais é tão grande não
se trata de juro zero, mas juros negativos que poucos países conseguem manter
isso. Tanto que estão deixando essa questão para o mercado. No Primeiro Mundo
não se consegue mais habitações subsidiadas, o que é um revés muito grande. E
lá na Europa acaba por ser ainda mais perverso depois do que eles já tinham
conseguido, em comparação com o Brasil, onde não há nada. Lá havia muitos
ganhos: saúde subsidiada, educação subsidiada. Até os franceses querem saber
como nós estamos fazendo essas autogestões.
Eu sei que isso não significa nada. Não estou dizendo que se trata do "sal da
terra", que a revolução chegou, não é isso. Apenas não dá para nos omitirmos: é
a luta de classes no espaço. O capital tenta desvalorizar o trabalhador (99%
das vezes consegue) e, quando um grupo de arquitetos tenta revalorizar a
reprodução da força de trabalho no lugar de moradia, não é a revolução, mas na
minha opinião não é banal. É preciso verificar se há possibilidades
emancipatórias nisso.
Quando o mutirão vira política pública, perde essa característica antipoder e
passa a ser cooptação pura. É a tutela total do Estado. Os mutirões de fato
viram trabalho gratuito, praticamente trabalho escravo.
É a este momento que devemos ficar atentos. Este é um momento para o qual
devemos olhar com lupa. Estou falando da continuação do inesquecível Rodrigo
Lefèvre e de Sérgio Ferro: olhar momentos em que a produção do espaço, em que a
arquitetura consegue de novo um conteúdo social forte. É o que havia de melhor
em arquitetura na década de 80, eu não tenho a menor dúvida disso. Então não é
um fenômeno banal.
Imagine dizer que é tudo pela autoconstrução e que a gente vai agora fazer
carro, comida, tudo em casa. Não tem como. Porém, o avanço é esse tipo de
felicidade, que nunca vi numa unidade de produção. Pois o canteiro é o
contrário, é tipicamente o lugar da exploração na forma mais vil, é força
bruta. Você os obriga a subir com o carrinho, depois descer com o carrinho,
depois subir de novo, e desce. É uma coisa absurda.
Esses momentos virtuosos são pequenos, mas são fundantes. E eles se opõem
diretamente às empreiteiras. O que as empreiteiras fazem com trabalho pago não
chega aos pés do que se faz com mutirão, em relação à qualidade. E é verdade,
sou absolutamente neutro nisso. Você olha e diz que não parece autoconstrução,
parece "coisa de holandês".
É isso que estamos analisando: como a forma mutirão, absolutamente arcaica e
rural, e a autogestão conseguem "alguma realização", com todas as aspas. É um
campo de pesquisa, não é regra. Por isso creio que não batemos de frente, de
lado, nem de nada. Fui um dos primeiros a ler a Crítica à razão dualista, sei
disso.
Não que o mutirão não seja sobretrabalho. A perversidade das periferias
autoconstruídas é brutal. Mas de repente surge o que Henri Lefebvre chama,
afinal de contas, de nichos de contrapoder, que são interessantes de serem
vistos. Talvez seja a única coisa que temos para ver no momento.
Francisco de Oliveira Deixa eu tentar dialogar, senão a memória não ajuda.
Primeiro, com Jorge. Você concordou com o que eu disse: o mutirão só é virtuoso
porque é excepcional, se for transformado em política, vai perder toda a
virtude.
Apesar de Pedro Arantes ter dito que não é mais o trabalho dos mutuários que
constitui o fundamento da autoconstrução no mutirão, sinto muito, Pedro, mas o
custo do trabalho na indústria automobilística não chega a 5%. Você está
falando de um custo de 20% do trabalho no mutirão. Se a quantidade não se
transforma em qualidade, então não entendo nada mais. Esse é um custo
altíssimo. O custo da mão-de-obra numa habitação popular devia ser de 1%. Se é
20%, há um sobretrabalho formidável. É um quinto do tempo de trabalho de uma
pessoa.
O mutirão é virtuoso porque é excepcional. Para ser generalizável ele supõe que
as pessoas sejam capazes de dar 20% de seu tempo de trabalho para a
autoconstrução. Isso não pode ser o objetivo de uma política de habitação. Eu
sinto muito, discordo de frente. Exatamente porque ele é excepcional ele pode
ser bonito, pode ser uma boa solução arquitetônica, pode ser urbanisticamente
interessante, mas não pode ser generalizável.
Se fosse assim, Pedro, você teria o seguinte paradoxo, e me dê uma solução, por
favor: a melhor economia seria a economia primária, porque ela tem 90% de custo
em força de trabalho. Estou dizendo que 20% de custo de força de trabalho é
muito alto. Aí você me replica que na construção civil é 40%. É por isso que
este país é uma merda! Isso não é uma virtude, é um problema. É por isso que a
construção civil é isto que é, é por isso que a distribuição de renda no Brasil
é isto que é. Então desculpe, aqui nós vamos bater de frente.
Nunca plagiei Engels, nem nunca plagiaria. Mas eu sinto muito agora discordar
de Engels. Como o capitalismo abordou a questão da habitação? Pelo aumento da
produtividade do trabalho, essa é a chave. Nem o mutirão nem a autoconstrução
fizeram isso. É intrínseca e conceitualmente impossível. O processo do capital
é outro, é o aumento da produtividade do trabalho, vale dizer, aumento da taxa
de exploração. É assim que se resolveu, quando resolveu, o problema da
habitação. A solução da mercadoria e a solução da não-mercadoria não se
equivalem. Eu sinto muito, Friedrich Engels, durma em paz no túmulo. Ele sabia
que não são soluções equivalentes, ele era industrial em Manchester.
Manter uma indústria nesses patamares de utilização de força de trabalho gera
esta sociedade que está aí. Então seria o caso de chamar os ladrões da
construção civil, os Sérgio Naya da vida, para o Ministério da Fazenda. E fazer
prédio de areia, com 40% de custo em força de trabalho. Vocês sabem que os
arquitetos estudam isso há décadas. O objetivo tem que ser outro.
Não estou combatendo o romantismo. Eu e Jorge Oseki somos freqüentadores dos
concertos da Sala São Paulo e evidentemente ninguém toca mais ao coração do que
Chopin. Mas estou dizendo que há uma concepção romântica no projeto da Usina. O
romantismo é pensar que o operário e o trabalhador vão recuperar o controle dos
meios técnicos da produção autoproduzindo esses meios técnicos. Isso é o oposto
do socialismo. O controle dos meios de produção que o socialismo prega é a
abolição do capital. É outra coisa. O romantismo estava em algumas das melhores
cabeças que esta faculdade já produziu, no Sérgio Ferro e no Rodrigo Lefèvre,
que era além do mais um excelente dançarino...
Silvio Sawaya (FAU-USP) Mas o romantismo é para ser desestimulado? Ou é
possível dialeticamente ter consciência dele e continuar essas ações, visto que
têm outras repercussões interessantes?
Francisco de Oliveira Acabei de confessar: sou romântico. O que estou
tentando dizer é outra coisa: o objetivo do socialismo não é voltar as forças
produtivas ao estágio em que são comandadas pelas mãos do trabalhador. O
objetivo é dar um salto por cima e comandar as forças que comandam esse
processo. É só nisso que não sou romântico.
Éder Santos (HISTORIADOR) Como dizer que a obtenção da moradia não gera
valor, não reorganiza a vida das pessoas? Existe um valor aí, e porque isso não
é contabilizado não existe técnica para isso, não existe índice , não é
posto. Mas é inegável que transforma a vida de pessoas. Como pensar isso?
Jorge Oseki (NAP-PLAC) Aliás, você mesmo falou que os pobres investem, acho
que na "razão dualista"...
Francisco de Oliveira Mas são valores de uso. É disso que se trata, não são
valores de troca.
João Whitaker (LABHAB/FAU-USP) O mutirão evoluiu ao longo dos anos para
responder a diferentes necessidades. Foi uma solução às vezes paliativa, às
vezes encaminhada como política pública. Hoje esse pressuposto não existe mais.
Grande parte das pessoas envolvidas nesse processo não entende o mutirão como
política que deva se generalizar. A política habitacional é mais ampla e tem
que responder a demandas complexas e variáveis. Não se resolvem problemas de
cortiço obrigatoriamente com mutirão, nem problemas de regularização fundiária
em favela.
Para surpresa de todos, o mutirão mostrou aspectos positivos como
reconstituição do tecido social, autogestão de fundos públicos e, do ponto de
vista da arquitetura, resgate de formas de projeto habitacional de altíssima
qualidade. A Usina é um marco nesta história, com os projetos da Associação por
Moradia de Osasco (Copromo) e da Associação União da Juta. São marcos na
qualidade arquitetônica na habitação popular, que, por mutirão, conseguiram ser
melhores que a política generalizada das CDHUs e COHABs ao longo da história.
Mariana Fix (LABHAB/FAU-USP) Em toda a sua fala, a questão que estava por
trás era: se a gente está fazendo algum projeto, é com a perspectiva de que ele
vá se universalizar. No caso do mutirão, se quem está fazendo tem a perspectiva
de que ele seja um projeto transformador, a perspectiva está errada, porque ao
generalizar se produz um grande desastre.
O mutirão não pretende se generalizar como solução. A principal virtude dele
talvez seja questionar como as políticas urbanas e o mercado imobiliário
pretendem tratar a questão da habitação. O mercado imobiliário quer generalizar
a moradia. As propostas passam por uma forma de financeirização, por uma forma
de exploração da força de trabalho, por uma forma de relação com os movimentos
sociais. É isto que os mutirões questionam: a forma como se universaliza a
moradia pela forma-mercadoria, tal como acontece numa sociedade como a nossa.
Se for universalizada como mercadoria para as faixas mais baixas de renda, vai
ser também um desastre, mas de outra magnitude. Não só pela forma como essa
universalização acontece, mas também pelo tipo de cidade que produz, segregada,
e pelo tipo de solução habitacional, que é da maior precariedade, com o espaço
mais reduzido possível. Se você pensar no mutirão como algo que contesta a
forma com que os dois, mercado imobiliário e política pública, tratam a questão
da habitação, não veria o mutirão de uma perspectiva diferente?
Graça (MESTRANDA NA FAU-USP) Gostaria que você comentasse a teoria do
"capital morto", de Hernando de Soto, sobre a regularização como uma
possibilidade de geração de riqueza e renda.
Francisco de Oliveira Acho uma cretinice.
Jorge Oseki (NAP-PLAC) Pode responder às perguntas.
Francisco de Oliveira Vou começar pelo fim. Este Hernando de Soto diz o
seguinte desde o primeiro livro: o comércio informal é uma revelação da vocação
empresarial das classes pobres, e isso foi obstado devido à burocracia estatal.
Então, se a gente tirar a burocracia estatal do meio, essa capacidade
empresarial, esse ser weberiano que está escondido na alma de nossos pobres, se
revelará e aí acontecerá o auge da expansão.
Esse cretino é peruano. Quem conhece Lima pode ver a realização desse caráter
empresarial nas ruas. Agora ele vem com a história de que as casas
autoconstruídas são um enorme patrimônio que pode ser convertido em mercadoria.
Outro dia, o Elio Gaspari, que de vez em quando tem ataques de cretinice, botou
isso nos jornais como se fosse um tremendo ovo de Colombo: se mobilizarmos todo
o patrimônio que as classes populares investiram na autoconstrução, dá para
pagar a dívida externa brasileira, a dívida interna, o escambau. Só que ele
nunca percebeu que o problema é exatamente este: a casa é construída como não-
mercadoria e é por isso que pode ser construída. Se pudesse ser mercadoria aí
Pedro Arantes tem razão , batia de frente com o sistema construtivo
capitalista. Como a premissa do de Soto na verdade é neoliberal, quer
transformar pobreza em capital. Então esse cidadão devia ganhar o prêmio
IgNobel de economia.
As outras três questões têm a ver com o estatuto do mutirão.
Em primeiro lugar, o João Marcos me encomendou a seguinte questão: "O papel da
autoconstrução na acumulação capitalista no Brasil". Apresentei um recorte
sobre o caso do mutirão porque é o trabalho que a Usina faz. Meu marco maior é
a autoconstrução, dentro dele, o mutirão. Continuo a insistir: ele não pode ser
universalizável. E vocês que fazem essa pesquisa estão pensando que ele pode e
deve. É nisso que vocês estão pensando. Esse é o pressuposto que está lá,
exatamente nas palavras de Mariana: o mutirão se coloca como "alternativa" no
confronto com o sistema de construção civil capitalista. Não adianta fugir
semanticamente da questão. Se ele é alternativa, deve ser generalizável.
Não duvido uma vírgula do que o Jorge descreveu, não duvido que haja outros
valores. Mas eles convivem perigosamente com outras tendências, com a coerção,
com a construção ilusória de uma comunidade que se esbate com a própria casa:
quando ela termina de ser construída, acabou a comunidade.
Ou se pensa o mutirão como alternativa ou então como exemplo virtuoso. Só isso?
É isso que vocês estão perseguindo? É para isso que fizeram essa pesquisa? Não
precisava...
Todo pressuposto da ciência é: algo real esconde-se por trás da aparência.
Então vocês supõem que, por trás dessa aparência do mutirão, se esconde uma
alternativa real. A não ser que mutirão faça parte da cadeira de Estética aqui
da FAU. Se for assim, tudo bem. Mas, se for pensado como solução produtiva, o
pressuposto é que possa ser generalizável.
O mutirão se passa num recorte muito específico, que seleciona pela
negatividade. Isso não é um atributo do mutirão, é um atributo da sociedade que
está fora dele e que impõe esse constrangimento sob o velho argumento de que
não há recursos para todos, as políticas têm de ser "focadas". Adotar o mutirão
como solução é seguir o mesmo caminho das "políticas focadas", não
universalizáveis, que têm dentro de si um elemento de discriminação. Essa
discriminação se dá nos termos de Giorgio Agamben: você seleciona pela
exclusão. Tenho plena convicção de que não é esse o objetivo dos que estão
realizando essa pesquisa.
Falemos das outras coisas que o Jorge abordou. No mundo todo está em regressão
o direito do trabalho, o Estado de Bem-Estar Social, para não falarmos nas
aposentadorias... Mas, Jorge, por quê? Porque os gastos sociais colidiram de
frente com o capital. Gastos sociais que a esquerda sobretudo a esquerda
comunista foi incapaz de reconhecer ao longo dos últimos oitenta anos da
história do capitalismo, porque aquilo era reformismo.
Os gastos sociais colidiram de frente com o capital e disputaram a destinação
do excedente público. E foi a Thatcher, na prática, e o Hayek, na teoria, que
perceberam isso. O Hayek dizia: o inimigo do capitalismo não é o comunismo, o
inimigo do capitalismo é o keynesianismo, essas políticas de bem-estar, essas
políticas anticíclicas que negam o estatuto de mercadoria da força de trabalho.
Quando bateu de frente, esse ataque do capital se deu exatamente nos direitos,
entre eles o da habitação, de subsídio para habitação na maior parte dos países
da Europa ocidental. Isso não é um modelo, é uma constatação real do que está
acontecendo.
Ainda que não conheça a experiência inteiramente, reconheço as qualidades
virtuosas que o mutirão possa ter. Mas só existem porque são excepcionais.
Alguém falou que isso não está sendo transformado em prática geral. Está sim. O
Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal têm programas de mutirão. O
que é fantástico, não é? Fantástico porque o pressuposto são os 20% de força de
trabalho a que se referiu o Pedro Arantes. O pressuposto é que uma larga faixa
da população mantenha-se desempregada. Que gracinha! Se fosse Fernando Henrique
Cardoso, com o profundo desprezo que, do alto de Higienópolis, ele tem pelo
trabalho... Mas não, isso é uma política oficial de um governo do Partido dos
Trabalhadores, uma política que supõe que cerca de 20% da força de trabalho
esteja desempregada.
Sinto muito, mas é como diz o João Marcos no texto que me entregou. Ele termina
o texto com uma frase minha: "Sejamos pragmáticos, ora bolas! Já é tempo de
descartarmos as utopias". Se vocês quiserem descartar as utopias, façam
mutirão!
[1] Conferência apresentada no seminário de pesquisa "Políticas Habitacionais,
Produção de Moradia por Mutirão e Processos Autogestionários: Balanço Crítico
de Experiências em São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza", realizado na FAU-USP
em outubro de 2004. A organização do ciclo de debates coube à Usina - Centro de
Trabalho para o Ambiente Habitado, ao Centro de Estudos dos Direitos da
Cidadania (Cenedic) e ao Núcleo de Apoio à Pesquisa, Produção e Linguagem do
Ambiente Construído (NAP-PLAC). Novos Estudos agradece a Jorge Oseki e José
Paulo Gouvêa pela colaboração.