Quando discursos e oportunidades políticas se encontram: para repensar a
sociologia política da cidadania moderna
Em seu ensaio clássico sobre a construção da cidadania na Inglaterra, T. H.
Marshall sugere uma trajetória de lutas por direitos que acabou por se tornar
referência inequívoca à sociologia política. Como bem sabemos, Marshall indica
a seqüência direitos civis, direitos políticos e direitos sociais como aquela
que teria marcado as transformações normativas na Inglaterra moderna2. Não é
nenhuma novidade o fato de que, a despeito de se referir especificamente ao
caso inglês, tal imagem veio a se tornar uma espécie de padrão de medida em
relação ao qual transformações políticas em outros contextos foram e permanecem
sendo confrontadas. Com bastante freqüência, pois, a imagem projetada por
Marshall passou a servir de referência para se aferir o status da normatividade
de outras sociedades e, em muitos casos, para se delimitar fronteiras entre os
chamados "centro" e "periferia" da modernidade: quanto mais fiéis à seqüência
histórica "direitos civis/direitos políticos/direitos sociais", mais modernos
seriam os contextos analisados. A não-correspondência ou mesmo subversão de tal
padrão significaria, por conseguinte, evidência inquestionável de imaturidade
política e normativa, ou seja, sinal de atraso. Associa-se, pois, uma noção
bastante particular dos processos de institucionalização de direitos a uma
imagem pouco maleável do que vem a ser a sociabilidade moderna; contextos em
que um tal paralelo não se mostra muito claro são comumente rotulados como
exemplos de uma modernidade distorcida.
A se respeitar essa lógica, casos como o da construção da cidadania no Brasil
não parecem oferecer qualquer desafio analítico-interpretativo: os
indisfarçáveis contrastes entre cada uma das constituições brasileiras revelam,
de imediato, que aquela seqüência sugerida por Marshall simplesmente não
encontra a mais remota correspondência no muito pouco linear processo de
institucionalização da normatividade moderna entre nós. Em face da
peculiaridade com que cada constituição define o arranjo dos poderes, o
funcionamento e a relação entre as várias instituições e instâncias de poder,
suas prerrogativas, e, por fim, o tipo de relação entre os cidadãos e o aparato
estatal, vêem-se frustradas quaisquer tentativas de se falar em "um certo
padrão de normatividade"; a tentação, pois, é com freqüência render-se à imagem
de "ausência de padrão" como nossa mais profunda característica. Daí, então,
para se afirmar que a modernidade no Brasil é algo peculiar quando comparada
àquela dos chamados países "centrais" é um salto que não requer muito esforço3.
Conforme anunciado no título, o presente artigo assume, desde logo, uma postura
crítica: pretendo confrontar a referência analítico-interpretativa de T. H.
Marshall, de um lado, com a produção contemporânea no interior da sociologia
política a respeito da construção da cidadania moderna; de outro, inspirado nos
recentes debates em torno da idéia de "modernidades múltiplas", colocar aquela
referência perante configurações variadas de direitos civis, políticos e
sociais. Esses dois passos tornam possível salientar, de maneira veemente, o
caráter contingente e agonístico dos processos de institucionalização da
normatividade moderna. Tal empreendimento sugere a necessidade de se
problematizar um certo traço "essencializante" da imaginação sociológica da
modernidade. Em trabalho anterior, tive oportunidade de argumentar que, em um
momento em que a modernidade vem crescentemente sendo cunhada pelo debate
sociológico como um tipo de sociabilidade tendencialmente global4, tornam-se
cada vez mais problemáticas interpretações que continuam a confiar na
existência de uma distância abissal entre os supostos "centro" e "periferia"5.
Modernidades múltiplas tem sido uma das expressões utilizadas para se codificar
a percepção da existência de uma grande variedade de configurações sociais no
mundo contemporâneo passíveis de serem denominadas "modernas". A isso se
adiciona a também crescente percepção de que há no suposto "centro" vários dos
traços de sociabilidade que a imaginação sociológica comumente associava quase
que exclusivamente à "periferia"; de fato, em vez de marginal e/ou passageira,
tal presença, afirma-se, tem se revelado duradoura e constitutiva. Defendo,
pois, a necessidade de se aprofundarem algumas tentativas recentes de se
ampliar o escopo conceitual da sociologia da modernidade a fim de torná-la mais
apta a captar a substancial variedade de constelações de cidadania em um
contexto configurado pela multiplicidade de formas de sociabilidade.
Irregularidades e descontinuidades deixam, então, de ser tomadas como aspectos
exclusivos de uma suposta modernidade sui generis característica da "periferia"
para serem vislumbradas como elementos nodais nos processos de
institucionalização da normatividade moderna, amplamente considerada. Conforme
argumentarei, as noções de discursos e oportunidades políticas são de
importância central em minha proposta exatamente por, de um lado, permitirem
apreensões não-"essencializantes" da sociabilidade moderna e, por outro, por
salientarem seu caráter agonístico e contingente.
A seguir, problematizarei a maneira como as relações entre modernidade e
cidadania são codificadas pela "sociologia hegemônica da modernidade" a fim de
preparar o terreno para uma abordagem capaz de superar algumas das dificuldades
embutidas no esquema de Marshall (às quais me deterei mais adiante). Tenho por
preocupação adicional sugerir ao debate sociológico alguns elementos que
eventualmente permitam considerá-lo de forma mais acurada: 1. O amplo escopo de
ordens normativas modernas no mundo contemporâneo, não-hierarquicamente
colocadas umas em relação às outras. Nesse aspecto em particular, não só
gostaria de chamar a atenção para a existência de uma diversidade de padrões de
sociabilidade moderna muito maior do que aquela comumente atribuída pela
sociologia hegemônica da modernidade como também a existência de uma maior
variedade de constelações da cidadania moderna. 2. A não-linearidade e
irregularidade das transformações normativas que desencadeiam mudanças em
configurações de cidadania. Para tal, lançarei mão de uma abordagem que acentue
a dimensão agonística da construção da cidadania pela qual interesses,
demandas, projetos e visões de mundo (discursos) prevalecem uns sobre os outros
na medida em que encontram, fabricam e tiram proveito de oportunidades
políticas. Argumentarei que, uma vez favoráveis, tais oportunidades tornam
determinados projetos normativos mais aptos a se manterem em posições
privilegiadas no corpo social e político ou a se estabelecerem como tais. A
noção de oportunidades políticas implica, pois, que conjunturas particulares
(fabricadas e percebidas enquanto tais por atores sociais e políticos) aumentem
as chances de ocorrência de transformações normativas ao facilitar a
confluência e sinergia de determinados discursos em detrimento (total ou
parcial) da ordem estabelecida. A meu ver, esses instrumentos analíticos têm o
potencial de aguçar a percepção de subversões na seqüência inicialmente
proposta por Marshall ao mesmo tempo em que podem nos ajudar a delinear uma
imagem menos "essencialista" da sociabilidade moderna.
LIGAÇÕES PERIGOSAS? CIDADANIA E IMAGINÁRIO SOCIOLÓGICO6
Gostaria de iniciar minha problematização relembrando a maneira como a
cidadania moderna é definida no ensaio clássico de T. H. Marshall. Segundo o
autor, ao longo e como parte de processos de modernização, certas normas que
por muito tempo permaneceram consistentemente imbricadas acabaram se
autonomizando e se formalizando em torno de três noções de direitos: os civis,
os políticos e os sociais.
O elemento civil é composto por direitos necessários à liberdade
individual - liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensamento e
fé, o direito de propriedade e de concluir contratos válidos, e o
direito à justiça. [...] as instituições mais diretamente associadas
aos direitos civis são as cortes de justiça. Por direitos políticos
eu entendo o direito de participar no exercício do poder político,
como um membro de um corpo investido de autoridade política ou como
eleitor de membros de tal corpo. As instituições correspondentes são
o parlamento e os conselhos locais de governo. Quanto ao elemento
social entendo ser toda uma gama de direitos, desde um modicum de
segurança e bem-estar econômico até o direito de compartilhar por
completo a herança social e de viver a vida de um ser civilizado
conforme os padrões prevalecentes na sociedade. As instituições mais
conectadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais7.
De acordo com Marshall, ao se dividirem, cada um desses conjuntos de normas
adquiriu velocidade, lógica e ritmo próprios, ou seja, cada qual se
institucionalizou e passou a fazer parte da dinâmica social em momentos
particulares, e em decorrência de pressões e demandas provenientes de atores
sociais e políticos consideravelmente diferentes: os direitos civis teriam se
consolidado primeiro, fundamentalmente no decorrer do século XVIII, seguidos
pela luta e institucionalização dos direitos políticos no século XIX e, em
seguida, pelas disputas e implementação dos direitos sociais no século XX.
Por certo, não coube a Marshall inaugurar a preocupação da sociologia com a
temática da cidadania. Clássicos como Marx, Durkheim e Weber, peças centrais
daquilo que chamo de "imaginário sociológico hegemônico da modernidade"8, já
haviam sinalizado para a importância dessa questão nas investigações em torno
da normatividade moderna9. É legítimo afirmar, porém, que o ensaio de Marshall
não só contribuiu decisivamente para que tal problema ganhasse fôlego renovado
no interior da sociologia política como também acabou por balizar estudos de
caso e pesquisas comparativas posteriores nessa área. A meu ver, avanços em
relação às contribuições de Marshall requerem, antes de mais nada, que
acentuemos o notável parentesco entre sua noção de cidadania e a episteme
através da qual aquele imaginário hegemônico apreende e codifica a
sociabilidade moderna. Conforme acabei de indicar, em tal imaginário, o tipo de
sociabilidade peculiar da modernidade é concebido em torno do tripé
diferenciação/complexificação social, secularização da normatividade, separação
entre os âmbitos de ação públicos e os domínios privados. Quero dizer com isso
que, a despeito de especificidades irredutíveis, os trabalhos de Marx,
Durkheim, Weber e Simmel (tanto quanto os de Parsons, Luhmann, Habermas e
outros que operam no interior da mesma episteme) compartilham do pressuposto
segundo o qual as chamadas "sociedades centrais da modernidade" são aquelas em
que: 1. Estado, mercado, e sociedade civil necessariamente ocupam esferas
plenamente diferenciadas entre si, reguladas exclusivamente por códigos
próprios e dinamizadas por lógicas particulares; 2. a normatividade que regula
as relações entre indivíduos e deles com o Estado e o mercado é plenamente
desencantada e eficientemente salvaguardada da influência de concepções de
mundo e sistemas normativos não-racionalizados; 3. e os âmbitos públicos e
privados são também plenamente separados, cada um dos quais ordenado por
códigos e lógicas particulares, comunicando-se entre si apenas e tão-somente
através de canais apropriados que mantêm inalterados os termos e regras de cada
um dos domínios10. Ora, essa episteme está claramente embutida na definição de
cidadania moderna proposta no ensaio de Marshall: primeiramente, a idéia da
existência de direitos civis, políticos e sociais, cada qual com sua dinâmica e
lógica próprias, remete a uma imagem da sociabilidade moderna pretensamente
marcada por plena diferenciação. Em segundo lugar, está implícita na própria
noção de direitos a idéia conforme a qual os mais determinantes preceitos
normativos modernos alcançaram graus de generalidade e formalização suficientes
para se resguardarem de influências morais particularistas e tradicionais;
afirma-se, pois, que tais normas se institucionalizaram na forma de leis
racionalmente justificadas, amparadas em princípios universais, e garantidas em
última instância por um aparelho político-administrativo imune a visões de
mundo encantadas. Por fim, todos os componentes da cidadania moderna, tal qual
delineados no ensaio de T. H. Marshall, se apresentam como atributos legais de
indivíduos dotados de subjetividade, consistentemente protegidos de esferas
sociais públicas.
No interior da sociologia da modernidade, Talcott Parsons parece ser quem
expressa de forma mais evidente essas conexões tanto quanto suas implicações
analítico-interpretativas11. Conforme Parsons, a sociedade comunal moderna se
estrutura em dois níveis: um organizacional e outro normativo. Do ponto de
vista organizacional, ela se constitui como uma rede de coletividades e
lealdades coletivas (caracterizadas por diferenciação funcional e por
segmentação) que se interpenetram de forma altamente complexa. Esse é o caso,
por exemplo, das coletividades de parentesco, das firmas de negócios, das
Igrejas, unidades governamentais, coletividades educacionais etc., todas elas
substancialmente independentes, ainda que interconectadas. Já, do ponto de
vista normativo, a sociedade comunal se constitui por meio da
institucionalização sistemática de um sistema legítimo de valores (socialmente
aceito e aplicado por agências especializadas) responsável pela integração da
sociedade. Conforme Parsons, na modernidade, dois aspectos dessa dimensão
normativa chamam atenção especial. Em primeiro lugar, ela se sustenta em um
sistema de valores com alto grau de generalização, ou seja, mediante um
conjunto de valores que transcende as particularidades de contextos sociais
específicos, razão pela qual se mostra capaz de permear a ampla gama de
coletividades que constituem as modernas sociedades. Uma segunda característica
central desse sistema de valores é precisamente o fato de sua
institucionalização se dar por meio de leis. Daí a idéia conforme a qual o tipo
moderno de sociedade comunal é, em larga medida, nada mais que um conjunto de
leis e associações responsáveis por funções normativas.
É exatamente nesse ponto que se observa, em Parsons, o peso da cidadania na
normatividade moderna. Partindo da definição de lei como "um código geral que
regula a ação e define situações para as unidades-membro de uma sociedade"12, o
autor sugere que a legalidade moderna compreende sistemas constitucionais que
estabelecem, a um só tempo, marcos normativos e os termos por meio dos quais se
define a participação de indivíduos em uma dada sociedade. A cidadania, tal
qual definida por Marshall, seria um dos ingredientes-chave desses sistemas
constitucionais. No entendimento de Parsons, ela congrega duas realizações
normativas fundamentais da modernidade, quais sejam, o processo de
"generalização dos valores" e a "institucionalização do sistema de valores".
Nesse sentido, o complexo da cidadania moderna é visto como a corporificação de
normas universais através de direitos subjetivos que são, simultaneamente,
constitucionalmente garantidos e igualitariamente aplicados. De acordo com o
autor, em última instância, o advento da cidadania implica que, em uma ordem
plenamente moderna, a lei deixe de ser um mero instrumento de política de
Estado para se tornar uma "interface de mediação" entre o aparato-estatal e a
comunidade societal. Mediante esse complexo normativo, pluralidade e
diferenciação sociais não só ganham garantia legal como também vêem-se
estimuladas a seguir curso, ainda que sob a prioridade da integração social
(isto é, sob a primazia da sociedade comunal diante dos outros subsistemas). É
em tal contexto que os componentes da cidadania moderna (novamente, tal qual
codificados por Marshall) passam a assumir funções normativas particulares: 1.
ao garantir o acesso igualitário aos direitos subjetivos, os direitos civis
fixam as fronteiras entre a comunidade societal e o Estado, de forma a proteger
a primeira de possíveis incursões estatais; 2. ao proporcionar (direta ou
indiretamente) igual acesso à participação nos negócios públicos, os direitos
politicos estabelecem os elos entre a comunidade societal e o Estado sem,
contudo, borrar totalmente as fronteiras entre um e outro; 3. e, finalmente, ao
proporcionar os recursos e capacidades para que indivíduos atuem autonomamente,
as garantias sociais tornam efetivos aqueles mesmos direitos subjetivos13.
Parece-me inegável o impacto dessas idéias na recente produção sociológica.
Apenas para indicar dois exemplos no interior do "imaginário sociológico
hegemônico da modernidade", Luhmann credita ao sistema legal de corte universal
e "positivo" um papel normativo central na modernidade14. Habermas, por sua
vez, salienta que, ao controle externo praticado pela lei se agrega uma
moralidade de tipo pós-convencional (ancorada e orientada por princípios gerais
e universais) no cumprimento de funções normativas e de integração social15.
Habermas refere-se, ainda, a quatro "ondas de juridificação" ao longo das quais
teria ocorrido a sedimentação de cada um dos componentes da cidadania moderna:
1. a formação do Estado burguês (que preparou o terreno para a ancoragem legal
das relações de mercado); 2. a formação do Estado burguês constitucional (em
que se deu a institucionalização dos direitos civis); 3. a formação do Estado
constitucional democrático (momento da institucionalização dos direitos
políticos); 4. e, por fim, a formação do Estado de bem-estar social democrático
(contexto da implementação dos direitos sociais)16.
O parentesco de primeiro grau entre aquele imaginário sociológico e a concepção
de cidadania de T. H. Marshall é, pois, indisfarçável: 1. No tocante aos
processos de complexificação e diferenciação social, afirma-se que em
sociedades plenamente modernas, os direitos civis, políticos e sociais tornam-
se elementos normativos-chave (cada qual com sua lógica e âmbito de atuação),
responsáveis pela mediação entre sociedade civil, Estado e mercado (tidos, por
sua vez, como esferas consideravelmente independentes e auto-reguladas). 2. No
que se refere à secularização, tem-se que os direitos civis, políticos e
sociais são o resultado de transformações normativas alavancadas pelo alto grau
de generalização e "destradicionalização" de valores; 3. Por fim, quanto à
separação entre os domínios sociais públicos e privados, coloca-se que, em sua
dimensão subjetiva, os componentes da cidadania moderna operam como um tipo de
elo normativo conectando esferas públicas e âmbitos privados de sociabilidade
de tal forma a preservar as particularidades de cada um desses domínios. Em
tais circunstâncias, o aparecimento pleno e equilibrado de cada um dos
componentes da cidadania seria evidência de modernidade normativa de uma dada
sociedade. Nesse exato sentido, não é de se estranhar a desenvoltura com que
Parsons atribui à sociedade norte-americana o status de "realização máxima" da
modernidade, em relação à qual todas as demais sociedades modernas seriam
variações de ordem inferior17.
Ora, são tais conexões que se mostram analítica e interpretativamente
perigosas: elas limitam sobremaneira a capacidade da sociologia política de
apreender a grande variedade de configurações normativas que se nos apresenta
no momento em que a modernidade é crescentemente cunhada como sendo um tipo de
sociabilidade a um só tempo múltipla e tendencialmente global. Daí a reprodução
de estereótipos em torno das noções de "centro" e "periferia", ao menos em
parte em decorrência da freqüente desconsideração de variações e transformações
no interior de cada uma dessas supostas "zonas sui generis". Antes de
encaminhar minhas sugestões, faz-se necessário chamar atenção para algumas
importantes tentativas de equacionar essa problemática.
CONFIGURAÇÕES DE CIDADANIA E SOCIABILIDADE(S) MODERNA(S)
É sintomático o fato de diferentes elementos da definição de Marshall terem
sido acentuados com propósitos específicos e para iluminar contextos variados.
Nos Estados Unidos dos anos 1960, os direitos civis foram particularmente
enfatizados em tentativas de se compreender o teor das reivindicações em torno
de conflitos étnicos e raciais; na Inglaterra pós-Segunda Guerra Mundial, foi a
vez de os direitos sociais terem sido recuperados como bandeira de luta pela
extensão de benefícios sociais18. No final dos anos 1970, início dos anos 1980,
foi a dimensão dos direitos politicos, por sua vez, a que veio ganhar posição
de destaque na América Latina, acentuada por intelectuais e ativistas engajados
na compreensão e luta pela democratização19. Para além dessas apropriações
particulares, me parece central aqui salientar algumas das mais recentes
críticas de que é alvo o ensaio de T. H. Marshall.
Para iniciar, o esquema conceitual de Marshall já foi acusado de negligenciar
assimetrias de gênero: conforme Fraser e Gordon, por exemplo, tanto sua
periodização quanto sua diferenciação conceitual pressupõem, em vez de
problematizar, hierarquias de gênero que, via de regra, obstacularizaram a
universalização plena da cidadania20. Critica-se Marshall também por seu
silêncio diante de conflitos de corte étnico-racial e por tomar a condição dos
"cidadãos brancos" como referência na definição do universo da cidadania
moderna21. Há ainda críticas que apontam para a suposta simplicidade com que os
conflitos de classe são retratados naquele ensaio. A esse respeito, Tom
Bottomore salienta que as políticas de bem-estar social implementadas ao longo
do século XX não só não transformaram o sistema de classes tal como Marshall
esperava, como também foram incapazes, na maior parte dos casos, de eliminar a
pobreza. Coloca-se que a caracterização de Marshall também não dá conta das
experiências socialistas, em que alguns dos mais importantes direitos sociais
foram implementados ainda que em detrimento de direitos civis e políticos, e a
despeito de terem desencadeado novas formas de hierarquia e de desigualdade22.
Nem mesmo questões de geopolítica escaparam das críticas ao esquema do autor
inglês, acusado de desconsiderá-las por completo23.
Outra deficiência apontada diz respeito à sua incapacidade de apreender
variações em um mesmo Estado-nação: afirma-se que ao enfocar o nível nacional,
o esquema de Marshall se revela insensível às peculiaridades de conflitos
regionais e locais, muitos dos quais mostraram-se determinantes em várias
situações. Há, ainda, sérias restrições à temporalidade e à concepção de
agência implícitas no ensaio de Marshall24. Em primeiro lugar, uma rígida
periodização teria impedido Marshall de perceber que, dependendo da localidade
e de seu correspondente padrão de participação, a implementação e
institucionalização de direitos civis, políticos e sociais acabaram tendo
seqüências bastante singulares. Em alguns casos, por exemplo, ao invés da
implementação ter seguido a linearidade sugerida, os três diferentes tipos de
direito se institucionalizaram de maneira imbricada na esteira de lutas em
torno da legislação trabalhista. Já, quanto à questão da agência, Somers
argumenta que, contrariamente ao diagnóstico de Marshall, práticas de cidadania
na Inglaterra não se mostraram unicamente vinculadas a comportamentos de
classe. Elas agregaram indivíduos provenientes de backgrounds socioeconômicos
díspares, que se organizavam em torno de interesses comuns, às vezes
divergentes, e em torno de projetos sociais que não necessariamente se
ancoravam em identidades de classe.
Claramente, o pano de fundo de todas essas críticas é precisamente a enorme
variedade de configurações que a cidadania moderna assumiu, vale dizer, não só
em sociedades ditas "periféricas" mas também nos comumente denominados "países
centrais da modernidade". É nessa variedade que o esquema de T. H. Marshall,
uma vez generalizado para além da Inglaterra, se mostra insuficiente, ainda que
aplicado unicamente ao "berço da modernidade"25. As crescentes discussões em
torno da existência de múltiplos formatos da sociabilidade moderna jogam luz
sobre a necessidade de se ajustar as referências conceituais do "imaginário
sociológico hegemônico da modernidade"26. Nesse sentido, Eisenstadt parece
sumarizar o espírito desse empreendimento: segundo o autor, na contramão da
expectativa de que "o programa cultural da modernidade desenvolvido na Europa
moderna e as constelações institucionais básicas que lá emergiram iriam
inexoravelmente dominar todas as sociedades modernas ou em processo de
modernização"27, observa-se algo bastante diferente, a saber, uma enorme
multiplicidade institucional e ideológica, ainda que o "projeto ocidental"
tenha se mantido como referência central.
Proponho duas alternativas básicas para melhor lidar com essa notória gama de
variações que incidem inclusive sobre as chamadas "sociedades modernas
centrais". A primeira delas, que aprofundarei mais adiante, aponta para a
necessidade de se abandonar a sequência direitos civis/direitos políticos/
direitos sociais como referência conceitual para se pensar os processos de
institucionalização da normatividade moderna. Ora, como revelou Margaret
Somers, tal seqüência não é passível de ser generalizada nem mesmo para a
Inglaterra. Insistir na imagem de um padrão linear de institucionalização dos
direitos e deveres modernos implica assumir a existência modelar de uma
configuração particular por demais idealizada em relação a qual outros arranjos
seriam necessariamente tidos como desvios ou distorções. Jogar por terra essa
imagem de uma vez por todas demanda um ajuste conceitual anterior, que recai
sobre o próprio "imaginário sociológico hegemônico da modernidade". A meu ver,
há que se dotar aquele imaginário de instrumentos que lhe permitam apreender a
multiplicidade da modernidade de forma não-ossificada e não-hierarquizada. Isso
pode ser alcançado a partir de um movimento de ampliação da episteme por meio
da qual aquela sociologia interpreta a sociabilidade moderna. Conforme
sinalizei anteriormente28, proponho os seguintes ajustes:
1. Ao invés de diferenciação/complexificação social como pilar central da
sociabilidade moderna, entendo ser mais acurada a noção de padrões variados de
diferenciação/complexificação social29. Uma investigação mais atenta das
sociedades contemporâneas, inclusive das pretensas "sociedades modernas
centrais", é facilmente capaz de revelar a existência dos seguintes padrões:
padrão de diferenciação liberal-capitalista; padrão de diferenciação social-
democrático; padrão de diferenciação capitalista-corporativo; padrão de
diferenciação autoritário (socialista ou capitalista); padrão de diferenciação
totalitário (socialista ou fascista). Ainda que esses cinco cenários não
esgotem todas as possibilidades teóricas e empíricas de diferenciação social,
ao menos apontam para o amplo escopo de configurações a que todas as sociedades
modernas são, em princípio, passíveis de experimentar. Soma-se a isso o
equívoco de se atribuir a uma dada sociedade um único padrão de diferenciação.
Histórias recentes de sociedades como a italiana, a alemã, a inglesa e mesmo a
norte-americana são facilmente capazes de revelar mudanças bastante
significativas no tocante às relações Estadoómercadoósociedade civil, por vezes
em um espaço temporal relativamente curto.
2. Nesse mesmo espírito, em vez da noção de secularização da normatividade,
entendo ser mais apropriado trabalhar com a idéia de padrões variados de
secularização30. Há uma série de exemplos de configurações sociais modernas nas
quais: as associações religiosas têm papel ativo na vida pública; em que
concepções religiosas mantêm-se vivas e atuantes fundamentalmente em âmbitos
sociais privados; e, por fim, casos em que associações e concepções religiosas
não têm peso marcante, seja em esferas sociais públicas, seja em âmbitos
privados. Também aqui não há motivo para afirmar categoricamente que qualquer
um dos casos acima indicados seja mais ou menos representativo da modernidade.
3. Finalmente, em vez da noção de separação públicoóprivado, entendo ser mais
fiel à modernidade contemporânea a idéia de padrões variados de separação entre
domínios públicos e privados31: o privado como âmbito de ação de indivíduos
movidos pela busca de interesses subjetivamente definidos (tipo "liberal"); o
privado como domínio de códigos de sociabilidade familiar (tipo "patriarcal");
o público entendido como resultante da vontade geral (tipo "comunitário-
republicano"); o público como esfera de sociabilidade controlada e definida
pelo Estado (tipo "autoritário-totalitário"). Nenhum dos tipos acima
assinalados deve ser visto como mais ou menos característico da modernidade.
Tendo tal quadro epistemológico em mãos, dá-se maior escopo analítico e
interpretativo à experiência moderna. Torna-se, pois, concebível uma
considerável gama de combinações características da sociabilidade moderna:
Uma vez afastada a idéia de que uma certa configuração de sociabilidade moderna
seria a referência a partir da qual outras seriam mensuradas, torna-se também
concebível a existência de configurações múltiplas de cidadania moderna,
passíveis de variação não só entre diferentes sociedades mas também no interior
e ao longo da história de uma mesma sociedade. Há, então, espaço para
concebermos diferentes cenários normativos na modernidade: 1. Contextos
históricos em cujas ordens normativas os direitos civis ocupam posição mais
acentuada do que os direitos políticos e sociais; 2. Situações em que os
direitos políticos se mostram mais preponderantes; 3. Casos em que os direitos
sociais revelam-se mais proeminentes na ordem normativa; 4. Contextos em que os
três componentes convivem de forma relativamente equilibrada; e, por fim, 5.
Situações em que os direitos não têm presença significativa na dinâmica social.
Duas colocações são fundamentais aqui: em primeiro lugar, a despeito de seu
status universal, variações e assimetrias no tocante à capacidade efetiva de
uso dos direitos de cidadania são facilmente observáveis em uma mesma sociedade
quando considerados momentos históricos diferentes ou ainda quando são levados
em conta dimensões e aspectos sociais variados (territoriais, étnico-raciais,
gênero, socioeconômicos, dentre outros). Em segundo lugar, a cristalização de
um certo padrão de diferenciação social, de secularização, e de separação entre
público e privado tem implicações para o perfil da cidadania que se
institucionaliza em uma certa sociedade. Em ambos os casos, quaisquer que sejam
as constelações consolidadas, trata-se de resultado contingente, fruto de
conflitos e lutas entre projetos sociais, interesses, concepções de mundo e
demandas (discursos), alguns dos quais díspares, outros passíveis de se
coadunarem tendo em vista a construção de uma dada ordem social, política e
normativa. Voltarei a esse ponto no próximo item.
Ainda que de maneira bastante superficial, gostaria de apontar para algumas
notórias variações de cidadania observáveis em cenários múltiplos de
diferenciação social, secularização normativa, separação entre público e
privado:
Obviamente, tais indicações não têm qualquer pretensão de esgotar todas as
possbilidades normativas modernas. Além disso, há que se reconhecer que somente
investigações históricas mais exaustivas de cada cenário poderiam proporcionar
retratos mais substantivos e acurados. Por ora, contudo, é legítimo salientar
uma vez mais o equívoco de se considerar qualquer um desses arranjos como mais
ou menos representativo da normatividade moderna, em relação ao qual o grau de
modernidade de outras constelações poderia ser mensurado. Por fim, vale lembrar
o quão problemático seria atribuir uma única configuração normativa a uma dada
sociedade. Há, conforme indicado nas figuras_1 e 2, evidências claras de
transformações no desenrolar histórico de toda e qualquer sociedade moderna.
Daí a necessidade de se avançar em relação à rigidez conceitual implícita no
ensaio de Marshall. Mas, antes de dar esse passo, gostaria de reiterar um
importante aspecto em meu argumento: minha crítica em relação à incapacidade
com que aquele esquema lida com notórias variações históricas (aliás, conforme
chamei atenção, variações presentes inclusive no chamado "berço da
modernidade") não implica, de forma alguma, a recusa da existência de um
determinado tipo de normatividade especificamente moderno. Do ponto de vista
teórico-analítico, são passíveis de serem sociologicamente qualificadas como
modernas, a despeito de suas variações, aquelas configurações de cidadania que
se definem com base em princípios universalistas e fundadas em valores com alto
grau de generalidade, e que são expressamente tidas como fruto da elaboração
racional da sociedade (sejam democráticos ou não os processos através dos quais
tal conjunto de direitos e deveres é elaborado e institucionalizado) - em
contraste com aqueles arranjos de direitos e deveres percebidos como fruto da
emanação divina além de formalmente restritivos a setores do corpo social (seja
por razões hereditárias ou de quaisquer outras ordens que a priori definem
posições hierarquicamente diferenciadas)33.
QUANDO DISCURSOS E OPORTUNIDADES POLÍTICAS SE ENCONTRAM
Uma vez institucionalizados e consolidados na ordem social, os diferentes
componentes da cidadania moderna são passíveis de oferecer: 1. uma espécie de
grade conceitual mediante a qual são estabelecidos os termos básicos de
afiliação social e política; 2. uma definição dos sujeitos e objetos de
direitos; e 3. uma descrição dos tipos de práticas e usos de recursos políticos
entendidos e aceitos como legítimos no curso das disputas por poder político e
social. Uma das tarefas centrais da sociologia política é, precisamente,
investigar as lutas e embates que desencadeiam a consolidação de constelações
normativas específicas. Ora, em um cenário marcado pela multiplicidade de
formas de sociabilidade moderna, essa tarefa se traduz no desafio de captar
processos crescentemente não-lineares de institucionalização de direitos e
deveres. Nesse sentido, vejo como um imperativo reforçar a idéia de que por
mais sólidas e sedimentadas que possam parecer quaisquer constelações de
sociabilidade e configurações de cidadania, ambas são sempre o resultado
contingente de constantes lutas em torno de recursos políticos, simbólicos,
econômicos e sociais escassos. Em tais conflitos, embatem-se projetos,
demandas, visões de mundo e interesses - discursos, por assim dizer - os mais
diversos que trazem em seu seio concepções díspares de sociabilidade e de
normatividade. Defendo a idéia de que a institucionalização de cada uma dessas
concepções se revela factível em maior ou menor grau na medida em que encontre
ou não conjunturas políticas mais ou menos favoráveis. A relação entre as
noções de discursos e oportunidades políticas me parece, pois, extremamente
profícua diante do desafio de se trabalhar em direção a uma abordagem sensível
ao dinamismo e variedade da normatividade moderna. O uso que faço da noção de
discursos pressupõe a concepção da ordem social como um campo simbólico e
discursivo (conforme sugerido em Ernesto Laclau e Chantal Mouffe), marcado pela
inexistência de qualquer nível de realidade "em última instância" anterior ou
posterior às práticas sociais de articulação34. Isso implica a idéia conforme a
qual, ao lutarem e se articularem entre si, diferentes discursos se constituem
tendo vista a conquista de hegemonia, que lhes permita então moldar a ordem
social (e normativa, por conseguinte) "à sua imagem". Não existe, nesse
sentido, sujeitos históricos fixos ou predeterminados já que também não há
discursos anteriores àquelas práticas de articulação.
Deixe-me, agora, qualificar o enorme dinamismo da normatividade moderna. Por
certo, é uma das premissas básicas da sociologia política a idéia de que
embates em torno de recursos escassos (sejam eles políticos, simbólicos,
econômicos e/ou sociais) se dão por meio de práticas, valores e instrumentos
cognitivos já sedimentados. A literatura sobre movimentos sociais é, nesse
sentido, bastante esclarecedora: ainda que o objetivo seja a subversão parcial
ou mesmo completa de uma dada ordem, movimentos sociais, organizações
voluntárias, diferentes setores do aparelho do Estado, market-players, cidadãos
individualmente considerados, entre outros, interagem entre si fazendo uso de
um certo denominador comum, ou seja, códigos normativos, símbolos e
instrumentos cognitivos compartilhados35. Ainda assim, há que se salientar que
os termos desse denominador comum não permanecem de forma alguma congelados no
tempo e no espaço: eles são, sim, o resultado mais ou menos estável e duradouro
de inesgotáveis lutas tendo em vista o controle da ordem social36. Ao
disputarem entre si o controle de recursos simbólicos, políticos e materiais
escassos, acabam, por conseguinte, moldando os termos, códigos e normas através
dos quais aqueles mesmos conflitos se desenrolam. É justamente isso que dota a
normatividade moderna de "positividade"37, traço central da auto-imagem das
sociedades modernas38.
Ora, o complexo moderno da cidadania é, ele mesmo, um desses conjuntos de
normas que se sedimentam ou não ao cabo de confrontos envolvendo uma ampla gama
de diferentes atores sociais e políticos e seus projetos, demandas e interesses
(isto é, seus discursos). Por um lado, todas as sociedades possuem órgãos e
instituições que, ao monopolizar o uso legítimo dos meios de violência física,
são responsáveis por fazer valer o cumprimento de tais direitos e deveres. Ao
mesmo tempo, porém, a efetividade desses mesmos direitos e deveres depende de
capilaridade na dinâmica social: para além da capacidade de aplicação da
violência física, pura e simplesmente, pelos órgãos do aparelho do Estado, eles
devem encontrar um certo grau de aceitação/lealdade não-forçada por aqueles aos
quais se referem; devem, pois, ecoar, reverberar e responder (ainda que em
graus variados e de maneiras assimétricas) os anseios, demandas, interesses,
projetos e concepções de mundo de diferentes setores da sociedade. A questão é
que, como bem sabemos, jamais há uma perfeita justaposição entre uma dada
configuração de cidadania e as diferentes expectativas dispersas pela ordem
social. Daí a importância de se acentuarem os intermináveis embates em torno
das constelações de direitos e deveres a fim de se identificar o tipo de
normatividade que vigora em um determinado cenário.
Uma tal ênfase analítica refuta a noção de que tanto a formação como o
funcionamento da cidadania encontram-se ancorados em um único locus social.
Rejeita, com isso, concepções que lidam com o complexo da cidadania como o
resultado de uma certa "estratégia da(s) classe(s) dominante(s)", isto é, como
fruto de avanços e tomadas de posições políticas, econômicas e militares de
classes e grupos dominantes39. Conforme bem documentado por Somers40, demandas
por diretos e deveres muitas vezes envolvem alianças que transcedem simples
afiliações de classe. Igualmente, essa abordagem é também refratária a qualquer
ênfase demasiada na dinâmica do Estado41; centrar-se no funcionamento do
aparato estatal implica, como acentua Ann Mische, superestimar a dimensão
legal-formal das demandas em detrimento de "exortações performáticas", de
natureza muito mais informal, bastante comuns em lutas que se desenrolam em
torno da definição e atribuição de direitos42.
São essas observações que me levam a enfatizar exatamente aquilo que Bryan
Turner qualifica como sendo a "dimensão prática" da cidadania:
[a] cidadania pode ser definida como um conjunto de práticas
(jurídicas, políticas, econômicas e culturais) que define uma pessoa
como um membro competente da sociedade, e que conseqüentemente molda
o fluxo de recursos para pessoas e grupos sociais.43
Evita-se assim, como coloca Turner, as armadilhas de uma definição por demais
atrelada ao funcionamento e lógica jurídica do Estado, que tende a lidar com a
cidadania como uma mera coleção de direitos e obrigações. Nesse sentido, me
parece também frutífera a proposta de Somers - tratar a cidadania como:
um processo "instituído", ou seja, [...] como um conjunto de práticas
sociais institucionalmente embutidas. Essas práticas são contingentes
às e constituídas por redes de relações e idiomas políticos que
acentuam pertencimento a direitos e deveres universais [...].44
Nessa mesma direção, proponho lidar com as várias possíveis configurações da
cidadania moderna como o resultado de disputas envolvendo demandas, anseios,
interesses, projetos sociais e interesses (conforme já denominei, discursos,
genericamente falando) que por vezes convergem, outras vezes divergem entre si,
na busca de se institucionalizarem e de se transformarem em normas jurídicas. O
ponto-chave passa a ser, então, a investigação das circunstâncias em que
determinados discursos tornam-se capazes de prevalecer e, dessa maneira, de
determinar os termos do pertencimento social e das disputas políticas. Tal
abordagem afasta o perigo de vislumbrar configurações de cidadania como
conseqüências quase que inexoráveis de traços históricos supostamente
peculiares a certas sociedades (tais como sua pretensa "cultura política" ou
ainda sua posição no campo internacional de disputas econômicas)45. Fosse esse
o caso, faria sentido atribuir, a priori, constelações de direitos particulares
única e exclusivamente à "periferia" e ao "centro". Bem sabemos, porém, dos
riscos "essencializantes" que derivam daquelas investigações que se dedicam a
descortinar traços históricos supostamente peculiares (sejam eles de cunho
cultural ou econômico) para então determinar as ordens normativas que
presumivelmente lhes corresponderiam. Ao contrário, cabe à sociologia política
assumir desde o início o caráter indeterminado e contingente das disputas pela
definição e institucionalização de direitos e deveres.
Essa ênfase no caráter contingente da construção do complexo da cidadania
moderna requer, pois, que se preste especial atenção às circunstâncias que
tornam determinados discursos mais aptos e capazes que seus pares a se
institucionalizarem como normas jurídicas. A fim de proporcionar a fluidez
conceitual que essa abordagem demanda, defendo a adoção de uma noção que ganhou
espaço em uma certa vertente dos estudos de movimentos sociais, qual seja, a de
oportunidades políticas 46. Ao pretender assinalar a existência de conjunturas
especiais que tornam certas demandas, projetos e concepções de mundo mais aptos
a ganhar proeminência na sociedade, essa noção tem o potencial de explicar uma
gama maior de transformações normativas. Permite-nos perceber como determinados
projetos, concepções de mundo, demandas e interesses dispersos e fragmentados
conseguem aproximar-se e coalescer em busca de alvos comuns. Meu argumento é
que esse movimento de convergência de discursos que guardam entre si um certo
potencial de compatibilidade se deve precisamente à existência de cenários
políticos favoráveis. Caso os portadores desses discursos consigam tirar
proveito dessas circunstâncias favoráveis, podem vir a ganhar a consistência e
força política necessárias para transformar uma dada ordem normativa
estabelecida. Algumas elucidações adicionais se fazem necessárias.
No contexto intelectual ao qual me reportei acima, o argumento básico é o
seguinte: "disputas políticas são alavancadas quando mudanças nas oportunidades
e constrangimentos políticos criam incentivos para atores sociais que não
possuem recursos próprios"47. Nessa linha, Sidney Tarrow define oportunidades
políticas como
dimensões consistentes da luta política - ainda que não
necessariamente formais, permanentes ou racionais - que encorajam as
pessoas a se engajar em disputas políticas. Constrangimentos
políticos, por sua vez, são forças ótal qual repressão, além da
capacidade das autoridades de apresentar frentesólida diante de
insurgentes - que desencorajam disputas48.
De acordo com Tarrow, essas circunstâncias especiais, quando combinadas com a
percepção dos custos da falta de ação, oferecem oportunidades ótimas para
disputas políticas, que podem vir a desencadear até mesmo ciclos mais amplos e
duradouros de disputas49. Uma importante implicação é que, quando essas
oportunidades são efetivamente aproveitadas, "novos centros de poder - ainda
que temporários e efêmeros - se desenvolvem, a ponto de convencer insurgentes
de que eles estão realmente fazendo colapsar o antigo sistema"50. Quais seriam
as origens dessas oportunidades? Seriam elas fruto de transformações de longo
ou de curto alcance? Elas podem estar profundamente embutidas em instituições
políticas consideravelmente estáveis (cujas transformações se dão de maneira
vagarosa e gradual) tanto quanto podem emergir de transformações voláteis e
passageiras (que aparecem e desaparecem num piscar de olhos). Podem também
surgir de mudanças em instituições consistentemente formalizadas tanto quanto a
partir de transformações que afetam disputas informais e não-
institucionalizadas por poder51. Além disso, podem estar estreitamente
vinculadas a grupos e/ou questões específicos ou mesmo centradas no próprio
aparelho do Estado.
Para que essa noção ganhe viabilidade analítica na investigação de disputas em
torno da ordem normativa de contextos específicos, é interessante ainda que se
pense numa espécie de "índice de disponibilidade de oportunidades políticas" ou
seja, de um conjunto de sinais que apontem para a existência de um contexto
apto a investidas que tenham por objetivo transformações normativas (dentre as
quais, direitos e deveres). Do ponto de vista dos atores sociais e políticos
envolvidos, esses sinais indicam a abertura de janelas políticas para que
possam tentar derrubar por completo ou modificar instituições (inclusive
determinadas configurações de cidadania) existentes em favor de seus próprios
projetos, demandas, visões de mundo e interesses (incluindo propostas de
direitos e deveres); do ponto de vista do analista, aqueles indicadores apontam
para as condições em que determinados discursos convergem entre si para
derrubar ou transformar padrões existentes de sociabilidade e correspondentes
arranjos normativos (dentre os quais configurações de cidadania). Para a
codificação daquelas condições favoráveis em uma espécie de "índice de
disponibilidade de oportunidades políticas", me remeto novamente a Sidney
Tarrow, que sugere cinco aspectos em particular: 1. a abertura de acesso
institucional e não-institucional à participação de novos atores; 2. a
evidência de realinhamentos de poder no sistema político; 3. o aparecimento de
aliados influentes; 4. a emergência de fissuras no interior de elites; e 5. o
declínio da capacidade ou vontade do aparelho do Estado para reprimir
dissenso52. Assim,
em momentos de abertura de acesso institucional, de fissuras no
interior de elites, quando, a um só tempo, aliados tornam-se
disponíveis e a capacidade de repressão do Estado declina,
desafiantes encontram oportunidades para avançar suas demandas.53
Um último aspecto a ser considerado: teriam essas oportunidades grau de
objetividade similar aos observadores externos tanto quanto aos atores sociais
e políticos envolvidos nos "embates discursivos" a que me referi anteriormente?
Haveria uma correspondência imediata entre a percepção do primeiro e dos
segundos? Caberiam respostas afirmativas a essas duas perguntas apenas se os
interesses de ambos fossem perfeitamente justapostos, o que definitivamente não
é o caso. Por fim, vale lembrar que quaisquer que sejam aquelas oportunidades
políticas, elas não possuem objetividade por si mesmas, já que, como apontam
Friedman e Benford, são em larga medida também o resultado de lutas em torno de
seus significados enquanto tais. Caso essas oportunidades não sejam assim
codificadas, não importa o quão poderosos possam ser os atores políticos e
sociais potencialmente implicados, elas não terão qualquer efetividade54. Daí
que, para que possam se institucionalizar (e dentre outras coisas, transformar
demandas, interesses, visões de mundo e projetos em direitos e deveres), os
discursos devem também traduzir oportunidades políticas em meios apropriados e
efetivos para esses fins.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurei trazer à luz algumas experiências normativas contemporâneas, abordadas
do ponto de vista do debate atual em torno da noção de modernidades múltiplas,
com vistas a uma avaliação crítica das discussões no interior da sociologia
política da cidadania moderna. Conforme argumentei ao final do artigo, vejo a
combinação das noções de discurso e oportunidades políticas como uma espécie de
antídoto contra abordagens "essencializantes" da construção da cidadania
moderna. Em um momento em que a sociologia passa a atribuir à modernidade o
status de tipo de sociabilidade tendencialmente global e multifacetado,
mostram-se cada vez mais inadequadas análises que insistem em apelar para a
pretensa existência de traços culturais e/ou econômicos supostamente
responsáveis por aprisionar a dinâmica de uma determinada ordem social tanto
quanto a configuração de sua ordem normativa. Não quero, com isso, defender a
inexistência de elementos que respondam pela peculiaridade da sociabilidade
moderna perante outros tipos de sociabilidade. Ao contrário, em vez de
abandonar por completo as referências conceituais do "imaginário sociológico
hegemônico da modernidade", procurei tão-somente ampliá-las e dissipar
tendências "essencializantes" que porventura possam apresentar. Nesse exato
sentido, uma vez mais vale dizer que a existência de variações normativas não
implica a impossibilidade teórico-analítica de atribuir especificidades à
normatividade moderna. Em vez disso, a abordagem que procurei discutir assume
como sendo modernas as constelações de cidadania que se definem com base em
princípios universalistas e gerais, resultantes da elaboração racional da
sociedade (quaisquer que sejam os processos de tomada de decisão), e não em
emanação de ordem divina ou sobrenatural. Mas, acima de tudo, tal abordagem
procura enfatizar o caráter contingente e agonístico da construção da
normatividade moderna.
[1] O autor agradece as valiosas críticas e sugestões do parecerista anônimo,
incorporadas ao longo do artigo.
[2] Marshall, T. H. "Citizenship and social class". In: Marshall, T. H. e
Bottomore, Tom. Citizenship and social class. Londres: Pluto Press, 1992 [1949-
1950] .
[3] Penso ser este o caso de um estudo clássico a respeito da construção da
cidadania no Brasil, a saber: Santos, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e
justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1987. Pressuposto similar pode ser observado em trabalhos
mais recentes, como, por exemplo, Carvalho, José Murilo de. Cidadania no
Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; Holston, James e Caldeira, Teresa. "Democracy, law, and violence:
disjunctions of Brazilian citizenship". In: Aguero, Felipe e Stark, Jeffrey
(eds.). Fault lines of democracy in post-transition Latin America. Florida:
North-South Center Press, 1998, pp. 263-296.
[4] A noção de "globalização" como um fenômeno "contíguo à modernidade", tanto
quanto "ao sistema capitalista mundial e ao sistema mundial de Estados-nações",
pode ser encontrada de forma explícita em Kumar, Krishab e Makarova, Ekaterina.
"Interview with José Casanova". The Hedgehog Review, Verão, 2002, pp. 91-108; Featherstone, Mike, Lash, Scott e Robertson, Roland (eds.).
Global modernities. Londres: Sage Publications, 1995.
[5] Tavolaro, Sergio B. F. "Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em
torno de um dilema sociológico brasileiro". Revista Brasileira de Ciências
Sociais, nº 59, out. 2005, pp. 5-22. Em outro trabalho,
procurei mostrar a ancoragem do binômio centro-periferia no pensamento social
brasileiro a partir da consideração crítica de duas de suas mais importantes
linhas interpretativas, a saber, nossa "sociologia da dependência" (Caio Prado
Jr., Florestan Fernandes, F. H. Cardoso e O. Ianni) e nossa "sociologia da
herança patriarcal-patrimonial" (G. Freyre, S. B. de Holanda, R. Faoro e R. da
Matta). Ver Tavolaro, S. B. F. Citizenship and modernity in early 20th century
Brazil: a sociological interpretation. Nova York: Ph.D. Dissertation, New
School for Social Research, 2004.
[6] Restringir-me-ei aqui ao que Rogers W. Brubaker qualifica como cidadania
substantiva (em contraposição à cidadania formal). Ao passo que Brubaker
qualifica a dimensão formal como aquela que define os termos de "pertencimento
a um Estado-nação", a dimensão substantiva se refere precisamente ao arranjo de
direitos civis, políticos e sociais. Importante lembrar, conforme salienta o
autor, que a primeira não é condição necessária à segunda: um determinado
indivíduo ou grupo de indivíduos pode ter atributos de cidadania formal e, ao
mesmo tempo, ser excluído (por lei ou em termos práticos) do gozo e/ou
exercício de direitos civis, políticos e/ou sociais. Igualmente, há casos em
que não-membros de um determinado Estado-nação são legalmente aptos a gozar de
certos direitos. Ver Brubaker, R. W. Citizenship and Nationhood in France and
Germany. Cambridge: Harvard University Press, 1992; idem
(ed.). Immigration and the politics of citizenship in Europe and North America.
Nova York: German Marshall Fund of the United States, 1989.
[7] Marshall, op. cit., p. 8.
[8] Conforme argumentei mais detidamente em Citizenship and modernity in early
20th century Brazil (op. cit.) há uma determinada grade de conceitos e noções
(isto é, uma certa episteme responsável por delimitar o campo cognitivo no
interior do qual a experiência moderna é codificada, interpretada, explicada e
analisada) que se consolidou desde o advento da sociologia como a mais
influente maneira de se lidar com a modernidade. Em tal episteme, são três os
principais pilares da sociabilidade moderna: 1. Diferenciação/Complexificação
social; 2. Secularização da normatividade; 3. Separação entre o público e o
privado. Algumas das figuras centrais desse "imaginário sociológico da
modernidade" são exatamente Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber, Georg Simmel,
além de alguns de seus herdeiros mais recentes, tais como Talcott Parsons,
Niklas Luhmann e Jürgen Habermas.
[9] Ver, por exemplo, "A questão judaica", em que Marx desafia as promessas da
Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão (Marx, K. Early
writings. Nova York: Vintage Book, 1975, pp. 211-241). Quanto
às considerações de Durkheim a respeito da cidadania moderna, ver Durkheim, É.
Professional ethics and civil morals. Nova York: Routledge, 1996. Para algumas das considerações de Weber, ver "The city". In: Weber,
M. Economy and society. Berkeley: University of California Press, vol. 2, 1978,
pp. 1.212-1.372.
[10] Tavolaro, "Existe uma modernidade brasileira?", op. cit.
[11] Ver de Parsons, Talcott. The social system. Nova York: The Free Press,
1964; Societies: evolutionary and comparative perspectives.
Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1966; e The system of modern
societies. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971.
[12] Idem. The system of modern societies, op. cit., p. 18.
[13] Ibidem.
[14] Luhmann, Niklas. A sociological theory of law. Londres: Routledge &
Keagan Paul, 1985.
[15] Habermas, Jürgen. Moral consciousness and communicative action. Cambridge:
The MIT Press, 1996.
[16] Idem. The theory of communicative action. Boston: Beacon Press, 1989, vol.
2.
[17] Parsons afirma ter sido a Inglaterra a "primeira cristalização do sistema
moderno", fundamentalmente por ter dado os primeiros passos mais consistentes
em direção à tolerância e ao pluralismo religiosos, essenciais à autonomização
da comunidade societal (integração social) em face da esfera cultural (valores)
e, em seguida, do aparato estatal. Além disso, teria sido a Inglaterra o
primeiro país em que a lei deixou de ser mero instrumento do governo para se
tornar uma interface mediadora entre Estado e comunidade societal. Os Estados
Unidos, contudo, teriam sido a sociedade em que a comunidade societal atingiu o
mais alto grau de universalidade e diferenciação, em que o processo de
generalização de valores alcançou patamar inigualável e, finalmente, em que o
status de cidadania se autonomizou plenamente de atributos étnicos, religiosos
ou de qualquer outra natureza. Os Estados Unidos seriam ainda o contexto em que
o princípio de associação teria encontrado ambiente distintamente fértil para
prosperar. Todas essas qualidades seriam favorecidas pela revolução educacional
em curso naquela sociedade e seus efeitos democratizadores (Parsons. Societies:
evolutionary and comparative perspectives, op. cit.; idem. The system of modern
societies, op. cit.).
[18] Turner, Bryan. "Contemporary problems in the theory of citizenship". In:
Turner, B. (ed.). Citizenship and social theory. Londres: Sage Publications,
1993, pp. 1-18.
[19] Ver Gohn, Maria da Glória. Os Sem-Terra, ONGs e cidadania. São Paulo:
Editora Cortez, 1997.
[20] Conforme as autoras, "a exclusão de mulheres casadas do universo dos
direitos civis não foi mero vestígio arcaico destinado a desaparecer ao longo
da evolução da cidadania". Foi, sim, a outra face da moeda da moderna cidadania
civil, aspecto que inclusive lhe possibilitava a existência. Ver Fraser, Nancy
e Gordon, Linda. "Civil citizenship against social citizenship? On the ideology
of contract-versus-charity". In: Steenbergen, Bart van (ed.). The condition of
citizenship. Londres: Sage Publications, 1994, pp. 90-107.
[21] Gorjanicyn, Katrina. "Citizenship and culture in contemporary France:
extreme right interventions". In: Vandenberg, Andrew (ed.). Citizenship and
democracy in a Global Era. Londres: MacMillan Press, 2000, pp. 138-155, para quem a teoria de Marshall "era baseada na premissa de
que as sociedades modernas são etnicamente e culturalmente homogêneas" (p.
140).
[22] Bottomore, T. "Citizenship and social class, forty years on". In: Marshall
e Bottomore, op. cit., 1992, p. 69. Para Bottomore, em contradição com alguns
de seus propósitos centrais, a cidadania social teria alimentado e criado novos
tipos de hierarquia, além de ter aprofundado o problema da centralização de
poder, de tal forma a impedir o tratamento eficiente da desigualdade.
[23] De acordo com Michael Mann, "A durabilidade de regimes de estratégia [de
construção de cidadania] tem menos a ver com a superioridade de sua eficiência
interna do que com a geopolítica - e especialmente com vitórias em guerras
mundiais" (p. 128). Mann, Michael. "Ruling class strategies and citizenship".
In: Bulmer, Martin e Rees, Anthony M. (eds.). Citizenship today: the
contemporary relevance of T. H. Marshall. Londres: UCL Press, 1996, pp. 125-
144.
[24] Somers, Margaret. "Citizenship and the place of the public sphere: law,
community, and political culture in the transition to democracy". American
Sociological Review, vol. 58, out. 1993, pp. 587-620. Em
investigação que cobre a Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, Somers argumenta
que "Os contextos locais de processos legais [...] geraram culturas políticas e
legais diferentes, que acabaram por produzir diferentes padrões de cidadania em
diferentes comunidades". (p. 605). Nesse sentido, nas "regiões aráveis, a
participação [política] era monopolizada por proprietários rurais, que faziam
valer seus interesses privados através do poder de instituições públicas
jurídicas. Comunidades de trabalhadores com pouca ou nenhuma autonomia não
conseguiam tirar vantagem de direitos de participação pública, sendo que, a
despeito da liberdade legal proporcionada pela lei pública, eram continuamente
subordinados através de processos legais. Em regiões industriais pastorais/
rurais, em contraste, [...] enquanto participante ativos na esfera pública,
comunidades de trabalhadores foram capazes de evitar que fontes privadas de
poder - de proprietários rurais e mercadores capitalistas - explorassem
instituições públicas legais na medida em que apropriaram-se de leis para
fortificar sua própria independência" (p. 605).
[25] Ver críticas de Krieken, Robert van. "Citizenship and democracy in
Germany: implications for understanding globalisation". In: Vandenberg (ed.),
op. cit., pp. 123-137.
[26] Ver Al-Azmeh, Aziz. Islam and modernities. Londres: Verso, 1996; Alexander, Jeffrey. "Modern, anti, post, and neo: how intellectuals
have coded, narrated and explained the 'New world of our time'". In: Alexander,
Jeffrey. Fin de siècle social theory. Londres: Verso, 1995;
Berger, Peter e Huntington, Samuel. Many globalizations. Nova York: Oxford
University Press, 2002; Eisenstadt, S. N. "Multiple
modernities". Daedalus, vol. 129, no 1, 2000, pp. 1-29;
Featherstone, Michael, Lash, Scott e Robertson, Roland (eds.). Global
modernities. Londres: Sage, 1995; Hannerz, Ulf. Transnational
connections: culture, people, places. Londres: Routledge, 1996; Knobl, Wolfgang. "The never ending story of modernization theory".
In: Delanty, G. e Isin, E. (eds.). Handbook for historical sociology. Londres:
Sage, 2003; Wittrock, Björn. "Modernity: one, none, or many?
European origins and modernity as a global condition". Daedalus, vol. 129, no
1, 2000, pp. 31-60.
[27] Eisenstadt, op. cit., p. 1.
[28] Tavolaro, "Existe uma modernidade brasileira?", op. cit.
[29] Tomo por referência o supracitado estudo de Mann ("Ruling class strategies
and citizenship", op. cit.) sobre as cinco diferentes estratégias de construção
da cidadania: a liberal, a reformista, a monárquica, a autoritária-socialista e
a fascista. Ver também Tiryakian, Edward A. "Dialectics of modernity:
reenchantment and differentiation counterprocesses". In: Haferkamp, Hans e
Smelser, Neil (eds.). Social change and modernity. Berkeley: University of
California Press, 1992.
[30] A esse aspecto em particular, minha referência é o trabalho de José
Casanova em torno dos papéis públicos e privados de organizações e concepções
de mundo religiosas em diversas formações sociais contemporâneas. Ver Casanova,
José. Public religions in the modern world. Chicago: The University of Chicago
Press, 1994.
[31] Por fim, apoio-me no estudo de Bryan Turner em relação às diferentes
definições e papéis desses dois domínios na dinâmica social moderna. Ver
Turner, B. "Outline of a theory of citizenship". Sociology, vol. 24, no 2,
1990, pp. 189-217.
[32] Além da bibliografia listada nas notas anteriores, me baseio aqui nos
seguintes trabalhos: Finn, John E. Constitutions in crisis: political violence
and the rule of law. Nova York: Oxford University Press, 1991; Kalberg, Stephen. "Cultural foundations of modern citizenship". In:
Turner (ed.), op. cit., pp. 91-114; Hughey, Michael W. "The political covenant:
Protestant foundations of the American State". State, Culture & Society,
vol. 1, 1984, pp. 113-155; Johnston, Hank. "New social
movements and old regional nationalisms". In: Laraña, Enrique e outros (eds.).
New social movements: from ideology to identity. Filadelphia: Temple University
Press, 1992, pp. 267-286; Verral, Derrek. "Russia: withdrawal
to the private sphere". In: Vandenberg (ed.), op. cit., pp. 188-201; Agh,
Atilla. "Citizenship and civil society in Central Europe". In: Steenbergen
(ed.), op. cit., pp. 108-126.
[33] O trabalho de Gianfranco Poggi, The development of the Modern State: a
sociological introduction (Stanford: Stanford University Press, 1978),
permanece referência importante para se contrastar a ordem normativa moderna
com contextos normativos ocidentais pré-modernos.
[34] Laclau, Ernesto e Mouffe, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy.
Londres: Verso, 2001; Laclau, E. Emancipation(s). Londres:
Verso, 1996.
[35] Ver Traugott, Mark. "Recurrent pattern of collective action". In:
Traugott, M. (ed.). Repertoire & cycles of collective action. Durham: Duke
University Press, 1995, pp. 1-14. Ver também Tilly, Louise e
Tilly, Charles (eds.). Class conflict and collective action. Beverly Hills:
Sage Publications, 1981.
[36] Para uma ênfase na dimensão simbólica dos conflitos sociais e politicos,
ver Lee, Orville. "Culture and democratic theory: toward a theory of symbolic
democracy". Constellations, vol. 5, no 4, 1998, pp. 422-455.
Para uma consideração da dimensão cognitiva de tais conflitos, ver Snow, David
e Benford, Robert. "Master frames and cycles of protest". In: Morris, Aldon e
Mueller, Carol McClurg (eds.). Frontiers in social movement theory. New Haven:
Yale University Press, 1992, pp. 133-155.
[37] Luhmann, op. cit.
[38] Sobre a qualidade reflexiva da sociedade civil na modernidade, ver Cohen,
Jean e Arato, Andrew. Civil society and political theory. Cambridge: The MIT
Press, 1992; e Habermas, J. Between facts and norms:
contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge: The MIT
Press, 1999.
[39] Essa é a perspectiva adotada, por exemplo, por Mann (op. cit.), para quem
um tal conjunto restrito de atores foi capaz de determinar os termos das
conflitos sociais na transição para a modernidade.
[40] Somers, op. cit.
[41] Esse, por sua vez, é o caso de Charles Tilly, cujos trabalhos enfatizam
sobremaneira a noção da cidadania como "um elo que gera obrigações mútuas entre
o Estado e pessoas". Ver Tilly, C. "The emergence of citizenship in France and
elsewhere". In: Tilly, C. (ed.). Citizenship, identity and social history.
Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 223-236. Ver
também: idem. "Citizenship, identity and social history". In: idem, pp. 1-17.
[42] Mische, Ann. "Projecting democracy: the formation of citizenship across
youth networks in Brazil". In: Tilly (ed.), op. cit., pp. 131-158, p. 139.
[43] Turner, "Contemporary problems in the theory of citizenship", op. cit., p.
2.
[44] Somers, op. cit., p. 589. Tais aspectos são também encontrados no trabalho
de Karen Slawner, para quem "a cidadania é um terreno indeterminado ('unsettled
') de práticas, onde a história de poder e dominação continua a assombrar o
presente, onde tradição e identidade são vitais, e onde a revisão é sempre
possível, já que disputas jamais são tratadas como [plenamente] definidas
('settled')". Ver Slawner, Karen. "Uncivil society: liberalism, hermeneutics,
and 'good citizenship' ". In: Slawner, Karen e Denham, Mark (eds.). Citizenship
after liberalism. Nova York: Peter Lang, 1995, pp. 81-101.
[45] Dois estudos clássicos que marcaram época e que ajudaram a formatar o
campo da sociologia política nessa direção são: Moore Jr., Barrington. Social
origins of dictatorship and democracy: lord and peasant in the making of the
modern world. Boston: Beacon Press, 1967; Bendix, Reinhardt.
Nation-building & Citizenship: studies of our changing social order. New
Brunswick: Transaction Publishers, 1964.
[46] Para uma esclarecedora reconstrução do contexto intelectual dessa noção,
ver McAdam, Doug, McCarthy, John e Zald, Mayer. "Social movements". In:
Smelser, Neil J. (ed.). Handbook of sociology. Londres: Sage Publications,
1988, pp. 695-737; Morris e Mueller (eds.), op. cit.;
Traugott, op. cit.; McAdam, D., McCarthy, J. e Zald, M. (ed.). Comparative
Perspectives on social movements: political opportunities, mobilizing
structures, and cultural framings. Cambridge: Cambridge University Press, 1996; Tarrow, S.. Power in movement: social movements and
contentious politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
[47] Tarrow, op. cit., p. 2.
[48] Ibidem, pp. 19-20. Em outro trabalho, Sidney Tarrow argumentou que seu
"conceito de oportunidade política enfatiza não somente estruturas formais como
instituições estatais, mas também estruturas de conflitos e de alianças que
proporcionam recursos e suprimem constrangimentos externos aos grupos.
Diferentemente de dinheiro e poder, isso abre a possibilidade para que mesmo
desafiantes fracos e desorganizados possam tirar vantagem de oportunidades
criadas por outros para se organizar contra oponentes perigosos. Inversamente,
à medida que as oportunidades se estreitam, mesmo os fortes se enfraquecem".
Tarrow, Sidney. "States and opportunities: the political structuring of social
movements". In: McAdam, D., McCarthy, J. e Zald, M. (eds.), op. cit., pp. 41-
61, p. 54.
[49] Por "ciclo de disputas ['cycle of contention']", Tarrow quer significar
"uma fase de acentuado conflito atravessando o sistema social: a partir de uma
rápida difusão de ação coletiva de setores mais mobilizados para setores menos
mobilizados; de um rápido ritmo de inovação nas formas de disputa; da criação
de novas ou transformação de antigas referências de ação; da combinação de
participações organizadas e desorganizadas, e seqüências de fluxos
intensificados de informação e interação entre desafiantes e autoridades, tais
disputas generalizadas produzem externalidades que dão aos desafiantes
vantagens ao menos temporárias, permitindo a eles superar fraquezas em sua base
de recursos" (Tarrow, op. cit., p. 142).
[50] Tarrow, op. cit., p. 146. De maneira similar, McAdam, McCarthy e Zald
definem oportunidades políticas como "mudanças na estrutura institutional ou
informal de relações de poder de um dado sistema político nacional"
("Introduction: opportunities, mobilizing structures, and framing processes -
towards a synthetic, comparative perspective in social movements". In: McAdam,
McCarthy e Zald (eds.), op. cit., pp. 1-20, p. 3.
[51] Gamson, William e Meyer, David. "Framing political opportunity". In:
McAdam, McCarthy e Zald, (eds.), op. cit., pp. 275-290.
[52] McAdam (Comparative perspectives on social movements, op. cit.) sugere um
conjunto de indicadores semelhante: 1. a relativa abertura ou fechamento do
sistema político institucional; 2. a estabilidade ou instabilidade de
alinhamentos de elites poderosas; 3. a presença ou ausência de aliados de
elite; 4. a capacidade ou propensão do Estado para a repressão.
[53] Tarrow, op. cit., p. 72.
[54] Friedman, Debra e Benford, Robert D. "Master frames and cycles of
protest". In: Morris e Mueller (eds.), op. cit., pp. 133-155.