Unificação desigual: poder transnacional e crise de legitimação na Europa
contemporânea
Ao lado de transformações institucionais vultosas, o processo de constituição
da União Européia desencadeou em todos os campos das ciências sociais uma
vigorosa onda de investigações sobre o processo de integração. Pesquisadores
mais eufóricos vêem no novo campo de estudo a possibilidade de libertar suas
disciplinas do chamado nacionalismo metodológico e conseqüentemente de
desenvolver ferramentas teóricas e analíticas que não sejam mais vinculadas
lógica e congenitamente à sociedade e ao Estado nacionais. Hauke Brunkhorst,
cientista social, filósofo e decano da pós-graduação em European Studies da
Universidade de Flensburg, se notabilizou no debate público e acadêmico alemão
como crítico do entusiasmo excessivo com o chamado processo de europeização da
política e das sociedades nacionais européias.
Suas objeções, contudo, nada têm a ver com o clamor nacionalista e
antidemocrático que se ouve da direita francesa ou alemã. Suas críticas não se
dirigem à Europa unificada em si, mas ao tipo de unificação em curso, o qual
desconsidera, segundo entende, princípios básicos da democracia. Mostra, ainda,
como no corpo da Europa integrada se consolida uma nova classe dominante
articulada transnacionalmente e que se vale dos vácuos de normatização legal
para expandir e integrar suas estruturas de um poder informal e extremamente
efetivo.
Nesta entrevista, concedida em julho último, numa rara tarde de sol e calor
intenso na cidade de Flensburg, situada na fronteira entre a Alemanha e a
Dinamarca, na orla do Mar Báltico, Hauke Brunkhorst analisa tanto fatos
políticos recentes relacionados à União Européia quanto problemas da ordem da
teoria democrática sugeridos pelo processo de unificação. (Sérgio Costa e
Denilson Werle)1
Sérgio Costa Quando a constituição européia foi recusada nos referendos
francês e holandês em 2005, comentaristas políticos vislumbraram um futuro
sombrio para a integração européia. Ao lado de outros especialistas, você
mostrou que uma constituição européia já está em vigor com base nos acordos
europeus vigentes. O que isso significa segundo os pontos de vista da teoria
constitucional e dos cidadãos europeus?
Hauke Brunkhorst É de fato correto que há muito já existe uma constituição
européia no sentido técnico. Desde os tratados de Roma, cujo centenário será
comemorado em 2007, existem órgãos de poder específicos da comunidade européia,
com competências legislativas e jurisdições específicas, e uma série de novos
direitos, que, no início, se concentraram num núcleo de liberdades comerciais e
de movimentação econômica, mas que, no entanto, mais tarde se estenderam para
muito além disso. Já em 1963, o tribunal europeu entendeu, a partir dos
tratados comuns, que, com a fundação da comunidade, foram criados direitos de
cidadania específicos para os cidadãos europeus em seu conjunto. Isso exigiria
forçosamente, conforme o tribunal argumentou na ocasião, reconhecer e
representar juridicamente, nos casos de direito de apelação, uma base dupla de
legitimação da união. De um lado, está a clássica base de legitimação
intergovernamental, os tratados entre os Estados; de outro, uma base de
legitimação na qual, pode-se dizer, a comunidade européia de cidadãos,
constituída ou em processo de constituição, representa um sujeito de
legitimação independente dos tratados entre Estados e das nações, aos quais
cada cidadão europeu pertence.
E o que isso significa praticamente para os cidadãos, no que diz respeito à sua
relação com a Justiça nacional e européia?
Em primeiro lugar, isso significa naturalmente que os cidadãos, do ponto de
vista prático, possuem de fato esses direitos. Eles estão no cerne dos
clássicos direitos de indigenato, isto é, os países fazem um acordo no qual
concedem aos seus cidadãos direitos iguais recíprocos nos seus respectivos
países. Na França, alemães não podem ser discriminados juridicamente como
estrangeiros e vice-versa. Nacionais e estrangeiros dos países da comunidade
têm sempre os mesmos direitos em qualquer parte do território comunitário. Só
fogem a essa regra umas poucas exceções ainda existentes, como determinados
direitos eleitorais. Esses direitos de isonomia recíproca cidadã distinguem de
saída os europeus como membros da Comunidade, hoje União Européia, dos não-
membros, que na França, Dinamarca, etc. podem certamente contar com os direitos
de todos (direitos humanos), mas não desfrutam dos direitos próprios à
cidadania. A prerrogativa decisiva que constitui a pertença cidadã específica à
comunidade e à União é a ampla liberdade de circulação. Atualmente, ela se
estende a quase todos os domínios da vida e abrange quase todos os direitos dos
cidadãos e por isso já existe também há muito tempo uma jurisprudência
correspondente no tribunal europeu.
Em artigo publicado na revista "Constellations"2 você defende, seguindo
Rousseau, que a constituição européia deve representar mais do que uma
associação de Estados e tribunais: deve apresentar-se como associação de
cidadãos. Como uma tal associação pode realizar-se? Ela não requer dos cidadãos
individuais um engajamento político e interesse pela Europa, dos quais não se
encontra nenhum indício no cotidiano europeu?
Nesse ponto, o interesse ou a vontade manifesta, bem como o interesse latente
dos cidadãos não são os pressupostos de minha argumentação. Defendo unicamente
que, com a constituição jurídica de uma cidadania européia própria, já
estabelecida pelo tribunal em 1963, o conjunto dos cidadãos europeus deve ter o
mesmo peso no exercício do poder na União Européia do que os Estados, que não
são legitimados democraticamente pelos cidadãos europeus, mas somente pelos
respectivos cidadãos, no âmbito nacional. Assim, por meio de um contrato
intergovernamental os Estados europeus criaram novos direitos dos cidadãos
europeus, produzindo justamente a comunidade de cidadãos europeus, em sua
totalidade, como um sujeito de legitimação próprio. Esse foi o ato de um poder
constituinte originário, que com isso cria direitos de cidadania comunitária
não mais passíveis de suspensão por meio de um mero contrato estatal ou uma
simples alteração contratual. Quando os cidadãos têm direitos recíprocos, o
Estado não pode simplesmente cassá-los sem o consentimento dos cidadãos. Já em
1963, o tribunal europeu concluiu que os cidadãos individuais podem
reivindicar, judicialmente, a manutenção de seus direitos europeus, vale
ressaltar, não seus direitos alemães ou franceses, mas sim seus direitos
europeus. Segundo a doutrina do tribunal, esse é o chamado efeito direto do
direito europeu e, por isso, existe então uma supremacia do direito europeu
frente ao direito nacional. Essa possibilidade de apelação para além do direito
nacional é uma das fontes indiretas de legitimação da União Européia. Contudo,
em 1963, inexistia ainda aquela legitimação democrática por meio dos cidadãos
da Europa. A legitimação está parcelada individualmente e o tribunal funciona,
no melhor dos casos, como uma espécie de guardião dos interesses democráticos
do novo sujeito da legitimação. Atualmente, existem os direitos eleitorais
europeus, e, há algum tempo, um Parlamento Europeu, inclusive bastante forte,
eleito pelos cidadãos europeus. Ainda que em segmentos nacionais, a eleição se
dá por meio de um eleitorado único, de modo que os deputados não estão
obrigados a representar os cidadãos alemães ou dinamarqueses, mas o conjunto
dos cidadãos europeus. Antes como agora, porém, a situação é, do ponto de vista
de teoria democrática, altamente insatisfatória.
O órgão intergovernamental específico, o Conselho da União Européia,3 é também
um órgão autônomo, no qual vale a decisão dos ministros reunidos, corresponda
ou não às incumbências recebidas de seus respectivos primeiros-ministros ou
gabinetes ministeriais no nível nacional. Não obstante, a europeização desses
órgãos e a obrigação jurídica explícita de todo ministro específico ali alocado
com os interesses europeus comuns não representa, de modo algum, um grande
ganho para a democracia, pois promove, inicialmente, sua marginalização não
apenas no plano europeu, mas também no plano dos Estados nacionais. O poderoso
Conselho da União Européia, diferentemente do senado americano e do Conselho da
Federação alemão, pode apenas agir através de seus fragmentos os ministros
específicos reunidos. Deveria exigir, por isso, a contrapartida de uma forte
legitimação conferida pelo conjunto dos cidadãos europeus. Esse é o problema.
Claro, existem contrapesos muito fortes, como o parlamento e o tribunal, e
mesmo órgãos diretivos, como a Comissão Européia, cuja legitimação democrática,
contudo, é extremamente frágil. Isso possibilita aos respectivos funcionários
que controlam esses órgãos exercer sua dominação de modo não democrático e
representar interesses poderosos completamente diferentes daqueles dos povos e
cidadãos europeus.
No plano europeu, existe também uma divisão de poderes: o Conselho da União
Européia e o Parlamento Europeu representam por assim dizer o poder
legislativo; o poder executivo está representado no corpo da Comissão Européia;
por fim, há o judiciário, representado na forma do Tribunal Europeu. Não
obstante, você e outros constatam um déficit de legitimação. O que falta
exatamente?
Também com respeito a esse ponto não argumento, a princípio, no plano
sociológico-empírico, mas no plano da teoria constitucional. É relativamente
claro que os contratos da União Européia determinam, em todos os níveis, que a
democracia tenha vigência em seus próprios órgãos. Eles também concedem
determinados direitos democráticos, como, por exemplo, o direito europeu de
voto. Mas isso é altamente deficitário. Nós temos direitos igualitários,
inclusive direitos em excesso, imensos catálogos de direitos fundamentais, que
tudo duplicam e tornam tudo ainda mais complicado, os quais também nem sempre
são incondicionalmente um ganho em termos de efetividade do Estado de direito;
muitas vezes também são uma perda. Em todo caso, disso há o suficiente. Claro,
as declarações, as expressões solenes que se encontram no teor dos tratados não
são palavras vazias, podem tornar-se concretas juridicamente, por exemplo, por
parte dos tribunais, pelo parlamento e assim por diante. Portanto, têm efeitos
concretos para os cidadãos individuais, nações, populações regionais e a
cidadania como um todo. Têm também efeitos externos vigorosos para os vizinhos,
o terceiro mundo, a OECD, e assim por diante. O problema, porém, é que temos de
um lado esses direitos igualitários e, de outro, uma organização constitucional
não-igualitária. A organização constitucional é o aparato conjunto que ordena a
máquina legislativa e estabelece quem pode fazer as leis, quem pode implementá-
las, a quem elas vinculam, como elas vinculam, como se pode recorrer a elas,
quem são os sujeitos que podem fazê-lo, e por aí vai. Precisamente aqui falta
um procedimento igualitário que assegure que esses belos direitos sejam
implementados de modo igual, e não arbitrário, no interesse de seus portadores.
Note-se que a linha que demarca os ganhadores e perdedores do jogo não começa
com aqueles atingidos pelas decisões européias situados fora da Europa, na
África ou América Latina. A divisão começa no seio da própria Europa. Aqui se
forma uma nova e desta feita efetiva classe dominante transnacional e
cosmopolita, contra a qual o interesse democrático que emana de baixo não logra
se fazer representar nas instituições de modo eficaz. Existe certamente o
parlamento, e o parlamento também se tornou incrivelmente forte e está cada vez
mais forte, mas apesar disso as eleições não têm nenhuma legitimação
democrática real.
Qual é exatamente o problema com o Parlamento Europeu?
Bem, aqui se pode esclarecer adequadamente a crise de legitimação da União
Européia. A crise de legitimação consiste na contradição entre direitos
igualitários e normas organizacionais desiguais, isto é, uma organização iníqua
da máquina legislativa. O Parlamento Europeu é escolhido de forma igualitária e
conta, nesse sentido, com uma legitimação democrática. De mais a mais, ele é
quase tão forte quanto o congresso americano. Não é um debating parliament,
como o parlamento britânico de Westminster, mas, tal como o congresso
americano, funciona como um working parliament, que exerce o poder através de
comissões. Formalmente, o Parlamento Europeu tem apenas (como também o
congresso americano) a metade do poder de um debating parliament que pode
dispor sobre o primeiro-ministro e seu gabinete. O Parlamento Europeu tem de
partilhar o poder legislativo com o Conselho da União Européia. De fato, ele
tem inclusive mais poder do que o parlamento alemão ou o parlamento inglês.
Estes podem, na verdade, conduzir belos debates, mas são completamente
dependentes dos respectivos governos que, por sua vez, podem jogar com a
maioria parlamentar e a disciplina partidária.
Porém, as eleições para o Parlamento Europeu são, diferentemente das eleições
americanas, eleições de faz-de-conta, simplesmente porque os cidadãos que vão
votar não têm alternativas de fato e, por isso, não decidem literalmente nada.
Valem tanto quanto uma escolha feita na base do cara ou coroa. Eu mesmo não
saberia em quem deveria votar e qual política européia o deputado no qual votei
defenderia. Claro, eu sei se ele é do Partido Socialdemocrata ou do Partido
Democrata-Cristão ou se ele é do Partido Verde, mas isso não diz praticamente
nada sobre a constelação européia. Acredito que se eu dedicasse mais tempo a me
informar melhor, isso não resultaria em nada. Naturalmente, os outros cidadãos
sabem disso, como também os políticos e pesquisadores eleitorais, que lhes são
leais e chegavam mesmo a dizer: 'pois é, os eleitores são tolos, não sabem
pensar de modo europeu', e com isso, em vez de punir o governo europeu, punem o
próprio governo nacional, tal como uma classe de garotos burros castiga o
professor. Eleições nas quais não se pode ao menos escolher uma direção e um
programa políticos são, para os cidadãos, completamente sem valor, sem qualquer
significado democrático. Para a classe política, em compensação, elas são tanto
mais proveitosas. Afinal, por essa via, a classe política garante, a partir de
baixo, legitimação aparente na mídia e, pelo alto, se afasta do horizonte que
pode ser controlado pelo sujeito de sua legitimação. Lá no alto se forma uma
nova classe dominante, que, diferente da dos séculos 19 e 20, está de fato
interconectada européia e globalmente e que, como classe transnacional, apesar
das habituais oposições, lutas de interesse e atritos internos, é capaz de
ação. Aqui existe algo a ganhar para o deputados europeus em termos de poder,
opções de ação e, porque não dizê-lo, enriquecimento pessoal. Poucos desses
propósitos impulsionam a história adiante. Trata-se do dado institucional,
sistêmico ou estrutural de que os órgãos de poder (parlamentos, comissões,
tribunais, etc para não falar das instituições globais), que emergem no
contexto da busca por legitimação democrática, têm contribuído, através de seu
funcionamento, para fortalecer a Europa como organização desigual e, com isso,
promover o crescimento do poder informal de decisão, preenchendo-se, assim, as
lacunas crescentes na legitimação democrática por meio de novas estruturas de
poder não democráticas. Naturalmente, tal poder se consolida sobretudo quando
não pode mais ser realmente controlado ou desautorizado pelo povo.
Isso vale menos para os órgãos formais firmemente institucionalizados, como o
parlamento, a comissão ou o conselho da União Européia, do que para o Conselho
Europeu, que é informal e fracamente institucionalizado. Ele abrange um
espectro de poder que excede largamente todos os outros. Ele deve ser unânime
internamente, e de fato o é na maioria dos casos de definição das linhas
políticas, mesmo que apenas as divergências sejam repisadas pela imprensa. Isso
encobre apenas a unidade fática e o poder de classe do conselho. Os chefes de
governo da Europa unida sabem perfeitamente que a unanimidade os fortalece,
pois por meio da Europa os poderes executivos, quando unificados, ganham um
imenso espaço de ação que há muito tempo já perderam em seus países. Esse ganho
de poder enquanto ator europeu, porém, não mais é respaldado pela inconteste
legitimação democrática intergovernamental desse grêmio. As eleições nacionais
legitimam os chefes de Estado apenas para o exercício soberano, em princípio
parlamentar, do poder exterior, portanto simplesmente para a representação de
interesses nacionais, não para a representação e implementação de interesses da
Europa como um todo. Para a política da Europa européia, que eles na realidade
fazem, e que não mais pode ser controlada pelos parlamentos, eles precisariam
de uma legitimação da Europa como um todo, e esta eles não possuem. Não são
eleitos diretamente de modo europeu nem como conselho, nem como presidente
mesmo que fosse apenas o de uma comissão e nem o parlamento eleito
diretamente pode lhes fazer oposição. O Parlamento Europeu é forte vis à vis o
Conselho da União Européia e a Comissão, mas não é nada contra o Conselho
Europeu. Aqui, só mesmo uma legitimação democrática efetiva poderia transformar
o parlamento em um controlling parliament que também controla os chefes de
governo. Não dá para fazer isso com eleições de fachada, que tratam os cidadãos
como colegiais. O parlamento somente estará em condições para uma luta real
pelo poder quando, falando grosseiramente, tiver o apoio do poder das ruas e
puder, no limite, mobilizá-lo, ainda que seja apenas nas próximas eleições.
Isso tudo, aliás, já sabemos do 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx
não por acaso, o que hoje vivenciamos na Europa lembra a transição de um regime
parlamentarista para um Bonapartismo, que os franceses vivenciaram de 1848 a
1851 ainda que hoje seja um Bonapartismo suave, portanto, mais para de Gaulle
que para Luís Bonaparte. No conjunto, ocorre um potente deslocamento do poder
do primeiro para o segundo, isto é, do poder legislativo para o poder
executivo.
Isso foi demonstrado, por exemplo, no "processo Bolonha", aparentemente
inofensivo, mas rico em conseqüências, o qual reformou e modificou de modo
profundo toda a universidade européia, como nunca antes em sua histórica
recente, nem mesmo nos anos 1960, e atingindo o conjunto das universidades,
fato absolutamente inédito. A reforma atual do ensino superior é um ato
político amplo e, portanto, mostra que a política, ao contrário de todas as
profecias nefastas de politólogos insolentes, é perfeitamente capaz de agir
quando não se trata do Estado nacional, no qual os politólogos se fixam, mas da
Europa e das organizações globais e associações informais. O "processo Bolonha"
mostra bem como a política faz isso. Ela o faz através do poder informal, que
na Europa está centralizado. Nesse caso, não existiu nem mesmo uma diretriz
européia, mas apenas soft law: um protocolo dos ministros da educação que se
reuniram num belo dia em Bolonha, sem qualquer competência conferida pela União
Européia. Apesar disso, presenciamos como um protocolo informal sem força de
lei é implementado em toda a União Européia e nos países vizinhos. Os ministros
simplesmente retornam para casa e narram em seus parlamentos, "isso nós devemos
implementar em nossas novas legislações para o ensino superior", nos quais
ainda se comete o erro de inscrever como é o caso do Estado alemão de
Schleswig-Holstein que o legislador estadual tem de fazê-lo com base no
"processo Bolonha".
O poder de fato reside naturalmente no Conselho Europeu, que não é eleito. Esta
é a primeira diferença em relação aos presidentes americanos: ele não pode ser
controlado pelo parlamento, como o presidente americano é controlado, em cada
detalhe, pelo congresso. Ele não pode ser intimado pelo tribunal, isto é, o
tribunal europeu não dispõe de meios jurídicos efetivos para fazê-lo, pois
apenas poucas decisões tomadas pelo tribunal possuem efeito jurídico vinculante
imediato. Na verdade, apenas iniciativas de alteração dos contratos têm efeito
jurídico imediato; todas as outras atividades do Conselho Europeu, suas
recomendações, instruções, muitas vezes propostas muito concretas, seus
protocolos, acertos, provocam imediatamente na Europa um turbilhão de atos
legislativos. Como poder executivo unificado e este é um poder que não fica
atrás do poder do presidente dos EUA , o Conselho Europeu tem a competência de
definir diretrizes não apenas para um gabinete, mas para quase todos os poderes
organizados europeus. Essa competência de orientação, porém, diferentemente da
competência do chanceler alemão ou do presidente dos EUA, é uma "omni-
competência" perfeita, não controlada. Trata-se, portanto, daquilo que
antigamente denominávamos soberania. Os poderes executivos unificados de modo
informal na Europa, em suas conexões estreitas com a OCDE, com os encontros do
G8, com o Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia, e assim por diante,
constituem o núcleo organizatório, o centro articulador do poder da emergente
classe dominante transnacional.
A comparação com os EUA é esclarecedora. Contudo, como muitos politólogos
argumentam, no caso da Europa trata-se de uma democracia transnacional, para a
qual é preciso encontrar novos conceitos para a análise. Eles vão ao ponto de
não mais falar em governo, mas em governança; não mais de Estado de direito,
mas de estruturas de produção de legalidade, conseqüentemente alterando o
entendimento do que seja legitimação. Isto é, a legitimação não é mais
assegurada através da participação direta dos cidadãos, mas pela transparência
dos procedimentos e pela possibilidade aberta aos cidadãos de sempre poder ter
conhecimento do que acontece politicamente. Além disso, a legitimação é antes
de tudo assegurada pela aceitação ou recusa das decisões e dos resultados
produzidos. A minha questão é: o conceito de legitimação que você usa para
identificar esse déficit de legitimação não é um conceito que está fortemente
vinculado a sua visão da democracia nacional e, portanto, não leva em conta a
complexidade funcional e a relativamente baixa integração social no interior da
União Européia? Será que seu conceito de legitimação ainda é compatível com a
nova realidade?
Sim, você apresentou perfeitamente a posição dos cientistas políticos. Um
argumento que ouvimos a todo momento é o de que tudo é tão complexo e que,
afinal, a democracia não está apta para isso; sobretudo para aquela democracia
clássica, que acopla estreitamente os discursos deliberativos, o conflito
público e os procedimentos de decisão igualitários, a constelação pós-nacional
é demasiado complexa. Ora, já se dizia isso do Estado nacional 100 ou 200 anos
atrás, e os neoconservadores continuam dizendo a mesma coisa. Isso sempre vem à
baila quando se levantam obstáculos à democratização, os quais, curiosamente,
sempre vêm ao encontro de determinados interesses, desfavorecendo outros. Dito
isso, vou ao ponto, conforme entendo, decisivo. Ora, inventa-se um punhado de
conceituações novas, como supranacionalismo deliberativo, governar sem governo
(para que isso? Muitas vezes temos autoridades de governo europeu e
internacional em excesso: veja, por exemplo, o mandado de prisão europeu, ou a
lista de terroristas do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ou quando o
Banco Mundial prescreve, e apóia com sanções poderosas, que os países na África
ou América Latina têm de fazer determinadas reformas, independente de isso ser
compatível ou não com o Estado democrático soberano) ou, a mais recente,
auditive democracy, e se chama isso de democracia. Então, só posso dizer: a
necessidade ativa a imaginação. A necessidade de legitimação da União Européia
liberta as fantasias das ciências sociais e políticas. Basta olhar
racionalmente para o mundo, já dizia Hegel, que ele se mostrará racional a
nossos olhos; aqui, eu diria: quando contemplamos o mundo como democrático, ele
retribui o olhar, se apresentando como democrático. Quando contemplamos a
Europa como democrática, ela também retribui o olhar, se apresentando
democrática, e aí encontramos a "democracia" em todos os mecanismos possíveis,
nas pesquisas de opinião, nas consultas a especialistas, nas regras da
discussão justa, no ponto de vista imparcial e nos juízes mais bem preparados
para representar tal posição, ou, por que não, se referindo logo ao governo
coletivo nebuloso da Europa, o Conselho Europeu, e assim por diante. Com isso
desconsidera-se o essencial: a imprescindível segurança institucional e a
garantia de procedimentos igualitários de formação da vontade política.
Igualitário não significa somente que tudo tem de ser feito a partir de baixo,
mas também que o que é feito de baixo continue a ser determinado através do
respectivo efeito vinculante da lei, por meio dos respectivos direitos, que,
por outro lado, controlam ainda o todo, portanto, estão organizados a partir da
divisão dos poderes. Nos diferentes planos, procedimentos igualitários
diferentes têm significado e forma distintos. Esse conceito de democracia, que
tem como pressuposto a substituição, sempre renovada a partir de baixo, da
dominação informal pelo direito coercitivo, retiro-o de fato das concepções
constitucionais afeitas ao Estado nação. Contudo, não precisamos comprar a
embalagem junto com o produto, o Estado nacional junto à constituição
igualitária. O fundamental é se prender ao cerne dos procedimentos de decisão
igualitários que são definidos no conceito da constituição no âmbito do Estado
nação. Para tanto, não é imprescindível um Estado, ao menos naquele sentido de
Estado nação clássico; as estruturas políticas podem ser outras. A totalidade
do poder físico pode e deve ser monopolizada pelos Estados. Na União Européia,
porém, com tantos órgãos de poder especializados, já deve ser possível ver uma
estrutura semelhante à dos Estados Unidos. Os Estados Unidos, em sua
constituição, não são também um Estado, mas uma União, uma união de Estados.
Isso faz uma diferença significativa. Não é nada simples traduzir os conceitos
jurídicos alemães, como direito de organização estatal, para o inglês americano
e aplicá-los à constituição, já que tal não existe nos Estados Unidos. No
inglês americano, isso significaria "direito constitucional de pesos e
contrapesos" [constitutional law of checks and balances]. A palavra "Estado"
nem caberia à Federação, se bem que os EUA tenham atualmente se tornado um
Estado nacional ainda que de modo hesitante.
Resulta disso que o conceito estreito de democracia que temos nos Estados
nacionais deve ser abstraído do Estado nacional e, então, com o conceito
ampliado de constituição, ser acrescentado às instituições e organizações pós-
nacionais. Somente então se chega a um diagnóstico correto da crise de
legitimação (latente).
Ao lado das estruturas institucionais jurídico-estatais, uma sociedade civil
ativa e uma esfera pública política atuante representam elementos constitutivos
das democracias nacionais modernas. Entretanto, a pesquisa sociológica mostra
que uma esfera pública européia e uma sociedade civil européia, entendidas no
singular, não estão emergindo na Europa. Os pesquisadores constatam antes redes
transnacionais segmentadas segundo temas e independentes umas das outras. Uma
democracia européia deve e pode abdicar de uma sociedade civil ativa e uma
esfera pública européia? Ou existem outras saídas?
Como Klaus Eder e outros sociólogos observaram há muito tempo, em particular
nos Estados Unidos, temos efetivamente um declínio relativo das identidades
nacionais em favor de uma nova construção de identidades transnacionais, que se
justapõem de modo complexo e não constituem imediatamente um sujeito de
legitimação, isto é, não representam em si mesmas um sujeito de legitimação.
Porém, também as pessoas que se orientam pela sociedade civil, pela democracia
deliberativa e pela esfera pública investigam essas estruturas no modelo do
Estado nação. Ora, tampouco no modelo do Estado nação a democracia deliberativa
e a formação inclusiva da opinião pública funcionam de modo independente de um
arcabouço sólido de normas de organização do Estado. É tal estrutura que
permite a conversão dessa opinião pública em direito vinculante,
possibilitando, ao mesmo tempo, a necessária agilidade nos processos de tomada
de decisão. Temos, por assim dizer, a formação da opinião pública aqui e, do
outro lado, um sistema que implementa o resultado, desfigurando-o o mínimo
possível claro, todo o processo tem de permanecer transparente inclusive para
os tribunais. O essencial não é tanto a divisão de poderes, mas suas
interpenetrações. Quando os poderes políticos não estão articulados uns com os
outros de modo democrático e transparente, não pode haver uma formação da
opinião pública minimamente livre e igual. Quando me censuram por partir de um
ideal de democracia extraído do Estado nação, só posso dizer que o ideal da
deliberação e da esfera pública é também extraído da mesmíssima forma do Estado
nacional e eu, a propósito, considero a formação deliberativa da vontade algo
absolutamente indispensável. Porém, ela tem de estar, repito, acoplada
institucionalmente a procedimentos de decisão igualitários. E esta é
precisamente a questão: podem-se simplesmente extrair os discursos
deliberativos das estruturas de organização do estado nacional e transplantá-
los em outras instituições como as da União Européia ou a OMC, deixando-se ao
mesmo tempo que os procedimentos de decisão igualitários apodreçam no ventre do
Leviatã? Ou será que o preço que se paga por isso não é exatamente a perda
daquela eqüidade, na verdade, aquele mínimo de eqüidade que caracteriza a
democracia e é indispensável para seu funcionamento? Quando se retira a
deliberação das estruturas de decisão nacionais, então, jamais se tem uma
democracia, o que se tem é uma expertocracia, para dizê-lo de forma clara. Ou
pior, uma democracia de fachada, que é o que temos na União Européia. Isso é
perceptível no modo como a Comissão Européia lida com esse problema em uma
linguagem que de qualquer forma só é produzida para ela mesma; mostra-se
generosa, falando de auditive democracy, quando com isso quer dizer que se tem
o direito de ouvir calado, ou então recorre ao vocabulário dissimulado da
ciência política, falando de "good governance" ao invés de "good government", e
de "legitimação pelos resultados" [Output-Legitimation] no lugar de
"legitimação prévia" [Input-Legitimation]. Sem legitimação prévia, porém, não
existe democracia. A legitimação dos resultados é importante, pois quando a
loja não funciona, pode-se fechá-la. Mas um negócio que funciona de modo
azeitado não é democracia lembre-se que as coisas também andaram sob Pinochet
ou com os nazistas nos primeiros anos.
Quanto às outras questões, primeiramente a objeção de que não existe uma esfera
pública européia, um patriotismo constitucional europeu, etc., respondo que
isso não está errado. Por isso falei de uma crise de legitimação latente. Mas
no momento em que a crise irromper, eu diria que então vai existir uma esfera
pública européia, pois a esfera pública política se constitui sempre no momento
de crise, somente na crise se decide se existem questões públicas que atingem a
todos os cidadãos de uma cidade, país ou de uma união de Estados. E então não é
mais necessário se preocupar com o patriotismo constitucional, ele surgirá por
si só, ou tudo se desmancha, o que pode acontecer a qualquer momento na Europa
de hoje certamente com conseqüências catastróficas. Mas, de uma maneira ou de
outra: no momento, e sempre apenas no momento em que a crise acontecer, teremos
uma esfera pública, uma vida pública, uma república elementar, como Jefferson a
denominou. Junto a isso uma constatação: desde o referendo francês, ficou claro
que estamos caminhando para uma crise manifesta de legitimação da União
Européia. O referendo de 2005 foi a primeira vez que a Europa e a constituição
européia, o que Europa é e deve ser, isto é, a própria Europa, foi a questão
central de uma disputa eleitoral, uma disputa efetiva como há tempos não víamos
nem mesmo em eleições nacionais. Quando se procura pela democracia deliberativa
e não se é completamente ofuscado pelas teorias e por estudos meramente
abstratos, pode-se encontrá-la na campanha eleitoral francesa. Eu mesmo estive
na França dois meses antes do referendo, e lá se podia encontrar a democracia
deliberativa, não nas comissões e grupos fechados de especialistas, onde a
democracia deliberativa certamente é muito importante fato que não subestimo
, mas nas ruas, no público de massa diante das televisões. Ali se dava uma
luta eleitoral vigorosa, com as costumeiras falcatruas e truques e
manipulações, e com quase a totalidade da imprensa respaldando o presidente,
através de suas juras ao novo contrato constitucional europeu. Mas tudo isso
caiu por terra diante da internet, diante das ruas e cafés, que hoje são
cybercafés conectados globalmente, assim como Gerhard Schröder quase virou o
pleito eleitoral contra Angela Merkel nas praças, e contra toda a máfia da
imprensa. Com isso veio à tona um discurso normalmente silenciado pela
correlação de poder. Isso fez com que nos programas de bate-papo na televisão
fossem citadas, de repente, longas passagens da constituição e discutidos temas
jurídicos de fato complexos, obrigando o governo francês a enviar um exemplar
da constituição européia a cada domicílio francês. Quando se procura um exemplo
emblemático para a democracia deliberativa, uma democracia que somente possui
força legitimadora porque se argumenta intensiva e profundamente a partir de
várias posições diferentes, e sob a consideração do maior número possível de
vozes, mesmo aquelas normalmente excluídas, é possível encontrá-lo na luta em
torno do referendo, certamente efetiva como uma esfera pública européia
também pelo fato de que uma parte grande dos eleitores que votaram "não" não
eram contra a constituição européia, mas somente contra aquela constituição
européia, e tinham muito boas razões para tal.
Em todo caso, pode-se dizer que a discussão em torno da constituição é mais
convincente como marco característico da emergência de uma esfera pública
européia do que as demonstrações de 2003 contra a guerra do Iraque,
consideradas esse marco por Derrida e Habermas. Afinal, a discussão da
constituição é uma questão que se refere à Europa e, portanto, expressa
enfaticamente a esfera pública européia.
Na guerra do Iraque isso se esboçou, mas no fundo os protestos contra a guerra
do Iraque foram desde o início globais e não especificamente europeus, também
porque o desgastado pessoal que lidera a Europa não logrou se colocar na
dianteira do movimento e torná-lo uma questão da Europa como um todo. Derrida e
Habermas viram algo correto, mas o superestimaram no seu caráter europeu.
Outro aspecto diz respeito ao sujeito da legitimação. Na história da democracia
nacional no interior e fora da Europa parece que a construção política de
elementos culturais comuns foi um pressuposto para a solidariedade e
engajamento dos cidadãos. Pode-se construir politicamente um cerne comum a
partir das diferenças culturais existentes no interior da Europa hoje? Em
outros termos, a democracia européia precisa de um povo?
Bom, é preciso diferenciar o sentido técnico, isto é, o sentido do cientista
político que quase sempre (como Carl Schmitt) está orientado por uma definição
muito forte (em minha opinião, forte em demasia) de homogeneidade. Nesta
definição, a unidade do povo na Europa é uma ilusão. Assim argumenta Fritz
Scharpf no que se pode talvez considerar o melhor livro escrito sobre a Europa,
o pequeno volume sobre governar a Europa com o subtítulo "efetivo ou
democrático"4. Contudo, o conceito técnico "povo do Estado" ou o conceito
jurídico à exceção da concepção enviesada de Carl Schmitt de uma máquina
aclamatória homogênea que apenas transmite informações aos presentes é muito
mais fraco. O povo europeu já existe como sujeito da legitimação, mesmo que
nenhum cidadão veja as coisas assim. A dimensão sociológica é importante, mas
não deve ser sobrecarregada com representações de homogeneidade. Um "povo do
Estado" democrático é sempre tão homogêneo ou heterogêneo conforme ele próprio
se define. A autodeterminação é o mote essencial, e seus resultados são sempre
abertos, do contrário não seria uma autodeterminação. Nesse sentido, às vezes,
a democracia funciona muito bem com um mínimo de homogeneidade. Comparem-se os
EUA de 50 anos atrás aos de hoje. Pode-se dizer, e o mesmo vale mais
enfaticamente para a Alemanha: há 50 anos esses países eram extremamente
homogêneos, e hoje são heterogêneos ao extremo. Pode-se também duvidar que os
EUA de 1820, quando foram democratizados por Jackson, fossem muito homogêneos e
não extremamente heterogêneos. Até agora, a democracia conseguiu se arranjar
muito bem com graus diferenciados de homogeneidade. Até mesmo os produziu, como
se pode ver no desenvolvimento impressionante desde os anos 60.5 Os elementos
comuns necessários nascem, portanto, do fato de que os cidadãos chegam à
convicção (justificada ou injustificada) de que as questões comuns importantes
devem estar sobre a mesa e se pode discuti-las em conjunto. Os elementos comuns
aparecem sempre, quando não são patológicos, como o nacionalismo extremo, na
disputa e no conflito, e sucumbem quando não são mais úteis e quando desaparece
o problema que os motivou. Nesse momento, os cidadãos voltam a se dedicar a
seus interesses particulares, deixando para os comunitaristas a tarefa de se
indignar e denunciar a "corrupção" dos cidadãos. Os elementos comuns nos
diferentes graus podem produzir qualquer coisa, mesmo o multiculturalismo e os
direitos humanos. Às vezes, como na disputa em torno do Estado social, a
unidade é um caminho completamente equivocado e o que falta é a cisão ou, como
se dizia antigamente, a luta de classe. Em primeiro lugar, tem de se ver que
também aí existe algo a ser defendido, que não se trata apenas do incentive
model de estímulo e ativação da força de iniciativa individual, por mais que
isso seja importante, mas primeiramente daqueles que estão fora de todo sistema
de estímulos e que por meio de novos sistemas de estímulo podem ser ainda mais
excluídos. Essa deveria ser uma questão central da política européia, mas é
exatamente isso o que a classe dominante européia procura evitar com todo seu
poder e influência, através de seus altos executivos, astros da mídia e global
players. A União Européia, como está configurada agora, exclui os banlieus e
exclui as subclasses, que crescem no nível abaixo dos blue colour workers e, no
fundo, exclui até mesmo esses últimos. Não foi por acaso que votaram no "não",
depois que uma arrebatadora campanha eleitoral deliberativa os atraiu para as
urnas. Os blue colour workers com idade de 18 até 24 anos votaram não, e com
boa razão. Para eles, a reforma da educação européia não serve para nada se é
que serve mesmo para alguém! E eles não tinham nada a esperar da nova
constituição, que praticamente não lhes concedia nenhum direito a mais do que
os acordos anteriores. A Europa, tal como as coisas estão agora, pertence
àquilo que o sociólogo norte-americano Craig Calhoun6 chamou de cosmopolitismo
de poucos. Porém, na França, pelo menos de forma negativa, se fez sentir um
cosmopolitismo de muitos, infelizmente contra a constituição, pois essa seria
de fato muito melhor do que aquilo que temos agora. Não obstante, ela não era
boa o suficiente para motivar realmente a todos os grupos da população a votar
"sim" com base em razões convincentes, já que ela não alterava nada de
substantivo na estrutura de perdas e ganhos na Europa. O cosmopolitismo de
muitos se manifesta mais freqüentemente de modo negativo. Pode-se também
observá-lo em outros fenômenos, por exemplo, nas eleições para o Parlamento
Europeu. A população de votantes cada vez mais diminuta, encolhida e apática,
que há 25 anos se arrasta para as urnas nas eleições européias, votou, até
1995, como as pesquisas mostram, sempre orientada por questões nacionais, em
regra dando um puxão de orelha no governo nacional e enviando-lhe, por esse
meio, seu recado de advertência. Os estrategistas eleitorais do governo
souberam aproveitar isso bem. A Europa se proporcionou um pouco de legitimação
e fôlego, e pôde além disso ordenar seus próprios frontes seguindo os pontos de
vista internos que estruturam a divisão do poder entre uns poucos. Isso se
modificou. Desde 1995, os partidos anti-Europa, um potencial bastante à
direita, estão cada vez mais fortes e já são realmente a primeira coalizão
européia de partidos eleita, legitimada democraticamente como oposição
européia. Pela primeira vez temos uma oposição na Europa. Então eu me pergunto:
se é possível politizar a Europa a partir da direita, por que isso não poderia
ser possível a partir da esquerda, que é muito mais forte na Europa (graças a
Deus!) e tem um potencial maior? Por que não seria possível estabelecer no
Parlamento Europeu, a partir da esquerda, um agrupamento de partidos europeus
contrários ao que a Europa é atualmente e a favor de uma configuração européia
justa que vá além de Daniel Cohn-Bendit7 e não apenas defenda diretrizes
progressistas e uma linguagem política correta, o que certamente não é ruim,
mas passa ao largo do cerne do problema? Por que não seria possível fazer uma
oposição bem fundamentada à constituição tal qual ela é hoje? Poder-se-ia ao
menos vislumbrar algo assim. Contudo, o que podemos observar nos novos
comportamentos eleitorais, mesmo que isso se manifeste de modo tão negativo e
perigoso, é o surgimento, aqui também evidente, de uma esfera pública política
européia. Curiosamente, nesse caso, isso se dá através dos partidos anti-
Europa. Estes estão no parlamento e da próxima vez, se as coisas saírem mal,
eles chegarão a 50%. Então a crise se expressará definitivamente. Se esses
partidos anti-Europa se tornam de repente um perigo para as maiorias, então os
outros partidos têm de reagir, e isso pode ser uma oportunidade para uma
reforma realmente democrática na Europa. Eu temo que sem crises desse tipo,
pouco desejáveis, nada vai se alterar e a democracia vai desaparecendo pouco a
pouco também nos Estados nacionais, como podemos observar atualmente nos EUA.
Mas também ali, felizmente, existem movimentos contrários à metamorfose da
democracia presidencial em um novo bonapartismo a la Dick Cheney.
Segundo sua opinião, as diferenças culturais na Europa seriam questões brandas.
Mas quando se trata da religião, não se pode falar mais de uma questão branda,
trata-se de tema absolutamente candente. A posição que gostaria de apresentar
aqui seria a seguinte: as referências religiosas não mais se deixam classificar
ou acomodar em um subsistema. Através do crescimento do Islamismo na Europa e
das preocupantes reações islamofóbicas correspondentes, observa-se que a
religião infiltrou-se na política e no sistema social. Você vê aí alguma ameaça
para o futuro da integração européia?
Vejo mais uma ameaça global do que européia. Aqui existe algo relacionado ao
que Habermas viu com muita precisão: a religião até hoje representou, goste-se
ou não, uma fonte evidente e indispensável de solidariedade, primeiramente uma
solidariedade pré-política e, depois, também cívica e pelo menos nas
religiões monoteístas também uma solidariedade igualitária, uma solidariedade
que até agora pôde ser usada como fonte de legitimação por meio do Estado
constitucional. Por um lado, o Estado constitucional tomou a religião sob o
látego de seu poder, pois o Estado constitucional é muito poderoso, como o
sabemos já antes de Foucault ele não é mais fraco do que a ditadura, ao
contrário muito mais forte, senão a Segunda Guerra Mundial teria terminado de
outro modo. O Estado constitucional manteve sob seu controle policial os traços
terroristas e fundamentalistas das religiões, que hoje são, em toda parte,
modernas, individualistas e desenraizadas dos contextos concretos, mas ao mesmo
tempo e isto foi o genial assegurou a liberdade de religião juntamente com
a possibilidade de libertar-se da religião, de tal modo que o Estado
constitucional pôde aproveitar ambas as fontes de solidariedade das quais
brotam as solidariedades das sociedades modernas: por um lado, a fonte
iluminista, a cultura dos direitos humanos, a democracia política secularizada
etc.; por outro lado, as fontes religiosas da solidariedade. No entanto, isso
claramente não funciona mais, levando a algo como uma crise global de
legitimação. Os Estados nacionais não estão em condição de controlar a evolução
impressionante e a modernização radical dos sistemas de crenças religiosas, que
não são outra coisa como Olivier Roy8 mostrou com propriedade senão o
fundamentalismo. São, sobretudo, duas coisas que o Estado nacional não pode
mais controlar: a religião globalizada e o mercado globalizado. Wolfgang
Streeck expressou isso na brilhante fórmula: nos anos 70 tínhamos ainda
"mercados embebidos de Estado" [State embedded markets] e que se transformaram
hoje em "Estados embebidos de mercado" [market embedded States]. Exatamente a
mesma coisa acontece com a religião, e certamente com todas as grandes
religiões, algo que é sempre obscurecido pela tese absurda do atraso de
modernização e do tradicionalismo islâmico e arábico. Nos anos 70, mesmo no
Egito, na Turquia, no Irã, onde ainda não havia acontecido a revolução,
tínhamos, em toda parte, "religião embebida de Estado", com repressão mais
autoritária, ou no ocidente, com liberdade e repressão latente, o que funciona
muito melhor. Atualmente, temos globalmente "Estados embebidos de religião".
Mesmo as seitas protestantes, que agora inundam a América Latina e que vêm dos
EUA, já há muito não são um braço estendido da CIA ou do imperialismo
americano. Na verdade, escapam do controle dos EUA, ainda que existam sempre
superposições. Temos de analisar isso sempre de forma sóbria e advertir
seriamente contra todas as teorias do imperialismo paranóicas e ingênuas. As
religiões em rede, como as seitas protestantes ou as irmandades islâmicas
organizadas heterarquicamente, conseguiram fincar raízes em todo lugar. O que
vivenciamos nos últimos 30 anos é uma desconstitucionalização do capitalismo e
da religião. A questão agora é a seguinte: como tudo isso pode ser
reconstitucionalizado? Os regimes constitucionais que temos na Europa e no
mundo, os regimes constitucionais pós-nacionais da União Européia, passando
pela OMC até o conselho de segurança da ONU, não estão em condição de integrar
normativamente os mercados e controlá-los e dominá-los de tal maneira que sejam
ao mesmo tempo livres e produtivos, e permitam conduzir, de forma socialmente
equilibrada, as redistribuições de riqueza gigantescas, das quais precisamos.
Da mesma maneira, os regimes constitucionais pós-nacionais também não estão em
condição de dominar as religiões de tal modo que sejam simultaneamente
produtivas e não percam seu sentido próprio, que até o ampliem, mantendo ao
mesmo tempo sob controle seus potenciais terroristas. A grande realização do
Estado constitucional ocidental foi manter sob controle as tendências
destrutivas do capitalismo e da religião. Até agora, não existe um equivalente
a isso no âmbito pós-nacional, e o Estado nacional sozinho não consegue mais
levar essa tarefa adiante, nem mesmo com boa vontade e com as maiores
coalizões.
Na Europa também não...
Na Europa também não. Isso não vai acontecer enquanto a Europa não se der uma
constituição que copie em si mesma o potencial democrático das constituições
dos Estados membros, tal como a constituição dos Estados Unidos, em seu devido
tempo, incorporou os potenciais democráticos e do Estado de direito das
constituições estaduais da então Confederação americana existente. Todos os
regimes pós-nacionais apresentam exigências diversas no que diz respeito à
legitimação democrática. Na Europa, elas têm um caráter mais estatal do que no
Conselho de Segurança da ONU, onde provavelmente mais formalismo jurídico e uma
revisão judicial mais eficiente já constituiriam condição suficiente para a
democracia. Cada pequena formalização é um ganho para a democracia, pois o
problema desse entrelaçamento internacional consiste na formação de uma
dominação informal, que sempre se aninha nas lacunas e zonas flexíveis de um
sistema jurídico normativamente tão efetivo, como é o direito internacional
atual em comparação com o dos anos 1960. Do "cosmopolitismo de poucos" surge,
pela primeira vez na história, uma nova dominação de classe realmente
transnacional com grandes oportunidades de ganhos para os poucos mais bem
sucedidos e grandes espaços de ação para o executivo político, e assim por
diante. Por isso os executivos informalmente reunidos no G8, Conselho Europeu,
no Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia entram, admiravelmente, em acordo
de forma tão rápida e freqüente. Eles sabem que a unidade fortalece. Eles têm
um interesse particular comum na manutenção e ampliação de seu próprio poder
como classe política dominante. Nos contratos europeus consta que a União
Européia almeja a "unificação cada vez mais estreita dos povos". Os poderes
executivos, esses já se associaram de forma estreita. Os povos ficaram para
trás. Tudo depende de também se lograr promover, a partir das bases, formações
correspondentes. Eu não sei como. Mas o que é importante é que novamente se
fortaleça o conceito de crise, também a antiga idéia habermasiana de crise de
legitimação, a qual foi abandonada prematuramente por seu criador. Eu acredito
que as comunidades políticas podem se formar apenas por meio de crises, que
sempre abrigam enorme risco. Os Estados Unidos se tornaram uma nação por meio
da guerra civil. Talvez as coisas funcionem hoje na Europa sem uma guerra civil
uma guerra civil seria obviamente uma catástrofe de grandes proporções mas
certamente nada acontecerá sem conflitos substanciais. Nos Estados Unidos
também ocorreram conflitos de classe vultosos antes de existir o governo
nacional e o Estado social.
Ou seja, não existindo uma autoridade superior, esses conflitos podem levar a
um caos generalizado?
Sim, mas vivenciamos o surgimento de uma crise européia. Isso está claro. Os
cidadãos não suportam esse teatro por mais tempo. Se a Europa não produzir
muito output, se ela não for mais efetiva do que é atualmente, então os
políticos, que hoje têm a Europa nas mãos, não serão mais eleitos. Eles ainda
são dependentes das eleições nacionais, mas seu poder depende do fato de eles
terem se desvinculado o máximo possível das eleições nacionais. Eles estão
diante de um dilema: não podem manter simultaneamente poder e legitimação
nacional. Aqui a lacuna será cada vez maior. Cabe esperar que partidos de
esquerda também percebam isso e pelo menos rompam em alguma medida com o jogo
tácito de que tudo vai seguir seu caminho bem ordenado, basta ficarmos
quietinhos e continuarmos agindo como reformistas bem comportados.
Sérgio Costa é pesquisador do Cebrap e professor visitante da Universidade de
Flensburg. Publicou, entre outros: Dois Atlânticos. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2006.
Denilson Luis Werle é doutor em filosofia pela USP e pesquisador do núcleo
"Direito e Democracia" do Cebrap.
[1] A entrevista foi feita por Sérgio Costa. A tradução é de Denilson Luis
Werle.
[2] Hauke Brunkhorst, "The Legitimation Crisis of the European Union".
Constellations, Vol.13, 2, 2006, pp. 165-180. [nota do entrevistador].
[3] O Conselho da União Européia, antes chamado de Conselho de Ministros e
referido normalmente apenas como Conselho, é constituído pelos respectivos
ministros dos países membros, conforme as diferentes pastas. O Conselho Europeu
é constituído pelos chefes de Estado e de governo dos países membros e se reúne
quatro vezes por ano, contando ainda com a intervenção do Presidente do
Parlamento Europeu. (cf. http://europa.eu/abc/12lessons/_index4_pt.htm,
consultado em 28 de outubro de 2006) [nota do entrevistador]
[4] F. Scharpf, Regieren in Europa: Effektiv und Demokratisch? Frankfurt a.M. /
Nova York: Campus, 1999. [nota do entrevistador]
[5] Para a sociologia já está claro, pelo menos desde Spencer e Durkheim, que a
heterogeneidade social produz estruturas muito mais estáveis do que a
homogeneidade. O público homogêneo, assim que a reunião se dispersa, corre
desorientado para casa. Cf. Principles of Sociology (London, 1882, §154, §454),
de Herbert Spencer: "É verdade tanto para um como para qualquer agregado social
que o estado de homogeneidade é instável e mais: onde já existe alguma
heterogeneidade, a tendência é haver cada vez mais heterogeneidade". [nota do
entrevistado]
[6] Craig Calhoun, "The Class Consciousness of Frequent Travelers: Toward a
Critique of Actually Existing Cosmopolitanism." The South Atlantic Quarterly,
Vol. 101, 4, 2002, pp. 869-897. [nota do entrevistador]
[7] Conhecido líder da revolta estudantil de maio de 1968, em Paris, é deputado
no Parlamento Europeu. Já representou o Partido Verde francês e, no atual
mandato, foi eleito como membro dos Verdes alemães, é co-líder da fração
Verdes/Aliança Livre Européia naquele parlamento. [nota do entrevistador]
[8] Olivier Roy, L'islam mondialisé. Paris: Seuil, 2002. [nota do
entrevistador]