Leituras em competição
"Este livro resulta de quatro conferências que dei na Universidade
de Cambridge. (...) Ao falar de Borges precisamente ali e em inglês, tive uma
impressão curiosa. Aí estava uma argentina falando numa universidade inglesa
sobre outro argentino a quem hoje se considera "universal".(...) A reputação
mundial de Borges o purgou de nacionalidade."
Beatriz Sarlo,Borges, um escritor na margem
O renome internacional de Machado de Assis, hoje em alta, até meados do século
passado era quase nenhum. Para não fabricar um falso problema, é bom dizer que
o mesmo valia para a literatura brasileira no seu todo, prejudicada pela
barreira do idioma. Talvez a única exceção fossem os romances de Jorge Amado,
que se beneficiavam da máquina de propaganda e traduções do Realismo
Socialista, atrelada à política externa da finada União Soviética. Sem ilusões,
comentando uma tentativa oficial de divulgar os escritores brasileiros na
França, Mário de Andrade observava que a nossa arte seria mais apreciada no
mundo se a moeda nacional fosse forte e tivéssemos aviões de bombardeio.1 Como
não era o caso, íamos criando uma literatura de qualidade até surpreendente,
que para uso externo permanecia obscura.
De lá para cá, o romance machadiano foi traduzido e os estudos estrangeiros a
seu respeito vieram pingando, sobretudo em inglês. Em parte o empurrão foi dado
pela ampliação dos interesses norte-americanos no pós-guerra, a qual se
refletiu na programação da pesquisa universitária. Voltada para regiões que a
Guerra Fria tornava explosivas, a criação de area studies facultava currículos
mais adaptados ao presente, para mal e para bem. Assim, na esteira da Revolução
Cubana, o português foi declarado língua estratégica para os Estados Unidos,
com a suplementação de verbas e os dividendos culturais do caso.2 Já na parte
propriamente literária, o reconhecimento se deveu a intelectuais com antena
para a qualidade e a inovação. Por exemplo, Susan Sontag conta que o editor de
seu primeiro romance a cumprimentou pela influência de Machado de Assis, cujas
Memórias póstumas de Brás Cubasele mesmo havia publicado há poucos anos. Era
engano, pois ela não conhecia nem o livro nem o autor, mas logo os adotou como
"influência retroativa".3 A suposição, que não valia para Sontag, valia
entretanto para o próprio editor: Cecil Hemley era romancista por sua vez, e
deixou um excelente testemunho de seu interesse por Machado. A anedota mostra o
clima de cumplicidades seletas que se estava formando em torno do escritor.4
Para outro exemplo, veja-se o prefácio de John Barth a uma reedição de seus
primeiros livros. O romancista ' National Book Awardde 1972 ' lembra que
tentava encontrar a sua maneira, com ajuda de Boccaccio, Joyce e Faulkner,
quando o acaso fez que lesse Machado de Assis. Este lhe ensinou que as
cambalhotas narrativas não excluíam o sentimento genuíno nem o realismo, numa
combinação à laSterne, que mais adiante se chamaria pós-moderna.5
Quanto à academia, a pesquisa machadiana desenvolvida nos Estados Unidos
acompanhou as correntes de crítica em voga por lá, como era natural. O
patrocínio teórico vinha entre outros do New Criticism, da Desconstrução, das
idéias de Bakhtine sobre a carnavalização em literatura, dos Cultural studies,
bem como do gosto pós-moderno pela metaficção e pelo bazar de estilos e
convenções. A lista é facilmente prolongável e não pára de crescer. Mais
afinada com a maioria silenciosa, indiferente às novidades, havia ainda a
análise psicológica de corte convencional. A surpresa ficava por conta do
próprio Machado de Assis, cuja obra, originária de outro tempo e país, não só
não oferecia resistência, como parecia feita de propósito para ilustrar o
repertório das teorias recentes. O ponto de contato se encontrava no
questionamento do realismo ou da representação, e em certo destaque da forma,
concebida como estrangeira à história. Há aqui uma questão que vale a pena
enfrentar: como entender a afinidade entre um romancista brasileiro do último
quartel do século XIX e o conjunto das teorias críticas em evidência agora, nas
Metrópoles?
O percurso da crítica brasileira no mesmo período foi distinto. Ela não tinha
diante de si um grande escritor desconhecido, mas, ao contrário, o clássico
nacional anódino. Embora fosse coisa assente, a grandeza de Machado não se
entroncava na vida e na literatura nacionais. A sutileza intelectual e
artística, muito superior à dos compatriotas, mais o afastava do que o
aproximava do país. O gosto refinado, a cultura judiciosa, a ironia discreta,
sem ranço de província, a perícia literária, tudo isso era objeto de admiração,
mas parecia formar um corpo estranho no contexto de precariedades e urgências
da jovem nação, marcada pelo passado colonial recente. Eram vitórias sobre o
ambiente ingrato, e não expressões dele, a que não davam seqüência. Dependendo
do ponto de vista, as perfeições podiam ser empecilhos. Um documento curioso
dessa dificuldade são as ambivalências de Mário de Andrade a respeito. Este
antecipava com orgulho que Machado ainda ocuparia um lugar de destaque na
literatura universal, mas nem por isso colocava os seus romances entre os
primeiros da literatura brasileira.6
Pois bem, a partir de meados do século XX a tônica se inverte, com apoio numa
sucessão de descobertas críticas. O distanciamento olímpico do Mestre não
desaparece, mas passa a funcionar como um anteparo decoroso, que permite a
relação incisiva com o presente e a circunstância. O centro da atenção desloca-
se para o processamento literário da realidade imediata, pouco notado até
então. Em lugar do pesquisador das constantes da alma humana, acima e fora da
história, indiferente às particularidades e aos conflitos do país, entrava um
dramatizador malicioso da experiência brasileira. Este não se filiava apenas
aos luminares da literatura universal, a Sterne, Swift, Pascal, Erasmo etc.,
como queriam os admiradores cosmopolitas. Com discernimento memorável, ele
estudara igualmente a obra de seus predecessores locais, menores e menos do que
menores, para aprofundá-la. Mal ou bem, os cronistas e romancistas cariocas
haviam formado uma tradição, cuja trivialidade pitoresca ele soube
redimensionar, descobrindo-lhe o nervo moderno e erguendo uma experiência
provinciana à altura da grande arte do tempo.7 Quanto ao propalado desinteresse
do escritor pelas questões sociais, um dos principais explicadores do Brasil
pôs um ponto final à controvérsia: sistematizou as observações de realidade
espalhadas na obra machadiana, chamando a atenção para o seu número e a sua
qualidade, e com elas documentou um livro de 500 páginas sobre a transição da
sociedade estamental à sociedade de classes.8 O trabalho escravo e a plebe
colonial, o clientelismo generalizado e o próprio trópico, além da Corte e da
figura do Imperador, davam à civilização urbana e a seus anseios europeizantes
uma nota especial. Compunham uma sociedade inconfundível, com questões
próprias, que o romancista não dissolveu em psicologia universalista '
contrariamente ao que supôs o historiador.9
Nas etapas seguintes desta virada, que ainda está em curso, a composição, a
cadênciae a textura do romance machadiano foram vistas como formalização
artísticade aspectos peculiares à ex-colônia, apanhados onde menos em falta e
mais civilizada ela se supunha. Explorados pela inventiva do romancista, esses
aspectos ganhavam conectividade e expunham a teia de suas implicações, algumas
das quais muito modernas, além de incômodas. As peculiaridades prendiam-se a)
ao padrão patriarcal; b) a nosso mix de liberalismo, escravidão e clientelismo,
com os seus paradoxos estridentes; c) à engrenagem também sui generis das
classes sociais, inseparável do destino brasileiro dos africanos; d) às etapas
da evolução desse todo; e e) à sua inserção no presente do mundo, que foi e é
um problema (ou uma saída) para o país, e aliás para o mundo. De tal sorte que
as questões estéticas, de congruência e dinâmica interna, bem como de
originalidade, passaram a envolver a reflexão sobre o viés próprio e o
significado histórico da formação social ela mesma. Assim, embora notória por
desacatar os preceitos elementares da verossimilhança realista, a arte
machadiana fazia de ordenamentos nacionais a disciplina estrutural de sua
ficção.10 Sem prejuízo da diferença entre os críticos, a natureza complementar
dos trabalhos que levaram a essa mudança de leitura se impõe, sugerindo uma
gravitação de conjunto. Passo a passo, o romancista foi transformado de
fenômeno solitário e inexplicável em continuador crítico e coroamento da
tradição literária local; em anotador e anatomista exímio de feições singulares
de seu mundo, ao qual se dizia que não prestava atenção; e em idealizador de
formas sob medida, capazes de dar figura inteligente aos descompassos
históricos da sociedade brasileira.
Recentemente, por ocasião de novas traduções das Memórias póstumase do Dom
Casmurro,a New York Review of Bookspublicou uma resenha abrangente e
consagradora do romance machadiano, assinada por Michael Wood.11 Note-se que o
autor não é especialista em Machado, nem brasilianista, mas um crítico e
comparatista às voltas com a latitude do presente. O lugar da publicação e o
rol dos autores sobre os quais o crítico tem escrito ' Beckett, Conrad,
Stendhal, Calvino, Barthes, García Márquez ' parecem indicar que depois de cem
anos o romancista brasileiro entrou para o cânon da literatura viva. Aliás,
Machado nos Estados Unidos começa a ser ensinado também fora dos departamentos
de literatura brasileira, na área de literatura comparada, em cursos sobre os
clássicos do romance moderno.
A certa altura de seu ensaio, que leva em conta a crítica brasileira, Wood
propõe uma dissociação sutil. As relações com a vida local podem existir, tais
como apontadas, sem entretanto esclarecer a "maestria e modernidade" do
escritor. Ou, noutro passo: seria preciso interessar-se pela realidade
brasileira para apreciar a qualidade da ficção machadiana? Ou ainda, a
peculiaridade de uma relação de classe, mesmo que fascinante para o
historiador, não será "um tópico demasiado monótono para dar conta de uma obra-
prima?" E, finalmente, faltaria saber "por que os romances são mais do que
documentos históricos". Não há resposta fácil para essas questões, que não
recusam as ligações entre literatura e contexto, mas situam a qualidade num
plano à parte. As perguntas têm a realidade a seu favor, pois é fato que a
reputação internacional de Machado se formou sem apoio na reflexão histórica.
Tomando recuo, digamos que elas, as perguntas, resumem a seu modo a situação
atual do debate, em que se perfilaram uma leitura nacional e outra
internacional (ou várias não-nacionais), muito diversas entre si.
A divergência tem base em linhas de força da cena intelectual contemporânea e
não há por que esquivá-la. Para prevenir o primarismo, que sempre ronda essas
diferenças, não custa lembrar que várias contribuições para a linha nacional
vieram de estrangeiros, e que boa parte da crítica brasileira acompanhou a
pauta dos centros internacionais. Contudo, se a cor do passaporte e o local de
residência dos críticos não são determinantes, é certo que as matrizes de
reflexão a que a divergência se prende têm realidade no mapa e dimensão
política, além de competirem entre si, como partes do sistema literário
mundial.12
Uma das matrizes é a luta inconclusa ' agora em xeque ' pela formação de uma
nacionalidade moderna, quer dizer, integrada sob o signo dos direitos civis. Do
ângulo da história, seria a dialética entre a nação e o seu fundo de
segregações coloniais, processada no campo de forças regido pelos países
adiantados e pelo Imperialismo. No ponto de partida está o enigma estético-
social representado pelo surgimento de uma obra de primeira linha em meio ao
despreparo, à falta de meios e ao anacronismo gerais. Como é possível que
nessas condições de inferioridade se tenha produzido algo de equiparável às
grandes obras dos países do centro? Trata-se de um acontecimento que sugere,
por analogia, que a passagem da irrelevância à relevância, da sociedade anômala
à sociedade conforme, da condição de periferia à condição de centro não só é
possível, como por momentos de fato ocorre. Assim, a obra bem sucedida vai ser
interrogada sob o signo da luta contra o subdesenvolvimento. A reflexão busca
identificar nela os pontos de liga entre a invenção artística, as tendências
internacionais dominantes e as constelações sociais e culturais do atraso, com
as sinergias correspondentes. Estas últimas são a prova viva de possibilidades
reais, devidas a conjunções únicas ' algo de agudo interesse, cuja análise
promete conhecimentos novos, auto-consciência intensificada, além de graus de
liberdade imprevistos em relação aos determinismos correntes. Entretecidas com
o desejo coletivo de alavancar um salto histórico, as observações estéticas
adquirem conotação peculiar. Combinadas a observações e categorias econômicas e
políticas, bem como a aspirações práticas, elas fazem figura de recomendação
oblíqua ao país. Tomam a contramão da teoria da arte nos países centrais, a
qual vê nos aspectos referenciais ou nacionais da literatura uma velharia e um
erro.
Dito isso, é claro que a integridade própria à grande obra é sempre um enigma
que cabe à crítica elucidar, seja onde for. No quadro de uma sociedade
inferiorizada, entretanto, a explicação adquire relevância nacional, como parte
de um discurso crítico sui generis. Trata-se de um programa tácito, bastante
difundido, meio impensado, raramente cumprido na íntegra, cujo significado
esclarecido, veleitário ou desdiferenciador está em aberto. Assim por exemplo
lugares-comuns da história da arte mudam de conotação. A dialética entre
acumulações artísticas localizadas e viravolta com potência estrutural, entre
empréstimo estrangeiro e eclosão da originalidade nativa, entre vanguardismo
artístico e incorporação de realidades sociais relegadas, entre acentuação de
tendências, explosão das coordenadas e elevação do patamar, assim como a
criação genial de nexos e saídas onde só parecia existir descontinuidade
cultural e descalabro na relação de classes, tudo isso compõe um desenho
imprevisto, que foge aos esquemas do evolucionismo e do progresso lineares.13
Com risco evidente de regressão, o anseio retardatário de integração nacional
ajudaria o país a se revolucionar, ou a se reformar, ou a vencer a distância
que o separa dos países-modelo, ou a se refundar culturalmente (e em todo caso,
se tudo falhasse, permitiria refletir a respeito). Sejam quais forem os
resultados para o futuro, a discussão dessas defasagens históricas e dessas
soluções artísticas, próprias a nossa integração social precária, responde à
ordem presente do mundo, de cujo "desenvolvimento desigual e combinado" fixa
aspectos substantivos.
Na outra matriz, com sede nos países do centro, uma guarda avançada de leitores
' os intermediários poliglotas e peritos a que se refere Casanova ' empenha-se
na identificação de obras-primas remotas e avulsas, em seguida incorporadas ao
repertório dos clássicos internacionais.14 É nesse espírito cosmopolita que
Susan Sontag conclui a sua apresentação das Memórias Póstumas, desejando aos
leitores que o livro de um longínquo romancista latino-americano os torne menos
provincianos.
Como parte dessa segunda matriz, o trabalho acadêmico dos países do centro
coloca-se ele também as tarefas de reconhecimento e apropriação. As teorias
literárias com vigência nas principais universidades do mundo, hoje
sobredeterminadas pelas americanas, buscam estender o seu campo de aplicação,
como se fossem firmas. O interesse intelectual não desaparece, mas combina-se
ao estabelecimento de franquias. Nessa perspectiva, uma obra de terras
distantes, como a de Machado de Assis, na qual se possam estudar com proveito '
suponhamos ' os procedimentos retóricos do narrador, as ambigüidades em que se
especializam os desconstrucionistas, a salada estilística do pós-modernismo
etc., estará consagrada como universal e moderna. A natureza sumária desse selo
de qualidade, que corta o afluxo das conotações históricas, ou seja, das
energias do contexto, salta aos olhos. É claro que não se trata de desconhecer
o bom trabalho feito no interior de cada uma dessas linhas críticas, que só
pode ser discutido caso a caso, mas de assinalar o efeito automático e
conformista das assimetrias internacionais de poder. Por outro lado, a cesta de
teorias literárias em voga nas pós-graduações dos Estados Unidos é heterogênea
por sua vez, originária em boa parte de lugares tão pouco americanos quanto a
União Soviética, Paris ou Nova Déli, e neste sentido não parece uniformizadora.
Contudo, o caldeamento no mercado acadêmico "local", este último uma novidade
histórica, distancia as teorias de suas motivações de origem. O mecanismo lhes
sobreimprime uma involuntária feição comum, mediante a qual passam a exercer as
suas funções de hegemonia, se possível em escala planetária, e dentro de muito
desconjuntamento. Os lados incongruentes dessa neo-universalidade talvez sejam
mais visíveis para críticos periféricos, ao menos enquanto não a tratam de
adotar.
Assim, a consagração atual de Machado de Assis é sustentada por explicações
opostas. Para uns, a sua arte soube recolher e desprovincianizar uma
experiência histórica mais ou menos recalcada, até então ausente do mapa do
espírito. A experimentação literária no caso arquitetaria soluções para as
paralisias de uma ex-colônia em processo de formação nacional. A qualidade do
resultado se deveria ao teor substantivo das dificuldades transpostas, que são
de várias ordens, não só artísticas. Para outros, a singularidade e a força
inovadora não se alimentam da vida extra-literária, muito menos de uma história
nacional remota e atípica. Observam que não foi necessário conhecer ou lembrar
o Brasil para reconhecer a qualidade superior de Machado, nem para apontar a
sua afinidade com figuras centrais da literatura antiga e moderna, ou com as
teorias em evidência no momento, ou, sobretudo, com o próprio espírito do
tempo. A idéia aqui, salvo engano, é de diferenciação intra-literária, ou seja,
endógena, no âmbito das obras-primas: Machado é um Sterne que não é um Sterne,
um moralista francês que não é um moralista francês, uma variante de
Shakespeare, um modernizador tardo-oitocentista e engenhoso do romance
clássico, anterior ao Realismo, além de ser um prato para as teorias do ponto
de vista, embora muito diferente de seu contemporâneo Henry James. Em suma, um
escritor plantado na tradição do Ocidente, e não em seu país. A figura não é
impossível ' embora a exclusiva seja tosca ' e cabe à crítica decidir. Não
custa notar entretanto a semelhança com o clássico anódinode que falávamos
páginas atrás, cujas superioridades cosmopolitas, ou dessoradas, a crítica com
referência nacional tentou contestar.
A oposição se presta à querela de escolas e convida a tomar partido. Mas ela
assinala também o movimento do mundo contemporâneo, uma guerra por espaço,
movida por processos rivais, que não se esgota em disputas de método. As
relações entre os adversários, cada qual desqualificando o outro, embora
apresentando também algo que lhe faz falta, não são simples. Para dar uma
idéia, note-se que dificilmente um adepto do Machado "brasileiro" reclamará da
nova reputação internacional do romancista, por mais que discorde de seus
termos. Com efeito, que machadiano não se sente enaltecido com o reconhecimento
enfim alcançado pelo compatriota genial? A nota algo ridícula da pergunta faz
eco ao amor-próprio insatisfeito dos brasileiros, que em princípio não teria
cabimento num debate literário que se preze, para o qual essa ordem de
melindres é letra vencida. Mas o ridículo no caso é o de menos, pois nada mais
legítimo que a vaidade de ver refletidos os expoentes nacionais naquelas
teorias novas em folha, que são depositárias da conversação crítica
internacional e, mal ou bem, do presente do mundo ' de que é preciso
participar, mesmo que ao preço de algum auto-esquecimento. Adotando a pergunta
do campo oposto, por que diabo enterrar um autor sabidamente universal no
particularismo de uma história nacional que não interessa a ninguém e não tem
interlocutores?
Nessa linha, o sucesso internacional viria de mãos dadas com o desaparecimento
da particularidade histórica, e a ênfase na particularidade histórica seria um
desserviço prestado à universalidade do autor. O artista entra para o cânon,
mas não o seu país, que continua no limbo, e a insistência no país não
contribui para alçar o artista ao cânon. Pareceria que a supressão da história
abre as portas da atualidade, ou da universalidade, ou da consagração, que
permanecem fechadas aos esforços da consciência histórica, enfurnada numa rua
sem saída para a latitude do presente. Veremos que a disjuntiva está mal posta
e que não há por que lhe dar a última palavra. Mas é certo que no estado atual
do debate ela carrega alguma verdade, pois a falta de articulação interna, de
trânsito intelectual entre história nacional e história contemporânea é um
fato, com conseqüências políticas tanto quanto estéticas. Quanto aos trabalhos
artísticos de primeira linha produzidos em ex-colônias, a tese da inutilidade
crítica das circunstâncias e da particularidade nacional talvez não saiba o
bastante de si. Falta-lhe a consciência de seus efeitos, que são de
marginalização cultural-política em âmbito mundial. Ou ainda, desconhece a
construção em muitas frentes, coletiva e cumulativa, em parte inconsciente, sem
a qual não se constelam a integridade estética e a relevância histórica, as
quais pretende saudar. Seja como for, a neo-universalidade das teorias
literárias poderia também ser bem-vinda a seu adversário, que ao criticá-la
sairia do cercadinho pátrio e colocaria um pé no tempo presente, ou melhor, num
simulacro dele. O reconhecimento internacional de um escritor muda a situação
da crítica nacional, que nem sempre se dá conta do ocorrido.
Helen Caldwell começa The Brazilian Othello of Machado de Assis' o primeiro
livro americano sobre o romancista ' com uma afirmação sonora. O escritor seria
um diamante supremo, um Kohinoor brasileiro que cabe ao mundo invejar. Logo
adiante, Dom Casmurroé considerado "talvez o melhor romance das Américas". Não
é pouca coisa, ainda mais se lembrarmos que eram os anos da revalorização de
Hawthorne e Melville, e sobretudo da imensa voga crítica de Henry James. Dito
isso, prossegue Caldwell, é possível que "só nós de língua inglesa" estejamos
em condições de apreciar devidamente o grande brasileiro, "que constantemente
usava o nosso Shakespeare como modelo". Assim, ao reconhecimento e à cortesia
segue-se a surpreendente reivindicação de competência exclusiva, ainda que
envolta em humorismo ("com perdão da megalomania").15
Mas é fato que a intimidade com Shakespeare permitiu a Caldwell virar do avesso
a leitura corrente de Dom Casmurro, tributária até então dos pressupostos
masculinos da sociedade patriarcal brasileira. Mais imersa nos clássicos da
tragédia que na idealização de si de nossas famílias abastadas, a crítica
americana ' professora de literatura grega e latina ' estava em boa posição
para notar algumas das segundas intenções de Machado. A uma shakespeariana não
podiam passar despercebidas a confusão mental e a prepotência de Bento
Santiago, o amável e melancólico marido-narrador do romance. A lição
barbaramente equivocada que ele, o Casmurro, tira do desastre de Otelo era a
indicação segura, entre muitas outras, de que seria preciso desconfiar de suas
suposições sobre a infidelidade da mulher. Veja-se a respeito o capítulo
decisivo em que Bento, agoniado pelo ciúme, vai espairecer no teatro, onde por
coincidência assiste à tragédia do mouro. Em vez de lhe ensinar que os ciúmes
são maus conselheiros, esta o confirma na sua fúria e lhe dá a justificação do
precedente ilustre: se por um lenço Otelo estrangulou Desdêmona, que era
inocente, o que não deveria ter feito o narrador à sua adorada Capitu, que com
certeza tinha culpa?16 O curto-circuito mental, quase uma gag, não deixa dúvida
quanto à intenção maliciosa de Machado, que escolhia a dedo os lapsos e contra-
sensos obscurantistas que derrubariam ' se não fossem passados por alto ' o
crédito de seu narrador suspeitoso, transformando-o em figura ficcional
propriamente dita, que contracena com as demais e é tão questionável quanto
elas. À maneira do estranhamento brechtiano, são pistas para que o leitor se
emancipe da tutela narrativa, reforçada pela teia dos costumes e dos
preconceitos sancionados. Se a campainha artística for ouvida, ele passa a ler
com independência, quer dizer, por conta própria e a contrapelo, mobilizando
todo o espírito crítico de que possa dispor, como cabe a um indivíduo moderno.
A confiança singela e aliás injustificável que até segunda ordem os narradores
costumam merecer fica desautorizada. A inversão de perspectivas não podia ser
mais completa: o problema não estava na infidelidade feminina, como queria o
protagonista-narrador, mas na prerrogativa patriarcal, que tem o comando da
narração e está com a palavra,que não é fiável nem neutra. Graças a esse
dispositivo formal, que desqualifica o pacto narrativo, a disposição
questionante engolfa tudo, da precedência dita normal dos maridos sobre as
mulheres ' o foco da polêmica de Caldwell ' ao crédito devido a um narrador
bem-falante, à virtude patriótica do encantamento romanesco, à respeitabilidade
das elites ilustradas brasileiras. De padrão nacional de memorialismo elegante
e passadista, o livro passa a experimento de ponta e obra-prima implacável.
A descoberta crítica no caso eleva muito a voltagem intelectual do romance. Já
notamos o que ela deveu à familiaridade com os clássicos, ou melhor, à
estranheza causada por um desvio clamoroso na compreensão de um deles,
independente de considerações de contexto. Ou por outra, o seu contexto efetivo
foi a própria tradição canônica, cujas luzes serviram de revelador das
hipocrisias entranhadas na ordem social. Aliás, a intimidade com esta podia até
atrapalhar, como de fato atrapalhou a crítica brasileira durante sessenta anos,
entre a publicação do romance em 1899 e o estudo de Caldwell em 1960. Foi com
justa satisfação que este saiu a campo para corrigir "três gerações de
críticos", a quem as insinuações do ex-marido, hoje um viúvo amalucado no papel
de pseudo-autor, convenceram da culpa de Eva/Capitu.17 É claro que muitos
brasileiros haviam lido Otelo e é provável que tivessem notado que o Casmurro
tira uma conclusão aberrante da morte de Desdêmona. Contudo, filiados ao
universo ideológico do narrador, não deram ao "deslize" a importância
necessária para questionar o fundamento de poder da situação narrativa.
Inclinados a acatar o ponto de vista patriarcal e a veracidade dos
memorialistas, ou, também, despreparados para duvidar da boa-fé de um narrador
de boa sociedade, dono de uma prosa sem igual na literatura brasileira, bem
como de apólices, escravos e casas de aluguel, não acharam que fosse o caso de
suspeitar uma personagem tão bem recomendada. Ficavam aquém da vertigem
inscrita no dispositivo literário machadiano, que atrás dos traços de um
memorialista fino e poético, cidadão acima de quaisquer suspeitas, fazia ver,
primeiro, o marido discretamente empenhado na destruição e difamação de sua
mulher, e, em seguida, o senhor patriarcal na plenitude de suas prerrogativas
incivis.
Cotejado com seu modelo, o Casmurro aparece como uma variante original, seja
porque recombina Otelo e Iago em uma só pessoa, seja porque mistura as
condições de personagem e de narrador, tornando incerta uma distinção
importante. No que respeita ao enxadrismo das situações literárias, a invenção
machadiana é diabólica. Investido da credibilidade que a convenção realista
associa à função narrativa, Bento Santiago é não obstante parte parcialíssima
do drama. O garante do equilíbrio expositivo não tem equilíbrio ele próprio: o
memorialista honesto e saudoso é um marido desgovernado, que trata de persuadir
a si mesmo e ao leitor de que fizera bem ao expulsar de casa e desterrar para
outro continente a sua Capitu/Desdêmona. Aí estão, com raio de generalidade tão
supranacional quanto as instituições do casamento ou da narração, os estragos
causados pelo ciúme, pela prerrogativa masculina e pela autoridade
inquestionada de quem detém a palavra.São resultados de tipo universal, obtidos
por Caldwell no espaço como que atemporal e homogêneo das obras-primas do
Ocidente, por meio da comparação abstrata de caracteres ou situações, e de
análises também elas universalistas. Os paralelos com Shakespeare, a Bíblia e a
mitologia, as especulações sobre o significado dos nomes próprios das
personagens machadianas, no campo geral da onomástica, o estudo da consistência
funcional de complexos imagísticos, à maneira de Freud e do New Criticism
shakespeareano, a revelação da duplicidade do Otelo narrador, que é um feito
crítico notável ' nada disso requereu o recurso à configuração peculiar do
país,que não conta para efeitos de interpretação.
Isso posto, Bentinho não é Otelo, Capitu não é Desdêmona, José Dias e o Pádua
não são Iago e Brabantio, nem o Rio de Janeiro oitocentista é a Europa
renascentista. O século XIX e seu sistema de sociedades distintas entre si e no
tempo entram pela outra porta, e mal ou bem a cegueira do universalismo para a
historicidade do mundo fica patente, sem prejuízo de eventuais descobertas
sensacionais. As diferenças entre Machado, Shakespeare e demais clássicos
importam, pois têm desempenho estrutural-histórico, sugerindo mundos
correlativos e separados, que esteticamente seria regressivo confundir. A
presença ubíqua da cor local não pode ser mera ornamentação, sob pena de
rebaixamento artístico. A própria desautorização do narrador masculino, tão
esclarecedora, só atinge a plenitude de sua irradiação quando combina os
atropelos do ciúme ' uma paixão relativamente extraterritorial ' às
particularidades do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado a escravidão
e clientelismo, assim como à auto-complacência das oligarquias, além de vexado
pela sombra do progresso europeu.
Pensando em vantagens comparativas, ou no que as leituras podem oferecer ou
invejar uma à outra, observe-se que a interpretação universalista dá como favas
contadas a grandeza que a interpretação com base nacional quereria demonstrar.
Será uma superioridade? uma inferioridade? É claro que grandeza no caso tem
dois significados que brigam entre si. Semelhanças e diferenças com Otelo,
Romeu e Julieta, Hamlet, Macbethetc., além de convergências com teses do New
Criticism,decidem a questão da estatura artística pela simples indicação dos
patronos ilustres, que não deixam de constituir um establishment. Assim, o
procedimento que faz admitir Dom Casmurro entre os seus pares no campo das
obras universais tem algo de cooptação, ou de reconfirmação de protótipos (de
cera?) no ultramar. Graças a um sistema de menções cultas, meio escancaradas e
meio escondidas ' aliás escolhidas por Machado com deliberação meticulosa ' um
romance que não constava como canônico troca de estante. Por outro lado, embora
ponha o livro nas alturas e o subtraia ao acanhamento provinciano, com ganho
inegável, essa universalidade não satisfaz a outra leitura, ainda que a possa
ajudar muito. Para esta, o caminho para a qualidade passa pelo aprofundamento
crítico de uma experiência estético-social precária, em boa parte inglória, até
então mantida à margem, cuja densidade interna se trata de consolidar e cuja
relevância se trata de argüir e, mesmo, construir. Não há como desconhecer o
papel que a tradição clássica tem na obra de Machado, mas o que interessa
identificar é o redirecionamento nada universal que, graças ao Autor, a
problemática particular do país lhe imprime. A nota de reivindicação, bem como
o esboço de um contra-establishment,ou a reconsideração a nova luz do
establishment anterior, não existem na outra leitura.
Ainda nesse capítulo da ajuda entre adversários, veja-se que o Brazilian
Othello causou uma viravolta memorável em nosso meio, sem ser forte em seu
próprio terreno: conforme entra pelas semelhanças e diferenças de personagens
machadianas, shakespearianas e outras, postas para flutuar na região comum das
obras universais, onde tudo se compara a tudo, Caldwell vai se perdendo no
inespecífico, para não dizer arbitrário. A verdade é que o melhor de sua
intervenção ' o tino para a má-fé do pseudo-autor ' não frutifica no âmbito
comparatista, e sim no da reflexão nacional. Esta última, demasiado bloqueada
para enxergar o artifício machadiano, fizera um papelão. Por isso mesmo,
entretanto, uma vez esclarecida a respeito, era ela quem tinha mais elementos
para lhe apreciar o gume e explicitar o alcance, seja artístico, seja de
crítica de costumes, seja político. Em suma, o resultado substancioso do livro
foi a inviabilização da leitura conservadora de um clássico nacional, até então
assegurada por uma aliança tenaz de convencionalismo estético e preconceitos de
sexo e classe. A solidez social dessa liga conferiu aos novos argumentos um
valor de contestação inesperado, que escapa à imaginação das teorias literárias
universalistas. Invertendo a blague inicial da Autora, segundo a qual só
anglófonos e shakespearianos teriam condições de apreciar Machado de Assis,
digamos que foi no ambiente saturado de injustiças nacionais e de história que
o achado universalista adquiriu a densidade e o impulso emancipatório
indispensáveis a uma idéia forte de crítica.
Por que supor, mesmo tacitamente, que a experiência brasileira tenha interesse
apenas local, ao passo que a língua inglesa, Shakespeare, o New Criticism, a
tradição ocidental e tutti quantiseriam universais? Se a pergunta se destina a
encobrir os nossos déficits de ex-colônia, não vale a pena comentá-la. Se o
propósito é duvidar da universalidade do universal, ou do localismo do local,
ela é um bom ponto de partida. A questão tem importância para a arte de
Machado, que a dramatizou numa crônica das mais engenhosas, chamada "O punhal
de Martinha".18 Trata-se da apresentação, em prosa clássica pastichada, dos
destinos paralelos de dois punhais. Um lendário e ilustre, que serviu ao
suicídio de Lucrecia, ultrajada por Sexto Tarquínio. Outro comum e brasileiro,
mas destinado à "ferrugem da obscuridade", que permitiu a Martinha vingar-se
das importunações de um certo João Limeira. A moça, diante da insistência
deste, previne: "Não se aproxime, que eu lhe furo". Como ele se aproxima, "ela
deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente". A notícia, pescada num
jornal da Cachoeira, do interior da Bahia, é posta lado a lado com o capítulo
célebre da História Romanade Tito Lívio. Desenvolvendo os contrastes, o
cronista concede que a gazeta baiana não pode competir com o historiador
insigne; que Martinha ao que tudo indica não é um modelo de virtude conjugal
romana, antes pelo contrário; e que João Limeira não tem sangue régio nas
veias. As comparações, todas desabonadoras, são feitas do ângulo do literato
ultra-afetado do Rio de Janeiro, que diverte os leitores à custa de uma cidade
modesta, que a ninguém ocorreria comparar ao padrão da Antigüidade. Dito isso,
Machado inverte a ironia ' sem o que não seria quem é ' e observa que a
cachoeirense não fica a dever à romana em bravura: Martinha vinga-se com as
próprias mãos onde a outra confia a vingança ao marido e ao pai, sem contar que
pune uma simples intenção, e não o ultraje consumado. Entre parênteses, vindo
de um retificador de injustiças, a nota cafajeste da segunda distinção,
destinada a pôr defeito na honestidade de Lucrecia, abre uma perspectiva
infinita... Seja como for, por um momento é Lucrecia quem se deve mirar no
exemplo de Martinha, e não vice-versa, uma viravolta de alcance quase
inconcebível. É claro que essas superioridades, tanto quanto as inferioridades,
não são para levar a sério. Elas resultam da comparação abstrata, termo a
termo, perfil contra perfil, que prefere o engenho retórico à inteligência
histórica ' uma opção que o tempo havia tornado burlesca. Assim, depois de rir
da Cachoeira, porque ela não se compara a Roma, ri de Roma, que talvez não
passe de uma Cachoeira revestida de belas palavras. Atreladas uma à outra, a
localíssima Cachoeira e a universalíssima Roma funcionam como uma dupla de
comédia. Os clichês se relativizam mutuamente, para gozo dos finos, e não
deixam resto. O dualismo é artificioso e tem certa esterilidade enjoativa, que
não vai a lugar nenhum.
Apesar da eqüidade ostensiva da argumentação, o espírito do paralelo é de troça
e tem ranço de classe inconfundível. O cronista deplora a sorte obscura dos
compatriotas pobres e provincianos, mas a comparação culta na verdade lhe serve
para sublinhar a distância que o separa deles e de nossa hinterlândia cheia de
facadas. Serve-lhe também para figurar na internacional dos cosmopolitas fim-
de-século, que não se iludem com Roma e a discurseira clássica, embora
disponham de seu repertório. Num caso busca diferençar-se da barbárie popular;
no outro, integrar-se à elite mundial, sempre em linguagem para poucos ' o
leitor é tratado na empolada segunda pessoa do plural, com subjuntivos e
condicionais difíceis ', que marca uma superioridade meio caricata. "Talvez
esperásseis que ela se matasse a si própria. Esperaríeis o impossível, e
mostraríeis que me não entendestes". Sem prejuízo da pirotecnia, são aspirações
medíocres, que no entanto adquirem altura artística ao participarem de um
contexto de ambivalências e impasses que as conota historicamente.
Precedida do artigo definido e singularizador, a Cachoeira passa a ser uma
localidade familiar, que fica logo ali, mesmo para quem não tenha conhecimento
dela. Algo análogo se dá com Martinha, que possivelmente seja um tanto bárbara,
de má-vida e culpada de homicídio, mas a quem o diminutivo afetuoso traz para
perto em idéia, incluindo-a na esfera da cordialidade brasileira, ou do
sentimento nacional, desdizendo as segregações anti-sociais trazidas da
Colônia. Noutras palavras, alguns indicadores gramaticais funcionam na
contracorrente da dicção emproada, de cujas presunções de exemplaridade, estilo
elevado e civilização destoam, ou, ainda, a cujas partições se opõem. Digamos
então que o paralelo clássico milita, enquanto forma, pela separação dos
espaços que compara. Do ponto de vista de classe, alinha o escritor na franja
europeizada e culta, estranha às circunstâncias cruas e remotas da vida popular
no interior do país. Estamos próximos da posição do letrado colonial, vivendo
nestas brenhas a contragosto, na companhia consoladora de ninfas e pastores de
convenção. Ao passo que as descaídas chãs e familiares da prosa, mais discretas
mas não menos definidoras, fazem supor um alinhamento político diverso, em que
aquelas separações não são ponto pacífico. Aqui e ali, a despeito da couraça
retórica, o escritor parece reconhecer como suas a gente e as localidades da
ex-colônia, agora o Brasil. Implícita, há também a recíproca, segundo a qual
essa gente e essas localidades poderiam contar com ele nalgum grau. Está aí a
posição do intelectual posterior à Independência, impregnado de tradição
européia e bloqueado por ela. Como exemplo da dificuldade, observe-se o apreço
dúbio pela bravura de Martinha, com a sua pitada de maledicência. Pois bem,
mesmo quando são verdadeiras, as boas palavras não têm como alcançá-la, pois o
paralelo com Lucrecia, que dá visibilidade e universalidade à moça, a priva de
seu contexto e a faz perder de vista. É como se enredado em sua cultura de
aparato o escritor estivesse do lado contrário ao que deseja defender, e
ocultasse o mundo diferente que quer revelar. As boas letras não funcionam
apenas como trunfo, mas também como obstáculo, ao passo que a experiência
local, sendo um núcleo de identidade, tanto impulsiona como desmerece e
empareda o seu portador. A mescla das dicções interioriza e encena a crise, que
se resolve nas linhas finais, pela derrota: depois de indignar-se com a
"desigualdade dos destinos", que só recolhe e transmite o que está nos livros
canônicos e ignora o que existe na realidade ' leia-se o Brasil ', o escritor
joga a toalha e toma o partido do opositor, o beletrista amestrado que ele tem
dentro de si. "Mas não falemos mais em Martinha", quer dizer, não falemos do
Brasil.
A conclusão não é para ser acatada. O procedimento machadiano do finale em
falso convida ao reexame crítico da persona que está com a palavra. No ato, o
literato consumado que não se anima a romper com a máquina literária culta se
transforma em figura negativa. Deve ceder o passo a seu alter ego recalcado,
este sim capaz de reconhecer a poesia que existe em Martinha e na Cachoeira '
uma poesia desafetada, sem fórmulas de Tito Lívio, sem atitudes de tragédia,
sem gestos de oratória, sem quinquilharia clássica, mas com "valor natal e
popular", incluídas aí as afrontas à gramática, e valendo "todas as belas
frases de Lucrecia". Assim, o prosador hesita entre atitudes opostas, muito
representativas, em confronto dentro dele. Numa, a anedota local ' marcada pela
nota primitiva e por vestígios da Colônia, que são a substância efetiva do
pitoresco ' é conferida à luz dos modelos ditos universais. Na outra, a mesma
matéria seria valorizada nos seus próprios termos, liberta das convenções
literárias que nos separam e escondem de nós mesmos, embora nos identifiquem
como civilizados. O que seria essa prosa voltada para o tangível e o popular,
sem guarda-roupa clássico, e ainda assim capaz de merecer um lugar na memória
dos homens? Note-se que o ideal da auto-suficiência estética, ligado ao
nacionalismo romântico, bem como a uma idéia mítica da Independência, que
inclui a quebra da hierarquia entre as nações, não deixa de convergir a seu
modo com a tendência moderna para a desconvencionalização. Mas seria uma
possibilidade efetiva? Mesmo que só imaginária, essa verdadeira revolução
cultural e a correspondente redefinição das repugnâncias e das simpatias, das
diferenças e das alianças de classe internas e externas, fazem recuar o
cronista, que volta às garantias tradicionais da posição anterior.
Em resumo, o paralelo com Lucrecia começa como uma piada de literato bem-posto
e rebuscado, conformista no fundo. Em seguida a brincadeira toma um rumo menos
convencional, mas ainda assim enquadrado pela auto-satisfação das classes
cultivadas. É num terceiro passo que o punhal de Martinha e o esquecimento
inglório que o espera adquirem a vibração notável. Como a familiaridade da
linguagem indica, Martinha não é apenas uma representante de costumes bárbaros,
que os civilizados de todos os quadrantes, entre os quais o cronista, olham com
curiosidade, de fora e do alto. Ela faz parte também do povo brasileiro e, por
aí, da problemática interior do mesmo cronista. O homem ilustrado, sempre um
conselheiro da pátria em formação, sente que o destino dos compatriotas pobres
e relegados é menos exótico e mais representativo do que parecia. Mal ou bem, a
falta de reconhecimento em que vivem não deixa de lhe dizer respeito. Aliás, a
inadequação literária do cronista não teria parte na condição apagada que os
diminui? E não haveria também nele próprio algo da marginalização histórica,
para não dizer da barbárie e até do exotismo de Martinha? Sem contar que a
simplicidade clássica da punhalada em João Limeira revela riquezas inexploradas
da nação, ao menos quanto às possibilidades literárias. Como indicam essas
inerências à distância, suscitadas pelos descompassos do processo nacional,
deixamos o âmbito retórico das oposições abstratas e maniqueístas, além de
vagamente colonialistas, do tipo civilização vs. barbárie, para passarmos ao
campo da dialética social, com as suas interligações imprevistas e significados
instáveis. Sob a forma ostensiva, a forma latente: a bravura ou braveza da moça
dá assunto a comparações cômicas e fora do tempo, mas veicula também a situação
estético-política de quem escreve, imprimindo à prosa uma nota de inquietação e
culpa históricas. Dentro do cronista coexistem e lutam o cosmopolita
empertigado e o escritor mordido pela matéria brasileira, com todas as
ambivalências do caso. Assim, o esquecimento em que desaparecerá a moça da
Cachoeira merece as lágrimas de crocodilo do humorista de salão, bem como as
lágrimas sentidas mas confusas do escritor nacional, que lastima nela a
obscuridade em que vegetam o seu país e ele próprio. Para entender a natureza
de classe desse vaivém da imaginação, basta imaginar-se na posição social
oposta, ou melhor, imaginar a ducha escocesa a que no caso é submetido o
destino popular, que pode ser enaltecido e servir de bandeira regeneradora, e
pode ser simplesmente posto de lado.
Dito isso, a nossa apresentação vem forçando a nota num ponto delicado:
palavras como pátria, nação, Brasil etc., e também os raciocínios sobre a
questão nacional, em que insistimos, não têm presença no argumento explícito da
crônica. Este se concentra de modo exclusivo, ao explicar as injustiças
cometidas pela fama, na preterição da existência material. A crer nas
indicações do cronista, que tanto orientam como desorientam, Martinha vai "rio
abaixo do esquecimento" porque é uma criatura tangível, como aliás todo mundo,
e não por ser brasileira e popular. A "parcialidade dos tempos", da qual ela é
vítima, consiste em reconhecer tudo aos clássicos, e nada ao seu contrário, que
no caso é a vida real, em carne e osso, e não o Brasil. Ora, como os clássicos
são "pura lenda" e "ficção", ou "mentira", tudo conservado em livros
recomendados, notáveis pelo apuro da gramática, é claro que não deixam lugar
para a mocinha da Cachoeira, que tem endereço e ofício conhecidos, erra na
colocação de pronomes e não foi celebrada pelos poetas. A conclusão acaciana do
cronista filósofo, que medita "sobre o destino das coisas tangíveis em
comparação com as imaginárias", é que os humanos só dão valor ao que não
existe. "Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo
ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas..."
Ainda aqui, Machado está compondo uma literatura "do seu tempo e do seu país" '
para citar a fórmula programática famosa ' à custa da personagem que tem a
palavra e se crê acima das circunstâncias.19 Cabe ao leitor, armado de
implicância e antena histórico-social, contrapor a feição pronunciadamente
brasileira das matérias à sua redução a uma generalidade vazia, sem tino para o
que se configurou. É certo que é possível sujeitar a lista de nossos traços de
ex-colônia à categoria dos "tangíveis", por oposição aos "imaginários",
preferidos pela fama. Contudo é possível também enxergar nessa operação do
espírito mais outro exemplo de defeito nacional, pronto para figurar naquela
mesma lista de atrasos, à qual a mania de transformar em pontos de filosofia as
nossas mazelas históricas se integra à perfeição. Entrando em matéria, aí estão
a Martinha, entre familiar e desconhecida, como o povo a que pertence; a
condição social de zé-ninguém, sem nome de família nem proteção da lei, e com
prenome no diminutivo; a facada meio urbana meio sertaneja, e a Cachoeira, que
é um faroeste com feições locais; no campo dos instruídos, há o exibicionismo
retórico e gramatical, que compensa o complexo de inferioridade herdado da
Colônia; o sentimento geral de irrelevância e de vida de segunda classe, além
do ressentimento com a falta de repercussão de nossas coisas; há ainda as
províncias remotas como um ultramar, envolvidas em certo apego sentimental etc.
A disparidade entre isso tudo e os termos filosóficos do cronista incita à
reflexão histórico-social, desafiada a completar e denominar o que está
configurado, a disparidade inclusive. O procedimento é vertiginoso, mas
efetivo: a acuidade mimética para os problemas brasileiros combina-se à
inclusão maliciosa de raciocínios inadequados , e à exclusão, também
deliberada, do vocabulário e dos argumentos ligados à questão nacional. Esta,
cuja ausência é estridente, passa a ter a presença que o leitor insatisfeito
seja capaz de lhe dar por conta própria, com as matérias à mão e longe dos
chavões românticos e naturalistas então disponíveis. O movimento excede e
arrasta o seu marco explícito, colocado pelo explicador da fábula, e "cabe ao
leitor tirar as conclusões da conclusão".20
Enquanto o cronista se queixa do pouco sucesso de Martinha, é claro que ela
está mais que imortalizada ' graças a essa mesma queixa, que compõe uma
circunstância indireta de grande qualidade. Para ele, indeciso entre os pólos
do clássico e do autóctone, ambos incapazes de assegurar à moça "um lugar de
honra na história", não há como sair do impasse. Já para Machado ' que
inventava a situação narrativa ' o impasse e o prosador dividido são eles
próprios a solução: uma vez incluídos no jogo literário, conferem à cena uma
complexidade de nova ordem. Deixam entrever outra história mais real, em curso
mas informulada, da qual são parte involuntária, onde a escolha entre localismo
e universalismo funciona de modo historicamente particular, com as noções
trocando e destrocando de posição, em discrepância com o seu conceito abstrato.
Olhando bem, Martinha não se tornou imortal porque um literato nativista se
tivesse atido aos termos dela e da Cachoeira, recusando a tradição que as
impede de brilhar. Pelo contrário, na ausência do paralelo ilustre o episódio
ficaria reduzido a uma facada obscura. Na verdade, é a referência à dona
celebrada que tira da vala comum a mocinha do meretrício local, transformando-
a em tema "para a tribuna, para a dissertação, para a palestra" ' não porque
seja uma igual de Lucrecia, como quereria o cronista, mas porque a comparação
não se aplica, fazendo girar em falso a cultura canônica e indicando algo que
lhe escapa, que fica atravessado e seria o principal. Isso sem esquecer os usos
locais e nada universais a que na ocasião é submetida a própria Lucrecia.
Um deslocamento análogo desuniversaliza a forma do paralelo, tornando-a local,
pitoresca e arbitrária. Em tom solene, ela deixa à mostra uma porção de
realidades entre indesejadas e risíveis, vexames tais como o nosso reflexo
estrangeiro diante dos patrícios pobres, desprovidos de existência civil, as
veleidades de requinte dos educados, a sua avidez de reconhecimento, o papel
anti-popular da cultura clássica, a adoção semi-culta e pernóstica desse mesmo
papel e assim por diante, que adquirem tessitura literária, além de darem a
Martinha o contexto adensado, propriamente brasileiro, que parecia faltar. Como
dispositivo formal, a comparação dos punhais é um cenário de cartolina, mas com
a força de revelação dos achados oswaldianos: "O lado doutor, o lado citações,
o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia.
Tudo revertendo em riqueza".21 Sem nada de antiquário, a segunda intenção do
paralelo é satírica e visa o presente, em conivência maliciosa com o Realismo
oitocentista. A sua lição de coisas depende da inadequação da forma ela mesma,
que supre o estado rudimentar das anedotas locais, insuficientemente
desenvolvidas para subir à cena com força própria. Com o recuo devido, a
"desigualdade dos destinos" lamentada na crônica se despega de Martinha e
Lucrecia, que não têm porque ser iguais, para aludir à condição inferiorizada e
moderna de país periférico, atolado na conformação e nas privações da ex-
colônia, estas sim difíceis de assimilar.
Em suma, universalismo e localismo são pólos equívocos, ideologias de que
Machado se vale como de materiais. A parafernália da retórica e do Humanismo
lhe serve, desde que faça figura imprópria e configure um desconcerto
particular, com ingrediente de classe e coeficiente histórico precisos, tudo
sem prejuízo da ambiência de universalidade. Idem para o anseio patriótico de
libertar a matéria local dos enquadramentos preconceituosos da cultura dita
alta, naturalmente estrangeira. Também ele serve, desde que seja para mostrar
um caminho contra-indicado, que conduz ao isolamento e à insignificância, a que
o motivo nacional imprime ressonância contemporânea.22 Com os desacertos de uns
e outros, que é o que têm de mais verdadeiro, Machado dá figura artística às
"anomalias" da integração interna e da articulação externa da ex-colônia, agora
uma quase-nação. No ponto de partida, que não é ingênuo, estão os resultados
locais e indesejáveis de grandes tendências em voga, os quais a seu modo são
aclarações: cultura hegemônica em quantidade, mas qualificada pela paisagem
social diferente; e vida popular a que não falta poesia, mas no espelho da
norma burguesa, que impede de idealizá-la. São materiais com feição muito
própria, saturados de intenções truncadas, que põem de pé uma problemática
nova, difícil, de classes e de inserção internacional, que não cabe na oposição
entre local e universal.
A referência de fundo é a formação da nacionalidade nas condições herdadas da
colonização, inevitavelmente fora de esquadro, se o esquadro forem as auto-
idealizações da Europa adiantada. Traduzindo os termos pelo seu desempenho,
"local" é a falta de mediações, a descontinuidade entre o dia-a-dia semi-
colonial e a norma do mundo contemporâneo; e "universal" é o consagrado e
obrigatório, que se torna um despropósito ou uma brutalidade quando aplicado
sem mais à mesma circunstância. As mediações não se podem fabricar do dia para
a noite. Ao desenvolver uma escrita em que os dois âmbitos contracenam a seco,
naturalmente com ironia, Machado criava um equivalente dessa constelação
histórica, além de colocá-la em movimento, com seus fortes momentos de verdade.
O universal é falso, e o local participaria do universal se não estivesse
isolado. Enquanto outros escritores buscavam a cor local em regiões e classes
pouco tocadas pelo progresso, Machado foi detectá-la em nossas classes mais
civilizadas, ou universais: o freqüentador carioca de Tito Lívio, que zomba dos
compatriotas desfavorecidos e no íntimo se ofende com o seu destino à margem do
mundo, não é menos pitoresco do que Martinha. Mas não se pode dizer que seja
uma figura localista, pois o sistema de seus ressentimentos faz parte clara da
história contemporânea e de seu quadro de desigualdades internacionais. Com
grande inteligência artística, Machado desmanchava o confinamento que sufocava
a matéria brasileira. Atrás dos rótulos estéticos e lógicos há luta de classes,
luta entre nações, desproporção entre as acumulações culturais respectivas,
além de luta crítica.
O objeto último da queixa, se estivermos certos, é a ordem mundial
desequilibrada. Esta reconhece só o que está consagrado na cultura hegemônica,
ou que se pareça com ela. E deixa a um canto as ex-colônias, que não
correspondem ao padrão. Era o próprio desequilíbrio que impunha aos escritores
a dúvida angustiosa: o espírito vale porque se acolhe ao repertório dos modelos
europeus? ou vive do apego ao viés peculiar, muitas vezes constrangedor, para
não dizer impublicável, do país em formação?23 Machado de Assis, que era avesso
à unilateralidade, não só não tomou partido no caso, como tomou o partido de
assumir e acentuar as decalagens, fazendo delas uma regra de sua prosa, que é
mais tensionada do que se diz. Para ele o dilema não comportava solução
imediata, mas tinha possibilidades cômicas e representatividade nacional, além
de funcionar como caricatura do presente do mundo, em que as experiências
locais deixam mal a cultura autorizada e vice-versa, num amesquinhamento
recíproco de grande envergadura, que é um verdadeiro "universal moderno".
(continua)
[1] Mário de Andrade, Feito em França (1939), O empalhador de passarinho, São
Paulo,Martins,1955,p 34.
[2] Sergio Miceli, A desilusão americana, São Paulo, Editora Sumaré, 1990,p 13.
[3] Susan Sontag, Afterlives: the case of Machado de Assis (1990), Where the
stress falls, Nova York, Picador, 2002,p 38.O romance de Sontag, The
benefactor, é de 1963. William L. Grossman, o tradutor das Memórias póstumas
para o inglês (Epitaph for a small winner, 1952), viera ao Rio de Janeiro em
1948,a convite do governo, para criar uma business school. Ver o depoimento na
resenha de Alexander Coleman à nova tradução do romance, em 1997, agora como
Posthumous memoirs of Brás Cubas,<http://www.americas-society.org>.
[4] Ver Saturday Review, 19.3.1960, p. 20,onde há uma resenha do romance de
Cecil Hemley, The Experience, feita pelo mesmo William Grossman. Este assinala
a influência de Machado sobre estrutura e estilo do livro.Acompanha a resenha
um comentário de Hemley, que transcrevo na íntegra, por tudo que antecipa.
Devo admitir a minha dívida com o grande escritor brasileiro Machado de Assis,
cujas obras venho admirando desde que tomei conhecimento delas oito anos atrás.
Sempre fui um apaixonado de Laurence Sterne e, de fato, quando jovem, escrevi
prosa muito influenciada por ele. É claro que Sterne foi também um dos
escritores que abriram os olhos a Machado, de sorte que Machado e eu havíamos
sido próximos antes ainda de nos encontrarmos. Contudo, o significado do
escritor brasileiro para mim esteve não tanto naqueles elementos técnicos
evidentes ' tais como os capítulos breves e as interrupções súbitas da
narrativa pelo autor ' que ele tomara emprestado a Sterne.O que achei
particularmente estimulante foi a suaruptura radical com a tradição realista. /
É claro que há muitas maneiras de escrever um romance e não desejo desmerecer
romances e romancistas com tendência diferente da minha. Machado mostrou-me um
modo de tornar contemporâneo o romance clássico.Não quero dizer que o copiei.
Sob alguns aspectos as minhas idéias estão em oposição até direta com as dele.
Não sou um niilista. Mas tenho me interessado pelo tratamento cômico de idéias,
bem como por maneiras diferentes de lidar com as personagens, para fugir ao
psicologismo dos escritores à busca do Zeitgeist (espírito de época). Com
efeito, a minha visão do universo não confere um lugar demasiado alto à
psicologia e à sociologia, de sorte que a espécie de forma que desenvolvi é
estreitamente ligada a meu tema. O ser humano preocupa-se com o Ser,quer
queira, quer não, e é por natureza uma criatura filosófica.Qualquer romance que
não tenha dimensões metafísicas e ontológicas estará necessariamente truncado.
Devo a citação a Antonio Candido,a quem agradeço.
[5] John Barth, Forword, The floating opera and The end of the road, Nova
York,Anchor,1988,p vi-vii. Os romances são respectivamente de
1956 e 1958.
[6] Mário de Andrade, Machado de Assis (1939), Aspectos da literatura
brasileira, São Paulo, Martins, s/d. Para o roteiro da recepção brasileira, ver
Antonio Candido, Esquema de Machado de Assis, Vários escritos, São Paulo,Duas
Cidades,1970.Para a recepção norte-americana, Daphne Patai, Machado in
English, in Richard Graham (ed.), Machado de Assis, Reflections on a Brazilian
Masterwriter, University of Texas Press,Austin, 1999.
[7] Antonio Candido, Formação da literatura brasileira (1959),São Paulo,
Martins,1969, vol.2,pgspp.117-8. [ 8] Raymundo Faoro, Machado
de Assis: a pirâmide e o trapézio, São Paulo, C.E. Nacional,1974.
[8] Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, São Paulo, C.E.
Nacional,1974.
[9] O que lhe faltava,e isso o enquadra na linha dos moralistas, era a
compreensão da realidade social, como totalidade,nascida nas relações
exteriores e impregnada na vida interior. Raymundo Faoro,op. cit.,p 504.
[10] O conjunto desses passos encontra- se em Silviano Santiago, Retórica da
verossimilhança, Uma literatura nos trópicos, São Paulo,Perspectiva, 1978;
Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977 e Um
mestre na periferia do capitalismo, São Paulo, Duas Cidades, 1990;Alfredo
Bosi,A máscara e a fenda,in Alfredo Bosi et al.,Machado de Assis, São Paulo,
Atica, 1982; John Gledson, The deceptive realism of Machado de Assis,
Liverpool, Francis Cairns, 1984 e Machado de Assis: ficção e história, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1986; José Miguel Wisnik,Machado Maxixe: o caso
Pestana, Sem receita, São Paulo,Publifolha,2004.
[11] Michael Wood, Master among the ruins, The New York Review of Books, 18
de julho de 2002.Em português, Um mestre entre ruínas, Mais, Folha de S.
Paulo, 21.9.2002.
[12] Acompanho aqui as grandes linhas do livro de Pascale Casanova, La
République Mondiale des Lettres, Paris, Seuil, 1999. Numa boa discussão a
respeito, Christopher Prendergast salienta o interesse dos esquemas de
Casanova, sem ocultar que as análises propriamente literárias deixam a desejar.
Ver Introduction, em Christopher Prendergast (ed.), Debating World
Literature, Londres, Verso,2004.
[13] Mas tanto Marx quanto os teóricos do subdesenvolvimento não eram
evolucionistas. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista / O
ornitorrinco, São Paulo,Boitempo,2003,p 121.Para o estudo em grande escala
dessa ordem de movimentos na literatura nacional, ver Antonio Candido,Formação
da literatura brasileira (momentos decisivos), São Paulo, Martins, 1959. A
possibilidade de retomar esses mesmos esquemas noutras esferas da cultura
nacional e de entroncá-los na dialética geral do mundo moderno está esboçada no
conjunto da obra de Paulo Arantes. Ver especialmente Otilia e Paulo Arantes,
Sentido da formação, São Paulo, Paz e Terra,1997.
[14] Casanova,op. cit., pp. 37-40.
[15] Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis, Berkeley,
University of California Press, 1960, pgs V e 1.
[16] Machado de Assis, Dom Casmurro, cap.CXXXV.
[17] Helen Caldwell, op. cit., p.72.
[18] Machado de Assis, O punhal de Martinha (5 de agosto de 1894), Obra
completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, vol. III, p 638. Como a crônica é
breve, as citações vão sem indicação de página.
[19] Machado de Assis, Notícia da atual literatura brasileira: instinto de
nacionalidade,Obra completa, Rio de Janeiro, Aguilar,1959, vol. III, p.817.
[20] Charles Baudelaire, Madame Bovary, L'Art Romantique, Oeuvres Complètes,
Bibliothèque de la Pléiade, 1951,p 1000.
[21] Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Do Pau- Brasil à
Antropofagia e às Utopias, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978, p.5.
[22] Sobre a textura histórico-mundial dessa ordem de ressentimentos, ver Paulo
Arantes,Ressentimento da dialética, Rio de Janeiro,Paz e Terra,1996.
[23] A propósito de O cortiço, que deve muito a L'assommoir de Zola, e acerta
também muito em relação ao Brasil, Antonio Candido menciona um problema de
filiação de textos e de fidelidade aos contextos. A fórmula resume um programa
crítico. Antonio Candido, De cortiço a cortiço, O discurso e a cidade, São
Paulo, Duas Cidades,1993,p 124.