Corrosão social, pragmatismo e ressentimento: vozes dissonantes no cinema
brasileiro de resultados
O cinema brasileiro contemporâneo tem privilegiado formas de narrar e interagir
com o mundo em que a voz ganha um papel central. Seja nas entrevistas em
documentários, seja nas personagens vividas por atores, a voz vem ao centro
como expressão da "fala direta" de um sujeito, e há um enorme leque de filmes
de ficção em que se apresenta como voz over, sobrepondo-se à imagem para narrar
parte da história, fazer comentários e antecipar sentidos. Esse tipo de
intervenção está disseminado pelas variadas formas e estilos, em filmes
inscritos na tradição do film noir, em dramas sociais, em distintas incursões
na crise da família, na comédia. Há a voz que expõe a memória, o diário de
campo do cineasta, a biografia.
Pela freqüência e variedade de funções, essa presença singulariza o cinema
atual, mas trata-se de um procedimento que vem dos anos 1940 e ganhou impulso
especial nos anos 1960-70, quando filmes modernos de grande ressonância o
exploraram com originalidade, expandindo as possíveis relações entre a imagem e
a voz, construindo dissonâncias, como no caso de Glauber Rocha, Júlio Bressane,
Leon Hirszman, Rogério Sganzerla e Arthur Omar. O cinema recente fez incursões
afinadas a essa experiência, como nos caso de Miramar (Júlio Bressane, 1997) e
Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000). E há explorações da voz over como
expressão mais aguda da crise do sujeito ou da própria dificuldade de "dizer" o
mundo ' como em Estorvo (Ruy Guerra, 2000). Na grande maioria dos casos,
entretanto, a voz tem assumido uma postura mais pedagógica, voltada para
operações de costura e de informação, como se vê nos filmes cuja realização
envolve uma conexão (estética ou de produção) com as experiências mais
interessantes da tele-ficção, a exemplo de Guel Arraes e Jorge Furtado. Aí, a
voz over facilita a fluência do processo e cria uma descontração própria à
conversa na intimidade, quase sempre conduzida por atores carismáticos. A fala
"natural", dirigida aos espectadores, se ajusta a um protocolo de comunicação
de coordenadas claras, na ação e no pensamento.
Vou me concentrar em três exemplos deste cinema popular de mercado, filmes em
que a voz diz "eu" e conta a sua própria história: Cidade de Deus (Fernando
Meirelles e Kátia Lund, 2002), O homem que copiava (Jorge Furtado, 2003) e
Redentor (Cláudio Torres, 2004).1 São casos em que se pode relacionar a fala
over ' como discurso do sujeito "em situação" ' e o contexto social. Todos
atravessam um campo de tensões marcado por violência, expansão dos mercados
ilícitos, delinqüência empresarial, hegemonia do consumo, crise do Estado-nação
e da família. Focalizo um cenário em que se faz presente um motivo recorrente
no cinema da retomada ' a figura do ressentimento.2 Mas estarei às voltas com
personagens que buscam saídas, um canal de ação positiva e de recuperação de
auto-estima. Tais personagens cumprem um trajeto de exceção no terreno minado
em que se movem, e os filmes fazem da voz over um pólo de amenização (não sem
ironia) dos aspectos mais brutais da experiência em foco (é preciso aparar as
farpas do trágico). Nos três filmes, vale o cotejo entre a potência do dinheiro
e a lei do pai (este ausente ou impotente), não mais sintonizadas, dentro de
enredos em que prevalece o interesse e o alpinismo social. Ao passarmos de um
filme a outro, o jogo da ascensão social, ou o salve-se quem puder, envolve a
oposição renovada de acaso e necessidade, a lida com o que é contingente e se
pode aceitar como golpe de sorte num jogo de probabilidades ou reinscrever como
intervenção discreta ou escancarada da Providência.
Em Cidade de Deus, o narrador é o adolescente tímido, porém perspicaz, que traz
na voz e na ação um manual de sobrevivência em meio à guerra dos soldados (ou
capitães) do tráfico de drogas, jovens ou meninos que encontram uma forma de
inclusão ao entrar na rede de um mercado clandestino que lhes propicia ganhos
imediatos e, quase sempre, a morte precoce. Em O homem que copiava, o principal
narrador vive a rotina do pobre funcionário, num mundo de desejos insatisfeitos
que termina por recusar, montando um esquema mirabolante de enriquecimento
rápido que dá certo, apesar do seu desajeito, fazendo de seu comentário em voz
over um irônico manual da ascensão social, apoiado num senso prático que
descarta interrogações de tipo ético. Em Redentor, é a voz da classe média que
vem ao centro, e o narrador defunto coloca, de imediato, questões éticas e
teológicas diante da indigência social ' feita de desigualdade, logro e
corrupção ' que veremos não ter sido, no passado, sua efetiva preocupação;
obcecado pela redenção da família arruinada, protagonizou uma fábula moral que
deixou no rastro um manual do ressentimento diante do império do dinheiro e da
dissolução da família patriarcal.
São filmes que trabalham a crise de valores contemporânea dentro de um projeto
que visa conciliar a inquietação do autor com o cinema de gênero, a reflexão
com o entretenimento. Cidade de Deus é o drama naturalista que focaliza a
contundência do sintoma, compondo-se como um "filme de ação" concentrado na
guerra do tráfico, condensando o livro de Paulo Lins que atravessa a mesma
experiência social com outro critério, mais denso em suas observações sobre o
contexto e mais nuançado na galeria de personagens. O homem que copiavaé a
comédia romântica que assume as regras clássicas (shakespearianas) de fabulação
do gênero, mas dentro de um esquema "perverso" que as desloca para o terreno da
franca transgressão, envolvendo assalto e parricídio; dessa forma, lança uma
interrogação sobre o que está implicado no caminho para o final feliz que é
movediço em seus valores, tanto quanto são sombrias as personagens-obstáculo, o
que embaralha o aceitável e o absurdo, como é típico nos jogos de linguagem de
Jorge Furtado. Redentor é a ópera em prosa como espetáculo, filme que trabalha
no fosso que ele próprio institui entre a grandiloqüência (visual) e a feição
acanhada do herói cuja dicção se ajusta ao caráter privado de seu projeto de
redenção do pai. Resulta aí um cotejo entre vozes e imagens que se insere na
tradição dos dramas de família onde se reconhece o papel decisivo do dinheiro e
da propriedade (como em Oduvaldo Viana Filho), mas a tonalidade nos lembra mais
o teatro de Nelson Rodrigues e o cinema de Arnaldo Jabor.
O MANUAL DA SOBREVIVÊNCIA
Busca-Pé, em sua conversa com a platéia, faz um nítido contraponto com a
avalanche de choques presente nas cenas; a sua voz over é uma ocasião de
respiro, balanço e organização dos dados; às vezes, ele age como o informante
do antropólogo para quem traduz os códigos do mundo em que se formou. Este traz
a marca da violência que tem uma história que ele narra, pontuando o filme
inteiro. Sua fala traz o peso da representação, de alguém que traz o legado de
uma comunidade, mas sua presença é frágil quando se pensa em lhe atribuir o
papel de expressar a "visão de dentro" entendida como um senso comum partilhado
pelos habitantes de Cidade de Deus. Sua condição é singular, seu destino
também. O filme confere a ele a aura da exceção, própria a quem se equilibra no
fio da navalha e exibe talentos que lhe permitem se salvar.
O seu caminho de superação da cadeia da violência não deriva de conselhos ou de
sua inserção num grupo empenhado em combatê-la. A tônica de Busca-Pé é a
afirmação pragmática que resulta de lições de vida captadas pela sensibilidade
de sua figura tímida de malandro sem tagarelice. Por medo, entre outros
motivos, ele recusa o imperativo dos valentões e os códigos que presidem o
universo da quadrilha, terreno do culto à virilidade, à provocação, à ideologia
do confronto como ponto de honra. Por outro lado, não ostenta a consciência
moral dos "homens de bem" nem cultua normas sociais proclamadas.
Ele é o dono da voz, mas não o protagonista do filme no plano do espetáculo. É
o tipo discreto que enfrenta riscos, mas permanece fora da engrenagem. A figura
mais forte em nossa memória, o tipo social que emerge do filme, é Zé Pequeno. A
imagem e a potência se instalam em seu lugar. Dentro da opção de Meirelles por
um naturalismo embebido de adrenalina, ele se impõe, pela violência, pela
conformação das cenas, pela sua palavra que se insere numa linguagem própria
cuja dicção e vocabulário encontraram extraordinária expressão no filme, graças
a atores ligados ao grupo Nós do Morroque trouxeram o aporte decisivo a Cidade
de Deus. Pela sua contundência, o cenário da violência ganha o primeiro plano,
embora as ações estejam articuladas, aqui e ali, pela fala de Busca-Pé em seu
mapeamento da guerra. A força retórica do narrador é estar em sintonia com os
espectadores como pólo mediador nessa tragédia de vingança e luta pelo poder. O
espaço da voz é uma espécie de proscênio, meio filme meio platéia, em que fala
quem passou por apertos, mas recapitula de forma organizada (embora espremida
no fluxo das ações), podendo trazer humor porque já distante da cena. Se alguns
amigos foram condenados por ações compulsivas, ele destoa pelo recuo, pela
sensatez. Não ressentido no território do ressentimento, ele teve a
prerrogativa da suspensão do fluxo de violência, encontrando a saída na lente
de uma câmera a que chega por impulso próprio e favorecido pelas
circunstâncias. Seu êxito não resulta da intervenção de um agente social
(Estado, ONG, movimentos sociais), é uma saída do círculo não partilhada, pois
Cidade de Deus, no filme, não exibe os seus pontos de normalidade, havendo uma
ausência da vida comum que gerou o protesto dos que julgaram estar a comunidade
aí estigmatizada, numa reprodução do estereótipo já criado pela imprensa antes
do filme.3
Na tela, a regra não é o realismo, mas a rentabilização da lógica de guerra. Há
os "soldados", há a polícia e há Busca-Pé. Todos exibem, desde a abertura, os
traços de comportamento que vão selar os seus destinos como resultado de sua
índole pessoal. Eles são o que são. Seu modo de ser irrompe na tela, de
imediato. E não haverá, no longo retrospecto, uma atenção a histórias de
família ou qualquer outro motivo clássico. A exceção é o caso do próprio
narrador ' uma cena doméstica marca a sua diferença com o irmão que lhe diz:
"você é inteligente; deve estudar". Todas as outras personagens só valem pelo
que mostram na ação imediata. Zé Pequeno, por exemplo, foi Dadinho, o menino da
violência brutal, precoce, que tem a ver com o choque entre o querer ser adulto
e a humilhação vinda dos mais velhos. Mas isso é pouco diante da sua ausência
total de limite. No salto do menino ao jovem, muda o ator e o tempo. Mas tudo é
figura do mesmo: a sua vontade de poder se resume na primeira seqüência, que
vale a pena lembrar.
O batuque, o ritmo da montagem e o clima de festa embalam, de imediato, o
espectador na ação. O olhar focaliza uma prosaica galinha que escapa ao
controle dos seus matadores, tornando-se objeto da perseguição dos favelados e
do especial empenho de Zé Pequeno. Seu rosto espelha o prazer da caça, ocasião
para mandar. Faz gestos, grita, mobiliza seu exército. Quer sentir o frêmito do
momento, viver essa pulsão que se canaliza, mas não estanca. No contraste entre
o empenho do comandante e o valor do objeto, tudo revela um jogo quase
automático de estímulo e resposta; no mando e na obediência todos são peças de
um jogo assumido de forma apaixonada, como se correr atrás de uma galinha (tal
como correr atrás de uma bola) fosse decisivo. A entrada do narrador em cena
tem a tonalidade oposta, ou tonicidade oposta: ele é distraído, está
conversando, demora a reagir ao que acontece em volta, não traz aquele estado
de alerta, fala com um amigo sobre a fotografia e o jornal quando desponta no
meio da guerra. A corrida atrás da galinha chega ao fim quando os perseguidores
armados se deparam com um grupo de policiais. Busca-Pé se vê, em pleno meio da
rua, exatamente na linha de tiro, entre o exército de Zé Pequeno e o cordão dos
policiais ' uma condensação do seu destino.4
O efeito de suspense não chega aqui a ganhar corpo, pois a entrada de sua voz
traz o alívio na fórmula do humor popular frente à falta de saída: "na Cidade
de Deus, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Sua fala não é
enérgica, contrasta com o clima geral e interrompe o fluxo como quem constata
uma realidade que já não assusta. Num passe de mágica, seu corpo dá um giro no
ar, liberta-se da cena, recuando no tempo, até os anos 1960. Lá está ele
instalado na mesma posição de goleiro, agora efetivamente debaixo das traves de
um campo de futebol, resumindo sua posição no jogo da vida e da morte. E a
prática esportiva dos então meninos faz da bola o objeto da disputa, não mais a
galinha que valia por ela, completando uma das metáforas centrais do filme: o
que vale é o jogo e, dentro dele, o comando. A voz começa então a contar a
história da Cidade de Deus e da evolução de seus valentões, flagrados,
primeiro, em sua fase mais ingênua, quando invadem o campo e furam a bola com
um tiro, para estragar o prazer, já mostrando que a auto-afirmação pelo mal tem
um efeito simbólico tanto maior quanto mais arbitrária. Para Busca-Pé, vale a
lição do impasse, da frustração diante da sacanagem. Aprende o controle do
medo, tal como na cena familiar, mais tarde, evidenciará o riso discreto, mas
solidário, diante dos apuros do irmão mais velho na bronca do pai.
Não é a violência que deve ser explicada, mas o que faz Busca-Pé escapar do
destino trágico, ajudado pela sua mescla de temor e humor. No cenário movido
pela engrenagem da vingança, ele pode ser pólo de comédia, menos pelo que lhe
acontece, mas pelo estilo de sua locução, como quando narra a ocasião em que
poderia ter matado Zé Pequeno para vingar o irmão. A voz over e a decupagem ' o
ponto de vista, a arma, inimigo na linha de tiro ' deixam clara a natureza da
decisão: "pensar é fácil, mas...". O filme está cheio desses olhares de ajuste
de contas que não poupam os envolvidos na ciranda, e a morte de Bené evidencia
o quanto não basta se colocar como uma força conciliatória, de bom humor, que
poderia selar melhor a aliança do grupo com a comunidade. Por algum tempo, ele
contém o terrorismo de Zé Pequeno, mas sua ausência sela de vez a cadeia da
violência temperada pela vingança que a história de Mané Galinha virá reiterar.
Confirmando o que vale como premissa no trabalho das ONGs (ausentes, no
entanto, da estória), a cultura é a porta de saída do inferno quando ela se faz
opção mais atraente do que as armas como passaporte de virilidade, glória
efêmera e morte precoce, roteiro mais aceito do que o emprego sem graça e mal
pago. Zé Pequeno, como pólo trágico da estória, termina morto pela retaliação
dos seus sucessores. Depois dele virão os meninos, bando que atravessa a tela
para apontar o novo ciclo no momento em que o narrador já se instala em sua
vocação ao documentar o conflito com a polícia, mas explicita os limites de seu
trabalho que deverá ser apoiado em imagens negociadas, pois não é tonto. Ele
examina a foto que espelha a corrupção policial dentro do jogo que leva à morte
de Zé Pequeno, e opta por não levá-la ao jornal: junto com a fama, viria o
altíssimo risco. Prefere a estabilidade no emprego impressa nas fotos menos
explosivas.
A opção pela fotografia como forma de inclusão social significa um salto. Mas
nem por isso, Busca-Pé se depara com um mundo mais ético e solidário, pois a
sua primeira lição no jornal é enfrentar o oportunismo e a deslealdade que lhe
poderiam ter custado a vida, não fosse a vaidade de Zé Pequeno, feliz com a
publicação da foto. O narrador aprende que vive num mundo em que deve negociar,
não ter pressa na ambição, nem pureza nos princípios. O êxito pede a postura
pragmática de tomar o mundo pelo que é e se ajustar, com talento e esperteza,
às suas regras, sem tensionar a experiência com imperativos morais já sem
sentido como bem mostraram a impotência do pai e o exemplo sórdido das
autoridades (o que pensar da polícia?). Seus amigos morreram pelo apego ao
fetiche das armas, pelo afã de alcançar a fama, pela recusa da "vida de otário"
que ele chegou até a ensaiar ao se empregar num supermercado, posição modesta
de que foi expelido "por ser da Cidade de Deus". A fotografia traz o prazer e
um novo status, em tudo um destino improvável, dada a sua origem. Contingências
da vida.
Operando uma outra máquina, num trabalho mais rotineiro, André, o protagonista
de O homem que copiava, é o funcionário da pequena loja. Já trabalhou em
supermercado, dentro da "vida de otário", segundo Busca-Pé, a mesma na qual
continua, em emprego chato e mal remunerado. A diferença é que a nova situação
lhe oferece muito tempo para pensar, divagar, enquanto age como "operador de
máquina fotocopiadora", como ele diz para dignificar o prosaico xerox.
O MANUAL DA ASCENSÃO
Desde Ilha das flores, a voz over se fez estilo nos filmes de Jorge Furtado,
pela sua forma irônica de explorar deduções lógicas que, apoiadas em evidência
incontestável, chegam a conclusões eticamente paradoxais, incitando o
espectador a reconhecer algo de errado no mundo, o que pede uma revisão de
valores ou uma transformação da ordem social, para que tal paradoxo se resolva.
Em O homem que copiava, não temos o narrador impessoal que traz a sua
autoridade às deduções e comentários. André é o sujeito comum "em situação"
que, no trabalho, manipula textos, imagens, se intoxica de letras e desenhos
que copia. Tem sua imaginação marcada por isso. Em casa, reproduz os dados do
dia-a-dia, dedica-se a ilustrações, quadrinhos, quando não está a observar o
mundo da janela do apartamento, de binóculo. Mora com a mãe, totalmente
absorvida pela TV na sala. Diálogos monossílabos, a vida familiar está reduzida
ao mínimo. Ele tem algo em comum com Zé Pequeno e outros meninos de Cidade de
Deus: a ausência do pai.
Apresenta-se, de início, como figura solitária, mas a postura afirmativa o
retira da sombra, afastando-o do modelo do pequeno homem isolado que alimenta
fantasias, amores sem chance, faz-se voyeur e segue alguém de forma obcecada,
um ressentido de final trágico (como acontece em Cara a Cara, de Júlio
Bressane). Como Busca-Pé, ele tem um senso de auto-ironia que lhe permite
romper o círculo. Já se convenceu de que não tem talento para a fama alcançada
nos campos de futebol ou na carreira de bandido machão. No seu bairro, ele vê
como tal carreira não leva nada longe o seu amigo valentão que dá tiro,
enfrenta a polícia e o olha de cima, chamando-o de "cagalhão". São os
empregados de loja não resignados com a própria condição de classe que compõem
o núcleo central ' Marinês, a colega de trabalho; Cardoso, o amigo dela; e
Sílvia, a moça do bairro que ele observa da janela. A voz over revela um jovem
sistemático na composição dos cenários que observa, notadamente o de Sílvia, a
quem elege como objeto de uma paquera que, porque tímida, faz de sua história
uma comédia romântica com ares de inocência, em que os protagonistas atraem
simpatia e tolerância, inclusive para seu projeto de ascensão pelo golpe.
A regra do jogo é ser pragmático, seguir um dito de Marinês: "pai pobre é
destino, marido pobre é burrice". André o aplica ao próprio caso: seu pai se
mandou quando ele tinha 4 anos (parte do destino); aos 11, bateu num colega que
fez piada com a história de seu pai e foi expulso da escola (parte da burrice).
Sendo o mundo o que é, por que se resignar à pobreza de um bairro modesto de
Porto Alegre? É preciso "sair do buraco". Como não há a fama no horizonte,
resta ganhar dinheiro, muito dinheiro, sem as ilusões de uma acumulação
produzida pelo trabalho ' a ascensão penosa de longo prazo está fora de pauta.
Admitido que a regra social é a lei da vantagem, resta montar o estratagema do
logro a partir dos meios à mão, ou seja, da máquina xerox. Seu posto de
trabalho gera devaneios, mas a curiosidade de André não é desinteressada. Ele
faz do que lê, de passagem, a fonte de um saber teórico-prático que a voz over
nos expõe em detalhe, acentuando a sua inclinação para formular leis gerais a
partir das observações. O seu gosto por associações e conjeturas traz para esse
filme o talento de Jorge Furtado em manipular a voz over como fonte de
especulações teóricas que colocam em xeque os valores. Há tempo para isso, pois
a fala de André não está muito ocupada em narrar o passado, resumido quando
necessário em rápidas pinceladas, quase sempre com desenhos e o material
gráfico que manipula em casa. A voz fala no presente, desde o momento em que
ele se apresenta. A regra é o comentário a partir da situação imediata, para
definir um perfil. André é gentil, sem ser subserviente. Resiste à arrogância e
fala conosco de suas fraquezas. Na cena de abertura, mostra sua fibra ao
perseverar na ação que viabiliza seu propósito como cliente do supermercado.
Seus pequenos dramas ensejam a identificação, e nos envolvemos ao seguir, passo
a passo, a montagem da empreitada.
Primeiro passo: a conquista de Sílvia. Obstáculo: a carência de dinheiro.
Constatação: dinheiro é papel. Golpe de sorte: no dia em que tem a idéia de
copiar as notas de 50 reais, chega à loja a máquina de xerox colorido, e o
patrão lhe dá uma nota para pagar uma conta. Resta ser preciso na tarefa e
depois ter a sorte ao passar adiante o dinheiro falso.
Esse é o lado prático que vai se resolver muito bem. Mas a voz over trabalha a
questão do dinheiro na fase da concepção do plano, ao expor as associações de
André na lida com o que copia. Ora ele extrai lições morais, ora aulas de
história, tipo almanaque. Ora alça vôos maiores e faz deduções inocentes (na
lógica), mas espertas nas conseqüências práticas. A voz over compõe uma
filosofia pop cujo sentido vai além da intenção de André. O jovem insatisfeito
faz incursões que o filme explora com muita habilidade, sendo às vezes difícil
separar o que ele poderia dizer de verossímil do que o filme o faz dizer para
efeito de uma reflexão teórica feita da concisão de argumentos e destreza, com
implicações inesperadas: ele enuncia a lógica do capital, a condição do
dinheiro como equivalente universal, e o papel que a fé [no seu valor, porque
lastreado em algum princípio de autoridade] desempenha na sua aceitação como
mediador da troca. Como ele diz: "dinheiro é um pedaço de papel que vale porque
tudo mundo acredita, senão não vale nada". É como um ícone religioso, ou seja,
uma imagem-fetiche.
O "homem que copiava" extrai as conseqüências de sua rotina, pondera as
convenções do papel impresso e se arrisca no papel de falsário. Dá certo. Há
curta euforia pelo efeito disso na relação com Sílvia (conseguiu comprar o que
lhe dará força para continuar a conversa, o flerte), mas tem consciência clara
do limite da capacidade de produção e do risco que a repetição do gesto traria.
O mesmo raciocínio vale para a recusa em trabalhar com o amigo traficante,
preso muitas vezes: é preciso dar um golpe só, uma vez só, ficar rico da noite
para o dia, para poder usufruir logo. Mas falta coragem e motivo para pegar em
arma, dar o grande golpe. Ao observar Sílvia pela janela, obtém novas
informações que dramatizam um motivo familiar, bastante explorado de Griffith a
Fassbinder, do melodrama popular a Nelson Rodrigues: o pai, talvez padrasto,
não se sabe ao certo, constrange a moça com a postura de voyeur assumido,
ameaça constante de um assédio que pode avançar. Suspense. Aflição. Há uma
donzela, tímida, inocente, trabalhadora, sensível à poesia, que espera o
resgate. Levá-la para longe exige dinheiro; a urgência pede o assalto. O toque
moral de herói salvador atenua a violência do plano, e o assalto improvável ao
carro-forte ocorre antes do que se espera, conduzido com total incompetência,
acrescido da coincidência de que um dos seguranças é o pai de Sílvia, em quem
André dá um tiro na perna. A comédia de absurdos chega à corrida de André com a
mala do banco pela rua, para encontrar Cardoso, cúmplice que também faz tudo
errado, o que os leva a tomar um ônibus e ter de abrir a mala do banco para
pagar a tarifa. A sorte os protege, e André, para completar, ganha em seguida
na loteria. O inverossímil se projeta em toda a ação transgressiva e chega ao
paroxismo quando ele se livra do amigo traficante que lhe vendeu a arma (paga
com dinheiro falso), foi preso por isso e vem cobrar. É uma seqüência que
avança como uma história em quadrinhos, tal como os episódios da memória de
André. O dispositivo gráfico des-realiza (falsifica) as ações, em contraste com
as cenas naturalistas da comédia romântica, cujo encanto e inocência mostrarão,
mais tarde, outras facetas.
Há a loteria, e há o roubo, mas a mágica presente no assalto faz deste a
efetiva loteria que gera os milionários da noite para o dia. E o clichê do
"grande golpe" termina sem o fracasso tão reiterado no cinema. Descartado o
código moral do gênero, a realização do desejo vira regra, como se a
Providência fizesse de André um eleito e atuasse através do anjinho (falso) que
Cardoso lhe vendeu e ele pagou com as notas que forjou. A cada passo, é o
teatro da prudência e o fantasma da lei ("isso dá cadeia"), ambos, porém, logo
esquecidos na condução do plano que une o quarteto. A adesão rápida a tudo o
que elimine obstáculos leva ao assassinato do pai de Sílvia. Há a ameaça da
chantagem dele (que reconheceu André no assalto), e há a vontade da filha:
"Antunes é um escroto"; "eu vou ter que ser eternamente grata a um cara que
dormiu com a minha mãe há 18 anos atrás?". Se André é a voz do realismo, ao
mesmo tempo cândido e mortífero, ela alia o interesse ao ressentimento. Ele
questiona, mas sua dúvida não pode durar, pois já concluiu que a dívida paterna
é falsa moeda, mentira feita de papel, como a correspondência que o pai lhe
pediu para guardar, tarefa que cumpre com disciplina até perder a esperança do
retorno e se liberar do compromisso (a lei do pai) ao queimar as cartas
recebidas e o dinheiro falso que decidira não mais usar. A paternidade é também
uma convenção que não vale se não acreditarmos. Num mundo de valores sem
lastro, tudo é uma questão prática de "ter acesso" ou assumir um legado. Não há
dívidas. Apenas a auto-produção que descarta a esfera da culpa.5
A discussão séria sobre Antenor não impede que a cena do crime seja motivo de
comédia, pois o plano mirabolante se vale, com humor, do MacGuffin de
Hitchcock, aqui presente na figura prosaica de uma galinha inútil (animal que
tem circulado no cinema). De novo, incompetência e sorte de meninos traquinas a
enganar um adulto autoritário. Quanto a Sílvia, toma a condição de vítima
(assédio, obscenidades) para sancionar o impulso de vingança e, diante das
trapalhadas dos amigos, volta ao apartamento para religar a geladeira que vai
fazer o gás explodir.
Tudo resolvido, a fuga dos novos ricos para o Rio de Janeiro se consuma. E o
epílogo nos reserva a reunião final no Corcovado, cenário de filmes recentes
como o lugar da utopia.6 No último torneio, o filme volta a Hitchcock e
introduz um outro ponto de vista: a narração em voz over de Sílvia revela tudo
o que estava fora do campo quando estávamos na ótica de André, tal como em
Vertigo quando passamos de Scottie a Judy. O motivo dessa voz over é a carta
que ela endereça ao suposto pai que mora no Rio, aquele que ela escolhe, um ex-
amante de sua mãe, dos tempos em que foi concebida. Ela se apresenta e marca o
encontro que, de fato, ocorre. O pai-amigo vem completar o tableau irônico da
felicidade; sanciona com ar bonachão, ou mesmo "de família" e moderno, a
oportunidade do encontro, aos pés do Cristo Redentor (última imagem do filme).
Sílvia resume na carta um passado que, em parte, acompanhamos. Seu jogo do
visível e invisível é um primor de reelaboração do vivido segundo as
conveniências. A carta revela que ela sabia de tudo desde o início (dando novo
sentido ao "eu sei tudo" escrito num cartaz dirigido ao namorado voyeur que ela
sabia estar olhando da janela). André pensava ter bons métodos no flerte e
estar com a iniciativa, mas foi o tempo todo controlado por ela, que armou o
esquema desde o início, quando jogou, furtivamente, o cartão postal do Cristo
Redentor junto à máquina de xerox. De tudo, ela seleciona o mais inocente,
deslizando sobre os gestos decisivos. Escreve ao pai adotado (ou real) de uma
forma ao mesmo tempo cândida e maliciosa. O espectador (destinatário da voz
over) percebe cada recalque, afirmação vaga que esconde o principal,
reencontrando a virtude das narrações, o modo como constroem uma versão
suportável dos fatos. E o filme recolhe os dividendos da estratégia de
construção de pontos de vista a partir das vozes over.
Antes ouvíramos André comentar de forma leviana que o amigo traficante morreu
"porque" quis pular onde ele havia montado uma armadilha, apagando uma morte
que não conta e vai para a lata de lixo. No final, o resumo de Sílvia torna
mais refinada a retórica de denegação, em que "há detalhes que não pode
contar", mas que agora, depois de tudo que aprendeu, "está tranqüila". O leitor
da carta, ao contrário de nós, nada sabia dessa história passada a limpo, com
recato. Com as palavras e o dinheiro, trata-se de um mundo de ambivalências. O
valor está na crença (cujos fundamentos estão em outro lugar, não em sua
substância), pois tudo é moeda de troca.
De Cidade de Deus a O homem que copiava, deparamos com duas versões da
figuração (no drama e na comédia) da lógica do dinheiro como norma das
relações. Os meninos do tráfico se empolgam com poder e consumo, não atinam com
lei, religião e ideais ascéticos. Seu infortúnio valoriza o que há de
civilizado em Busca-Pé, sua capacidade de recuo, seu senso de negociação,
pragmatismo. No filme de Jorge Furtado, inverte-se o jogo. Os jovens partem
para o crime na adesão sorridente à máquina do consumo. Não há política, não há
limites legais. Os símbolos da transcendência são modestos e "falsos", embora o
anjinho possa ser lido como amuleto eficiente. Se há Providência, esta
orquestra uma comédia romântica da razão cínica7 abençoada ao final no
Corcovado, imagem que sela nova ambigüidade na relação entre cópia e modelo,
pois sua primeira versão se manifestou no cartão postal e no convite secreto de
Sílvia para o futuro turismo. Aqui, o teatro da identidade é mais sutil e
perverso, quando comparado à malandragem realista de Busca-Pé; aliás, o
fotógrafo Wilson Rodrigues. A inclusão (ou a ascensão) é uma metamorfose.
O MANUAL DO RESSENTIMENTO
O desfecho de O homem que copiava nos remete ao final de Redentor, filme que
repõe a interrogação pela ética e a "lei do pai", trazendo a sua própria versão
do encontro entre as gerações no Corcovado. A estátua do Cristo Redentor é
imagem alegórica recorrente que condensa um sistema de trocas simbólicas entre
religião e alpinismo social que faz equivaler formas distintas de ascensão: a
cobertura de um edifício vale pelo Paraíso, e o Corcovado (topo do Rio, Cidade
de Deus) vale como satisfação do desejo infantil de ascensão econômica (chegar
à cobertura). O filme de Cláudio Torres se inscreve na tradição do drama de
família e dialoga com Nelson Rodrigues, pois se move no império do
ressentimento, mas se afasta do paradigma rodriguiano. Neste, a Providência
está ausente, e os filhos humilham os pais, não como gesto de emancipação, mas
como reposição de neuroses que aprofundam o desastre. Redentor traz, ao
contrário, uma reconciliação que fecha a parábola, reunindo, no além, os
espectros do pai humilhado e do filho cuja obsessão foi redimi-lo. No entanto,
tal desfecho não dispensa a ironia, pela forma como dissolve tensões
acumuladas, ao cumprir os desígnios de um Deus que, agora presente, se põe à
altura de uma imaginação pequeno-burguesa.
A voz over pertence a Célio, o jovem jornalista que assume a missão de salvar a
família arruinada pelo golpe de um empreiteiro de imóveis que recolheu as
prestações, mas não entregou os apartamentos do Edifício Paraíso e nem sequer
pagou os operários. Estes formaram uma favela ao lado do prédio inacabado,
terminando por invadi-lo, para desespero dos compradores logrados.
Na abertura do filme, na esteira de Brás Cubas, ou citando O crepúsculo dos
deuses (Billy Wilder), a voz se identifica como um narrador defunto cujo corpo
está no meio do lixo. Um longo flashback disseca as vicissitudes de Célio até
chegar a esse ponto, narrando os caminhos que o levaram a assinar um pacto com
o vilão da estória, entrar em colapso e se recompor para viver uma jornada de
santo que, embora tingida de comédia, o levou a alcançar um momento de
ressurreição.
Ao contrário de Busca-Pé ou André, Célio carrega a dívida com o pai (foi quem
suplicou pela compra do apartamento) e seu motor, de começo a fim, é a culpa. O
seu mundo é crispado por ressentimentos gerados pelo desejo mimético que leva a
invejar Otávio, o rival-amigo de infância, filho do empresário Saboya, que
enganou a todos e fez seu pai, sua mãe e ele mesmo se arranjarem de forma
humilhante na casa da tia.
A voz over explica tudo: a origem do problema na infância, a culpa, a
rivalidade com o amigo rico como eixo de toda a história. Esta se movimenta a
partir do suicídio do pai de Otávio ' resposta ao escândalo de dívidas
impagáveis que abalam o seu império. Na cena do enterro, o filho responde à
imprensa, e temos o reencontro em que Célio, como repórter, lhe faz a pergunta
ressentida (sobre honra e vergonha como motivo do suicídio). Investida frágil
diante da proclamação de Otávio, defensor da figura titânica do pai, que
estaria acima do moralismo cristão invejoso. A condição de jornalista confere a
Célio a oportunidade de reatar o enredo de sua vida à de Otávio, esperançoso em
resolver a desdita de sua família. Este, por sua vez, vê no amigo jornalista a
chance de incrementar seus estratagemas de criação de imagem. A trama se faz
dessa orquestração de projetos de instrumentação recíproca. Célio aceita um
papel no (falso) esquema de "recuperação financeira" de Otávio quando, a mando
do jornal, tem uma conversa com o amigo, que simula uma repetição do pai e está
no parapeito do prédio de seu escritório. Do alto, Otávio avista o centro da
cidade e explica o que cada prédio significa em termos da ciranda financeira,
tornando a monumental paisagem urbana pura moeda corrente e concluindo: o
problema é que não há dinheiro para todo mundo. Em conluio com o amigo (mas com
plano secreto de vingança), Célio faz uma reportagem no condomínio invadido,
pivô da rixa entre as famílias. A reivindicação dos pobres é justa (foram
enganados e se compensam na ocupação), mas prejudica homens como o pai de
Célio. O teatro do absurdo se instala na conversa dele com quem invadiu o 808,
o "seu" apartamento, ocasião em que assume o ponto de vista de sua classe e
apela para as leis do país, recebendo em resposta a obediência do invasor às
"leis de Deus". Entre o cálculo cínico de Otávio e a presença dos favelados em
"sua" propriedade, vale o ressentimento de Célio com os pobres. A sua vingança
se vale da figura de Soninha, filha do invasor do 808, que ele manipula ("você
quer ser modelo?") para conseguir a foto da primeira página do jornal: ela
refestelada na cobertura do Paraíso, tomando sol, reproduzindo a bonequinha da
maquete do edifício que tanto encantara o menino anos atrás.
A voz over explicita a intenção, dando ensejo a que o Célio narrador julgue o
Célio jornalista sacana. A reportagem desqualifica a invasão e Otávio ganha
fôlego para ir a Brasília pedir ajuda a um ministro enquanto a polícia expulsa
os invasores. O tom das imagens conecta Brasília com a especulação imobiliária
dos Saboya, tomada como um emblema da corrupção nacional. O seu antigo projeto
de edificações na Barra da Tijuca ' "o futuro está lá" ' ganha uma reverberação
messiânica que rebate sobre a epopéia da construção no Planalto Central. Esse é
palco do episódio-limite da queda moral de Célio. Rechaçado pelo ministro, o
empreiteiro monta um esquema para recuperar a fortuna que lhe resta nas Ilhas
Cayman. Precisa de Célio como "laranja" para repatriar o dinheiro; invoca a
amizade de infância e o interesse comum, oferece de imediato uma mala de
dinheiro que Célio, após hesitar, aceita ("isso dá cadeia", frase dita pelo
mesmo ator em O homem que copiava, também antes de aceitar). Contando o
dinheiro, ele liga para a mãe: "estamos ricos, o pai terá a casa própria". "Seu
pai está morto", diz ela. Lera o jornal com matéria dele e, arrasado, decidira
se mudar para o 808. Alojaram-no no quarto de empregada, mas a blitz policial
precipitou a sua morte, uma conseqüência da repressão que Célio havia ajudado a
deflagrar.
Sabotado em sua missão, culpado de novo, ele entra em colapso, acometido do que
diz ser sua "primeira visão": o efeito especial faz explodir a bomba atômica em
Brasília (fato que antes a voz over desejara como fantasia pequeno-burguesa de
punição do suposto foco das mazelas nacionais). O filme muda de registro e
temos sua fuga e peregrinação no cerrado (sempre com a mala na mão),
estropiado. A voz de Deus o retira da deriva e ordena que volte para converter
Otávio e distribuir o dinheiro aos pobres. Ele teme e obedece. A sociedade
conhecerá o Célio beato, em missão reparadora: redimir a si mesmo, à família e
Soninha que, traumatizada, virou prostituta.
Até aqui havia a história de dissolução moral de um personagem obcecado por uma
tarefa redentora que terminou em fracasso. Com a demanda do Deus Pai, a
obsessão ganha outro lastro. A ordem que deve cumprir não vem do pai impotente,
mas do Pai Todo Poderoso, o que não impede que permaneça nos limites da sua
consciência pequeno-burguesa, pois tudo se resume a um gesto assistencial,
dirigido aos favelados, mas que trará benefícios concretos somente à família
(Célio não deixa em nenhum momento de calcular qual seria a sua parte na
distribuição do dinheiro). A sanção divina à cruzada contra Otávio parece
enobrecer a obsessão pela casa própria, mas a dimensão efetiva desse torneio é
também a de amesquinhar o "seja feita a Vossa vontade", pois é pífio o motivo
que faz da jornada de Célio uma imitação rebaixada da Paixão de Cristo. Estão
lá os motivos clássicos: ele faz milagre, ganha liderança, morre e ressuscita,
para reafirmar a mensagem, em obediência ao Pai. A trama é rocambolesca, no
limite da farsa. Célio retorna, quebra o pacto com Otávio, exige que cumpra a
ordem de Deus, mas termina na prisão, sem o apoio de ninguém. No calabouço
apinhado de gente, termina por fazer um milagre e conduzir os presos para a
rua, voltando com um pequeno grupo para o condomínio Paraíso ("sua casa"), onde
arma o ritual de distribuição do dinheiro. Este vem numa mala trazida das Ilhas
Cayman pela própria mãe, que, descrente da santidade do filho, lhe tomou o
lugar na aliança com Otávio. Célio seqüestra o amigo e o leva para o edifício,
atraindo todos os envolvidos para um encontro na simbólica cobertura. A notícia
da distribuição de dinheiro se espalhou, e uma procissão gigantesca vem invadir
o edifício. O povo se faz turba (na ópera na cobertura, a massa é coro, voz
desesperada e irracional, uma legião de seguidores). A assembléia vira motim: a
mãe se recusa a abrir a mala com o dinheiro; Soninha responsabiliza Célio por
toda a desgraça, e a massa o atira lá de cima, poupando, porém, a Otávio.
Morto, o protagonista retorna como um anjo iluminado para ordenar a
distribuição. Abre-se a mala, mas o dinheiro voa pelos ares. A mãe de Célio e
Soninha, perto da mala, conseguem reunir uma bolada, em contraste com os
demais. Como já dissera Otávio, o dinheiro não dá para todo mundo.
O evangelho reduz seus efeitos à esfera privada, e o benefício garantido à mãe
(que compra a casa da família Saboya) e a Soninha (que vira modelo e remedeia
toda a família) torna o Célio abandonado pelos vivos apto para o encontro com o
pai. A voz over avança a ironia: "quanto a mim, finalmente cheguei na
cobertura", fechando o motivo do Edifício Paraíso. O humor da voz e o abraço no
pai sugerem a superação do manual do ressentimento que dominou os passos da
jornada, até mesmo na fase de santo quando continuou a rixa com Otávio. Afinal,
venceram: a voz over informa que Otávio foi parar na prisão e lá se tornou
líder da nova seita dos devotos de Célio, autor dos milagres que motivaram a
fundação do culto cuja imagem compõe a comédia final de Redentor.
Na abertura do filme, a voz descreveu o quadro da desigualdade social e do
logro, e depois fez a pergunta: "se Deus existe, por que será que ele não faz
nada?". Sem referência a atores sociais, sua indagação foi metafísica, cifra da
angústia diante do silêncio de Deus, mas logo se banalizou em função da
resposta: "no meu caso ele fez". A parábola aí iniciada teve como resultado
prático a satisfação do interesse da família e a sua redenção moral ao gosto do
pai (Pai). Feito o balanço, a menos dessa redenção, tudo o mais estaria a seu
alcance quando se viu de posse da primeira mala em Brasília e telefonou para a
mãe: a culpa impediu o usufruto. A intervenção divina permitiu a obtenção do
benefício sem a culpa e lhe deu a coragem (ou medo menor) para o confronto
direto com Otávio.
Essa teologia de resultados, privatizada, vale como um diagnóstico social: o
dinheiro é a religião; a casa própria, o paraíso. A palavra de Deus é moeda de
troca no supermercado de igrejas que têm como lastro a satisfação de
expectativas imediatas. Redentor se concentra na feição monumental desse
sagrado rebaixado, exatamente a que se insere na simbologia oficial da cidade.
Imagem de retorno obsessivo, o Cristo Redentor é o emblema do filme. Tal Cristo
de pedra, solene (ao som de O guarani), tem um efeito que contrasta com o jogo
das vozes, incluída a de Deus ' esta, com todos os ecos e trovões, se
carnavaliza quando a cômica cena do encontro parece resultar da imaginação de
Célio. No entanto, a insistência nos efeitos especiais ' os milagres e seus
desdobramentos ' acabam por confirmar, nos termos da parábola, a intervenção
divina. É próprio da ópera e do melodrama oferecerem sinais de uma ressonância
cósmica que insere as mazelas da personagem numa ordem maior. Seu desejo é que
uma força transcendente espere dele o gesto de salvação. Tal mecanismo de
inflação simbólica funciona aqui, mas a disposição dos pontos de vista impede
que se veja a força expressa no aparato técnico como conseqüência da imaginação
melodramática do protagonista (ele é o dono da voz, mas não da narração, que
tem outros canais). Os clichês visuais de potência ganham efetividade e
autonomia diante do delírio de Célio. Com tal descompasso deliberado, o aparato
age como uma interferência externa, faz-se excessivo diante das ironias que se
constroem pelo tom da voz e pela performance do ator.
Pode-se, por esse descompasso, ver uma dimensão nacional na alegoria de
Redentor ' ligada à citação de O Guarani, ao papel simbólico de Brasília e ao
Cristo Redentor ' que desloca motivos presentes no cinema de Glauber Rocha e
dialoga mais decisivamente com Arnaldo Jabor. O conflito entre a ópera
monumental, o teor das experiências e a dicção modesta de Célio sinaliza as
fissuras do grande épico salvacionista não mais possível num contexto que
dissolveu utopias históricas e rebaixa as esferas de sacralização (incluídos os
mitos nacionais). O desconcerto, no entanto, tem sua feição espetacular quando
ironiza ilusões políticas (como a do fotógrafo que acompanha Célio) ligadas à
mobilização popular, vista como espasmo, sintoma, histeria dos desesperados,
sem horizontes. Acentuada a corrosão geral da vida pública, a precariedade de
Célio se dilui no fluir da fábula. Apesar de tudo, ele permanece o foco
exclusivo de alguma dissonância no seio dos remediados, terminando seu percurso
só, quando afinal morre em nome de algum valor (foi até o fim). Positivado,
recolhe as vantagens do carisma de narrador over disposto à autocrítica bem
humorada, num efeito que se amplifica na paz do encontro com o pai no
Corcovado, diluindo o veneno da frase "finalmente cheguei à cobertura".
Na primeira metade do filme, a culpa de Célio o impede de rentabilizar até o
fim a sua leviandade, impedindo-o de consumar o grande golpe (antes vimos o
sucesso de André e Sílvia, que se lixavam para a dívida simbólica). Beneficiado
pela eleição reparadora, capricho de Deus, ele termina por adquirir a condição
de mártir que, embora tingida pela teologia de resultados, realiza sinceramente
o que Otávio cinicamente reivindicava ("eu sou o mártir da construção civil").
No último torneio, o amigo derrotado confirma a afinidade com as figuras de
Jabor quando reage ao trauma da cobertura assumindo a via religiosa, em falsa
apoteose. Faz lembrar o final de O casamento (1975), em que o empreiteiro
Sabino se apresentava como redentor, confessando a culpa universal e caminhando
para a cadeia como um santo purificador, cercado de um pequeno cortejo de
devotos "populares". Otávio, agora, faz o mesmo, indo liderar uma nova seita na
prisão. São gestos dos senhores da elite que os filmes tratam como uma patética
comédia, como um sintoma da crise de valores dentro da qual o cinismo aberto de
Otávio, lúcido em sua vilania, é o que a nova geração de empresários acrescenta
ao ethos nacional já antes trabalhado. Há, por outro lado, o eixo da família,
no qual Redentor reitera a dissolução do patriarcalismo, apesar do sacrifício
de Célio, cujo enorme zelo pela figura paterna (e pela lei do Pai) não funciona
como antídoto para o pragmatismo rasteiro e a devoção ao dinheiro como norma
social, embora ele renove a experiência de eterno pagamento da dívida (com o
pai, com a lei, com o Pai), retornando sempre ao núcleo familiar. Sua jornada
atormentada com a crise dos valores e a metafísica não tem efeito corretor do
ponto de vista ético, que é o que importa. A primeira mala que devolve ao dono
volta para a ciranda da propina e realimenta os esquemas de Otávio; a segunda,
que procura abrir para as massas, tem o destino semelhante ao encontrado pelo
dinheiro nas fábulas morais de Hollywood em que os gênios consumam o grande
golpe, ganham a parada, mas "não levam", porque uma contingência qualquer faz
tudo ir pelos ares. Aqui, a solução é de outro tipo. A mão invisível,
providencial, faz valer a lei da vantagem. Soninha e a mãe de Célio aprenderam
a usufruir a nova teologia de resultados, sem vocação para cumprir o papel
evangélico de Maria Mãe e Maria Madalena.
A CIRCULAÇÃO DO NOME DE DEUS
As vozes de Cidade de Deus e O homem que copiava operam já fora da lei do pai.
Famílias pobres truncadas lhes transferiram o desafio de um gerenciamento
precoce da inserção na sociedade que, apesar de tudo, conseguiram encarnar em
romances de formação em que a passagem da inocência à experiência é adaptação
bem sucedida, dado o entendimento dos mecanismos de sobrevivência e a opção em
se inscrever no campo da "lei das exceções", no qual se encaixam com muita
sorte. Expressam aí uma tendência do cinema contemporâneo a explorar a
contingência como regra de armação de um percurso que é atípico, improvável, e
vale como fábula curiosa da sorte, cabendo a nós decidir se tudo se insere num
jogo de acasos e probabilidades, como observei, ou se vale perguntar por
acenos, dentro dos filmes, que atestam eventual presença de outra ordem de
determinações que interferem no modo como as coisas se passam.
Nesse sentido, volto à curiosa circulação do motivo do Corcovado e do nome de
Deus reposto nos três filmes. Busca-Pé marca a não jurisdição, em seu mundo, do
Rio cartão postal abençoado, do qual estaria excluída a Cidade de Deus, apesar
do nome. O naturalismo de sua estação no inferno traz até sinais de reza e o
rito de Zé Pequeno, que tem outro código. Mas a Providência silencia, como a
confirmar tal exílio. No filme de Jorge Furtado, os prodígios de um André
inexperiente coincidem com a presença do anjinho que chega a ganhar uma
referência bem humorada na sua fala (um santo-amuleto, estatueta de bolso na
discreta religião privada). E a referência à estátua do Cristo emoldura a
história: há o cartão postal com a imagem do Corcovado (lance inicial de
Sílvia) e há, no plano final, a imagem do Cristo Redentor, que vem dar uma
sanção ambígua pelo jeito de Paulo José dizer: "senhor, não, pelo amor de Deus;
o senhor é ele". No filme de Cláudio Torres, o Cristo é emblema, faz parte da
armação do drama, intervém, exerce poderes. No primeiro tempo do jogo, a luta
de Célio, sem essa luz, termina em tragédia; no segundo, definido o mandato,
ele e Deus medem seu valor pelos resultados da aliança.
De início, fiz uma observação sobre os projetos que buscam o equilíbrio entre
inquietações autorais e o cinema de gênero, adensar a reflexão no
entretenimento. Nessa ordem de questões, Redentor, em seu paroxismo de
fabulação e mistura de efeitos traz excessos que privilegiam a técnica do
espetáculo, cedendo demais ao clichê na própria forma de parodiá-lo, o que vale
para os efeitos especiais e para o apaziguamento final que tem a comunicação
com um público maior como pressuposto. O filme de Jorge Furtado, mais sutil e
homogêneo no estilo, tem maior domínio das regras do jogo no seu deslocamento
do gênero popular, mas corre, por sua vez, o risco de ver a fluência do sonho
de seus jovens encantadores entreter demais a platéia, ofuscando a armação
conceitual que, no plano do jogo das vozes over, é extraordinária. O aspecto
lúdico dessas propostas reflete a busca de estratégias de conciliação das
demandas que se cuidam para não alienar o espectador. Em cenários de violência,
observei aqui personagens que se movem no ponto médio entre as forças da lei
(ilegítimas) e o marginal (de destino trágico), em nome de uma continuidade
vital de maior prazo. Na complicada economia política do cinema, discuti aqui
cineastas que apostam na procura de um cinema de resultados, com ou sem
teologia.
[1] Embora tenha um ângulo de análise pessoal e específico (a questão da voz no
cinema, objeto de minha pesquisa), este artigo se beneficia de um trabalho
desenvolvido em diálogo com Leandro Saraiva,autor da tese de doutorado
"Pequenos homens,grandes destinos e ironias líricas: O homem que copiava e
Redentor", ECA-USP, 2006. Os enfoques não são os mesmos, mas os pontos de
convergência resultam de uma troca de idéias que não encontraria expressão em
citações pontuais.
[2] Para o quadro geral desta figura, ver Ismail Xavier,"A figura do
ressentimento no cinema brasileiro dos anos 90", em Estudos de cinema 2000
Socine, J. Gatti,F.Ramos,A.Catani e M.D.Mourão (Orgs.),Porto Alegre: Editora
Sulina,2001.
[3] Não farei o balanço dos debates sobre o filme, envolvendo o próprio Paulo
Lins, Alba Zaluar, M.V.Bill, Ivana Bentes, entre outros. Há um percurso crítico
que inclui os artigos de Roberto Schwarz, Márcia Leite, Lúcia Nagib (Novos
Estudos, n.67, nov.2003), bem como os textos reunidos no livro organizado por
Else Vieira, City of God in Several Voices; Brazilian Social Cinema as Action
(Nottingham, CCCP, 2005). Para uma apreciação destes debates e suas
referências, ver Paulo Jorge Ribeiro, "Cidade de Deus na zona de contato:
alguns impasses na crítica cultural contemporânea",em Revista de crítica
literária latinoamericana, n.57 (Lima- Hanover, 2003). Retomo aqui meu artigo
na revista Sight &Sound (janeiro 2003),deixando a questão mais ampla das
"vozes" (diálogo, inserções musicais) para um outro trabalho, em curso.
[4] Notícia de uma guerra particular,o documentário de João Moreira Salles e
Katia Lund acentua, em sua estrutura, a divisão tripartite das forças em
confronto: os traficantes, a polícia e a população entre os dois fogos.A
imagem- emblema deCidade de Deus faz de Busca-Pé o representante isolado do
terceiro grupo.
[5] Valho-me aqui da formulação de Maria Rita Kehl, retomada por Leandro
Saraiva em sua tese. Ver Maria Rita Kehl. Sobre ética e psicanálise. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, pp.7-16 e 95-106.
[6] O Corcovado cristaliza o telos dos migrantes nordestinos na cena final de O
caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003) e, não por acaso, é a imagem
reiterada em Cronicamente inviável (Bianchi, 2000), a título de emblema de um
dos espaços éticoculturais brasileiros sob o crivo do narrador do filme.
[7] Uso "razão cínica" no sentido de Slavoj Zizek, citado por Jurandir Freire
Costa em "Narcisismo em tempos sombrios", em Tempo de desejo: sociologia e
psicanálise,Heloisa Rodrigues Fernandes (org.). São Paulo: Brasiliense,1991.