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BrBRHUHu0101-33002006000100010

BrBRHUHu0101-33002006000100010

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-3300
Year2006
Issue0001
Article number00010

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Cidadania mediada: processos de democratização da política municipal no Brasil

Ao enfocar o processo de redemocratização no Brasil, diversos autores têm enfatizado que práticas como o populismo, o personalismo, a patronagem e o clientelismo ainda são vigentes na vida política2, até mesmo no âmbito das experiências de democracia participativa3. Muitos desses autores argumentam que essa persistência de elementos políticos "tradicionais" inibe o surgimento de instituições democráticas mais sólidas e de uma cultura política mais democrática. Embora essa interpretação pessimista tenha muito a dizer sobre as deficiências da democracia brasileira recente, deixa de examinar o espaço que se abre entre os pontos de referência do "tradicional" e do "democrático". Mais importante, deixa de observar o quanto essas práticas políticas tradicionais estão se transformando nos contextos de democracia participativa, no qual de fato figuram, para melhor ou para pior.

O debate sobre os elementos "tradicionais" da política brasileira descreve uma trajetória teórica que remonta ao menos aos escritos de Oliveira Viana sobre o coronelismo no Brasil rural dos anos 1920 e 30. Nas análises mais contemporâneas, "tradicional" geralmente se refere à ausência de instituições modernas que regulem o poder dos políticos e dos funcionários públicos, ao passo que "moderno" significa predominância de procedimentos legal-racionais na administração pública, um autêntico espírito representativo nas instituições políticas e uma efetiva preocupação com o universalismo e o "bem comum" na cultura política. A persistência dos elementos tradicionais, argumenta-se, reforça o viés elitista da democracia brasileira, enfraquece a estabilidade do sistema democrático, fere princípios liberais fundamentais, como universalismo e devido processo legal (due process), e sedimenta estruturas patrimonialistas4.

Este artigo examina alguns dos processos e procedimentos políticos que escapam a uma interpretação da política brasileira em termos de "moderno" e "tradicional"5, sob a hipótese de que ao suspendermos essa interpretação bipolar podemos discernir uma conexão mais próxima entre esses dois pólos analíticos. O argumento central é o de que os avanços democráticos se constroem a partir das práticas políticas "tradicionais" e as transformam, em vez de erradicá-las totalmente. Nesse sentido, os três estudos de caso nos quais se baseia o artigo sugerem que no plano real da vida política municipal as transições democráticas dizem respeito a transformações tanto culturais quanto materiais.

No âmbito cultural, esse processo de transição é suscitado um tanto paradoxalmente por demandas normativas baseadas numa visão bipolar do "tradicional" e do "democrático" que emergem na esfera da sociedade civil. A fim de fundamentar teoricamente essa tensão esquemática entre o "normativo" (ou democrático) e o "real" (ou tradicional), apóio-me na distinção conceitual de Jeffrey Alexander entre "a 'sociedade civil real', na qual o universalismo é comprometido pela estratificação e pela diferenciação funcional, e a 'sociedade civil normativa', que mantém as formas utópicas idealizadas". Para o autor, quanto maior o contraste entre essas duas representações, maior o raio de ação requerido para que os atores da sociedade civil produzam mudanças sociais, de modo que cabe "enfatizar não apenas a trágica distância entre o que é e o que deve ser, mas também a possibilidade de superá-la heroicamente"6.

No entanto, as transições democráticas em meio às quais esses ideais democráticos se traduzem em realidade política não ocorrem num vácuo material, mas são moldadas pelas condições socioeconômicas. Assim, o fato de que muitas pessoas pobres buscam obter alguma forma de patronagem política tem menos a ver com um "familismo amoral" banfieldiano7 ou com alguma incapacidade de raciocínio dos pobres (como suporiam muitos autores inspirados no liberalismo do século XIX) do que com a própria pobreza em que vivem. Noutras palavras, em países como o Brasil a democratização das práticas políticas "tradicionais" está inextricavelmente vinculada à eliminação da pobreza em massa e da desigualdade crônica8, ainda que pobreza e desigualdade permaneçam como elementos da realidade em qualquer futuro que se divise. Dessa forma, não é de surpreender que os estudos de caso aqui apresentados indiquem que a democratização das políticas municipais que envolvem a redução da pobreza e das relações de dependência tende a requerer uma rede de assistência social organizada pelo Estado.

Em suma, o artigo enfoca iniciativas de democratização da vida política municipal implementadas por administrações do PT nas cidades de São Paulo, Porto Alegre e Itabuna (BA) no período 2001-04, buscando mostrar como os diversos atores envolvidos nesse processo percebem a política local e negociam demandas de cidadania. Na verdade, a mediação da cidadania conformou a base comparativa para os estudos de caso desses três municípios bastante diversos entre si. Ademais, a seleção desses municípios considerou o fato de que correspondiam a diferentes estágios do processo de democratização promovido pelo PT. O trabalho de campo foi conduzido entre outubro de 2003 e fevereiro de 2004. Ao longo desse período, permaneci o mesmo intervalo de tempo em cada cidade, onde travei contato com indivíduos e organizações que cumpriam papel- chave nas sociedades civis locais e segui suas redes de atuação nos bairros pobres. Em cada município conduzi mais de trinta entrevistas e presenciei inúmeros encontros e eventos. Limitei a abrangência geográfica do trabalho de campo a fim de viabilizá-lo: em Itabuna concentrei-me em subúrbios das porções sul e oeste da cidade; em São Paulo visitei localidades compreendidas pelas subprefeituras de Freguesia do Ó/Brasilândia e Pirituba/Jaraguá; e em Porto Alegre freqüentei bairros localizados ao sul e extremo-sul.

CLIENTELISMO E CIDADANIA MEDIADA Uma grande dificuldade para o avanço de um debate construtivo acerca da presença de elementos políticos "tradicionais" na democracia brasileira reside na ambigüidade conceitual da terminologia empregada. Tal é o caso do uso do termo "clientelismo", que na literatura recente se tornou polivalente para exprimir categorias como "populismo", "patrimonialismo", "personalismo" e "patronagem". A bem da clareza conceitual, cabe oferecer aqui uma breve definição da terminologia empregada.

O termo personalismo diz respeito aos laços pessoais que estruturam relações sociais particularistas de caráter hierárquico9. patrimonialismo, em seu uso corrente, se refere a situações em que os políticos lidam com os recursos públicos como se fossem deles: em vez de distribuí-los de acordo com critérios universalistas e impessoais, privilegiam familiares, amigos e sua clientela política10. Em outras palavras, empreendem uma forma privada de patronagem política. Por fim, clientelismo se refere a uma relação de troca de favores em que os indivíduos envolvidos se beneficiam mutuamente mas de modo desigual11.

Assim, enquanto "patrimonialismo" diz respeito à apropriação privada de recursos públicos, "clientelismo" denota uma relação de dependência entre patronos e seus clientes12, a qual geralmente envolve uma série de mediadores ou agentes.

Geert Banck afirma que esses conceitos não são nem tradicionalmente intrínsecos nem inerentes aos países em desenvolvimento13. Segundo ele, o termo "clientelismo", por exemplo, não deve ser tomado como elemento de uma tradição brasileira acadêmica ou mesmo coloquial, uma vez que foi difundido no país por acadêmicos estrangeiros (norte-americanos), e numa época tão tardia quanto os anos 1960 e 70. Além disso, Banck refuta a transposição de termos usados no passado para descrever o passado com a finalidade de refletir sobre o presente.

De fato, a questão do autor procede. Termos como "clientelismo" e "patronagem" expressam um senso de fatalismo das relações de dependência que é freqüentemente encontrado nas manifestações da cultura popular brasileira14.

Ainda que esses termos sejam usados para pensar o pensado, não descrevem adequadamente circunstâncias históricas nem constituem um "autêntico" vocabulário cultural. Eles remetem a uma tradição imaginária e descrevem uma realidade evocada não apenas por intelectuais, mas também por músicos populares e outros artistas que não raro misturam fatos históricos com enredos ficcionais e acrescentam consideráveis doses de sensibilidades modernas.

Ocorre que os fenômenos empíricos são muito mais complexos do que faz supor o conteúdo normativo da terminologia usada para descrevê-los. O termo "clientelista", por exemplo, é empregado pelas elites para expressar sua indignação moral com o eleitor popular, considerado "mal-informado", "retrógrado" e por conseguinte incapaz de fazer as escolhas "certas" (aparentemente racionais). Ademais, é usado por políticos para manifestar sua frustração com eleitores indiferentes a ideais democráticos, plataformas partidárias e conteúdos políticos, que votam conforme preocupações mais imediatas15.

Neste artigo, situo a noção de clientelismo num contexto político de cidadania mediada. Com isso quero dizer que num contexto político que não se pauta por regras efetivamente universalistas o acesso à cidadania é constantemente negociado. De fato, na maior parte da América Latina os direitos de cidadania não estão disponíveis para a população pobre, e têm de ser resgatados mediante ação coletiva. Os processos que fazem a mediação entre as afirmações e as contra-afirmações da cidadania são essenciais nos três municípios aqui estudados, na medida em que provêem o elo da população pobre com as redes de assistência social pública e privada (patronagem privada). Como veremos nos estudos de caso, esses processos de mediação efetivamente expressam um compromisso negociado no conflito entre democracia civil participativa e democracia representativa formal. Em Itabuna, por exemplo, processos que envolvem mediadores como "supervisores de bairro" e dirigentes de associações de bairro estão mais relacionados à democracia representativa, enquanto aqueles que envolvem líderes comunitários tendem a ser mais relacionados com a democracia civil. Os vários conselhos populares e o mecanismo do orçamento participativo potencialmente ocupam o meio-campo entre os dois pólos. No entanto, ficará evidente nos estudos de caso que essas ligações são muito mais complexas e fluidas.

A patronagem política (uso de verbas pelos políticos para concessão de benefícios às suas bases eleitorais) certamente constitui um aspecto central da maioria dos sistemas políticos modernos16, mas em lugares onde os direitos de cidadania não são universais essa prática se revela ainda mais essencial, na medida em que conforma uma importante rede de assistência social. Assim é que não faz muito sentido conceber o clientelismo latino-americano em termos de um "familismo amoral" banfieldiano: num contexto de pobreza em massa e de direitos de cidadania negociados, a mobilização e a inclusão sociopolíticas dos pobres tende a envolver alguma forma de política de bem-estar. Dessa forma, uma questão crucial que se coloca aos programas de reformas sociais das administrações democráticas é a mediação dos conflitos entre as demandas populares por participação civil e direitos de cidadania e por patronagem política. De fato, esse foi o principal ponto de conflito defrontado pelas administrações do PT nos três municípios estudados, até mesmo no âmbito do orçamento participativo de Porto Alegre, celebrado precisamente por sistematizar e tornar mais transparente esse processo de mediação17.

É importante ter em mente que a mediação política é uma atividade competitiva, que os eleitores são muito exigentes e perspicazes ao fazer suas escolhas entre mediadores ou representantes que prometem os melhores retornos possíveis.

E não é de surpreender que aqueles em situação de extrema carência de serviços públicos freqüentemente votem em políticos que cooptam as comunidades pobres para suas redes de patronagem mediante doação de creches ou subsídio privado de equipamentos médicos, educacionais, culturais etc.

No Brasil, a patronagem constitui a base de sustentação de muitas carreiras políticas. Os legislativos municipais normalmente aprovam dotações orçamentárias que subsidiam as atividades assistenciais privadas de seus membros, consolidando assim suas bases de apoio eleitoral. Os políticos eleitos para os executivos municipais, por sua vez, tendem a visar estrategicamente o "alvo" da implantação dos serviços públicos e a convertê-los em "favores pessoais", buscando ampliar seu eleitorado. Uma vez que dependem do Poder Legislativo para viabilizar essa estratégia, procuram firmar alianças com os políticos dos legislativos municipal, estadual e federal a fim de assegurar a transferência de recursos às suas municipalidades e maximizar sua "governabilidade". Os inúmeros postos públicos preenchidos por nomeação os chamados "cargos de confiança" são moeda corrente nesse processo de barganha política por meio do qual as alianças são forjadas (freqüentemente envolvendo trocas de partido)18.

Transformar esse modelo político particularista num sistema mais universalista evidentemente não é tarefa fácil, e cada uma das administrações em foco nos estudos de caso encarou esse desafio mediante uma abordagem diferente. A prefeitura petista de Itabuna buscou implementar políticas sociais eficazes, mas também fortaleceu as redes de patronagem privada. A gestão do PT em São Paulo adotou uma estratégia ainda mais contraditória: implementou uma versão do orçamento participativo de Porto Alegre e também cultivou amplas redes de patronagem privada, a fim de obter suporte legislativo para seus projetos de reforma. Em Porto Alegre a administração petista deu continuidade às suas políticas sociais participativas, mas também se comprometeu em alguma medida com as políticas do espetáculo normalmente associadas ao clientelismo populista (a construção de um sambódromo na cidade provavelmente entra nessa categoria).

O fato de que nos três municípios o PT perdeu suas apostas na reeleição em 2004 ressalta a magnitude do desafio encarado pelas administrações democráticas ao tentar responder às diversas demandas políticas que circulam na sociedade brasileira.

OS ESTUDOS DE CASO Os três municípios enfocados nos estudos de caso não poderiam ser mais diferentes. De fato, o único aspecto que parecem ter em comum é que entre 2001 e 2004 foram administrados pelo PT um partido internacionalmente reconhecido por suas tentativas de democratização da política municipal , mas os estudos de caso evidenciarão um outro elemento comum a todos eles: um setor da sociedade civil extremamente ativo. Porto Alegre, a maior metrópole da região Sul, tem uma população mais homogênea, composta majoritariamente por brancos com nítida linhagem européia. A cidade de São Paulo, que detém o maior complexo industrial do Sudeste e do país, reflete a mistura de todo o caldo cultural do Brasil. E Itabuna, município nordestino do estado da Bahia que até os anos 1980 viveu basicamente da exportação de cacau e borracha, tem forte presença de população negra. No período em foco, Porto Alegre se notabilizara por sua experiência de orçamento participativo desde gestões petistas anteriores, ao passo que em São Paulo a administração enfrentou grandes dificuldades para implementar esse mecanismo19 e em Itabuna havia relativamente muito poucos processos participativos em curso.

Essa distribuição geopolítica em que o grau de democracia participativa diminui no sentido Sul-Nordeste poderia ser interpretada como um recorte que reforça preconceitos culturais comuns no Brasil acerca de um Sul-Sudeste dinâmico e progressista e um Norte-Nordeste estagnado e tradicional. Mas os estudos de caso não devem ser de modo algum considerados dessa forma: eu poderia ter selecionado municípios com características políticas análogas sem deixar o Sul, assim como poderia ter enfocado municípios com avançadas experiências democratizantes concentrando-me exclusivamente na Bahia20. Na verdade, as diferenças que vêm à tona nos estudos de caso resultam antes de fatores socioeconômicos e do grau de organização da sociedade civil em cada município, bem como de diferenças político-ideológicas no interior do próprio PT.

O PT NA ENCRUZILHADA Ao longo da década de 1990 o Partido dos Trabalhadores cursou uma trajetória ideológica em direção ao centro do espectro político. Isso levou a uma crescente divisão interna entre os grupos de esquerda identificados com os movimentos sociais e as facções mais pragmáticas, a qual afetou o núcleo do projeto político do partido e repercutiu no âmbito municipal21. Ademais, a composição ideológica do PT se transformou drasticamente em razão da expansão de sua base eleitoral e da sua exposição ao "imperativo" da ortodoxia no contexto das finanças domésticas e internacionais22.

Com isso, e com a burocratização do aparato partidário e a profissionalização de seus quadros, os petistas historicamente comprometidos com a mudança social radical se tornaram uma minoria com pouco poder de expressão no interior do partido23. Hoje em dia, o programa político dessa minoria em geral identificado como "o jeito petista de governar" freqüentemente é visto como elemento de um PT obsoleto24. Não obstante, muitos desses petistas permaneceram comprometidos com os propósitos e formatos dos elogiados programas de governo do PT em Porto Alegre, cujo caráter democrático se consubstanciou em reformas das políticas educacionais e sociais, numa base de impostos mais progressista e sobretudo no mecanismo do orçamento participativo.

Entretanto, a viabilidade política do "jeito petista de governar" se viu cada vez mais limitada entre outros fatores, pelo declínio dos movimentos sociais nas principais áreas urbanas do país , de modo que o PT foi obrigado a reinventar-se. Essa tarefa foi levada a cabo pela ala majoritária do partido, a Articulação, que conta com o apoio do presidente Lula. Hoje o partido apresenta uma imagem que transpira confiança e amadurecimento, bem como capacidade de vencer eleições e governar. O desafio encarado por esse PT reinventado é triplo: convencer os setores de esquerda de que ainda é um partido que busca promover mudanças sociais; demonstrar aos movimentos sociais e à sociedade civil que não abandonou seu comprometimento com as demandas dos setores organizados da sociedade; e mostrar aos eleitores que é capaz de conciliar sua imagem "limpa" e transparente com os compromissos implicados por suas inúmeras alianças político-partidárias.

ITABUNA O município de Itabuna vem sofrendo uma depressão econômica que perdura por duas décadas. A queda da produção e dos preços dos principais itens de exportação da região, cacau e borracha, resultou em subemprego e pobreza em larga escala. Na medida em que muitos eleitores pobres tendem a se envolver com alguma forma de patronagem política para enfrentar tais circunstâncias, a perspectiva pragmática implicada nesse envolvimento conflita com um imaginário social eminentemente democrático. De todo modo, a importância da patronagem política é imediatamente visível em Itabuna, sobretudo nos bairros pobres, onde vários centros assistenciais, creches e escolas que levam nomes das famílias da elite política local.

Esse tipo de patronagem é particularmente exercido pelo grupo associado à política patrimonialista de Antônio Carlos Magalhães, que várias décadas vem dominando o cenário político da Bahia. No entanto, o personalismo também foi um elemento presente na aliança de centro-esquerda encabeçada pelo PT que venceu as eleições municipais de 2000. Essa aliança, composta por onze partidos25 e tendo em seu núcleo um grupo de funcionários públicos com formação universitária e independência financeira, reuniu condições para desafiar o poder hegemônico das elites locais, ainda que tenha vencido as eleições por uma diminuta margem de votos.

A despeito do êxito político desse grupo, persistiu em Itabuna uma política de patronagem de caráter privado. Isso se deveu em parte à generalizada situação de pobreza e desemprego, mas também ao fato de que os movimentos sociais e as associações civis e com eles as demandas por direitos de cidadania permaneceram incipientes e fracos. Em Itabuna o setor organizado da sociedade se resume à presença de algumas ONGs e movimentos sociais de âmbito nacional, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) esses três últimos, ademais, com pouca capacidade financeira. Nesse contexto, o PT local adotou uma estratégia de amplas alianças e de mobilização do eleitorado "de cima para baixo", em vez de mobilizar os moradores dos bairros pobres mediante um "trabalho de base".

O fato é que a gestão do PT em Itabuna não se pautou pelo "jeito petista de governar" tal como consagrado em Porto Alegre: embora tenha implementado uma série de políticas sociais notoriamente baseadas nas experiências do PT em outros municípios, não adotou os mecanismos participativos propagados pelo modelo porto-alegrense. Na verdade, o PT de Itabuna fizera uma tentativa de implantar processos participativos num mandato anterior (1993-96), a qual foi abandonada logo no primeiro ano da gestão. Perguntado a respeito, um servidor público de carreira filiado ao PSDB afirmou que a experiência gerara demandas politicamente inviáveis e que um mecanismo como o orçamento participativo não poderia mesmo funcionar no Nordeste26.

Na gestão 2001-04 o PT seguiu uma estratégia diferente, criando o posto de "supervisor de bairro". Oficialmente, 35 supervisores deveriam intermediar as relações entre a administração municipal e as comunidades em 95 bairros. Extra- oficialmente, de acordo com alguns moradores, mais de trezentos "supervisores" estariam atuando na verdade como cabos eleitorais para diversos políticos. Os moradores se queixavam de que os supervisores eram nomeados pelo prefeito sob indicação desses políticos, que com isso buscavam "pôr um " no eleitorado da comunidade.

De fato, os supervisores eram vistos com algum grau de desconfiança na maioria dos bairros que visitei, principalmente naqueles que mantinham fortes ligações com a oposição, onde os moradores afirmavam que o presidente eleito da associação de bairro fazia a maior parte do trabalho em prol da comunidade, enquanto o supervisor, politicamente nomeado e ademais remunerado, era muitos vezes "invisível". Carlos Ferreira27, presidente de uma associação de bairro, chegou a aplicar um questionário por conta própria para demonstrar que a figura do supervisor do bairro era ineficaz28. Ainda que na visão da prefeitura os supervisores de bairro fizessem parte de sua estratégia de descentralização administrativa, todos os nossos entrevistados, à exceção dos próprios supervisores, viam o seu papel sobretudo como eleitoral.

Na minha visão, é como se a criação do posto de supervisor de bairro fosse uma tentativa do PT e dos partidos aliados de remoldar as redes de patronagem da oposição e conectar os bairros mais pobres aos seus próprios mediadores políticos29. Ocorre que a maioria dos moradores estava perfeitamente consciente disso, e muitos deles ficaram desapontados com o fato de que o PT estivesse lançando mão de métodos "tradicionais" e não-democráticos ao isolar os dirigentes das associações de bairro. Dessa forma, ainda que os moradores pobres mantivessem fortes laços com os políticos patrimonialistas, esboçavam um imaginário social democrático ao criticar as tentativas de "descentralização" do PT.

Na vida cotidiana, porém, a maioria dos moradores tinha de contar com a rede de patronagem que abrangia a cidade, e as estratégias para ter acesso a essa rede eram extremamente variadas. Membros de uma mesma família freqüentemente diversificavam suas afinidades políticas e apoiavam partidos diferentes, o que lhes permitia manter seus laços com a prefeitura quando a administração mudasse de mãos. Da mesma forma, certos líderes comunitários percebiam as vantagens da neutralidade partidária: menos clientelistas, politicamente mais sofisticados e financeiramente mais estáveis que os dirigentes de associações e os supervisores de bairro, tendiam a apoiar tanto conservadores quanto progressistas30. Esse era o caso do presidente de associação de bairro Rodrigo Leite, que tinha absoluta convicção da importância de não tomar partido de nenhum dos lados. Caso solicitado a dar apoio, ele o daria a ambos os lados a fim de não ser associado a nenhum dos dois: "Não se deve apoiar um candidato, porque se ele não for eleito o bairro vai acabar sem benefícios. É preciso deixar que os moradores façam suas próprias cabeças". Dessa maneira, Rodrigo buscava negociar o melhor acordo possível para a sua comunidade.

Alguns líderes comunitários evangélicos, como Rodrigo, usavam sua filiação religiosa para demonstrar comprometimento com suas comunidades e descaso pelos laços clientelistas. Ainda que idealistas e muito dedicados às suas comunidades, tendiam a ter pouco interesse em estruturas de democracia participativa. Rodrigo, por exemplo, participou do conselho de saúde local por um tempo e o abandonou porque, segundo ele, as intermináveis discussões ali travadas geravam poucos resultados concretos. É certo que líderes comunitários desse tipo também buscam patronagem política, mas o fazem de forma mais discreta. Para João Batista, líder de uma grande congregação batista, a patronagem era o único meio de financiar os empreendimentos filantrópicos de sua igreja.

A política desses líderes comunitários de fato não se encaixa facilmente nos moldes democráticos modernos. Em contraste com os presidentes de associações de bairro, eles não são democraticamente eleitos, e sua liderança é estritamente vinculada ao papel proeminente que desempenham em suas congregações. Além disso, suas alianças políticas freqüentemente são formadas mediante obrigações recíprocas assumidas ao longo de suas vidas. Não obstante, alguns desses agentes se viram na contingência de reavaliar esses laços tradicionais em face do impacto social positivo dos programas implementados pela administração do PT31.

Os movimentos de bairro predominantemente vinculados a setores progressistas da Igreja Católica32 encararam o problema de como lidar com redes de patronagem política sem perder sua autonomia. Embora contassem com algum financiamento de instituições religiosas e fundos de apoio para seus projetos, as lideranças desses movimentos dependiam da renda de escassos empregos locais em meio a um contexto de altas taxas de desemprego na cidade. Assim, muitos líderes capacitados partiram para os centros urbanos do Sudeste em busca de oportunidades de trabalho, o que enfraqueceu a política comunitária de base.

Essa vulnerabilidade ficou evidenciada em vários projetos que foram iniciados pelos movimentos de base, com auxílio da prefeitura e de outras instituições, e acabaram sendo apresentados como programas capitaneados por secretarias municipais e políticos a elas associados. Tal foi o caso do Programa Pré- Universitário para Negros e Excluídos (Prune), uma iniciativa de diversos líderes comunitários que de início não contou com nenhum apoio da prefeitura e depois foi apropriada por uma administração ávida de publicidade, que a propagandeou como uma bem-sucedida realização governamental. Esse tipo de apropriação foi motivo de grande ressentimento para muitos ativistas comunitários, que afinal criaram tais projetos e os viabilizaram dedicando-lhes um considerável tempo de suas vidas sem receber qualquer remuneração. De fato, eles se lamentavam de que a falta de recursos os tivesse obrigado a renunciar à direção de seus projetos e entregá-la à prefeitura.

Os movimentos comunitários e sociais de Itabuna lograram amplificar sua voz política ao se organizar em torno do Fórum de Luta por Terra, Trabalho e Cidadania, em cooperação com entidades civis de âmbito nacional. Essa coalizão local acabou por se tornar um dos segmentos sociais mais veementemente críticos da gestão petista, ao percebê-la como a continuidade de um estilo de governo prepotente, patrimonialista e nepotista. Segundo um representante do MST local, a coalizão exercia uma significativa influência no município e era capaz de mobilizar entre 15% e 20% da população. No entanto, o movimento civil de Itabuna está longe de ser politicamente unido. Interesses políticos particulares, traços personalistas incompatíveis e diretrizes estratégicas diversas têm minado sua capacidade de desempenhar um papel mais central na política local. Isso talvez tenha a ver com o fato de que a prefeitura conseguiu minimizar a influência dos movimentos nos processos deliberativos dos quais participaram (embora o PT houvesse feito alianças eleitorais estratégicas com o setor). De todo modo, por seu compromisso com os direitos de cidadania, a justiça social e a democracia participativa, o movimento civil é a força democrática mais importante em Itabuna. Ironicamente, porém, sua crítica moral serviu aos propósitos da oposição conservadora.

A administração petista reativou dois conselhos gestores locais que haviam sido marginalizados pelas gestões conservadoras anteriores: o Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente e o Conselho de Saúde. No entanto, esses organismos tendiam a se vincular demasiadamente a determinadas secretarias municipais ou fundações e aos políticos que as dirigiam, e nem sempre funcionavam independentemente de partidos e de patronagem limitações similares às apresentadas pelos conselhos gestores de outras localidades do país33. De fato, os conselheiros em geral pareciam muito dispostos a abrir mão de sua autonomia ante a ingerência de políticos locais. Por exemplo, educadores reclamavam que membros do Conselho Tutelar eram freqüentemente acompanhados e assistidos em suas missões por uma candidata do PSDB a deputada estadual que era presidente de uma organização assistencial estreitamente associada à prefeitura (Fundação Marimbeta) e esposa do secretário de Governo.

Assim, as atividades dos conselhos gestores, intimamente entremeadas com os interesses de políticos locais e insuficientemente ancoradas na sociedade civil, acabavam por assumir a marca da política de patronagem personalista praticada em Itabuna. Apenas os conselhos que contavam com apoio do movimento civil tais como o Conselho de Segurança Alimentar tinham algum grau de autonomia e participavam dos processos de elaboração de políticas públicas, de modo que a maioria deles, especialmente aqueles associados à oposição conservadora, esteve afastada desses processos a exemplo do Conselho da Terceira Idade, o qual, conforme o seu coordenador, se recusava a servir como instrumento de relações públicas do PT.

Pode-se concluir que a patronagem política cumpre um papel central em Itabuna.

Com efeito, sem alguma forma de patronagem muitos dos moradores pobres teriam dificuldades de subsistência34. Não é de surpreender que a "lisura" na distribuição dos recursos públicos seja objeto de intensas discussões na cidade35. Esse debate parece ter constituído a fundação do imaginário social democrático na cidade. De fato, como pudemos constatar em nossas entrevistas, os movimentos sociais e associações civis repudiam as práticas clientelistas e defendem uma forma de democracia mais participativa, enquanto os líderes comunitários tendem a rejeitar moralmente as noções de clientelismo e patronagem. No entanto, tanto uns como os outros dependem de redes de patronagem privadas: ao passo que os primeiros recorrem a redes de patronagem semiprivadas mantidas por igrejas e ONGs, os últimos se valem de redes de patronagem privadas vinculadas ao sistema político formal.

O PT de Itabuna tentou responder às expectativas clientelistas de ambos os grupos de atores, buscando assim expandir seu eleitorado. Mas sobretudo procurou construir uma maioria política mediante uma ampla gama de alianças, e deixou a tarefa da construção de uma democracia civil a cargo de movimentos sociais com escassos recursos financeiros, os quais, justamente em razão de pressões conservadoras exercidas por seus aliados políticos, acabou por excluir do processo de tomada de decisões mais amplo. Em resposta, o movimento civil pressionou a administração petista pela adoção de políticas democráticas mais radicais, incluindo o direito a participar das deliberações sobre as políticas públicas. Em Itabuna, porém, o movimento civil é pequeno e dividido e vem encontrando crescentes dificuldades para mobilizar a população pobre. Em conseqüência, essa população vem se constituindo cada vez mais num segmento eleitoral em busca de patronagem por meio dos canais representativos formais.

A administração petista buscou responder a essas crescentes demandas clientelistas mediante iniciativas como a criação da função de supervisor de bairro. Dado porém o contexto de cidadania mediada no município, não é de surpreender que as políticas sociais implementadas pelo PT, ainda que competentes e reconhecidas positivamente por boa parte do eleitorado, não tenham sido capazes de reduzir a importância das redes de patronagem estabelecidas. De fato, o alto grau de desigualdade social e a debilidade do movimento civil constituíram um contexto político relativamente resistente à mudança.

Isso posto, deve-se ponderar que entre os moradores pobres de Itabuna um forte esteio para o estabelecimento de políticas democráticas mais genuínas.

Somando-se a isso a generalizada rejeição à política de reformas convencionais adotada pela gestão do PT, tudo indica que futuras administrações reformistas estarão sob considerável pressão para desenvolver políticas públicas não apenas mais participativas e democráticas, mas que gerem uma rede de assistência social alternativa, estimulando assim a população pobre a deixar para trás as redes de patronagem locais.

Nesse ponto, cabe ressaltar que em São Paulo e em Porto Alegre persistem relações de patronagem muito similares às observadas em Itabuna. Assim, nas duas seções seguintes não enfatizarei esse aspecto. Nossa principal preocupação será examinar como os mecanismos participativos se constroem a partir da cultura política "tradicional" e a transformam, gerando formas políticas que incorporam simultaneamente o "tradicional" e o "moderno".

SÃO PAULO Após oito anos de administrações de direita marcadas por acusações de corrupção as gestões Maluf e Pitta , a volta do PT à prefeitura paulistana com as eleições de 2000 despertou esperanças e expectativas em muitos eleitores. No entanto, a administração Marta Suplicy representou praticamente uma antítese da gestão petista de Luiza Erundina (1989-92)36. Estreitamente ligada aos movimentos sociais, Erundina implementou um processo de consulta popular (tanto meticuloso quanto ineficiente) e introduziu uma forma precoce de orçamento participativo; por outro lado, recusou-se a negociar cargos administrativos com outras forças políticas, de modo que seu governo careceu de apoio legislativo e enfrentou uma séria crise de governabilidade. Marta Suplicy, ao contrário, imediatamente entabulou acordos com diversos vereadores sem excluir aqueles associados a políticos "tradicionais" a fim de estabelecer uma maioria na Câmara, com o que seu mandato transcorreu exemplarmente em termos de governabilidade.

Em particular, os membros dos numerosos movimentos sociais de São Paulo esperavam que a eleição de Marta representasse uma mudança em direção a um processo de tomada de decisões mais democrático e participativo. Em resposta, a prefeita descentralizou a administração mediante a criação de 31 subprefeituras (cujos titulares foram apontados por membros da aliança de governo) e implementou uma versão simplificada do orçamento participativo. no segundo ano de mandato, porém, os líderes do movimento civil começaram a protestar que a administração não estava suficientemente comprometida com os processos participativos. De fato, veio a generalizar-se nos círculos do movimento civil a percepção de que a gestão de Marta era politicamente ambivalente ao combinar uma forma de governo "de cima para baixo", personalista, autocrática e intransigente com mecanismos participativos de base. Dessa forma, os membros dos vários setores do movimento civil, em sua grande maioria ligados ao próprio PT, tornaram-se os mais ferrenhos oponentes políticos da prefeita.

O modelo de governança adotado por Marta certamente pagou um alto preço. Sua base aliada foi construída mediante barganhas com políticos conservadores e fisiológicos, que em troca de apoio político podiam designar nomes para cargos públicos. Aos olhos de muitos petistas tradicionais, o governo Marta cultivou as típicas políticas de patronagem às quais o PT deveria por princípio se opor em termos ideológicos e éticos. Pior que isso, indispôs-se contra líderes do movimento civil que por décadas haviam combatido os mesmos políticos de direita que compuseram as alianças do PT. Entre setores do movimento civil circulava o comentário irônico de que vereadores ultraconservadores como Viviane Ferraz, filiada ao Partido Liberal e tradicionalmente associada a Paulo Maluf, eram os "petistas" mais fiéis ao governo porque sempre votavam a seu favor, em contraste com membros esquerdistas da bancada do próprio PT, que chegavam a votar contra o governo.

Para muitos líderes do movimento civil, o pragmatismo da administração Marta era incompatível com os seus sonhos de uma democracia radical, em que o governo, segundo o petista Tarso Genro, "se transforma numa espécie de grande comunidade solidária engajada numa política que protege os setores excluídos da população"37. Na visão da ala esquerdista do PT, esse pragmatismo continha muitos elementos políticos "tradicionais", o que desfigurava a marca que diferenciava o PT dos seus adversários. O chefe de gabinete do vereador petista Carlos Neder resumiu o desapontamento da esquerda do partido ao afirmar que o PT se tornara "um partido personalista com um discurso de esquerda"38.

No entanto, essa perspectiva negligencia o fato de que a "comunidade solidária" postulada por Genro tem de ser construída num contexto de democracia formal.

Ademais, ignora que num contexto de cidadania mediada tal comunidade contém elementos clientelistas, bem como estruturas de patronagem democratizadas39.

Por exemplo, muitos líderes de movimentos de bairro reagiram de forma bastante positiva às políticas de bem-estar da administração Marta por lhes possibilitarem renovar os acordos de patronagem que financiavam, em parte, os serviços sociais existentes em suas comunidades, tais como creches e centros de treinamento profissional. Outros se valiam ainda de redes de patronagem ligadas ao governo estadual do PSDB, que propiciavam subsídios adicionais aos serviços sociais mantidos em seus bairros. Essas lideranças locais também viam com bons olhos os Centros Educacionais Unificados (CEUs), gigantescos complexos com serviços educativos, culturais, de recreação e esporte que a prefeitura estava construindo nos bairros periféricos muito criticados pelos líderes do movimento civil, que os viam como um projeto "faraônico" e eleitoreiro, voltado a contemplar expectativas de diversas clientelas políticas (populares, mas também da elite), à maneira das estratégias de governo "tradicionais" empregadas por políticos conservadores como Paulo Maluf40.

Para a maioria dos líderes comunitários, a democracia tem tanto a ver com a possibilidade de forjar as conexões políticas necessárias para manter ou expandir os serviços sociais existentes em suas comunidades quanto com a liberdade de expressão. Essa perspectiva pragmática, associada a uma habitual volubilidade política, caracterizava os representantes comunitários com quem travei contato no bairro da Brasilândia. No entanto, tal perspectiva assumia um aspecto interessante: ainda que muitos deles cultivassem estreitas relações clientelistas com funcionários do governo municipal, manifestavam as demandas comunitárias em termos de direitos de cidadania. Assim, se contavam com os benefícios a serem proporcionados por meio dos acordos clientelísticos, argumentavam que isso era um direito da comunidade. Nesse sentido, os laços clientelistas constituíam um meio de estabelecer elos de comunicação com o poder público a fim de que as demandas de cidadania fossem expressas de modo mais efetivo. Dessa forma, práticas políticas "tradicionais" e "modernas" se interligavam e geravam um ambiente político ambivalente, em que os representantes comunitários não simplesmente encaminhavam expectativas clientelistas, mas as legitimavam como demandas por direitos de cidadania.

Essa combinação ambivalente de elementos "tradicionais" e "modernos" também era visível no orçamento participativo (OP) em curso na cidade. Recém-implementado, o OP paulistano estava longe de ser um processo refinado e politicamente consolidado como o de Porto Alegre, onde fazia parte do dia-a-dia da vida política. Paradoxalmente, foi ao mesmo tempo possibilitado e obstruído pelos esquemas "tradicionais" de partilha do poder negociados pela administração petista. Os efeitos ambivalentes da combinação "moderno/tradicional" se deram na forma de uma tensão mal-resolvida entre estruturas de democracia participativa e de democracia representativa, como pudemos verificar na região da subprefeitura Freguesia do Ó/Brasilândia.

Nessa região o OP era conduzido por funcionários públicos ligados a uma figura política "tradicional", a citada Viviane Ferraz, que extra-oficialmente "comandava" aquela subprefeitura. Muitos dos líderes do movimento civil de Brasilândia rejeitavam esse esquema de partilha de poder, que tendia a direcionar o fluxo de informações acerca dos processos do OP regional para o segmento de classe média-baixa da Freguesia do Ó. De fato, os cidadãos interessados em participar do OP regional tinham de lidar com uma agenda de reuniões errática41, bem como com um coordenador (ligado ao PSDB) que ostentava uma conduta elitista e buscava impor seu poder administrativo42. Assim, não é de surpreender que ao fim do ciclo de atividades de 2003 diversos delegados do OP regional ainda pensassem que a autoridade das tomadas de decisão estava nas mãos dos representantes da administração, e não do fórum do qual estavam participando. Em meio a um generalizado desapontamento quanto aos retornos esperados, essa percepção levou muitos líderes comunitários a se retirar do OP, julgando-o de um modo extremamente cético, senão abertamente hostil43.

No âmbito do OP paulistano, o processo participativo não logrou erradicar o clientelismo. Antes, tendeu a mudar o foco das expectativas clientelísticas, que deixou de recair sobre os agentes das redes de patronagem mantidas pelos vereadores para se direcionar aos delegados e conselheiros do OP. Isso pôde ser verificado no caso da líder comunitária Rosângela Graciani, que por muito tempo havia lutado tenazmente pela instalação de um posto de saúde em seu bairro e viu essa oportunidade materializar-se ao ser eleita delegada do OP regional de Pirituba/Jaraguá. Em vez disso, porém, a região recebeu apenas uma unidade do CEU, com o que ela se sentiu incompetente e desprestigiada aos olhos da sua comunidade, que a elegera a fim de que conquistasse aquele serviço público essencial para o bairro. O fato é que essa demanda da comunidade foi aprovada em várias rodadas de negociação do OP mas depois ignorada pela administração municipal, que em face de inúmeras reivindicações similares decidiu alterar seu programa de saúde pública. Sentindo-se ludibriada, a população local direcionou seu inconformismo para aquela mediadora que conectava a comunidade com o OP.

Evidencia-se assim que o OP contém potencialidade tanto para transformar estruturas políticas "tradicionais" como para desacreditar lideranças locais que levaram décadas para se sedimentar. De fato, vários líderes comunitários e de associações civis que tomaram a defesa do OP acabaram por se enredar num conflito entre instâncias da democracia representativa formal e da democracia civil, perdendo credibilidade entre suas bases. Assim, para muitos desses líderes o OP perdeu seu apelo ao se revelar um processo cujas deliberações não eram implementadas, pois ao fim e ao cabo prevaleciam decisões tomadas "de cima para baixo"44. Técnicos da prefeitura alegavam que os CEUs eram a única maneira efetiva de ir ao encontro das demandas do OP, enquanto para os líderes do movimento civil essa solução fundamentalmente deturpava o processo democrático.

Decepcionados com os resultados do OP, vários representantes comunitários afirmavam que era mais fácil obter serviços públicos por meio de canais mais "tradicionais".

Em suma, a experiência do OP em São Paulo evidencia que a implementação de mecanismos de democracia participativa não erradica estruturas clientelistas.

Antes, combina elementos "modernos" e "tradicionais" e engendra assim uma cultura política híbrida, cuja complexidade ainda está por ser explorada.

Muitas das formas de patronagem contidas nessa cultura híbrida certamente são compatíveis com os processos democráticos. Com efeito, é difícil imaginar como as associações comunitárias que contribuíram com o processo de democratização em São Paulo poderiam subsistir sem alguma forma de patronagem política.

O caso do OP paulistano também explicita uma tensão entre as "lógicas" da democracia participativa e da democracia representativa. De fato, muitos dos participantes do OP viam-no como a promessa de uma democracia civil com direitos de cidadania universais, mas ao fim e ao cabo decepcionaram-se ao constatar que os resultados do processo de negociação de demandas foram determinados por fatores políticos de ordem partidária e eleitoral. No caso dos líderes comunitários que buscaram encaminhar suas demandas por meio do OP, alguns consideravam prudente manter ao mesmo tempo as estratégias mais "tradicionais", que afinal sempre haviam dado certo. Assim, esquemas de patronagem informais continuaram a operar em paralelo ao processo participativo. Em face desse quadro político movediço, evidenciou-se a inabilidade da administração do PT em fundir estruturas das democracias civil e representativa de uma maneira coerente.

Embora a administração Marta tenha procurado implementar uma série de políticas sociais inovadoras, foi logo identificada pelos líderes do movimento civil como um governo politicamente convencional, que não se mostrava efetivamente comprometido com a construção de uma democracia civil participativa. Em conseqüência, os movimentos sociais (sobretudo aqueles ligados a setores progressistas da Igreja Católica) passaram a criticar veementemente a política petista de alianças pragmáticas com setores conservadores. Enfim, a tentativa do PT de responder a uma ampla gama de demandas clientelistas "tradicionais" a fim de ampliar seu eleitorado acabou por prejudicar significativamente as credenciais democráticas de Marta Suplicy, assim como não foi suficiente para lhe garantir a reeleição.

PORTO ALEGRE Nesse município, o debate público em torno de uma distribuição de recursos públicos "equânime" e "funcional" foi amplamente decidido em favor do orçamento participativo. O OP se tornou ali o principal veículo de mediação dos direitos de cidadania, canalizando as demandas clientelistas para o âmbito um processo democrático transparente. Ao longo de seus mais de quinze anos de existência, sob administrações do PT, o OP tendeu a favorecer os bairros periféricos mais pobres, que passaram a contar com muitas das infra-estruturas de que desfrutam as localidades centrais e mais desenvolvidas45.

Evidentemente, essa redistribuição dos recursos não esteve desvinculada dos interesses eleitorais do PT. Na visão de vereadores conservadores de Porto Alegre, por exemplo, o OP constituiu um engenhoso plano elaborado pelo PT para expandir seu eleitorado nos setores populares. Com efeito, por meio do OP o partido logrou dissociar os eleitores das redes clientelistas "tradicionais", controladas por vereadores e políticos conservadores, e conectá-los diretamente ao processo participativo organizado pela prefeitura. Nesse sentido, como apontam diversos autores, o OP promove a formação de alianças livres de lealdades clientelistas a políticos municipais46.

Em várias ocasiões a distinção entre o PT e o OP de Porto Alegre pareceu ofuscar-se, sobretudo quando a prefeitura utilizou a rede do OP como um instrumento alternativo de comunicação e disseminação para mobilizar a população. Dessa forma, os organizadores do OP tiveram de lidar com questões de legitimidade e desfazer o rótulo de que se tratava meramente de "uma coisa do PT", como apregoava a oposição. Essa não era uma tarefa fácil, uma vez que um expressivo número de conselheiros, delegados e participantes do OP, bem como de seus familiares, tinha fortes vínculos com a rede do PT47. Assim, inequívocos elementos de patronagem sustentaram a emergência e o funcionamento do OP. Não obstante, é difícil imaginar como uma política popular poderia ter emergido de outra forma num contexto político e socioeconômico tão altamente polarizado.

Com efeito, Habermas tem razão quando afirma que para estabelecer uma esfera pública autônoma os seus participantes precisam dispor de algum grau de capacitação educacional e de estabilidade financeira48. Não surpreende portanto que houvesse no serviço público de Porto Alegre cerca de 660 "cargos de confiança", muitos dos quais destinados a "meritórios" mas também necessitados membros da base de apoio do PT.

É certo que o OP municipal, em vez de suplantar e erradicar as práticas políticas "tradicionais", acabou por incorporá-las em seus processos. No entanto, na cultura político-administrativa de Porto Alegre o clientelismo e a patronagem não são dominantes como nos casos de São Paulo e Itabuna. Ali o OP foi inteiramente implementado pela administração conforme as diretrizes e decisões de investimento público estabelecidas pelo processo participativo.

Isso fez do OP um efetivo veículo mediador não apenas dos direitos de cidadania, mas também das demandas conflitantes oriundas dos campos da democracia participativa e da democracia representativa.

Ainda que os interesses do PT e os dos ativistas do OP freqüentemente coincidissem no fórum participativo, a relação entre os representantes da prefeitura e os conselheiros do OP por vezes envolveu conflitos49. No entanto, essas disputas tenderam a ser resolvidas em termos burocráticos e legais. De fato, os processos internos do OP seguiram de perto as pautas e as regras previstas, de modo que a eficiência de um conselheiro do OP dependia de seu conhecimento dos regulamentos que legitimavam os processos. Embora conflitos personalísticos tenham sido bastante comuns no estágio inicial do OP, o processo os assimilou e gerou um discurso paralegal com base em conhecimentos especializados e competência técnica50. Nesse sentido, o OP porto-alegrense dotou a cultura política da municipalidade de nítidas conotações weberianas.

Não obstante, nas franjas dessa "grande comunidade solidária" evidenciavam-se ainda formas híbridas de políticas "tradicionais" e "modernas". Tal o caso do loteamento Chapéu do Sol, um bairro pobre localizado ao sul da cidade. Ali, os membros de uma associação de bairro fragilmente integrada ao OP viam na assistência dos vereadores um canal mais importante para as suas tentativas de encaminhar e resolver os problemas do bairro junto à prefeitura. Ainda que em Porto Alegre as comunidades pobres efetivamente tenham acesso ao poder público municipal (em contraste com a grande maioria dos municípios brasileiros), os líderes e moradores daquele bairro freqüentemente contavam com os vereadores para mediar suas relações com a prefeitura, o que, conforme afirmavam, fortalecia suas demandas. Assim, quando vereadores conservadores alegaram que a "mão invisível" que provera as tão desejadas infra-estruturas no bairro era na verdade a deles próprios, e não aquela de um abstrato OP, os moradores, mal- informados e extremamente pobres, estavam prontos a acreditar neles.

Assim como em São Paulo e em Itabuna, as redes de patronagem privada (mesmo quando fictícias) de fato continuam a cumprir um papel importante nas vidas dos moradores pobres de Porto Alegre, na medida em que oferecem uma importante medida de segurança contra as calamidades da vida. Mas mesmo nesse aspecto pode-se discernir o impacto do OP, havendo amplas evidências de que ele transformou as relações sociais para além de sua esfera de influência imediata.

Ainda que os moradores muitas vezes não soubessem exatamente como certa infra- estrutura urbana foi implantada em seus bairros dizendo que "foi o prefeito que fez" , percebiam que o benefício obtido junto à prefeitura não era de natureza particularista. Afinal, na sua afirmação de que "foi o prefeito que fez" não se imprime a mesma veneração por patronos políticos que verificamos em Itabuna, por exemplo. Trata-se de uma compreensão genérica de uma realização da municipalidade que não carrega o nome de um político local (João Verle, Tarso Genro etc.) e que conseqüentemente não contém a marca das obrigações recíprocas das relações clientelistas.

De maneira similar, ainda que apenas alguns dos moradores das duas comunidades que visitei participassem das assembléias regionais do OP e poucos mais comparecessem às importantes sessões em que se votavam as prioridades de investimento público na região, praticamente todos os moradores apontaram o presidente da associação de bairro quando perguntados de que modo a comunidade foi contemplada com infra-estruturas: "Pergunte a ele que ele sabe". Assim como em São Paulo, expectativas clientelistas recaíam sobre o delegado ou conselheiro do OP. Mas esses moradores, mesmo os não-afiliados à associação local, estavam razoavelmente seguros de que o dirigente desta representava seus interesses junto ao fórum municipal. Ao dizerem "pergunte a ele que ele sabe", ressoavam certa confiança na transparência de um processo que ainda lhes era relativamente distante.

O caso de Porto Alegre sinaliza que processos participativos como o OP podem transformar as práticas políticas "tradicionais" no Brasil. Contudo, também sugere que o clientelismo e a patronagem são aspectos persistentes mesmo num contexto político inclusivo e democrático, e não meros elementos de uma etapa no caminho para uma política mais racional e universalista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao examinar transições democráticas em países como o Brasil, muitos autores tomam a democracia como o resultado de um processo evolutivo pelo qual se eliminam elementos políticos "tradicionais" para se construir uma política "moderna", baseada em critérios racionais, preocupação com o bem comum e regras procedimentais. Em contraste com essa visão, argumentamos aqui que o processo de democratização não erradica práticas políticas como o clientelismo e a patronagem: antes, transforma-as ao incorporá-las. Além disso, sustentamos que num contexto político de direitos de cidadania extremamente restritos a construção de democracias mais autênticas depende da implementação de uma rede de assistência social universalmente acessível.

O caso de Itabuna sugere que na ausência de uma rede assistencial pública o desemprego e a pobreza tendem a reforçar a importância das redes de patronagem privadas. Ademais, a competição clientelística por escassos recursos governamentais suscitou no município um intenso debate público sobre o modo como são mediadas as demandas populares por tais recursos. Independentemente de filiação política, os movimentos sociais e os moradores dos bairros pobres rejeitavam a mediação "de cima para baixo" e reivindicavam um processo de mediação mais democrático e transparente. Esse amplo apoio a uma forma de democracia mais autêntica também se evidenciou duas outras cidades em foco, onde processos participativos haviam sido implementados. Em São Paulo, o debate público nos bairros pobres se concentrou nas decepções suscitadas por um OP implementado parcialmente e nas contradições da política de alianças adotada pela administração do PT. na periferia de Porto Alegre o OP se encontrava amplamente aceito como um processo de mediação imparcial e transparente.

Os três estudos de caso enfocaram as diferentes estratégias adotadas pelos líderes das comunidades pobres para encaminhar suas demandas. O caso de Itabuna mostrou que uma relativa autonomia política e financeira cumpre papel importante na questão da demanda por patronagem política, na medida em que aumenta as possibilidades de atuação dos movimentos sociais e dos líderes comunitários. Mostrou ainda que uma estratégia multifacetada pode ser decisiva num cenário político em que as redes de patronagem privada contribuem significativamente para a assistência social da população pobre. De fato, muitos líderes comunitários construíram uma gama diversificada de laços de patronagem para poder sobreviver e negociar apoios ante as mudanças políticas.

Em São Paulo, onde o setor dos movimentos sociais é bem mais forte e onde as campanhas de mobilização de décadas anteriores deixaram um legado mais duradouro, os líderes comunitários adotavam estratégias pautadas por perspectivas tanto "tradicionais" quanto "modernas" a fim de fortalecer as demandas sociais locais. Embora tenham manifestado ceticismo quanto aos resultados do OP, essas lideranças se mostraram dispostas à participação no processo participativo e ao menos de início o apoiaram. O caso de Porto Alegre mostrou que as expectativas clientelistas podem ser transformadas num processo de mediação confiável e transparente, que promove a participação civil. Não obstante, formas de clientelismo e patronagem privada ainda eram evidentes nas franjas da chamada "grande comunidade solidária".

Por fim, os estudos de caso demonstraram que num contexto sociopolítico de cidadania mediada a inclusão democrática da população pobre tende a envolver alguma forma de subsídio estatal. Assim, tanto a democratização da política municipal como os subsídios do Estado em áreas como saúde e educação são imprescindíveis para a transição a uma democracia autêntica, em que os direitos de cidadania sejam garantidos de modo universal. O caso de Porto Alegre mostra que um processo de orçamento participativo sustentado e inclusivo, em conjunção com outras políticas voltadas às necessidades básicas da população, pode abrir caminho para uma tal democracia. No entanto, mesmo após quinze anos de esforços da administração petista de Porto Alegre para incluir a população pobre, os elos entre esta e o sistema político ainda se mostram frágeis, o que sugere que num contexto de cidadania mediada persiste a dialética entre inclusão participativa e patronagem política. Dessa forma, quando se considera o espaço social que entre pólos conceituais do "tradicional" e do "moderno", a visão evolutiva da transição para a democracia deve dar lugar a uma perspectiva que conceba o avanço democrático como um contínuo processo dialético.

tradução do inglês: Alexandre Morales [1] Gostaria de agradecer a todos os brasileiros que se dispuseram a dividir comigo seu tempo precioso, em particular Sérgio Baierle, Cilto Rosembach, Ana Cláudia Teixeira e a família Silva Brito. Também sou grato a Rowan Ireland e Francesco Formosa, que fizeram valiosos comentários e sugestões acerca de várias etapas da pesquisa, a qual contou com apoio financeiro do Australian Research Council.

[2] Roniger, Luis. Hierarchy and trust in modern Mexico and Brazil. Nova York/ Londres: Praeger, 1990; Mainwaring, Scott. Clientelism, patrimonialism and economic crisis: Brazil since 1979. Washington, DC: Latin American Studies Association, 1990; Rethinking party systems in the third wave of democratization: the case of Brazil. Stanford, CA: Stanford University Press, 1999; Mettenheim, Kurt von. The Brazilian voter: mass politics in democratic transition 1974-86. Pittsburgh/Londres: University of Pittsburgh Press, 1995; Hagopian, Frances. Traditional politics and regime change in Brazil. Cambridge/Nova York: Cambridge University Press, 1996; Weyland, Kurt. Democracy without equity: failures of reform in Brazil. Pittsburgh: The University of Pittsburgh Press, 1996; "The Brazilian State in the new democracy". In: Kingstone, Peter e Power, Timothy (orgs.). Democratic Brazil: actors, institutions, and processes. Pittsburgh: The University of Pittsburgh Press, 2000; Power, Timothy. The political right in postauthoritarian Brazil. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 1997; Kingstone, Peter e Power, Timothy. "Political institutions in democratic Brazil: politics as a permanent constitutional convention". In: idem (orgs.), op. cit.; Gay, Robert. "Rethinking clientelism: demands, discourses and practices in contemporary Brazil". European Review of Latin American and Caribbean Studies [ERLACS], no 65, 1998, pp. 7-24; Banck, Geert A. "Personalism in the Brazilian body politic: political rallies and public ceremonies in the era of mass democracy". ERLACS, no 65, 1998, pp. 25-43; Conniff, Michael.

Populism in Latin America. Tuscaloosa/Londres: The University of Alabama Press, 1999.

[3] Baierle, Sérgio. "OP ao termidor?". In: Verle, João e Brunet, Luciano (orgs.). Construindo um novo mundo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre. Porto Alegre: Guayí, 2002; Teixeira, Ana Cláudia C. "A atuação das organizações não- governamentais: entre o Estado e o conjunto da sociedade". In: Dagnino, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002; Tatagiba, Lúcia. "Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil". In: Dagnino (org.), op. cit.; Ribeiro, Ana Clara T. e Grazia, Grazia de. Experiências de orçamento participativo no Brasil: 1997-2000. Petrópolis: Vozes, 2003; Ottmann, Goetz. "Habermas e a esfera pública no Brasil". Novos Estudos, n-o 68, 2004.

[4] Cf. Mainwaring, Rethinking party systems..., op. cit.

[5] Ao sustentar a idéia de "múltiplas modernidades", Renato Ortiz argumenta que os elementos culturais "tradicionais" constituem a experiência viva da modernidade brasileira ("From incomplete modernity to world modernity".

Daedalus, 129 (1), 2000).

[6] Alexander, Jeffrey. "Mass communication, ritual and civil society". In: Liebes, Tamar e Currun, James (orgs.). Media, ritual and identity. Londres: Routledge, 1998: 28.

[7] Cf. Reis, Elisa. "Banfield's amoral familism revisited: implications of high inequality structures for civil society". In: Alexander, Jeffrey C.

(org.). Real civil societies: dilemmas of institutionalization. Londres: Sage, 1998.

[8] Esse argumento foi bastante difundido nos anos 1980 (ver Touraine, Alain.

"Mutations of Latin America". Thesis Eleven, no 38, 1994). Baseio-me aqui no suposto de que no Brasil a pobreza resulta mais de uma desigual distribuição de recursos do que de uma falta de crescimento econômico, ao contrário do que propõem alguns autores (ver por exemplo Reis, op. cit.). Mais recentemente, em particular na literatura que enfoca a transição democrática no Brasil, a questão da pobreza tem sido eclipsada pela discussão dos aspectos institucionais da democracia, e a meu ver deveria ser retomada.

[9] Segundo Weyland (Democracy without equity, op. cit.), "o personalismo forma redes baseadas em intercâmbios particularistas e laços afetivos. Nas sociedades de larga escala essas redes tendem a assumir uma forma piramidal, de modo que a hierarquia permeia o personalismo. Uma vez que é do interesse daqueles posicionados no alto da pirâmide personalista manter seus seguidores divididos, as ligações horizontais são desencorajadas, se não suprimidas. Somente os atores que estão no topo da hierarquia têm poder suficiente para se contrapor a essa estratégia de 'dividir para governar' e estabelecer relações horizontais".

[10] Cf. Mainwaring, Rethinking party systems..., op. cit.

[11] Cf. Roniger, op. cit; Gellner, Ernest. "Patrons and clients". In: Gellner, Ernest e Waterbury, John (orgs.). Patrons and clients in Mediterranean societies. Londres: Duckworth, 1977; Schmidt, Steffen (org.).

Friends, followers, and factions: a reader in political clientelism. Berkeley: University of California Press, 1977.

[12] Cf. Roniger, Luis. "Civil society, patronage, and democracy". In: Alexander, Jeffrey. C. (org.), op. cit.

[13] Banck, op. cit.

[14] Entre muitos outros exemplos que poderiam ser citados, menciono os sambas tradicionais Pelo telefone (Donga, 1917), Não quero saber mais dela (Sinhô, 1928), Preconceito (Marino Pinto e Wilson Batista, 1941) e Antonico (Ismael Silva, 1950). No entanto, Roberto Da Matta apontou em vários textos a dimensão da subversão de classe no samba, ao passo que Darién Davis afirma que por volta dos anos 1930 passaram a surgir sambas com maior teor de crítica social, particularmente quanto às relações raciais ("Racial parity and national humor: exploring Brazilian samba from Noel Rosa to Carmem Miranda, 1930-39". In: Beezley, William e Curcio-Nagy, Linda (orgs.). Latin American popular culture.

Wilmington: Scholarly Resources, 2000). É provável porém que o samba praticado nos bares e nas esquinas sempre tenha sido um meio de expressão para as percepções de crítica social das classes populares.

[15] Cf. Cardoso, Fernando Henrique. "Democracy in Latin America". Politics and Society, 15(1), 1986-87.

[16] Cf. Kahn, Joel e Formosa, Francesco. "The problem of 'crony capitalism': modernity and the encounter with the perverse". Thesis Eleven, no 69, 2002.

[17] O orçamento participativo consiste num processo pelo qual a população de um município discute e delibera sobre as prioridades de alocação de recursos da prefeitura. Tal como implementado em Porto Alegre, o processo funciona grosso modo da seguinte forma. Numa primeira fase rodadas de assembléias regionais e locais de moradores, que determinam a composição dos delegados que irão participar da fase seguinte, em cujas assembléias são hierarquizadas as demandas de prioridades de investimentos regionais. Gera-se uma proposta orçamentária para o município, que é discutida com técnicos das secretarias municipais, e em seguida são eleitos os conselheiros das regiões para o Conselho do Orçamento Participativo, que tem por função debater e aprovar a proposta orçamentária, rever o orçamento final elaborado pela prefeitura e acompanhar a respectiva execução. A câmara de vereadores tem a prerrogativa de emendar itens do orçamento.

[18] Cf. Roniger, Hierarchy and trust..., op. cit.; Hagopian, op. cit.

[19] Embora ultrapasse o escopo deste artigo uma comparação detalhada entre os processos de orçamento participativo (OP) implantados em Porto Alegre e em São Paulo, cabe ressaltar que assumiram características consideravelmente diferentes. Sobretudo, em Porto Alegre o OP se enraizou muito mais nos bairros, na medida em que foi subdividido em dezesseis regiões administrativas compreendendo uma população total de cerca de 1,3 milhão de habitantes, enquanto em São Paulo, com cerca de 10 milhões de habitantes, foi subdividida em 31 regiões (algumas com mais de uma assembléia). Além disso, Porto Alegre contou com mais secretarias e escolas municipais na divulgação do OP e na preparação da população para o processo. Por fim - e talvez mais importante -, o montante de recursos a ser distribuído pelo OP foi claramente estabelecido em Porto Alegre, enquanto em São Paulo foi objeto de negociação entre os conselheiros do OP e as secretarias municipais, as quais tinham peso decisivo na determinação do volume dos recursos a serem alocados.

[20] Com efeito, uma experiência de democratização das mais interessantes vinha ganhando corpo na cidade de Pintadas, localizada no sertão seco e árido da Bahia.

[21] Ressalte-se porém que o PT sempre foi um partido bastante heterogêneo e que as suas diretrizes políticas gerais constantemente foram interpretadas de maneira dinâmica e multifacetada pelas diversas instâncias municipais (cf., por exemplo, Keck, Margaret. The Workers' Party and democratization in Brazil. New Haven: Yale University Press, 1992).

[22] Cf. Branford, Sue e Kucinski, Bernardo. Lula and the Workers' Party in Brazil. Nova York: The New Press, 2003; Wallerstein, Immanuel.

World systems analysis: an introduction. Durham: Duke University Press, 2004.

[23] Cf. Baiocchi, Gianpaolo. "Radicals in power". In: idem (org.). Radicals in power: the Workers' Party (PT) and experiments in urban democracy in Brazil.

Londres/Nova York: Zed Books, 2003.

[24] No final dos anos 1990, o então presidente do partido José Dirceu afirmava que "o jeito petista de governar é uma coisa do passado" (Dirceu, José.

"Governos locais e regionais e a luta política nacional". In: Magalhães, Inês, Barreto, Luiz e Trevas, Vicente (orgs.). Governo e cidadania: balanço e reflexões sobre o modo petista de governar. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999).

[25] Além do PT, a aliança incluiu os seguintes partidos: PSDB, PDT, PTS, PV, PCdoB, PMDB, PPS, PSB, PTB e PMN.

[26] O caso do município baiano de Vitória da Conquista contradiz essa opinião.

Ali o PT adotava uma estratégia de mobilização de base e ao eleger-se para a prefeitura na gestão 1997-2000 implementou mecanismos participativos com sucesso. Ademais, o partido foi reeleito nas eleições seguintes.

[27] Os nomes dos representantes comunitários foram aqui alterados.

[28] Segundo o seu questionário, aplicado em 2002, dos 235 entrevistados apenas quatorze sabiam da existência do supervisor e somente quatro o conheciam pelo nome.

[29] Na verdade, os moradores tendiam a manifestar demandas assistenciais ao dirigente da associação de bairro, o qual porém não tinha acesso direto à prefeitura e precisava repassar as demandas ao supervisor, que então contatava a prefeitura. O que se constata é que a maioria das comunidades é nitidamente dividida conforme as linhas partidárias e que os representantes comunitários somente têm acesso à prefeitura se são pessoalmente ligados aos seus ocupantes.

[30] No entanto, essa "neutralidade" muitas vezes era ostentada apenas em público, pois em suas vidas privadas os líderes comunitários podiam estar envolvidos em redes de obrigações recíprocas que eles se sentiam compelidos a honrar.

[31] João Batista, por exemplo, via-se em débito com um patrono político lhe ajudara em tempos de necessidade em sua vida pessoal, mas reconhecia que as políticas educacionais implementadas pelo PT de fato beneficiavam os estudantes pobres e que com a tempo a continuidade dessas políticas beneficiaria toda a comunidade.

[32] Cabe mencionar em especial a Pastoral da Juventude, que com sua atuação extremamente ativa entre adolescentes e jovens contribui para a formação de muitos líderes comunitários em Itabuna.

[33] Cf. Tatagiba, op. cit.

[34] Segundo o Censo Demográfico de 2000, mais de um terço da população da cidade vivia com menos de R$ 390 por mês.

[35] Na verdade, o debate sobre a patronagem no Brasil tem sido moralmente carregado séculos (cf., por exemplo, Graham, Richard. Patronage and politics in nineteenth-century Brazil. Stanford, CA: Stanford University Press, 1990; Bieber, Judy. Power, patronage, and political violence: state building on a Brazilian frontier, 1822-89. Lincoln: University of Nebraska Press, 1999).

[36] Couto, Cláudio G. "The second time around: Marta Suplicy's PT administration in São Paulo". In: Baiocchi (org.), op. cit.

[37] Genro, Tarso. "Um debate estratégico". In: Magalhães, Barreto e Trevas (orgs.), op. cit.

[38] Segundo ele, "o PT de 2000 é um partido completamente diferente daquele de 1988. Em 1998 o PT era um partido que promovia a luta social, e o PT de 2000 é um partido marcadamente institucional, um partido que trabalha para ganhar eleições. Hoje, os setores dentro do PT que buscam organizar a sociedade, organizar os excluídos, são facções contra-hegemônicas". O entrevistado atribui uma razão pragmática ao distanciamento do partido em relação ao movimento civil: as eleições para prefeito em São Paulo geralmente são disputadas em dois turnos, com polarização dos votos entre dois candidatos, e o movimento civil consegue obter para um candidato petista cerca de 15% dos votos, o que não é suficiente para elegê-lo. Além disso, uma vez que a força política dos movimentos sociais vem declinando desde o final dos anos 1980, o PT resolveu atrair outros setores da sociedade.

[39] Cf. Dagnino (org.), op. cit.; Ottmann, op. cit.

[40] Muitos moradores receavam, com razão, que esse projeto extremamente oneroso fosse abandonado se o PT perdesse as eleições seguintes, como de fato ocorreu anteriormente com um projeto similar no Rio de Janeiro, abandonado por uma administração subseqüente e que se tornou o paraíso dos párias sociais.

[41] Freqüentemente se cancelavam reuniões em cima da hora e a subprefeitura muitas vezes deixava de informar os delegados do OP tanto dos cancelamentos quanto das novas datas agendadas.

[42] Numa reunião em que se discutia como aumentar o grau de participação dos delegados do OP regional (apenas nove do total de 55 estavam presentes), esse coordenador fez a seguinte afirmação: "Eu não me preocupo com quantidade: eu quero qualidade. Eles precisam ter algum conhecimento sobre o processo político. Em Brasilândia, muitos simplesmente não estão interessados. Nós deveríamos criar um fórum educacional. Eles não sabem ler direito, não estão acostumados com política local".

[43] Apesar de todos esses problemas, o OP de Freguesia do Ó/Brasilândia não estava absolutamente entre os piores: um relatório de avaliação da Coordenadoria do Orçamento Participativo de São Paulo relativo ao primeiro trimestre de 2004 destacou o comprometimento da subprefeitura com o processo (Andrade, Maria de Fátima, Ricci, Rudá e Camargo, Thiago. Avaliação OP-SP 2004.

Belo Horizonte: Instituto Cultiva, 2004, mimeo).

[44] Em alguns círculos da sociedade civil, o slogan governamental "Você decide, o governo faz" foi ironicamente alterado para "Você decide e o governo faz o que quiser"...

[45] Cf., por exemplo, Marquetti, Adalmir. "Participação e redistribuição: o orçamento participativo em Porto Alegre". In: Avritzer, Leonardo e Navarro, Zander (orgs.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

[46] Cf., entre outros, Abers, Rebecca. "Do clientelismo à cooperação: governos locais, políticas participativas e organização da sociedade civil em Porto Alegre". Cadernos da Cidade, vol. 5, no 7, 2000; Avritzer, Leonardo. "O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte". In: Dagnino (org.), op. cit.; Sánchez, Félix. Orçamento participativo: teoria e prática. São Paulo: Cortez, 2002; Santos, Boaventura de S. "Orçamento participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva". In: idem (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; Baiocchi, Gianpaolo. "Emergent public spheres: talking politics in participatory governance". American Sociological Review, vol. 68, no 1, 2003; Goldfrank, Benjamin.

"Making participation work in Porto Alegre". In: Baiocchi, Gianpaolo (org.).

Radicals in power, op. cit.

[47] Ainda que o OP tenha de fato atraído a participação de comunidades ligadas à oposição, seus representantes tinham dificuldade de influenciar a agenda política, na medida em que eram minoria no conselho do OP.

[48] Habermas, Jürgen. "Further reflections on the public sphere". In: Calhoun, Craig (org.). Habermas and the public sphere. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.

[49] Cf. Santos, op. cit.

[50] Cf., por exemplo, ibidem. Ironicamente, foi esse aspecto que indispôs muitos dos participantes do OP que entrevistei em São Paulo.


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