Cidadania mediada: processos de democratização da política municipal no Brasil
Ao enfocar o processo de redemocratização no Brasil, diversos autores têm
enfatizado que práticas como o populismo, o personalismo, a patronagem e o
clientelismo ainda são vigentes na vida política2, até mesmo no âmbito das
experiências de democracia participativa3. Muitos desses autores argumentam que
essa persistência de elementos políticos "tradicionais" inibe o surgimento de
instituições democráticas mais sólidas e de uma cultura política mais
democrática. Embora essa interpretação pessimista tenha muito a dizer sobre as
deficiências da democracia brasileira recente, deixa de examinar o espaço que
se abre entre os pontos de referência do "tradicional" e do "democrático". Mais
importante, deixa de observar o quanto essas práticas políticas tradicionais
estão se transformando nos contextos de democracia participativa, no qual de
fato figuram, para melhor ou para pior.
O debate sobre os elementos "tradicionais" da política brasileira descreve uma
trajetória teórica que remonta ao menos aos escritos de Oliveira Viana sobre o
coronelismo no Brasil rural dos anos 1920 e 30. Nas análises mais
contemporâneas, "tradicional" geralmente se refere à ausência de instituições
modernas que regulem o poder dos políticos e dos funcionários públicos, ao
passo que "moderno" significa predominância de procedimentos legal-racionais na
administração pública, um autêntico espírito representativo nas instituições
políticas e uma efetiva preocupação com o universalismo e o "bem comum" na
cultura política. A persistência dos elementos tradicionais, argumenta-se,
reforça o viés elitista da democracia brasileira, enfraquece a estabilidade do
sistema democrático, fere princípios liberais fundamentais, como universalismo
e devido processo legal (due process), e sedimenta estruturas
patrimonialistas4.
Este artigo examina alguns dos processos e procedimentos políticos que escapam
a uma interpretação da política brasileira em termos de "moderno" e
"tradicional"5, sob a hipótese de que ao suspendermos essa interpretação
bipolar podemos discernir uma conexão mais próxima entre esses dois pólos
analíticos. O argumento central é o de que os avanços democráticos se constroem
a partir das práticas políticas "tradicionais" e as transformam, em vez de
erradicá-las totalmente. Nesse sentido, os três estudos de caso nos quais se
baseia o artigo sugerem que no plano real da vida política municipal as
transições democráticas dizem respeito a transformações tanto culturais quanto
materiais.
No âmbito cultural, esse processo de transição é suscitado um tanto
paradoxalmente por demandas normativas baseadas numa visão bipolar do
"tradicional" e do "democrático" que emergem na esfera da sociedade civil. A
fim de fundamentar teoricamente essa tensão esquemática entre o "normativo" (ou
democrático) e o "real" (ou tradicional), apóio-me na distinção conceitual de
Jeffrey Alexander entre "a 'sociedade civil real', na qual o universalismo é
comprometido pela estratificação e pela diferenciação funcional, e a 'sociedade
civil normativa', que mantém as formas utópicas idealizadas". Para o autor,
quanto maior o contraste entre essas duas representações, maior o raio de ação
requerido para que os atores da sociedade civil produzam mudanças sociais, de
modo que cabe "enfatizar não apenas a trágica distância entre o que é e o que
deve ser, mas também a possibilidade de superá-la heroicamente"6.
No entanto, as transições democráticas em meio às quais esses ideais
democráticos se traduzem em realidade política não ocorrem num vácuo material,
mas são moldadas pelas condições socioeconômicas. Assim, o fato de que muitas
pessoas pobres buscam obter alguma forma de patronagem política tem menos a ver
com um "familismo amoral" banfieldiano7 ou com alguma incapacidade de
raciocínio dos pobres (como suporiam muitos autores inspirados no liberalismo
do século XIX) do que com a própria pobreza em que vivem. Noutras palavras, em
países como o Brasil a democratização das práticas políticas "tradicionais"
está inextricavelmente vinculada à eliminação da pobreza em massa e da
desigualdade crônica8, ainda que pobreza e desigualdade permaneçam como
elementos da realidade em qualquer futuro que se divise. Dessa forma, não é de
surpreender que os estudos de caso aqui apresentados indiquem que a
democratização das políticas municipais que envolvem a redução da pobreza e das
relações de dependência tende a requerer uma rede de assistência social
organizada pelo Estado.
Em suma, o artigo enfoca iniciativas de democratização da vida política
municipal implementadas por administrações do PT nas cidades de São Paulo,
Porto Alegre e Itabuna (BA) no período 2001-04, buscando mostrar como os
diversos atores envolvidos nesse processo percebem a política local e negociam
demandas de cidadania. Na verdade, a mediação da cidadania conformou a base
comparativa para os estudos de caso desses três municípios bastante diversos
entre si. Ademais, a seleção desses municípios considerou o fato de que
correspondiam a diferentes estágios do processo de democratização promovido
pelo PT. O trabalho de campo foi conduzido entre outubro de 2003 e fevereiro de
2004. Ao longo desse período, permaneci o mesmo intervalo de tempo em cada
cidade, onde travei contato com indivíduos e organizações que cumpriam papel-
chave nas sociedades civis locais e segui suas redes de atuação nos bairros
pobres. Em cada município conduzi mais de trinta entrevistas e presenciei
inúmeros encontros e eventos. Limitei a abrangência geográfica do trabalho de
campo a fim de viabilizá-lo: em Itabuna concentrei-me em subúrbios das porções
sul e oeste da cidade; em São Paulo visitei localidades compreendidas pelas
subprefeituras de Freguesia do Ó/Brasilândia e Pirituba/Jaraguá; e em Porto
Alegre freqüentei bairros localizados ao sul e extremo-sul.
CLIENTELISMO E CIDADANIA MEDIADA
Uma grande dificuldade para o avanço de um debate construtivo acerca da
presença de elementos políticos "tradicionais" na democracia brasileira reside
na ambigüidade conceitual da terminologia empregada. Tal é o caso do uso do
termo "clientelismo", que na literatura recente se tornou polivalente para
exprimir categorias como "populismo", "patrimonialismo", "personalismo" e
"patronagem". A bem da clareza conceitual, cabe oferecer aqui uma breve
definição da terminologia empregada.
O termo personalismo diz respeito aos laços pessoais que estruturam relações
sociais particularistas de caráter hierárquico9. Já patrimonialismo, em seu uso
corrente, se refere a situações em que os políticos lidam com os recursos
públicos como se fossem deles: em vez de distribuí-los de acordo com critérios
universalistas e impessoais, privilegiam familiares, amigos e sua clientela
política10. Em outras palavras, empreendem uma forma privada de patronagem
política. Por fim, clientelismo se refere a uma relação de troca de favores em
que os indivíduos envolvidos se beneficiam mutuamente mas de modo desigual11.
Assim, enquanto "patrimonialismo" diz respeito à apropriação privada de
recursos públicos, "clientelismo" denota uma relação de dependência entre
patronos e seus clientes12, a qual geralmente envolve uma série de mediadores
ou agentes.
Geert Banck afirma que esses conceitos não são nem tradicionalmente intrínsecos
nem inerentes aos países em desenvolvimento13. Segundo ele, o termo
"clientelismo", por exemplo, não deve ser tomado como elemento de uma tradição
brasileira acadêmica ou mesmo coloquial, uma vez que foi difundido no país por
acadêmicos estrangeiros (norte-americanos), e numa época tão tardia quanto os
anos 1960 e 70. Além disso, Banck refuta a transposição de termos usados no
passado para descrever o passado com a finalidade de refletir sobre o presente.
De fato, a questão do autor procede. Termos como "clientelismo" e "patronagem"
expressam um senso de fatalismo das relações de dependência que é
freqüentemente encontrado nas manifestações da cultura popular brasileira14.
Ainda que esses termos sejam usados para pensar o pensado, não descrevem
adequadamente circunstâncias históricas nem constituem um "autêntico"
vocabulário cultural. Eles remetem a uma tradição imaginária e descrevem uma
realidade evocada não apenas por intelectuais, mas também por músicos populares
e outros artistas que não raro misturam fatos históricos com enredos ficcionais
e acrescentam consideráveis doses de sensibilidades modernas.
Ocorre que os fenômenos empíricos são muito mais complexos do que faz supor o
conteúdo normativo da terminologia usada para descrevê-los. O termo
"clientelista", por exemplo, é empregado pelas elites para expressar sua
indignação moral com o eleitor popular, considerado "mal-informado",
"retrógrado" e por conseguinte incapaz de fazer as escolhas "certas"
(aparentemente racionais). Ademais, é usado por políticos para manifestar sua
frustração com eleitores indiferentes a ideais democráticos, plataformas
partidárias e conteúdos políticos, que votam conforme preocupações mais
imediatas15.
Neste artigo, situo a noção de clientelismo num contexto político de cidadania
mediada. Com isso quero dizer que num contexto político que não se pauta por
regras efetivamente universalistas o acesso à cidadania é constantemente
negociado. De fato, na maior parte da América Latina os direitos de cidadania
não estão disponíveis para a população pobre, e têm de ser resgatados mediante
ação coletiva. Os processos que fazem a mediação entre as afirmações e as
contra-afirmações da cidadania são essenciais nos três municípios aqui
estudados, na medida em que provêem o elo da população pobre com as redes de
assistência social pública e privada (patronagem privada). Como veremos nos
estudos de caso, esses processos de mediação efetivamente expressam um
compromisso negociado no conflito entre democracia civil participativa e
democracia representativa formal. Em Itabuna, por exemplo, processos que
envolvem mediadores como "supervisores de bairro" e dirigentes de associações
de bairro estão mais relacionados à democracia representativa, enquanto aqueles
que envolvem líderes comunitários tendem a ser mais relacionados com a
democracia civil. Os vários conselhos populares e o mecanismo do orçamento
participativo potencialmente ocupam o meio-campo entre os dois pólos. No
entanto, ficará evidente nos estudos de caso que essas ligações são muito mais
complexas e fluidas.
A patronagem política (uso de verbas pelos políticos para concessão de
benefícios às suas bases eleitorais) certamente constitui um aspecto central da
maioria dos sistemas políticos modernos16, mas em lugares onde os direitos de
cidadania não são universais essa prática se revela ainda mais essencial, na
medida em que conforma uma importante rede de assistência social. Assim é que
não faz muito sentido conceber o clientelismo latino-americano em termos de um
"familismo amoral" banfieldiano: num contexto de pobreza em massa e de direitos
de cidadania negociados, a mobilização e a inclusão sociopolíticas dos pobres
tende a envolver alguma forma de política de bem-estar. Dessa forma, uma
questão crucial que se coloca aos programas de reformas sociais das
administrações democráticas é a mediação dos conflitos entre as demandas
populares por participação civil e direitos de cidadania e por patronagem
política. De fato, esse foi o principal ponto de conflito defrontado pelas
administrações do PT nos três municípios estudados, até mesmo no âmbito do
orçamento participativo de Porto Alegre, celebrado precisamente por
sistematizar e tornar mais transparente esse processo de mediação17.
É importante ter em mente que a mediação política é uma atividade competitiva,
já que os eleitores são muito exigentes e perspicazes ao fazer suas escolhas
entre mediadores ou representantes que prometem os melhores retornos possíveis.
E não é de surpreender que aqueles em situação de extrema carência de serviços
públicos freqüentemente votem em políticos que cooptam as comunidades pobres
para suas redes de patronagem mediante doação de creches ou subsídio privado de
equipamentos médicos, educacionais, culturais etc.
No Brasil, a patronagem constitui a base de sustentação de muitas carreiras
políticas. Os legislativos municipais normalmente aprovam dotações
orçamentárias que subsidiam as atividades assistenciais privadas de seus
membros, consolidando assim suas bases de apoio eleitoral. Os políticos eleitos
para os executivos municipais, por sua vez, tendem a visar estrategicamente o
"alvo" da implantação dos serviços públicos e a convertê-los em "favores
pessoais", buscando ampliar seu eleitorado. Uma vez que dependem do Poder
Legislativo para viabilizar essa estratégia, procuram firmar alianças com os
políticos dos legislativos municipal, estadual e federal a fim de assegurar a
transferência de recursos às suas municipalidades e maximizar sua
"governabilidade". Os inúmeros postos públicos preenchidos por nomeação os
chamados "cargos de confiança" são moeda corrente nesse processo de barganha
política por meio do qual as alianças são forjadas (freqüentemente envolvendo
trocas de partido)18.
Transformar esse modelo político particularista num sistema mais universalista
evidentemente não é tarefa fácil, e cada uma das administrações em foco nos
estudos de caso encarou esse desafio mediante uma abordagem diferente. A
prefeitura petista de Itabuna buscou implementar políticas sociais eficazes,
mas também fortaleceu as redes de patronagem privada. A gestão do PT em São
Paulo adotou uma estratégia ainda mais contraditória: implementou uma versão do
orçamento participativo de Porto Alegre e também cultivou amplas redes de
patronagem privada, a fim de obter suporte legislativo para seus projetos de
reforma. Em Porto Alegre a administração petista deu continuidade às suas
políticas sociais participativas, mas também se comprometeu em alguma medida
com as políticas do espetáculo normalmente associadas ao clientelismo populista
(a construção de um sambódromo na cidade provavelmente entra nessa categoria).
O fato de que nos três municípios o PT perdeu suas apostas na reeleição em 2004
ressalta a magnitude do desafio encarado pelas administrações democráticas ao
tentar responder às diversas demandas políticas que circulam na sociedade
brasileira.
OS ESTUDOS DE CASO
Os três municípios enfocados nos estudos de caso não poderiam ser mais
diferentes. De fato, o único aspecto que parecem ter em comum é que entre 2001
e 2004 foram administrados pelo PT um partido internacionalmente reconhecido
por suas tentativas de democratização da política municipal , mas os estudos
de caso evidenciarão um outro elemento comum a todos eles: um setor da
sociedade civil extremamente ativo. Porto Alegre, a maior metrópole da região
Sul, tem uma população mais homogênea, composta majoritariamente por brancos
com nítida linhagem européia. A cidade de São Paulo, que detém o maior complexo
industrial do Sudeste e do país, reflete a mistura de todo o caldo cultural do
Brasil. E Itabuna, município nordestino do estado da Bahia que até os anos 1980
viveu basicamente da exportação de cacau e borracha, tem forte presença de
população negra. No período em foco, Porto Alegre já se notabilizara por sua
experiência de orçamento participativo desde gestões petistas anteriores, ao
passo que em São Paulo a administração enfrentou grandes dificuldades para
implementar esse mecanismo19 e em Itabuna havia relativamente muito poucos
processos participativos em curso.
Essa distribuição geopolítica em que o grau de democracia participativa diminui
no sentido Sul-Nordeste poderia ser interpretada como um recorte que
reforça preconceitos culturais comuns no Brasil acerca de um Sul-Sudeste
dinâmico e progressista e um Norte-Nordeste estagnado e tradicional. Mas os
estudos de caso não devem ser de modo algum considerados dessa forma: eu
poderia ter selecionado municípios com características políticas análogas sem
deixar o Sul, assim como poderia ter enfocado municípios com avançadas
experiências democratizantes concentrando-me exclusivamente na Bahia20. Na
verdade, as diferenças que vêm à tona nos estudos de caso resultam antes de
fatores socioeconômicos e do grau de organização da sociedade civil em cada
município, bem como de diferenças político-ideológicas no interior do próprio
PT.
O PT NA ENCRUZILHADA
Ao longo da década de 1990 o Partido dos Trabalhadores cursou uma trajetória
ideológica em direção ao centro do espectro político. Isso levou a uma
crescente divisão interna entre os grupos de esquerda identificados com os
movimentos sociais e as facções mais pragmáticas, a qual afetou o núcleo do
projeto político do partido e repercutiu no âmbito municipal21. Ademais, a
composição ideológica do PT se transformou drasticamente em razão da expansão
de sua base eleitoral e da sua exposição ao "imperativo" da ortodoxia no
contexto das finanças domésticas e internacionais22.
Com isso, e com a burocratização do aparato partidário e a profissionalização
de seus quadros, os petistas historicamente comprometidos com a mudança social
radical se tornaram uma minoria com pouco poder de expressão no interior do
partido23. Hoje em dia, o programa político dessa minoria em geral
identificado como "o jeito petista de governar" freqüentemente é visto como
elemento de um PT obsoleto24. Não obstante, muitos desses petistas permaneceram
comprometidos com os propósitos e formatos dos elogiados programas de governo
do PT em Porto Alegre, cujo caráter democrático se consubstanciou em reformas
das políticas educacionais e sociais, numa base de impostos mais progressista e
sobretudo no mecanismo do orçamento participativo.
Entretanto, a viabilidade política do "jeito petista de governar" se viu cada
vez mais limitada entre outros fatores, pelo declínio dos movimentos sociais
nas principais áreas urbanas do país , de modo que o PT foi obrigado a
reinventar-se. Essa tarefa foi levada a cabo pela ala majoritária do partido, a
Articulação, que conta com o apoio do presidente Lula. Hoje o partido apresenta
uma imagem que transpira confiança e amadurecimento, bem como capacidade de
vencer eleições e governar. O desafio encarado por esse PT reinventado é
triplo: convencer os setores de esquerda de que ainda é um partido que busca
promover mudanças sociais; demonstrar aos movimentos sociais e à sociedade
civil que não abandonou seu comprometimento com as demandas dos setores
organizados da sociedade; e mostrar aos eleitores que é capaz de conciliar sua
imagem "limpa" e transparente com os compromissos implicados por suas inúmeras
alianças político-partidárias.
ITABUNA
O município de Itabuna vem sofrendo uma depressão econômica que já perdura por
duas décadas. A queda da produção e dos preços dos principais itens de
exportação da região, cacau e borracha, resultou em subemprego e pobreza em
larga escala. Na medida em que muitos eleitores pobres tendem a se envolver com
alguma forma de patronagem política para enfrentar tais circunstâncias, a
perspectiva pragmática implicada nesse envolvimento conflita com um imaginário
social eminentemente democrático. De todo modo, a importância da patronagem
política é imediatamente visível em Itabuna, sobretudo nos bairros pobres, onde
há vários centros assistenciais, creches e escolas que levam nomes das famílias
da elite política local.
Esse tipo de patronagem é particularmente exercido pelo grupo associado à
política patrimonialista de Antônio Carlos Magalhães, que há várias décadas vem
dominando o cenário político da Bahia. No entanto, o personalismo também foi um
elemento presente na aliança de centro-esquerda encabeçada pelo PT que venceu
as eleições municipais de 2000. Essa aliança, composta por onze partidos25 e
tendo em seu núcleo um grupo de funcionários públicos com formação
universitária e independência financeira, reuniu condições para desafiar o
poder hegemônico das elites locais, ainda que tenha vencido as eleições por uma
diminuta margem de votos.
A despeito do êxito político desse grupo, persistiu em Itabuna uma política de
patronagem de caráter privado. Isso se deveu em parte à generalizada situação
de pobreza e desemprego, mas também ao fato de que os movimentos sociais e as
associações civis e com eles as demandas por direitos de cidadania
permaneceram incipientes e fracos. Em Itabuna o setor organizado da sociedade
se resume à presença de algumas ONGs e movimentos sociais de âmbito nacional,
tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a Comissão
Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Federação dos
Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) esses três últimos,
ademais, com pouca capacidade financeira. Nesse contexto, o PT local adotou uma
estratégia de amplas alianças e de mobilização do eleitorado "de cima para
baixo", em vez de mobilizar os moradores dos bairros pobres mediante um
"trabalho de base".
O fato é que a gestão do PT em Itabuna não se pautou pelo "jeito petista de
governar" tal como consagrado em Porto Alegre: embora tenha implementado uma
série de políticas sociais notoriamente baseadas nas experiências do PT em
outros municípios, não adotou os mecanismos participativos propagados pelo
modelo porto-alegrense. Na verdade, o PT de Itabuna fizera uma tentativa de
implantar processos participativos num mandato anterior (1993-96), a qual foi
abandonada logo no primeiro ano da gestão. Perguntado a respeito, um servidor
público de carreira filiado ao PSDB afirmou que a experiência gerara demandas
politicamente inviáveis e que um mecanismo como o orçamento participativo não
poderia mesmo funcionar no Nordeste26.
Na gestão 2001-04 o PT seguiu uma estratégia diferente, criando o posto de
"supervisor de bairro". Oficialmente, 35 supervisores deveriam intermediar as
relações entre a administração municipal e as comunidades em 95 bairros. Extra-
oficialmente, de acordo com alguns moradores, mais de trezentos "supervisores"
estariam atuando na verdade como cabos eleitorais para diversos políticos. Os
moradores se queixavam de que os supervisores eram nomeados pelo prefeito sob
indicação desses políticos, que com isso buscavam "pôr um pé" no eleitorado da
comunidade.
De fato, os supervisores eram vistos com algum grau de desconfiança na maioria
dos bairros que visitei, principalmente naqueles que mantinham fortes ligações
com a oposição, onde os moradores afirmavam que o presidente eleito da
associação de bairro fazia a maior parte do trabalho em prol da comunidade,
enquanto o supervisor, politicamente nomeado e ademais remunerado, era muitos
vezes "invisível". Carlos Ferreira27, presidente de uma associação de bairro,
chegou a aplicar um questionário por conta própria para demonstrar que a figura
do supervisor do bairro era ineficaz28. Ainda que na visão da prefeitura os
supervisores de bairro fizessem parte de sua estratégia de descentralização
administrativa, todos os nossos entrevistados, à exceção dos próprios
supervisores, viam o seu papel sobretudo como eleitoral.
Na minha visão, é como se a criação do posto de supervisor de bairro fosse uma
tentativa do PT e dos partidos aliados de remoldar as redes de patronagem da
oposição e conectar os bairros mais pobres aos seus próprios mediadores
políticos29. Ocorre que a maioria dos moradores estava perfeitamente consciente
disso, e muitos deles ficaram desapontados com o fato de que o PT estivesse
lançando mão de métodos "tradicionais" e não-democráticos ao isolar os
dirigentes das associações de bairro. Dessa forma, ainda que os moradores
pobres mantivessem fortes laços com os políticos patrimonialistas, esboçavam um
imaginário social democrático ao criticar as tentativas de "descentralização"
do PT.
Na vida cotidiana, porém, a maioria dos moradores tinha de contar com a rede de
patronagem que abrangia a cidade, e as estratégias para ter acesso a essa rede
eram extremamente variadas. Membros de uma mesma família freqüentemente
diversificavam suas afinidades políticas e apoiavam partidos diferentes, o que
lhes permitia manter seus laços com a prefeitura quando a administração mudasse
de mãos. Da mesma forma, certos líderes comunitários percebiam as vantagens da
neutralidade partidária: menos clientelistas, politicamente mais sofisticados e
financeiramente mais estáveis que os dirigentes de associações e os
supervisores de bairro, tendiam a apoiar tanto conservadores quanto
progressistas30. Esse era o caso do presidente de associação de bairro Rodrigo
Leite, que tinha absoluta convicção da importância de não tomar partido de
nenhum dos lados. Caso solicitado a dar apoio, ele o daria a ambos os lados a
fim de não ser associado a nenhum dos dois: "Não se deve apoiar um só
candidato, porque se ele não for eleito o bairro vai acabar sem benefícios. É
preciso deixar que os moradores façam suas próprias cabeças". Dessa maneira,
Rodrigo buscava negociar o melhor acordo possível para a sua comunidade.
Alguns líderes comunitários evangélicos, como Rodrigo, usavam sua filiação
religiosa para demonstrar comprometimento com suas comunidades e descaso pelos
laços clientelistas. Ainda que idealistas e muito dedicados às suas
comunidades, tendiam a ter pouco interesse em estruturas de democracia
participativa. Rodrigo, por exemplo, participou do conselho de saúde local por
um tempo e o abandonou porque, segundo ele, as intermináveis discussões ali
travadas geravam poucos resultados concretos. É certo que líderes comunitários
desse tipo também buscam patronagem política, mas o fazem de forma mais
discreta. Para João Batista, líder de uma grande congregação batista, a
patronagem era o único meio de financiar os empreendimentos filantrópicos de
sua igreja.
A política desses líderes comunitários de fato não se encaixa facilmente nos
moldes democráticos modernos. Em contraste com os presidentes de associações de
bairro, eles não são democraticamente eleitos, e sua liderança é estritamente
vinculada ao papel proeminente que desempenham em suas congregações. Além
disso, suas alianças políticas freqüentemente são formadas mediante obrigações
recíprocas assumidas ao longo de suas vidas. Não obstante, alguns desses
agentes se viram na contingência de reavaliar esses laços tradicionais em face
do impacto social positivo dos programas implementados pela administração do
PT31.
Os movimentos de bairro predominantemente vinculados a setores progressistas da
Igreja Católica32 encararam o problema de como lidar com redes de patronagem
política sem perder sua autonomia. Embora contassem com algum financiamento de
instituições religiosas e fundos de apoio para seus projetos, as lideranças
desses movimentos dependiam da renda de escassos empregos locais em meio a um
contexto de altas taxas de desemprego na cidade. Assim, muitos líderes
capacitados partiram para os centros urbanos do Sudeste em busca de
oportunidades de trabalho, o que enfraqueceu a política comunitária de base.
Essa vulnerabilidade ficou evidenciada em vários projetos que foram iniciados
pelos movimentos de base, com auxílio da prefeitura e de outras instituições, e
acabaram sendo apresentados como programas capitaneados por secretarias
municipais e políticos a elas associados. Tal foi o caso do Programa Pré-
Universitário para Negros e Excluídos (Prune), uma iniciativa de diversos
líderes comunitários que de início não contou com nenhum apoio da prefeitura e
depois foi apropriada por uma administração ávida de publicidade, que a
propagandeou como uma bem-sucedida realização governamental. Esse tipo de
apropriação foi motivo de grande ressentimento para muitos ativistas
comunitários, que afinal criaram tais projetos e os viabilizaram dedicando-lhes
um considerável tempo de suas vidas sem receber qualquer remuneração. De fato,
eles se lamentavam de que a falta de recursos os tivesse obrigado a renunciar à
direção de seus projetos e entregá-la à prefeitura.
Os movimentos comunitários e sociais de Itabuna lograram amplificar sua voz
política ao se organizar em torno do Fórum de Luta por Terra, Trabalho e
Cidadania, em cooperação com entidades civis de âmbito nacional. Essa coalizão
local acabou por se tornar um dos segmentos sociais mais veementemente críticos
da gestão petista, ao percebê-la como a continuidade de um estilo de governo
prepotente, patrimonialista e nepotista. Segundo um representante do MST local,
a coalizão exercia uma significativa influência no município e era capaz de
mobilizar entre 15% e 20% da população. No entanto, o movimento civil de
Itabuna está longe de ser politicamente unido. Interesses políticos
particulares, traços personalistas incompatíveis e diretrizes estratégicas
diversas têm minado sua capacidade de desempenhar um papel mais central na
política local. Isso talvez tenha a ver com o fato de que a prefeitura
conseguiu minimizar a influência dos movimentos nos processos deliberativos dos
quais participaram (embora o PT houvesse feito alianças eleitorais estratégicas
com o setor). De todo modo, por seu compromisso com os direitos de cidadania, a
justiça social e a democracia participativa, o movimento civil é a força
democrática mais importante em Itabuna. Ironicamente, porém, sua crítica moral
serviu aos propósitos da oposição conservadora.
A administração petista reativou dois conselhos gestores locais que haviam sido
marginalizados pelas gestões conservadoras anteriores: o Conselho Tutelar da
Criança e do Adolescente e o Conselho de Saúde. No entanto, esses organismos
tendiam a se vincular demasiadamente a determinadas secretarias municipais ou
fundações e aos políticos que as dirigiam, e nem sempre funcionavam
independentemente de partidos e de patronagem limitações similares às
apresentadas pelos conselhos gestores de outras localidades do país33. De fato,
os conselheiros em geral pareciam muito dispostos a abrir mão de sua autonomia
ante a ingerência de políticos locais. Por exemplo, educadores reclamavam que
membros do Conselho Tutelar eram freqüentemente acompanhados e assistidos em
suas missões por uma candidata do PSDB a deputada estadual que era presidente
de uma organização assistencial estreitamente associada à prefeitura (Fundação
Marimbeta) e esposa do secretário de Governo.
Assim, as atividades dos conselhos gestores, intimamente entremeadas com os
interesses de políticos locais e insuficientemente ancoradas na sociedade
civil, acabavam por assumir a marca da política de patronagem personalista
praticada em Itabuna. Apenas os conselhos que contavam com apoio do movimento
civil tais como o Conselho de Segurança Alimentar tinham algum grau de
autonomia e participavam dos processos de elaboração de políticas públicas, de
modo que a maioria deles, especialmente aqueles associados à oposição
conservadora, esteve afastada desses processos a exemplo do Conselho da
Terceira Idade, o qual, conforme o seu coordenador, se recusava a servir como
instrumento de relações públicas do PT.
Pode-se concluir que a patronagem política cumpre um papel central em Itabuna.
Com efeito, sem alguma forma de patronagem muitos dos moradores pobres teriam
dificuldades de subsistência34. Não é de surpreender que a "lisura" na
distribuição dos recursos públicos seja objeto de intensas discussões na
cidade35. Esse debate parece ter constituído a fundação do imaginário social
democrático na cidade. De fato, como pudemos constatar em nossas entrevistas,
os movimentos sociais e associações civis repudiam as práticas clientelistas e
defendem uma forma de democracia mais participativa, enquanto os líderes
comunitários tendem a rejeitar moralmente as noções de clientelismo e
patronagem. No entanto, tanto uns como os outros dependem de redes de
patronagem privadas: ao passo que os primeiros recorrem a redes de patronagem
semiprivadas mantidas por igrejas e ONGs, os últimos se valem de redes de
patronagem privadas vinculadas ao sistema político formal.
O PT de Itabuna tentou responder às expectativas clientelistas de ambos os
grupos de atores, buscando assim expandir seu eleitorado. Mas sobretudo
procurou construir uma maioria política mediante uma ampla gama de alianças, e
deixou a tarefa da construção de uma democracia civil a cargo de movimentos
sociais com escassos recursos financeiros, os quais, justamente em razão de
pressões conservadoras exercidas por seus aliados políticos, acabou por excluir
do processo de tomada de decisões mais amplo. Em resposta, o movimento civil
pressionou a administração petista pela adoção de políticas democráticas mais
radicais, incluindo o direito a participar das deliberações sobre as políticas
públicas. Em Itabuna, porém, o movimento civil é pequeno e dividido e vem
encontrando crescentes dificuldades para mobilizar a população pobre. Em
conseqüência, essa população vem se constituindo cada vez mais num segmento
eleitoral em busca de patronagem por meio dos canais representativos formais.
A administração petista buscou responder a essas crescentes demandas
clientelistas mediante iniciativas como a criação da função de supervisor de
bairro. Dado porém o contexto de cidadania mediada no município, não é de
surpreender que as políticas sociais implementadas pelo PT, ainda que
competentes e reconhecidas positivamente por boa parte do eleitorado, não
tenham sido capazes de reduzir a importância das redes de patronagem
estabelecidas. De fato, o alto grau de desigualdade social e a debilidade do
movimento civil constituíram um contexto político relativamente resistente à
mudança.
Isso posto, deve-se ponderar que entre os moradores pobres de Itabuna há um
forte esteio para o estabelecimento de políticas democráticas mais genuínas.
Somando-se a isso a generalizada rejeição à política de reformas convencionais
adotada pela gestão do PT, tudo indica que futuras administrações reformistas
estarão sob considerável pressão para desenvolver políticas públicas não apenas
mais participativas e democráticas, mas que gerem uma rede de assistência
social alternativa, estimulando assim a população pobre a deixar para trás as
redes de patronagem locais.
Nesse ponto, cabe ressaltar que em São Paulo e em Porto Alegre persistem
relações de patronagem muito similares às observadas em Itabuna. Assim, nas
duas seções seguintes não enfatizarei esse aspecto. Nossa principal preocupação
será examinar como os mecanismos participativos se constroem a partir da
cultura política "tradicional" e a transformam, gerando formas políticas que
incorporam simultaneamente o "tradicional" e o "moderno".
SÃO PAULO
Após oito anos de administrações de direita marcadas por acusações de corrupção
as gestões Maluf e Pitta , a volta do PT à prefeitura paulistana com as
eleições de 2000 despertou esperanças e expectativas em muitos eleitores. No
entanto, a administração Marta Suplicy representou praticamente uma antítese da
gestão petista de Luiza Erundina (1989-92)36. Estreitamente ligada aos
movimentos sociais, Erundina implementou um processo de consulta popular (tanto
meticuloso quanto ineficiente) e introduziu uma forma precoce de orçamento
participativo; por outro lado, recusou-se a negociar cargos administrativos com
outras forças políticas, de modo que seu governo careceu de apoio legislativo e
enfrentou uma séria crise de governabilidade. Marta Suplicy, ao contrário,
imediatamente entabulou acordos com diversos vereadores sem excluir aqueles
associados a políticos "tradicionais" a fim de estabelecer uma maioria na
Câmara, com o que seu mandato transcorreu exemplarmente em termos de
governabilidade.
Em particular, os membros dos numerosos movimentos sociais de São Paulo
esperavam que a eleição de Marta representasse uma mudança em direção a um
processo de tomada de decisões mais democrático e participativo. Em resposta, a
prefeita descentralizou a administração mediante a criação de 31 subprefeituras
(cujos titulares foram apontados por membros da aliança de governo) e
implementou uma versão simplificada do orçamento participativo. Já no segundo
ano de mandato, porém, os líderes do movimento civil começaram a protestar que
a administração não estava suficientemente comprometida com os processos
participativos. De fato, veio a generalizar-se nos círculos do movimento civil
a percepção de que a gestão de Marta era politicamente ambivalente ao combinar
uma forma de governo "de cima para baixo", personalista, autocrática e
intransigente com mecanismos participativos de base. Dessa forma, os membros
dos vários setores do movimento civil, em sua grande maioria ligados ao próprio
PT, tornaram-se os mais ferrenhos oponentes políticos da prefeita.
O modelo de governança adotado por Marta certamente pagou um alto preço. Sua
base aliada foi construída mediante barganhas com políticos conservadores e
fisiológicos, que em troca de apoio político podiam designar nomes para cargos
públicos. Aos olhos de muitos petistas tradicionais, o governo Marta cultivou
as típicas políticas de patronagem às quais o PT deveria por princípio se opor
em termos ideológicos e éticos. Pior que isso, indispôs-se contra líderes do
movimento civil que por décadas haviam combatido os mesmos políticos de direita
que compuseram as alianças do PT. Entre setores do movimento civil circulava o
comentário irônico de que vereadores ultraconservadores como Viviane Ferraz,
filiada ao Partido Liberal e tradicionalmente associada a Paulo Maluf, eram os
"petistas" mais fiéis ao governo porque sempre votavam a seu favor, em
contraste com membros esquerdistas da bancada do próprio PT, que chegavam a
votar contra o governo.
Para muitos líderes do movimento civil, o pragmatismo da administração Marta
era incompatível com os seus sonhos de uma democracia radical, em que o
governo, segundo o petista Tarso Genro, "se transforma numa espécie de grande
comunidade solidária engajada numa política que protege os setores excluídos da
população"37. Na visão da ala esquerdista do PT, esse pragmatismo continha
muitos elementos políticos "tradicionais", o que desfigurava a marca que
diferenciava o PT dos seus adversários. O chefe de gabinete do vereador petista
Carlos Neder resumiu o desapontamento da esquerda do partido ao afirmar que o
PT se tornara "um partido personalista com um discurso de esquerda"38.
No entanto, essa perspectiva negligencia o fato de que a "comunidade solidária"
postulada por Genro tem de ser construída num contexto de democracia formal.
Ademais, ignora que num contexto de cidadania mediada tal comunidade contém
elementos clientelistas, bem como estruturas de patronagem democratizadas39.
Por exemplo, muitos líderes de movimentos de bairro reagiram de forma bastante
positiva às políticas de bem-estar da administração Marta por lhes
possibilitarem renovar os acordos de patronagem que financiavam, em parte, os
serviços sociais existentes em suas comunidades, tais como creches e centros de
treinamento profissional. Outros se valiam ainda de redes de patronagem ligadas
ao governo estadual do PSDB, que propiciavam subsídios adicionais aos serviços
sociais mantidos em seus bairros. Essas lideranças locais também viam com bons
olhos os Centros Educacionais Unificados (CEUs), gigantescos complexos com
serviços educativos, culturais, de recreação e esporte que a prefeitura estava
construindo nos bairros periféricos muito criticados pelos líderes do
movimento civil, que os viam como um projeto "faraônico" e eleitoreiro, voltado
a contemplar expectativas de diversas clientelas políticas (populares, mas
também da elite), à maneira das estratégias de governo "tradicionais"
empregadas por políticos conservadores como Paulo Maluf40.
Para a maioria dos líderes comunitários, a democracia tem tanto a ver com a
possibilidade de forjar as conexões políticas necessárias para manter ou
expandir os serviços sociais existentes em suas comunidades quanto com a
liberdade de expressão. Essa perspectiva pragmática, associada a uma habitual
volubilidade política, caracterizava os representantes comunitários com quem
travei contato no bairro da Brasilândia. No entanto, tal perspectiva assumia um
aspecto interessante: ainda que muitos deles cultivassem estreitas relações
clientelistas com funcionários do governo municipal, manifestavam as demandas
comunitárias em termos de direitos de cidadania. Assim, se contavam com os
benefícios a serem proporcionados por meio dos acordos clientelísticos,
argumentavam que isso era um direito da comunidade. Nesse sentido, os laços
clientelistas constituíam um meio de estabelecer elos de comunicação com o
poder público a fim de que as demandas de cidadania fossem expressas de modo
mais efetivo. Dessa forma, práticas políticas "tradicionais" e "modernas" se
interligavam e geravam um ambiente político ambivalente, em que os
representantes comunitários não simplesmente encaminhavam expectativas
clientelistas, mas as legitimavam como demandas por direitos de cidadania.
Essa combinação ambivalente de elementos "tradicionais" e "modernos" também era
visível no orçamento participativo (OP) em curso na cidade. Recém-implementado,
o OP paulistano estava longe de ser um processo refinado e politicamente
consolidado como o de Porto Alegre, onde já fazia parte do dia-a-dia da vida
política. Paradoxalmente, foi ao mesmo tempo possibilitado e obstruído pelos
esquemas "tradicionais" de partilha do poder negociados pela administração
petista. Os efeitos ambivalentes da combinação "moderno/tradicional" se deram
na forma de uma tensão mal-resolvida entre estruturas de democracia
participativa e de democracia representativa, como pudemos verificar na região
da subprefeitura Freguesia do Ó/Brasilândia.
Nessa região o OP era conduzido por funcionários públicos ligados a uma figura
política "tradicional", a já citada Viviane Ferraz, que extra-oficialmente
"comandava" aquela subprefeitura. Muitos dos líderes do movimento civil de
Brasilândia rejeitavam esse esquema de partilha de poder, que tendia a
direcionar o fluxo de informações acerca dos processos do OP regional para o
segmento de classe média-baixa da Freguesia do Ó. De fato, os cidadãos
interessados em participar do OP regional tinham de lidar com uma agenda de
reuniões errática41, bem como com um coordenador (ligado ao PSDB) que ostentava
uma conduta elitista e buscava impor seu poder administrativo42. Assim, não é
de surpreender que ao fim do ciclo de atividades de 2003 diversos delegados do
OP regional ainda pensassem que a autoridade das tomadas de decisão estava nas
mãos dos representantes da administração, e não do fórum do qual estavam
participando. Em meio a um generalizado desapontamento quanto aos retornos
esperados, essa percepção levou muitos líderes comunitários a se retirar do OP,
julgando-o de um modo extremamente cético, senão abertamente hostil43.
No âmbito do OP paulistano, o processo participativo não logrou erradicar o
clientelismo. Antes, tendeu a mudar o foco das expectativas clientelísticas,
que deixou de recair sobre os agentes das redes de patronagem mantidas pelos
vereadores para se direcionar aos delegados e conselheiros do OP. Isso pôde ser
verificado no caso da líder comunitária Rosângela Graciani, que por muito tempo
havia lutado tenazmente pela instalação de um posto de saúde em seu bairro e
viu essa oportunidade materializar-se ao ser eleita delegada do OP regional de
Pirituba/Jaraguá. Em vez disso, porém, a região recebeu apenas uma unidade do
CEU, com o que ela se sentiu incompetente e desprestigiada aos olhos da sua
comunidade, que a elegera a fim de que conquistasse aquele serviço público
essencial para o bairro. O fato é que essa demanda da comunidade foi aprovada
em várias rodadas de negociação do OP mas depois ignorada pela administração
municipal, que em face de inúmeras reivindicações similares decidiu alterar seu
programa de saúde pública. Sentindo-se ludibriada, a população local direcionou
seu inconformismo para aquela mediadora que conectava a comunidade com o OP.
Evidencia-se assim que o OP contém potencialidade tanto para transformar
estruturas políticas "tradicionais" como para desacreditar lideranças locais
que levaram décadas para se sedimentar. De fato, vários líderes comunitários e
de associações civis que tomaram a defesa do OP acabaram por se enredar num
conflito entre instâncias da democracia representativa formal e da democracia
civil, perdendo credibilidade entre suas bases. Assim, para muitos desses
líderes o OP perdeu seu apelo ao se revelar um processo cujas deliberações não
eram implementadas, pois ao fim e ao cabo prevaleciam decisões tomadas "de cima
para baixo"44. Técnicos da prefeitura alegavam que os CEUs eram a única maneira
efetiva de ir ao encontro das demandas do OP, enquanto para os líderes do
movimento civil essa solução fundamentalmente deturpava o processo democrático.
Decepcionados com os resultados do OP, vários representantes comunitários
afirmavam que era mais fácil obter serviços públicos por meio de canais mais
"tradicionais".
Em suma, a experiência do OP em São Paulo evidencia que a implementação de
mecanismos de democracia participativa não erradica estruturas clientelistas.
Antes, combina elementos "modernos" e "tradicionais" e engendra assim uma
cultura política híbrida, cuja complexidade ainda está por ser explorada.
Muitas das formas de patronagem contidas nessa cultura híbrida certamente são
compatíveis com os processos democráticos. Com efeito, é difícil imaginar como
as associações comunitárias que contribuíram com o processo de democratização
em São Paulo poderiam subsistir sem alguma forma de patronagem política.
O caso do OP paulistano também explicita uma tensão entre as "lógicas" da
democracia participativa e da democracia representativa. De fato, muitos dos
participantes do OP viam-no como a promessa de uma democracia civil com
direitos de cidadania universais, mas ao fim e ao cabo decepcionaram-se ao
constatar que os resultados do processo de negociação de demandas foram
determinados por fatores políticos de ordem partidária e eleitoral. No caso dos
líderes comunitários que buscaram encaminhar suas demandas por meio do OP,
alguns consideravam prudente manter ao mesmo tempo as estratégias mais
"tradicionais", que afinal sempre haviam dado certo. Assim, esquemas de
patronagem informais continuaram a operar em paralelo ao processo
participativo. Em face desse quadro político movediço, evidenciou-se a
inabilidade da administração do PT em fundir estruturas das democracias civil e
representativa de uma maneira coerente.
Embora a administração Marta tenha procurado implementar uma série de políticas
sociais inovadoras, foi logo identificada pelos líderes do movimento civil como
um governo politicamente convencional, que não se mostrava efetivamente
comprometido com a construção de uma democracia civil participativa. Em
conseqüência, os movimentos sociais (sobretudo aqueles ligados a setores
progressistas da Igreja Católica) passaram a criticar veementemente a política
petista de alianças pragmáticas com setores conservadores. Enfim, a tentativa
do PT de responder a uma ampla gama de demandas clientelistas "tradicionais" a
fim de ampliar seu eleitorado acabou por prejudicar significativamente as
credenciais democráticas de Marta Suplicy, assim como não foi suficiente para
lhe garantir a reeleição.
PORTO ALEGRE
Nesse município, o debate público em torno de uma distribuição de recursos
públicos "equânime" e "funcional" foi amplamente decidido em favor do orçamento
participativo. O OP se tornou ali o principal veículo de mediação dos direitos
de cidadania, canalizando as demandas clientelistas para o âmbito um processo
democrático transparente. Ao longo de seus mais de quinze anos de existência,
sob administrações do PT, o OP tendeu a favorecer os bairros periféricos mais
pobres, que passaram a contar com muitas das infra-estruturas de que desfrutam
as localidades centrais e mais desenvolvidas45.
Evidentemente, essa redistribuição dos recursos não esteve desvinculada dos
interesses eleitorais do PT. Na visão de vereadores conservadores de Porto
Alegre, por exemplo, o OP constituiu um engenhoso plano elaborado pelo PT para
expandir seu eleitorado nos setores populares. Com efeito, por meio do OP o
partido logrou dissociar os eleitores das redes clientelistas "tradicionais",
controladas por vereadores e políticos conservadores, e conectá-los diretamente
ao processo participativo organizado pela prefeitura. Nesse sentido, como
apontam diversos autores, o OP promove a formação de alianças livres de
lealdades clientelistas a políticos municipais46.
Em várias ocasiões a distinção entre o PT e o OP de Porto Alegre pareceu
ofuscar-se, sobretudo quando a prefeitura utilizou a rede do OP como um
instrumento alternativo de comunicação e disseminação para mobilizar a
população. Dessa forma, os organizadores do OP tiveram de lidar com questões de
legitimidade e desfazer o rótulo de que se tratava meramente de "uma coisa do
PT", como apregoava a oposição. Essa não era uma tarefa fácil, uma vez que um
expressivo número de conselheiros, delegados e participantes do OP, bem como de
seus familiares, tinha fortes vínculos com a rede do PT47. Assim, inequívocos
elementos de patronagem sustentaram a emergência e o funcionamento do OP. Não
obstante, é difícil imaginar como uma política popular poderia ter emergido de
outra forma num contexto político e socioeconômico tão altamente polarizado.
Com efeito, Habermas tem razão quando afirma que para estabelecer uma esfera
pública autônoma os seus participantes precisam dispor de algum grau de
capacitação educacional e de estabilidade financeira48. Não surpreende portanto
que houvesse no serviço público de Porto Alegre cerca de 660 "cargos de
confiança", muitos dos quais destinados a "meritórios" mas também necessitados
membros da base de apoio do PT.
É certo que o OP municipal, em vez de suplantar e erradicar as práticas
políticas "tradicionais", acabou por incorporá-las em seus processos. No
entanto, na cultura político-administrativa de Porto Alegre o clientelismo e a
patronagem não são dominantes como nos casos de São Paulo e Itabuna. Ali o OP
foi inteiramente implementado pela administração conforme as diretrizes e
decisões de investimento público estabelecidas pelo processo participativo.
Isso fez do OP um efetivo veículo mediador não apenas dos direitos de
cidadania, mas também das demandas conflitantes oriundas dos campos da
democracia participativa e da democracia representativa.
Ainda que os interesses do PT e os dos ativistas do OP freqüentemente
coincidissem no fórum participativo, a relação entre os representantes da
prefeitura e os conselheiros do OP por vezes envolveu conflitos49. No entanto,
essas disputas tenderam a ser resolvidas em termos burocráticos e legais. De
fato, os processos internos do OP seguiram de perto as pautas e as regras
previstas, de modo que a eficiência de um conselheiro do OP dependia de seu
conhecimento dos regulamentos que legitimavam os processos. Embora conflitos
personalísticos tenham sido bastante comuns no estágio inicial do OP, o
processo os assimilou e gerou um discurso paralegal com base em conhecimentos
especializados e competência técnica50. Nesse sentido, o OP porto-alegrense
dotou a cultura política da municipalidade de nítidas conotações weberianas.
Não obstante, nas franjas dessa "grande comunidade solidária" evidenciavam-se
ainda formas híbridas de políticas "tradicionais" e "modernas". Tal o caso do
loteamento Chapéu do Sol, um bairro pobre localizado ao sul da cidade. Ali, os
membros de uma associação de bairro fragilmente integrada ao OP viam na
assistência dos vereadores um canal mais importante para as suas tentativas de
encaminhar e resolver os problemas do bairro junto à prefeitura. Ainda que em
Porto Alegre as comunidades pobres efetivamente tenham acesso ao poder público
municipal (em contraste com a grande maioria dos municípios brasileiros), os
líderes e moradores daquele bairro freqüentemente contavam com os vereadores
para mediar suas relações com a prefeitura, o que, conforme afirmavam,
fortalecia suas demandas. Assim, quando vereadores conservadores alegaram que a
"mão invisível" que provera as tão desejadas infra-estruturas no bairro era na
verdade a deles próprios, e não aquela de um abstrato OP, os moradores, mal-
informados e extremamente pobres, estavam prontos a acreditar neles.
Assim como em São Paulo e em Itabuna, as redes de patronagem privada (mesmo
quando fictícias) de fato continuam a cumprir um papel importante nas vidas dos
moradores pobres de Porto Alegre, na medida em que oferecem uma importante
medida de segurança contra as calamidades da vida. Mas mesmo nesse aspecto
pode-se discernir o impacto do OP, havendo amplas evidências de que ele
transformou as relações sociais para além de sua esfera de influência imediata.
Ainda que os moradores muitas vezes não soubessem exatamente como certa infra-
estrutura urbana foi implantada em seus bairros dizendo que "foi o prefeito
que fez" , percebiam que o benefício obtido junto à prefeitura não era de
natureza particularista. Afinal, na sua afirmação de que "foi o prefeito que
fez" não se imprime a mesma veneração por patronos políticos que verificamos em
Itabuna, por exemplo. Trata-se de uma compreensão genérica de uma realização da
municipalidade que não carrega o nome de um político local (João Verle, Tarso
Genro etc.) e que conseqüentemente não contém a marca das obrigações recíprocas
das relações clientelistas.
De maneira similar, ainda que apenas alguns dos moradores das duas comunidades
que visitei participassem das assembléias regionais do OP e poucos mais
comparecessem às importantes sessões em que se votavam as prioridades de
investimento público na região, praticamente todos os moradores apontaram o
presidente da associação de bairro quando perguntados de que modo a comunidade
foi contemplada com infra-estruturas: "Pergunte a ele que ele sabe". Assim como
em São Paulo, expectativas clientelistas recaíam sobre o delegado ou
conselheiro do OP. Mas esses moradores, mesmo os não-afiliados à associação
local, estavam razoavelmente seguros de que o dirigente desta representava seus
interesses junto ao fórum municipal. Ao dizerem "pergunte a ele que ele sabe",
ressoavam certa confiança na transparência de um processo que ainda lhes era
relativamente distante.
O caso de Porto Alegre sinaliza que processos participativos como o OP podem
transformar as práticas políticas "tradicionais" no Brasil. Contudo, também
sugere que o clientelismo e a patronagem são aspectos persistentes mesmo num
contexto político inclusivo e democrático, e não meros elementos de uma etapa
no caminho para uma política mais racional e universalista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao examinar transições democráticas em países como o Brasil, muitos autores
tomam a democracia como o resultado de um processo evolutivo pelo qual se
eliminam elementos políticos "tradicionais" para se construir uma política
"moderna", baseada em critérios racionais, preocupação com o bem comum e regras
procedimentais. Em contraste com essa visão, argumentamos aqui que o processo
de democratização não erradica práticas políticas como o clientelismo e a
patronagem: antes, transforma-as ao incorporá-las. Além disso, sustentamos que
num contexto político de direitos de cidadania extremamente restritos a
construção de democracias mais autênticas depende da implementação de uma rede
de assistência social universalmente acessível.
O caso de Itabuna sugere que na ausência de uma rede assistencial pública o
desemprego e a pobreza tendem a reforçar a importância das redes de patronagem
privadas. Ademais, a competição clientelística por escassos recursos
governamentais suscitou no município um intenso debate público sobre o modo
como são mediadas as demandas populares por tais recursos. Independentemente de
filiação política, os movimentos sociais e os moradores dos bairros pobres
rejeitavam a mediação "de cima para baixo" e reivindicavam um processo de
mediação mais democrático e transparente. Esse amplo apoio a uma forma de
democracia mais autêntica também se evidenciou duas outras cidades em foco,
onde processos participativos já haviam sido implementados. Em São Paulo, o
debate público nos bairros pobres se concentrou nas decepções suscitadas por um
OP implementado parcialmente e nas contradições da política de alianças adotada
pela administração do PT. Já na periferia de Porto Alegre o OP se encontrava
amplamente aceito como um processo de mediação imparcial e transparente.
Os três estudos de caso enfocaram as diferentes estratégias adotadas pelos
líderes das comunidades pobres para encaminhar suas demandas. O caso de Itabuna
mostrou que uma relativa autonomia política e financeira cumpre papel
importante na questão da demanda por patronagem política, na medida em que
aumenta as possibilidades de atuação dos movimentos sociais e dos líderes
comunitários. Mostrou ainda que uma estratégia multifacetada pode ser decisiva
num cenário político em que as redes de patronagem privada contribuem
significativamente para a assistência social da população pobre. De fato,
muitos líderes comunitários construíram uma gama diversificada de laços de
patronagem para poder sobreviver e negociar apoios ante as mudanças políticas.
Em São Paulo, onde o setor dos movimentos sociais é bem mais forte e onde as
campanhas de mobilização de décadas anteriores deixaram um legado mais
duradouro, os líderes comunitários adotavam estratégias pautadas por
perspectivas tanto "tradicionais" quanto "modernas" a fim de fortalecer as
demandas sociais locais. Embora tenham manifestado ceticismo quanto aos
resultados do OP, essas lideranças se mostraram dispostas à participação no
processo participativo e ao menos de início o apoiaram. O caso de Porto Alegre
mostrou que as expectativas clientelistas podem ser transformadas num processo
de mediação confiável e transparente, que promove a participação civil. Não
obstante, formas de clientelismo e patronagem privada ainda eram evidentes nas
franjas da chamada "grande comunidade solidária".
Por fim, os estudos de caso demonstraram que num contexto sociopolítico de
cidadania mediada a inclusão democrática da população pobre tende a envolver
alguma forma de subsídio estatal. Assim, tanto a democratização da política
municipal como os subsídios do Estado em áreas como saúde e educação são
imprescindíveis para a transição a uma democracia autêntica, em que os direitos
de cidadania sejam garantidos de modo universal. O caso de Porto Alegre mostra
que um processo de orçamento participativo sustentado e inclusivo, em conjunção
com outras políticas voltadas às necessidades básicas da população, pode abrir
caminho para uma tal democracia. No entanto, mesmo após quinze anos de esforços
da administração petista de Porto Alegre para incluir a população pobre, os
elos entre esta e o sistema político ainda se mostram frágeis, o que sugere que
num contexto de cidadania mediada persiste a dialética entre inclusão
participativa e patronagem política. Dessa forma, quando se considera o espaço
social que há entre pólos conceituais do "tradicional" e do "moderno", a visão
evolutiva da transição para a democracia deve dar lugar a uma perspectiva que
conceba o avanço democrático como um contínuo processo dialético.
tradução do inglês: Alexandre Morales
[1] Gostaria de agradecer a todos os brasileiros que se dispuseram a dividir
comigo seu tempo precioso, em particular Sérgio Baierle, Cilto Rosembach, Ana
Cláudia Teixeira e a família Silva Brito. Também sou grato a Rowan Ireland e
Francesco Formosa, que fizeram valiosos comentários e sugestões acerca de
várias etapas da pesquisa, a qual contou com apoio financeiro do Australian
Research Council.
[2] Roniger, Luis. Hierarchy and trust in modern Mexico and Brazil. Nova York/
Londres: Praeger, 1990; Mainwaring, Scott. Clientelism,
patrimonialism and economic crisis: Brazil since 1979. Washington, DC: Latin
American Studies Association, 1990; Rethinking party systems
in the third wave of democratization: the case of Brazil. Stanford, CA:
Stanford University Press, 1999; Mettenheim, Kurt von. The Brazilian voter:
mass politics in democratic transition 1974-86. Pittsburgh/Londres: University
of Pittsburgh Press, 1995; Hagopian, Frances. Traditional
politics and regime change in Brazil. Cambridge/Nova York: Cambridge University
Press, 1996; Weyland, Kurt. Democracy without equity: failures
of reform in Brazil. Pittsburgh: The University of Pittsburgh Press, 1996; "The Brazilian State in the new democracy". In: Kingstone,
Peter e Power, Timothy (orgs.). Democratic Brazil: actors, institutions, and
processes. Pittsburgh: The University of Pittsburgh Press, 2000; Power,
Timothy. The political right in postauthoritarian Brazil. University Park, PA:
The Pennsylvania State University Press, 1997; Kingstone,
Peter e Power, Timothy. "Political institutions in democratic Brazil: politics
as a permanent constitutional convention". In: idem (orgs.), op. cit.; Gay,
Robert. "Rethinking clientelism: demands, discourses and practices in
contemporary Brazil". European Review of Latin American and Caribbean Studies
[ERLACS], no 65, 1998, pp. 7-24; Banck, Geert A. "Personalism in the Brazilian
body politic: political rallies and public ceremonies in the era of mass
democracy". ERLACS, no 65, 1998, pp. 25-43; Conniff, Michael.
Populism in Latin America. Tuscaloosa/Londres: The University of Alabama Press,
1999.
[3] Baierle, Sérgio. "OP ao termidor?". In: Verle, João e Brunet, Luciano
(orgs.). Construindo um novo mundo: avaliação da experiência do orçamento
participativo em Porto Alegre. Porto Alegre: Guayí, 2002; Teixeira, Ana Cláudia C. "A atuação das organizações não-
governamentais: entre o Estado e o conjunto da sociedade". In: Dagnino, Evelina
(org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra,
2002; Tatagiba, Lúcia. "Os conselhos gestores e a
democratização das políticas públicas no Brasil". In: Dagnino (org.), op. cit.;
Ribeiro, Ana Clara T. e Grazia, Grazia de. Experiências de orçamento
participativo no Brasil: 1997-2000. Petrópolis: Vozes, 2003; Ottmann, Goetz. "Habermas e a esfera pública no Brasil". Novos
Estudos, n-o 68, 2004.
[4] Cf. Mainwaring, Rethinking party systems..., op. cit.
[5] Ao sustentar a idéia de "múltiplas modernidades", Renato Ortiz argumenta
que os elementos culturais "tradicionais" constituem a experiência viva da
modernidade brasileira ("From incomplete modernity to world modernity".
Daedalus, 129 (1), 2000).
[6] Alexander, Jeffrey. "Mass communication, ritual and civil society". In:
Liebes, Tamar e Currun, James (orgs.). Media, ritual and identity. Londres:
Routledge, 1998: 28.
[7] Cf. Reis, Elisa. "Banfield's amoral familism revisited: implications of
high inequality structures for civil society". In: Alexander, Jeffrey C.
(org.). Real civil societies: dilemmas of institutionalization. Londres: Sage,
1998.
[8] Esse argumento foi bastante difundido nos anos 1980 (ver Touraine, Alain.
"Mutations of Latin America". Thesis Eleven, no 38, 1994). Baseio-me aqui no
suposto de que no Brasil a pobreza resulta mais de uma desigual distribuição de
recursos do que de uma falta de crescimento econômico, ao contrário do que
propõem alguns autores (ver por exemplo Reis, op. cit.). Mais recentemente, em
particular na literatura que enfoca a transição democrática no Brasil, a
questão da pobreza tem sido eclipsada pela discussão dos aspectos
institucionais da democracia, e a meu ver deveria ser retomada.
[9] Segundo Weyland (Democracy without equity, op. cit.), "o personalismo forma
redes baseadas em intercâmbios particularistas e laços afetivos. Nas sociedades
de larga escala essas redes tendem a assumir uma forma piramidal, de modo que a
hierarquia permeia o personalismo. Uma vez que é do interesse daqueles
posicionados no alto da pirâmide personalista manter seus seguidores divididos,
as ligações horizontais são desencorajadas, se não suprimidas. Somente os
atores que estão no topo da hierarquia têm poder suficiente para se contrapor a
essa estratégia de 'dividir para governar' e estabelecer relações horizontais".
[10] Cf. Mainwaring, Rethinking party systems..., op. cit.
[11] Cf. Roniger, op. cit; Gellner, Ernest. "Patrons and clients". In: Gellner,
Ernest e Waterbury, John (orgs.). Patrons and clients in Mediterranean
societies. Londres: Duckworth, 1977; Schmidt, Steffen (org.).
Friends, followers, and factions: a reader in political clientelism. Berkeley:
University of California Press, 1977.
[12] Cf. Roniger, Luis. "Civil society, patronage, and democracy". In:
Alexander, Jeffrey. C. (org.), op. cit.
[13] Banck, op. cit.
[14] Entre muitos outros exemplos que poderiam ser citados, menciono os sambas
tradicionais Pelo telefone (Donga, 1917), Não quero saber mais dela (Sinhô,
1928), Preconceito (Marino Pinto e Wilson Batista, 1941) e Antonico (Ismael
Silva, 1950). No entanto, Roberto Da Matta apontou em vários textos a dimensão
da subversão de classe no samba, ao passo que Darién Davis afirma que por volta
dos anos 1930 passaram a surgir sambas com maior teor de crítica social,
particularmente quanto às relações raciais ("Racial parity and national humor:
exploring Brazilian samba from Noel Rosa to Carmem Miranda, 1930-39". In:
Beezley, William e Curcio-Nagy, Linda (orgs.). Latin American popular culture.
Wilmington: Scholarly Resources, 2000). É provável porém que o samba praticado
nos bares e nas esquinas sempre tenha sido um meio de expressão para as
percepções de crítica social das classes populares.
[15] Cf. Cardoso, Fernando Henrique. "Democracy in Latin America". Politics and
Society, 15(1), 1986-87.
[16] Cf. Kahn, Joel e Formosa, Francesco. "The problem of 'crony capitalism':
modernity and the encounter with the perverse". Thesis Eleven, no 69, 2002.
[17] O orçamento participativo consiste num processo pelo qual a população de
um município discute e delibera sobre as prioridades de alocação de recursos da
prefeitura. Tal como implementado em Porto Alegre, o processo funciona grosso
modo da seguinte forma. Numa primeira fase há rodadas de assembléias regionais
e locais de moradores, que determinam a composição dos delegados que irão
participar da fase seguinte, em cujas assembléias são hierarquizadas as
demandas de prioridades de investimentos regionais. Gera-se uma proposta
orçamentária para o município, que é discutida com técnicos das secretarias
municipais, e em seguida são eleitos os conselheiros das regiões para o
Conselho do Orçamento Participativo, que tem por função debater e aprovar a
proposta orçamentária, rever o orçamento final elaborado pela prefeitura e
acompanhar a respectiva execução. A câmara de vereadores tem a prerrogativa de
emendar itens do orçamento.
[18] Cf. Roniger, Hierarchy and trust..., op. cit.; Hagopian, op. cit.
[19] Embora ultrapasse o escopo deste artigo uma comparação detalhada entre os
processos de orçamento participativo (OP) implantados em Porto Alegre e em São
Paulo, cabe ressaltar que assumiram características consideravelmente
diferentes. Sobretudo, em Porto Alegre o OP se enraizou muito mais nos bairros,
na medida em que foi subdividido em dezesseis regiões administrativas
compreendendo uma população total de cerca de 1,3 milhão de habitantes,
enquanto em São Paulo, com cerca de 10 milhões de habitantes, foi subdividida
em 31 regiões (algumas com mais de uma assembléia). Além disso, Porto Alegre
contou com mais secretarias e escolas municipais na divulgação do OP e na
preparação da população para o processo. Por fim - e talvez mais importante
-, o montante de recursos a ser distribuído pelo OP foi claramente
estabelecido em Porto Alegre, enquanto em São Paulo foi objeto de negociação
entre os conselheiros do OP e as secretarias municipais, as quais tinham peso
decisivo na determinação do volume dos recursos a serem alocados.
[20] Com efeito, uma experiência de democratização das mais interessantes vinha
ganhando corpo na cidade de Pintadas, localizada no sertão seco e árido da
Bahia.
[21] Ressalte-se porém que o PT sempre foi um partido bastante heterogêneo e
que as suas diretrizes políticas gerais constantemente foram interpretadas de
maneira dinâmica e multifacetada pelas diversas instâncias municipais (cf., por
exemplo, Keck, Margaret. The Workers' Party and democratization in Brazil. New
Haven: Yale University Press, 1992).
[22] Cf. Branford, Sue e Kucinski, Bernardo. Lula and the Workers' Party in
Brazil. Nova York: The New Press, 2003; Wallerstein, Immanuel.
World systems analysis: an introduction. Durham: Duke University Press, 2004.
[23] Cf. Baiocchi, Gianpaolo. "Radicals in power". In: idem (org.). Radicals in
power: the Workers' Party (PT) and experiments in urban democracy in Brazil.
Londres/Nova York: Zed Books, 2003.
[24] No final dos anos 1990, o então presidente do partido José Dirceu afirmava
que "o jeito petista de governar é uma coisa do passado" (Dirceu, José.
"Governos locais e regionais e a luta política nacional". In: Magalhães, Inês,
Barreto, Luiz e Trevas, Vicente (orgs.). Governo e cidadania: balanço e
reflexões sobre o modo petista de governar. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
1999).
[25] Além do PT, a aliança incluiu os seguintes partidos: PSDB, PDT, PTS, PV,
PCdoB, PMDB, PPS, PSB, PTB e PMN.
[26] O caso do município baiano de Vitória da Conquista contradiz essa opinião.
Ali o PT adotava uma estratégia de mobilização de base e ao eleger-se para a
prefeitura na gestão 1997-2000 implementou mecanismos participativos com
sucesso. Ademais, o partido foi reeleito nas eleições seguintes.
[27] Os nomes dos representantes comunitários foram aqui alterados.
[28] Segundo o seu questionário, aplicado em 2002, dos 235 entrevistados apenas
quatorze sabiam da existência do supervisor e somente quatro o conheciam pelo
nome.
[29] Na verdade, os moradores tendiam a manifestar demandas assistenciais ao
dirigente da associação de bairro, o qual porém não tinha acesso direto à
prefeitura e precisava repassar as demandas ao supervisor, que então contatava
a prefeitura. O que se constata é que a maioria das comunidades é nitidamente
dividida conforme as linhas partidárias e que os representantes comunitários
somente têm acesso à prefeitura se são pessoalmente ligados aos seus ocupantes.
[30] No entanto, essa "neutralidade" muitas vezes era ostentada apenas em
público, pois em suas vidas privadas os líderes comunitários podiam estar
envolvidos em redes de obrigações recíprocas que eles se sentiam compelidos a
honrar.
[31] João Batista, por exemplo, via-se em débito com um patrono político lhe
ajudara em tempos de necessidade em sua vida pessoal, mas reconhecia que as
políticas educacionais implementadas pelo PT de fato beneficiavam os estudantes
pobres e que com a tempo a continuidade dessas políticas beneficiaria toda a
comunidade.
[32] Cabe mencionar em especial a Pastoral da Juventude, que com sua atuação
extremamente ativa entre adolescentes e jovens contribui para a formação de
muitos líderes comunitários em Itabuna.
[33] Cf. Tatagiba, op. cit.
[34] Segundo o Censo Demográfico de 2000, mais de um terço da população da
cidade vivia com menos de R$ 390 por mês.
[35] Na verdade, o debate sobre a patronagem no Brasil tem sido moralmente
carregado há séculos (cf., por exemplo, Graham, Richard. Patronage and politics
in nineteenth-century Brazil. Stanford, CA: Stanford University Press, 1990; Bieber, Judy. Power, patronage, and political violence: state
building on a Brazilian frontier, 1822-89. Lincoln: University of Nebraska
Press, 1999).
[36] Couto, Cláudio G. "The second time around: Marta Suplicy's PT
administration in São Paulo". In: Baiocchi (org.), op. cit.
[37] Genro, Tarso. "Um debate estratégico". In: Magalhães, Barreto e Trevas
(orgs.), op. cit.
[38] Segundo ele, "o PT de 2000 é um partido completamente diferente daquele de
1988. Em 1998 o PT era um partido que promovia a luta social, e o PT de 2000 é
um partido marcadamente institucional, um partido que trabalha para ganhar
eleições. Hoje, os setores dentro do PT que buscam organizar a sociedade,
organizar os excluídos, são facções contra-hegemônicas". O entrevistado atribui
uma razão pragmática ao distanciamento do partido em relação ao movimento
civil: as eleições para prefeito em São Paulo geralmente são disputadas em dois
turnos, com polarização dos votos entre dois candidatos, e o movimento civil
consegue obter para um candidato petista cerca de 15% dos votos, o que não é
suficiente para elegê-lo. Além disso, uma vez que a força política dos
movimentos sociais vem declinando desde o final dos anos 1980, o PT resolveu
atrair outros setores da sociedade.
[39] Cf. Dagnino (org.), op. cit.; Ottmann, op. cit.
[40] Muitos moradores receavam, com razão, que esse projeto extremamente
oneroso fosse abandonado se o PT perdesse as eleições seguintes, como de fato
ocorreu anteriormente com um projeto similar no Rio de Janeiro, abandonado por
uma administração subseqüente e que se tornou o paraíso dos párias sociais.
[41] Freqüentemente se cancelavam reuniões em cima da hora e a subprefeitura
muitas vezes deixava de informar os delegados do OP tanto dos cancelamentos
quanto das novas datas agendadas.
[42] Numa reunião em que se discutia como aumentar o grau de participação dos
delegados do OP regional (apenas nove do total de 55 estavam presentes), esse
coordenador fez a seguinte afirmação: "Eu não me preocupo com quantidade: eu
quero qualidade. Eles precisam ter algum conhecimento sobre o processo
político. Em Brasilândia, muitos simplesmente não estão interessados. Nós
deveríamos criar um fórum educacional. Eles não sabem ler direito, não estão
acostumados com política local".
[43] Apesar de todos esses problemas, o OP de Freguesia do Ó/Brasilândia não
estava absolutamente entre os piores: um relatório de avaliação da
Coordenadoria do Orçamento Participativo de São Paulo relativo ao primeiro
trimestre de 2004 destacou o comprometimento da subprefeitura com o processo
(Andrade, Maria de Fátima, Ricci, Rudá e Camargo, Thiago. Avaliação OP-SP 2004.
Belo Horizonte: Instituto Cultiva, 2004, mimeo).
[44] Em alguns círculos da sociedade civil, o slogan governamental "Você
decide, o governo faz" foi ironicamente alterado para "Você decide e o governo
faz o que quiser"...
[45] Cf., por exemplo, Marquetti, Adalmir. "Participação e redistribuição: o
orçamento participativo em Porto Alegre". In: Avritzer, Leonardo e Navarro,
Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
[46] Cf., entre outros, Abers, Rebecca. "Do clientelismo à cooperação: governos
locais, políticas participativas e organização da sociedade civil em Porto
Alegre". Cadernos da Cidade, vol. 5, no 7, 2000; Avritzer,
Leonardo. "O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo
Horizonte". In: Dagnino (org.), op. cit.; Sánchez, Félix. Orçamento
participativo: teoria e prática. São Paulo: Cortez, 2002; Santos, Boaventura de S. "Orçamento participativo em Porto Alegre:
para uma democracia redistributiva". In: idem (org.). Democratizar a
democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002; Baiocchi, Gianpaolo. "Emergent
public spheres: talking politics in participatory governance". American
Sociological Review, vol. 68, no 1, 2003; Goldfrank, Benjamin.
"Making participation work in Porto Alegre". In: Baiocchi, Gianpaolo (org.).
Radicals in power, op. cit.
[47] Ainda que o OP tenha de fato atraído a participação de comunidades ligadas
à oposição, seus representantes tinham dificuldade de influenciar a agenda
política, na medida em que eram minoria no conselho do OP.
[48] Habermas, Jürgen. "Further reflections on the public sphere". In: Calhoun,
Craig (org.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.
[49] Cf. Santos, op. cit.
[50] Cf., por exemplo, ibidem. Ironicamente, foi esse aspecto que indispôs
muitos dos participantes do OP que entrevistei em São Paulo.