Teoria da eficácia coletiva e violência: o paradoxo do subúrbio carioca
Qual a importância da sociabilidade em vizinhanças ou comunidades para explicar
os níveis de violência diferenciados espacialmente hoje observados em várias
cidades?
O pressuposto dessa pergunta é que as pessoas fazem parte de apenas uma
vizinhança, estabelecida pela sua relação com o espaço físico, social e
simbólico, onde estão os vizinhos com os quais constroem um local carregado de
símbolos de pertencimento, de problemas comuns, de memórias de dádivas que
criam obrigações de retribuição no futuro, de conflitos resolvidos pela
conversa entre as partes, criando confiança nos circunstantes. Nas teorias
examinadas aqui enfocaremos principalmente as noções de confiança e capacidade
de intervir ou de se organizar localmente.
Apesar da reflexão pessimista feita por alguns autores sobre as sociedades
contemporâneas, porque baseada em outras formas de vinculação, a importância da
localidade não pode ser ignorada. Bauman1 caracteriza o que chama de uma "era"
na qual predomina o esvaziamento das instituições democráticas e a privatização
da esfera pública, que indicaria o declínio do senso comunitário além da
liquefação de relações sociais nos planos afetivo, social, político e
econômico. Sennett2, na mesma linha, diagnostica o declínio da vida pública e,
portanto, do homem público. Putnam3, por sua vez, observa a mesma época,
afirmando que a sociedade pós-moderna, pós-industrial deteriora a
sociabilidade4 e a cultura cívica, bases da convivência democrática. Porém, de
fato, esses autores refletem sobre uma das ordens sociais existentes: a ordem
pública.
É Hunter5 quem explicita com clareza que, ao examinarmos as formas de controle
social, temos que vinculá-las a três ordens sociais: a privada, a paroquial e a
pública. Apenas esta última é sublinhada pelos autores que têm o diagnóstico
pessimista sobre o mundo contemporâneo. Esta ordem civil6 ou pública seria
justamente aquela também chamada metropolitana, do encontro entre estranhos e
diferentes, a mais neutra emocionalmente, mais reservada, mais universal, mais
formal e ritualizada, cujo controle social está a cargo do Estado. Nele trata-
se da civilidade entre estranhos e dos direitos (públicos) reconhecidos
mutuamente entre iguais. É nesta esfera que Hunter aponta o problema com mais
precisão: os deveres para com os concidadãos foram encolhendo, na medida em que
os direitos ficaram quase que reduzidos à troca de impostos por serviços
públicos, dentro da lógica mercantil de custo-benefício, afrouxando os laços
sociais entre concidadãos7.
Se a vida pública e as instituições políticas se enfraqueceram globalmente por
terem sido colonizadas pelo mercado, o que aconteceu com a sociabilidade entre
conhecidos na vida social local, ancorada em espaços da moradia e do lazer?
Hunter denominou de paroquial a ordem social intermediária entre as ordens
privada e pública, portanto aquela cujas relações sociais estariam entre as que
existem com amigos ou parentes (os íntimos do mundo privado) e as que reúnem os
desconhecidos concidadãos do mundo público. Trata-se das interações entre
vizinhos. Para vários outros autores, é nessa esfera intermediária que devemos
procurar as medidas do controle social que o Estado não pode nem deve exercer,
por ser meramente coercitivo, impessoal, formal. Como esta ordem paroquial (ou
vicinal) se transformou, se organizou e se manteve até hoje? Como e onde podem
as localidades interferir nas políticas públicas para diminuir os riscos de
viver em metrópoles, globais ou não, mas todas altamente diferenciadas e
conflitivas?
Mesmo admitindo que se viva numa "era" em que identidades coletivas se
fragmentam, é possível perceber que pessoas fazem parte de diversas associações
(vicinais ou não), lutando por suas demandas, defendendo tradições ou
inovações, assumindo compromissos com coletividades8. De fato, é inegável que
pessoas continuam a criar entre si laços de confiança e de reciprocidade, bases
da sociabilidade humana em todas as culturas, que irão garantir a manutenção de
suas redes sociais em vez de se orientar apenas pelo cálculo utilitário
mercantil que permitiu globalmente a colonização do Estado pelo mercado. Mas
nem todas as redes estão ancoradas no território circunscrito pela moradia.
Atravessam bairros, cidades, estados, nações, estão no mundo virtual.
Por isso, vários autores propuseram o conceito de capital social que
englobaria, às vezes de forma não muito clara, outros conceitos tais como
comunidade; redes de sociabilidade, reciprocidade e solidariedade; relações de
cooperação e respeito. Esses conceitos, apresentados pela primeira vez ao final
do século XIX e recuperados ao final do século XX, ganharam novos contornos nos
dias atuais e levantaram novas questões, principalmente aquelas relativas à sua
mensuração para explicar fenômenos como o crescimento desigual da criminalidade
violenta em várias partes do mundo, sintetizados na idéia de capital social e,
mais recentemente, de eficácia coletiva.
Assim, o conceito de capital social vem sendo utilizado nas duas últimas
décadas de diversas maneiras e tornou-se presente nas análises sobre as
políticas públicas e sociais, bem como nas que abordam o desenvolvimento social
e econômico, sempre apontando para a importância que a cooperação atingiu ao
término do século XX. Como é um conceito que pretende dar conta de várias
dimensões da vida social, inclusive da mobilização coletiva e é utilizado no
desenvolvimento de projetos com a perspectiva comunitária, acaba sendo algumas
vezes "mal apreendido, super dimensionado ou focado de maneira messiânica,
podendo vir a ser desqualificado"9, além de incorrer no equívoco de considerar
qualquer laço social como importante para o fortalecimento da democracia.
Esclarecendo o aglomerado de conceitos, a sociabilidade - entendida como a
interação pela interação sem finalidades - e a con-fiança entre pessoas que
habitam o mesmo local trazem efeitos não esperados para os que delas
participam, tais como mais diversão, mais bem-estar, melhor saúde. O capital
social, por sua vez, tem finalidades pragmáticas, na medida em que pode ser
usado para alcançar objetivos individuais, tais como emprego, vaga em hospital
público, vigilância sobre sua casa e seus filhos na vizinhança ou conquista de
bens políticos e simbólicos. Faz parte do que também se denomina lógica
instrumental, porque baseada em cálculo, articulada à lógica da reciprocidade
ou da dádiva10. Quando os objetivos são coletivos, a confiança adquirida na
sociabilidade precisa da capacidade de mobilização e organização dentro da
rede, o que integra ainda mais o cálculo à reciprocidade. Ou seja, a
sociabilidade é o substrato a partir do qual se constitui ou não o capital
social.
Mas é preciso ficar claro que nem todas as associações surgidas na sociedade
obedecem aos propósitos do aprimoramento da cidadania e da democracia, visto
que algumas se formam a partir de propostas com cunho clientelista -
manipulador do laço social, ou autoritário -, limitador da liberdade alheia. No
entanto, não há como negar que podem aumentar a capacidade de mobilização
social, mesmo que apenas criem laços estreitos entre os que se consideram
iguais na etnia, na religião ou no grupo político.
Outro equívoco é pensar que as associações que se formam para praticar crimes e
outras atividades ilícitas, tais como as gangues ou as máfias, baseadas em
laços internos fortes e hierarquias, seriam um tipo de capital social. Não são
- caso esse conceito se articule teoricamente com o de cultura cívica - na
medida em que não produzem o bem comum ou o bem público, além de serem entraves
ao estabelecimento de instituições democráticas. Quando muito, tais redes são o
que se denomina capital social negativo, que pesa sobre a organização vicinal e
destrói de modo violento as demais redes horizontais existentes localmente,
tanto as que ligam os iguais (bonding), como as que reúnem os heterogêneos
(bridging) ou ambas simultaneamente11.
No caso da mobilização vicinal contra a criminalidade, mesmo que pela
autodefesa contra traficantes, esta ambivalência (mobilização para o mal ou
para o bem) fica muito clara quando se considera a existência do vigilantismo
ou das "milícias"12, formas de controle vicinal para-estatal, que assumem um
claro caráter despótico por serem um poder sem nenhum controle institucional.
Em vez de aumentar a participação democrática dos vizinhos - sua solidariedade
e cooperação, bases da cultura cívica que vai articulá-los à vida política da
nação -, prevalecem formas de poder ilegal ou para-legal, um grave problema
decorrente do quadro institucional de países que ainda não podem ser
considerados democracias consolidadas. Mas podem ter eficácia na diminuição das
taxas de crimes, como veremos mais adiante.
Esta observação vem a apoiar o que afirma Hunter13 sobre a interseção entre os
limites culturais e as condições materiais (institucionais) do poder, visto que
as três ordens - privada, paroquial e pública - e seus processos de controle
social são interdependentes e devem ser enfocados na sua articulação14. Mais
ainda, que a ordem pública não tolera que o privado e o paroquial façam uso
sistemático da violência, mesmo que para defender-se. Para isso, o público
teria de ter o monopólio legítimo da violência e a confiança dos concidadãos.
Ainda nas teorias sobre a criminalidade, o conceito de capital social operou
como elemento que indicaria as diferenças entre localidades, que explicariam a
variação nas taxas de crime. Comunidades com maior capital social, ou seja,
onde existisse mais confiança, mais reciprocidade, mais sociabilidade, mais
solidariedade e mais associações vicinais, teriam taxas de criminalidade mais
baixas e escolas mais eficientes. As crianças dessas comunidades estariam,
pois, sob menor risco de gravidez na adolescência, abuso sexual e delinqüência
juvenil15, além de crescerem mais saudáveis, mais bem educadas e seguras, junto
a pessoas que vivem mais e são mais felizes em países em que a democracia e a
economia funcionam melhor16.
Os conceitos de comunidade, de vizinhança, sociabilidade, reciprocidade e
cultura cívica encontram-se, assim, entrelaçados em muitas das afirmações dos
estudiosos que tomam a localidade como foco para explicar a variação na taxa de
criminalidade, especialmente a violenta. Mas é preciso ter sempre cuidado em
como transpor esses conceitos abstratos para os indicadores empíricos que
oferecem medidas de maior ou menor organização em cada uma das localidades
analisadas. O que vem a ser uma vizinhança, mesmo quando se enfoca o território
cujas fronteiras artificiais são determinadas por diferentes agências do Estado
(unidades administrativas, escolares, sanitárias, policiais da cidade), é
apenas um dos muitos problemas de mensuração daquilo que vem a ser constituído
por processos sociais complexos que envolvem indiscutivelmente a subjetividade
dos atores (ou dos vizinhos). A dificuldade advém de ser preciso reunir os
padrões das ruas (definidos geográfica e administrativamente com mais
facilidade) com as redes de relações sociais dos vizinhos (mais fluidas e sem
limites geográficos). Nessas, medir confiança mútua e coesão social é bem mais
difícil, se for possível, do que os índices de estabilidade e propriedade
residencial, cujos baixos números são tidos como correlatos de muitos problemas
comportamentais dos jovens.
A tentativa de estimar estatisticamente os efeitos das características da
vizinhança nas taxas de criminalidade foi feita mais recentemente numa pesquisa
que usou a variável denominada "eficácia coletiva", também decorrente da
organização informal vicinal17. Nesta hipótese, os autores tentam explicar por
que a criminalidade tem sido associada a uma maior concentração de desvantagens
socioeconômicas (ou baixo status socioeconômico) e de instabilidade
habitacional, afirmando que as duas são mediadas pela eficácia coletiva. Isto
porque as características sociais e organizacionais das vizinhanças explicariam
as variações nas taxas de crime que não podem ser apenas atribuídas às
características demográficas agregadas de indivíduos. Para além das variáveis
usualmente empregadas na avaliação de localidades (status no ciclo de vida,
estabilidade residencial, propriedade da residência, densidade populacional e
heterogeneidade étnica da área), os autores propõem outra, que mediaria estas
últimas: a eficácia coletiva. Seria esta eficácia, ou seja, a capacidade
diferencial que as vizinhanças demonstram em realizar os valores comuns dos
moradores e em manter controles sociais efetivos sobre as pessoas em
socialização, a maior fonte de variação vicinal em violência.
Essa pesquisa realizada em Chicago, Estados Unidos, foi rigorosa na descrição
da população, baseada em amostra por setores censitários contíguos que
representariam vizinhanças (neighborhood clusters) e em correlações feitas
entre a criminalidade observada pelos respondentes e os indicadores mais
conhecidos de status socioeconômico, desorganização social, mobilidade
habitacional, entre outros, todos baseados em dados censitários de 1990,
portanto, não amostrais. A conclusão foi de que, juntas, as três dimensões de
estratificação da vizinhança - desvantagem concentrada, concentração de
imigração e estabilidade residencial - explicaram 70% da variação de eficácia
coletiva na vizinhança. Esta, por sua vez, mediou uma parte substancial da
associação entre estabilidade residencial e desvantagem socioeconômica com
medidas variadas de violência. Porém, os autores avisam que os indicadores de
controle e coesão sociais, básicos para mensurar a eficácia coletiva, não foram
observados, mas inferidos pelos relatos de informantes18.
Mesmo assim, para operacionalizar a capacidade diferencial de promover o bem
comum, os autores dão como exemplo o controle social informal realizado por
adultos responsáveis que controlariam melhor as crianças e os adolescentes
nessas vizinhanças. Nas suas palavras, é a capacidade de "monitorar
espontaneamente as brincadeiras de grupos de crianças", além da "vontade de
intervir de modo a prevenir atos cometidos" principalmente por jovens e
crianças, tais como "vadiar, matar aulas, ficar na esquina sem nada fazer",
práticas usuais de grupos de adolescentes, bem como "o confronto de pessoas que
estão explorando ou perturbando o espaço público"19.
Além da dificuldade de mensurar a eficácia coletiva, que os próprios autores
admitem, há outro problema que se refere à natureza das atividades rotineiras a
serem controladas ou prevenidas pela intervenção de vizinhos. Tais atividades
poderiam ser classificadas de "desordeiras", mas não "criminosas". Portanto, o
que se infere daí é que se trata, na prevenção da criminalidade, de socializar
crianças e adolescentes para viverem no respeito às instituições, ao espaço
público, entendido como áreas de convivência dos vizinhos, e aos próprios
vizinhos, o que se pratica também em escolas e centros esportivos localizados
na vizinhança, mas sobretudo nas famílias, núcleo da ordem privada.
Ademais, os autores não esclarecem o que substancialmente são essas
manifestações de desordem e o que exatamente elas violam em termos de valores
morais e expectativas de vizinhos, problema ainda mais complicado porquanto se
sabe que tais valores são múltiplos nos contextos urbanos, assim como é diversa
a tolerância de diferentes grupos a certas atividades, tais como o uso de
drogas legais e ilegais, o barulho, as atividades de lazer de grupos de jovens
e de crianças. Diante da multiplicidade cultural que caracteriza as cidades
hoje, a questão não é menor. A própria ingerência sobre os filhos de outras
pessoas é parte de padrões culturais relacionados com a independência das
famílias que permitem tal intervenção sem provocar conflitos e sem considerá-la
um "moralismo" sem cabimento. Por isso mesmo os autores frisam a importância da
homogeneidade cultural entre os vizinhos, atribuída à longa permanência na
mesma vizinhança e à homogeneidade étnica entre eles, o que reitera o padrão de
segregação étnica que sempre caracterizou as cidades estadunidenses, ao
contrário do que ocorre no Rio de Janeiro20.
Outro aspecto para a dificuldade na intervenção seria a variável que outros
autores consideram importante: "tolerância para atividades desviantes". No
entanto, há uma diferença entre jovens pertencentes a classes sociais
diferentes, qual seja, a tendência entre os mais pobres para permanecer na
vizinhança mesmo durante atividades de lazer, o que não se dá entre os jovens
mais ricos que podem se locomover na cidade com muito mais facilidade.
De qualquer modo, neste plano os autores apenas estimam a capacidade e a
possibilidade de interferência ou atuação que vizinhos podem ter sobre o
comportamento juvenil. Ou seja, essa interferência corresponderia ao controle
social informal exercido pelos vizinhos, que não se restringe ao exercido pelos
pais e demais familiares, nem pelos responsáveis em socializar os jovens nos
projetos juvenis ou nas escolas do bairro.
Posteriormente, os autores assinalam a importância da capacidade diferencial
das comunidades em extrair recursos e em reagir a cortes nos serviços públicos
de segurança, tais como o policiamento, o corpo de bombeiros, a coleta de lixo
e as posturas urbanas. Já não se está mais no plano do controle social informal
das crianças e dos adolescentes, e sim na disposição, habilidade e competência,
três aspectos da eficácia coletiva de cada comunidade em se organizar para
impor suas demandas de serviços públicos à área em que moram. Além de passar
para o plano político, os autores também sugerem outro modo de enfrentar
problemas, agora definidos como mais graves, pois tratam da repressão a crimes
reconhecidos como tais pela comunidade e pelo Estado. A importância da
capacidade organizacional (e política), segundo eles, ficaria provada na
correlação já conhecida entre os sinais públicos de desordem (prédios
abandonados, terrenos baldios, vandalismo e sujeira) e os crimes mais sérios21.
Porém, não fica claro como aferir esta capacidade para medir a eficácia
coletiva, e os autores confessam que não aprofundaram a pesquisa no item que
teria mais correlação com a capacidade política da vizinhança e sua articulação
com o controle social formal exercido pelas polícias e demais serviços
públicos, especialmente os da saúde e da educação.
Simplificando todos os problemas de modo a permitir estimar a capacidade ou a
eficácia coletiva dos vizinhos, Sampson e demais autores propõem primeiramente
que seria necessária a disposição dos moradores locais em intervir para o bem
comum, o que dependeria em grande medida de condições de confiança mútua e
solidariedade entre eles, além da homogeneidade de padrões morais e culturais:
"de fato, não se intervém no contexto vicinal em que as regras sejam pouco
claras e as pessoas desconfiem ou temam umas às outras"22. Essa definição não é
diferente de outros autores que colocaram tal disposição como componente do que
denominaram capital social ou cultura cívica23.
No final do mesmo texto, os autores admitem também que a abrangência do estudo
requer que outras dimensões da eficácia vicinal sejam consideradas, como
vínculos políticos e institucionais, e que a análise ficou limitada a uma
cidade, não ultrapassando suas fronteiras oficiais. Acrescentam também que a
situação dos moradores dentro de vizinhanças tão rigorosamente delimitadas é,
em parte, configurada por fatores socioeconômicos e habitacionais dependentes
da política econômica mais ampla.
Entretanto, Sampson, Raudenbush e Earls24 revelam a proposta de segurança que
as conclusões do estudo sugerem: "encorajar as comunidades a se mobilizar
contra a violência mediante estratégias de 'auto-ajuda' pelo controle social
informal, talvez reforçado por parcerias com agências de controle formal social
(policiamento comunitário)". Lembram que essa proposta deveria ser
complementada por outras formas de enfrentamento das mudanças sociais e
ambientais que afetam as áreas mais pobres da cidade, sempre ressaltando a
importância da organização vicinal.
Como não discutem a habilidade ou a competência que vizinhos podem ter em usar
tal disposição de modo eficaz, ou seja, seus vínculos políticos, pois querem
ressaltar a eficácia do controle informal da vizinhança, sua análise é feita
implicitamente em quadro institucional e político partidário que pode ser único
no país ou na cidade em foco.
Seria, pois, necessário ampliar o escopo do estudo das vizinhanças como meio de
controle social, portanto de ordem social, comparando não apenas vizinhanças em
cidades, mas cidades em um país, principalmente cidades em diferentes países
para se poder avaliar a importância deste substrato da eficácia coletiva.
Em texto posterior, Sampson e Morenoff e Gannon-Rowley25 admitem vários outros
mecanismos interligados que explicam as diferenças marcantes entre vizinhanças
e sua relação com o crime. Primeiro, a conexão entre as desvantagens
concentradas e o isolamento geográfico dos afro-americanos, ou seja, a
segregação racial como variável da vizinhança que provoca a concentração de
diversos problemas sociais vicinais, como desordem social e física, variáveis
individuais, como baixo peso ao nascer, mortalidade infantil, abandono da
escola e abuso contra crianças, todas vinculadas também a variáveis familiares
- por exemplo, famílias chefiadas por mulheres26. No Brasil, a concentração
desses problemas não ocorre do mesmo modo nem está vinculada à segregação
racial.
Segundo, os autores desse novo texto de 2002 reconhecem explicitamente a
contribuição da teoria do capital social para entender um dos mecanismos
vicinais que foram mensurados em diferentes estudos pela densidade dos laços
sociais entre vizinhos, a freqüência da interação social entre vizinhos e os
padrões que constituem a vizinhança (neighboring). A eficácia coletiva seria
apenas um desses mecanismos, por se referir à disposição ou à vontade dos
vizinhos em intervir na proteção de jovens, o que também depende da confiança
construída a partir desses laços27.
Terceiro, apontam o mecanismo dos recursos institucionais, que compreendem
escolas, bibliotecas, centros de atividades recreativas, centros de saúde,
agências de apoio a pais e jovens, oportunidades de emprego - fator que nos
interessa sobremaneira, por ser revelador na comparação entre cidades
brasileiras e cidades estadunidenses. Este mecanismo, segundo os autores, tem
sido mensurado pelo número de organizações nas vizinhanças, mas não pela
participação dos vizinhos nessas organizações. Ao falar em participação, os
autores vinculam a eficácia coletiva ao que Putnam28 denominou participação
cívica, claramente vinculada à ordem pública e suas instituições.
Por fim, e não menos importante, os autores mencionam as atividades rotineiras
em cada vizinhança, que variam de acordo com os equipamentos ali presentes,
tais como escolas, postos de saúde e demais organizações, que tornam necessário
ou não sair dali para obter bens e serviços em outros lugares. Igualmente, a
presença de certos equipamentos, tais como bares, shopping centers e até mesmo
pontos de venda de drogas, provocaria um movimento constante de pessoas de fora
em busca dos bens e serviços ali oferecidos. Por isso mesmo, admitem que é
necessário ter cautela quando se considera apenas o local do evento e não a
residência da vítima ou do criminoso, uma vez que eles podem não pertencer à
localidade.
Hunter29, por sua vez, assinala que quando os adolescentes, não mais sob o
controle familiar, saem para relações fora da ordem privada e começam a
praticar incivilidades e crimes na vizinhança é porque se rompeu a interação
entre o privado e o paroquial. Igrejas, escolas, clubes de jovens, ligas de
atletas deixaram de prover o controle social dos jovens por dependerem
principalmente do trabalho voluntário dos vizinhos, ou seja, essas organizações
vicinais são fundamentais na socialização dos adolescentes, mais do que a
intromissão informal de vizinhos. A desarticulação organizacional da vizinhança
tem mais impacto sobre a criminalidade do que a da ordem privada, visto que
pode fazer a vigilância que a polícia não tem meios suficientes para exercer. O
autor conclui, então, que fortalecer as vizinhanças mais do que caçar
criminosos é a saída para tais problemas de controle social, ou seja, basear o
controle social em organizações vicinais que vão ajudar a controlar os jovens,
liberando a polícia para cuidar da ordem pública nos locais públicos, os quais
envolvem encontros entre desconhecidos, ao contrário do que acontece na
vizinhança, onde quase todos se conhecem.
Não seria, portanto, exagero dizer que Sampson e demais autores mediram não só
a eficácia informal da vizinhança, mas também a capacidade de alguns sistemas
político-partidários e de segurança pública em mobilizar e articular as redes
de vizinhos potencialmente ativos em organizações socializadoras e em
cooperação com o trabalho policial. Essa capacidade permanece no pano de fundo
da análise, embora seja crucial para o entendimento de por que em algumas
vizinhanças de Chicago, e não em outras; por que em Chicago e não em outras
cidades dos Estados Unidos da América, por que em cidade dos Estados Unidos e
não em outras cidades do mundo, vizinhos participam informal, mas ativamente,
da socialização dos mais jovens.
Considerando o contexto global de transformações urbanas, especialmente em
países em desenvolvimento como o Brasil, sabe-se que seus efeitos são desiguais
segundo as formações institucionais de cada país. Mesmo que seja comum o
contexto do declínio das cidades, da falta de recursos públicos para
intervenções estatais ou de políticas públicas de qualidade, mesmo que
atividades econômicas e culturais tenham sido "englobadas", enquanto as
relações de poder se mantiveram locais30, a situação local é muito plural no
mundo. Em outras palavras, o mercado e o poder econômico foram globalizados, ao
passo que as instituições representativas e o poder que delas emana seguem, em
grande parte, ancoradas no território local, mas este apresenta variadas
soluções de enraizamento, governança e participação a serem entendidas dentro
do quadro político-institucional subjacente a cada país ou estado. A
importância da vizinhança em algumas soluções de governança tem que ser
entendida, pois, dentro de um quadro institucional abrangente.
Há enormes diferenças entre localidades, vizinhanças ou territórios em virtude
da diversidade de engenharias institucionais e político-partidárias de cada
país. Em alguns, gerações sucessivas de migrantes ocuparam partes das cidades,
há um aumento impressionante nas taxas de criminalidade, espalham-se tanto o
uso de drogas ilegais quanto as práticas violentas (armadas) do crime
organizado e da polícia que o combate, seguidos pelo enfraquecimento da
autoridade dos líderes comunitários e das associações vicinais nas áreas mais
pobres das cidades. A atual configuração urbana é um dos obstáculos a se
enfrentar para a reafirmação dos direitos fundamentais (tais como o direito à
vida e ao ir e vir) entre a população mais vulnerável, mais afetada pela
precariedade, desigualdade e pobreza, fatores agravados pela violência que
passa a reinar em algumas vizinhanças, e pelo medo, tanto de traficantes
armados quanto da polícia, assim como a submissão aos que darão respostas
vicinais de autodefesa, que se tornam despóticas no caso brasileiro, compondo
grupos de extermínio ou "milícias"31.
O modo como se vinculam as localidades ao poder político dos representantes nas
Assembléias e Câmaras e, por meio deles ou diretamente, ao poder Executivo da
cidade ou do Estado é parte desse quadro não explicitado, na medida em que pode
favorecer, incentivar ou bloquear a capacidade ou a disposição de vizinhos em
se organizar para resolver problemas comuns, entre eles o controle sobre jovens
em processo de socialização. Por exemplo, sabe-se que a prática do clientelismo
via cabos eleitorais tem tido um efeito devastador ao minar a confiança que os
vizinhos possam depositar em líderes locais que assumem este posto, para não
falar do desalento em encontrar soluções que venham a ser verdadeiramente para
o bem comum. Mais importante ainda são as formas de vinculação da vizinhança
com as polícias locais e, portanto, a confiança nelas depositada pelos
moradores.
O objetivo deste texto é entender o paradoxo da cidade do Rio de Janeiro que
nega as teorias recentes com pretensões de explicar a maior ou menor
criminalidade pelos indicadores de capital social e eficácia coletiva, baseados
na maior sociabilidade e na confiança entre vizinhos.
RIO DE JANEIRO: A VITIMIZAÇÃO NAS VIZINHANÇAS MAIS POBRES E O PARADOXO DO
SUBÚRBIO CARIOCA32
Foram feitas duas pesquisas domiciliares de vitimização na cidade do Rio de
Janeiro entre 2005 e 2006 e uma circunscrita às favelas da cidade em 200733. Os
resultados revelaram o que denominamos o paradoxo da cidade: nas áreas mais
pobres, onde a violência é maior, é também maior a muito boa convivência entre
vizinhos, marca da cultura carioca, assim como o maior tempo médio de
residência no local. Mas, como havia uma diferença de seis anos ou mais entre
as pesquisas e o último Censo (2000), foi impossível testar hipóteses sobre
estabilidade residencial, propriedade da residência, densidade populacional da
área e heterogeneidade étnica em unidades censitárias que poderiam ser
identificadas a vizinhanças. Foi preciso usar a comparação entre Áreas de
Planejamento (AP) que os dados das pesquisas domiciliares de vitimização, ambas
amostrais, permitiam, e interpretá-los à luz de pesquisas de campo etnográfico
ou grupos focais.
Além do mais, são muito raras as vizinhanças homogêneas e tranqüilas como as
existentes na suburbia das metrópoles estadunidenses e nas cidades menores.
Afora pouquíssimos bairros exclusivamente residenciais nas áreas mais ricas da
cidade (AP2 e 4) e alguns bairros nas áreas pobres, principalmente na AP3 - a
mais violenta -, muitos prédios de apartamentos e de escritórios, escolas,
centros comerciais, centros culturais, escolas de samba, bares e restaurantes
marcam as demais áreas como mistas (simultaneamente residenciais, comerciais,
de serviços e algumas industriais). Isto significa serem intensamente visitadas
por pessoas que não moram ali. Nas favelas, que ainda não viraram complexos
(como os complexos de favelas do Alemão, da Maré, da Rocinha e outros), e ainda
não têm intenso movimento por conta do tráfico de drogas, as vizinhanças são
mais coesas e criam pertencimento. São as únicas denominadas "comunidades"
pelos seus moradores. Já os moradores de condomínios e prédios da classe média
próspera tentam recuperar a exclusividade residencial dos bairros antigos, mas
à custa do isolamento, do afastamento da rua e da praça, onde pessoas
diferentes se encontram, ou seja, no espaço onde a ordem pública é construída.
Os pais têm, nesse tipo de habitação, controle sobre seus filhos dentro do
condomínio de iguais, mas estes jovens deixam de aprender a etiqueta da
interação com o espaço que é de todos citadinos, incluindo os desiguais, porque
se rompeu a articulação entre o privado, o paroquial e o público34. O
autocontrole necessário à convivência entre os diferentes no espaço público
deixa de existir.
Outra diferença é que a heterogeneidade étnica da população carioca é muito
menor que a das cidades estadunidenses, por ser o resultado de uma migração
interna que envolve pessoas falando a mesma língua. Entretanto, é grande a
mobilidade dentro da cidade, tanto de residência como de percursos semanais
feitos pelas pessoas. Já a desigualdade socioeconômica é marca de toda a
cidade, onde ricos e pobres convivem no mesmo espaço geográfico, com exceção da
AP3, a mais homogênea por ter menor desigualdade de renda entre os moradores.
Esta área é também a de maior densidade demográfica (116/ha), cinco vezes maior
do que a registrada para as áreas de povoamento recente - AP4 (23/ha) e a AP5
(26/ha) -, as únicas que cresceram na cidade (quase 10% em cinco anos na AP4 e
7, 61% na AP5. As áreas mais antigas perderam moradores no mesmo período (-6,
96% na AP1, -2, 99% na AP2 e -1, 13 na AP3).
Poder-se-ia dizer que a AP1, região central mista, e a AP3, antiga região
industrial e comercial, marcadas pela decadência econômica da cidade,
urbanisticamente degradadas e concentrando população empobrecida, estariam mais
próximas do que os norte-americanos denominam inner city, mas há favelas, ou
seja, concentração de pobres em espaços não urbanizados por todas as APs da
cidade.
Por fim, é preciso lembrar que a mistura de "raças" ou de etnias no Rio de
Janeiro é parte do padrão cultural da cidade e tem sido cantada em prosa e
verso por seus intelectuais e sambistas, ao contrário do padrão segregacionista
encontrado nas cidades estadunidenses, onde etnia e bairro se confundem. Aqui,
os vizinhos constroem laços que não são exclusivos apenas aos grupos étnicos ou
religiosos, mas que são pontes entre grupos diferentes.
Uma das baterias de perguntas do questionário da pesquisa de vitimização
referia-se à interação social na vizinhança: Até onde vai a vizinhança na qual
você mora? Há quanto tempo você mora nesta vizinhança? Com que freqüência você
conversa com os vizinhos? Com que freqüência você e os seus vizinhos trocam
gentilezas e/ou favores? Quantos parentes e amigos moram na sua vizinhança?
Havia também uma pergunta sobre a confiança, sem a qual não há sociabilidade ou
trocas que permitam falar de associação entre os moradores de um local. Pedia-
se a cada entrevistado para dizer em quantos de seus vizinhos (nenhum, poucos,
muitos, todos) confiava, mas não se pode esquecer de que se trata de avaliação
subjetiva e muitas vezes superficial e imprecisa, portanto difícil de mensurar
estatisticamente.
Ora, a interação social pode ocorrer a qualquer momento, em qualquer lugar, sem
que para isso seja estabelecida uma interação face a face na vizinhança. Esta
última colabora na construção da confiança e da solidariedade entre vizinhos,
facilitando a resolução dos problemas locais, além de ter efeitos não esperados
sobre o bem viver. Mas em metrópoles como o Rio de Janeiro, o paroquial não tem
tanta importância quanto o público, e a maior parte de seus bairros tem espaços
públicos importantes, onde a interação obedece aos rituais dos encontros entre
anônimos ou desconhecidos.
A vizinhança, por sua vez, é primeiramente física, pois tem a ver com a
percepção de cada indivíduo sobre os limites do território mais próximo à
moradia, referência primeira para localizar-se em determinado espaço. Mas é
também simbólica e social, pois se refere aos vizinhos, parentes ou amigos, às
pessoas que fazem parte da rede de relações que criam forte sentido de
pertencimento a um território. Por isso, quando se pede que o entrevistado diga
até onde vai sua vizinhança, espera-se que ele reconheça não só o território
onde circula diariamente, como também a rede de relações sociais que estabelece
com os que estão sempre por ali. Em última análise, pode-se até mesmo falar em
pertença, em sentimento de comunidade, quando a teia de relações é fechada e as
interações são constantes e múltiplas, paradoxalmente mais comuns nas favelas e
alguns poucos bairros pobres.
Da mesma forma, incluir parentes e amigos na vizinhança é uma possibilidade
elástica, que revela a maior proximidade daqueles considerados mais íntimos no
espaço em que se mora. Para melhor entender os resultados da pesquisa de
vitimização, foram montados grupos focais, cada um com sete pessoas, de
moradores dos subúrbios cariocas (AP3), uma das áreas de planejamento mais
pobres, degradadas e violentas da cidade, nos quais foram propostos temas como
quem são os seus vizinhos. As respostas corroboraram a idéia da vizinhança
elástica que acaba englobando o que Hunter denomina a ordem privada - a de
parentes e amigos íntimos -, o que ratifica os textos antropológicos sobre a
cordialidade que afirmam a predominância do privado (família, amizade) sobre o
público no Brasil e, no subúrbio carioca atual, também sobre o paroquial, que é
quase que anulado, uma vez que a ordem pública está desmantelada:
Vizinhos são as pessoas mais próximas, os primeiros com quem você
pode contar (W., metalúrgico).
Vizinhos são quase parentes mais próximos que têm... (P., vendedora).
Esse negócio de vizinho está um pouco fora de moda, hoje em dia a
gente usa muito meu amigo, meu colega, família, quando convive
muito... [Por que vizinho está fora de moda?] Não é o usual, eu não
vejo mais... eu tenho contato com ele todo dia, estamos sempre
juntos, nos ligamos, ele não é meu vizinho, é família. Tem vizinho
pra quem eu viro a cara. Hoje está mais ligado à amizade. É uma
grande família. Tem pessoas que moram ao meu lado e eu não tenho
afinidade, são distantes. Tem gente que mora um pouco mais distante,
e eu cumprimento (L. V., professor de matemática).
Na pesquisa realizada em 2006, a primeira surpresa foi quanto ao percentual
alto de pessoas com menos de cinco anos de moradia na mesma vizinhança em
apenas duas áreas de Planejamento - a AP1 (36, 2%) e a AP4 (33, 3%) -, a
primeira cobrindo a região mais central e mais antiga da cidade, a segunda, a
região mais recentemente ocupada: Barra da Tijuca e adjacências. Nas duas
áreas, 53% das pessoas moram há menos de dez anos na mesma vizinhança. Mas a
primeira é a área mais violenta da cidade, enquanto a segunda é a menos
violenta, como veremos mais adiante.
Na pesquisa feita apenas em favelas em 2007, os resultados surpreendem mais
ainda. Justamente nas favelas da AP1, nas quais as perdas de amigos e vizinhos
assassinados e o barulho de tiros atingem as proporções mais elevadas da
cidade, a permanência na mesma vizinhança é também a mais alta da cidade: 8% há
mais de trinta anos e 38, 4% na vida toda, enquanto o percentual dos que moram
até cinco anos é de 11%. Nas favelas da AP4, nas quais imperam as "milícias" e
o barulho de tiros é o menor da cidade, esta permanência é a mais baixa de
todas as áreas: 4% há mais de trinta anos e 9, 1% na vida toda, mas 40% dos
favelados nesta AP vivem nas suas vizinhanças há cinco anos ou menos. Na AP3, a
região com a segunda mais alta taxa de homicídio jovem da cidade,
correspondente aos subúrbios habitados pela população pobre e classe média
baixa, os percentuais de permanência são também altos, no asfalto (30% mora há
mais de trinta anos ou na vida toda) ou nas favelas (40% mora há mais de trinta
anos ou na vida toda), sendo que as mais conhecidas pela violência, que elevou
a taxa de homicídio entre os homens jovens de seus bairros a níveis altíssimos,
como o Complexo do Alemão, Vila Cruzeiro, Vigário Geral, localizam-se ali.
Com o banco de dados, criamos uma variável sintética denominada
"sociabilidade"35. Esta variável se mostrou fundamental para se entender como a
convivência sociável pode variar de acordo com faixas etárias, gêneros, cores
da pele/raças, graus de escolaridade e níveis de renda familiar, assim como com
as diferentes áreas de planejamento da cidade.
Entretanto, o cruzamento desta variável com outras relativas ao espaço urbano
mostrou que a sociabilidade da população estudada foi surpreendente: a boa
convivência, assim considerada pelos entrevistados, apresenta proporções
maiores nas áreas em que vivem os pobres - AP1 (52%), AP3 (39%) e AP5 (36%) -,
correspondentes respectivamente ao Centro, aos subúrbios e à Zona Oeste. Em
zonas ricas observa-se metade dessa boa convivência - na AP2, correspondente à
Zona Sul e à Tijuca -, outro importante bairro de classe média próspera, esta
proporção não passa de 20%. Dizem os moradores da AP3:
Quando viaja, um vizinho passa o olho na casa do outro. Teve um
vizinho que viajou e quando voltou não avisou. Chamamos a Polícia
para o próprio vizinho [risos] (A., autônoma, e L. costureira).
Tem que manter um bom convívio com vizinhos, na hora de uma
emergência ou dificuldade é quem te acode primeiro. Se eu for esperar
uma ambulância do Samu ou o corpo de bombeiros... (F., engenheiro e
professor).
Eu peço rodo, açúcar, farinha, tudo! Peço mesmo... (L., costureira).
Nessas áreas onde se concentram as pessoas mais pobres da cidade - AP1, AP3 e
AP5 - se encontram também os percentuais mais elevados de confiança nos
vizinhos. Na AP1, 67, 9% dos moradores afirmaram confiar na maioria deles ou em
alguns vizinhos; 53, 3% dos moradores da AP5 (região de povoamento recente com
muitos migrantes); 48, 8% dos moradores da AP3 (os subúrbios, também antigos,
mas com migrantes nordestinos em favelas recentes); 48, 7% da AP2 (zona
próspera na Zona Sul e Norte, com muitas favelas na Tijuca) e 49, 3% da AP4
(zona de ocupação recente pela classe média próspera e por muitos migrantes
nordestinos em favelas). Em contrapartida, os moradores da AP2 (com 4, 8%) e os
da AP4 (com 4, 1%) são os que me-nos conhecem seus vizinhos, mas habitam
justamente as áreas com maior IDH da cidade (maior renda e escolaridade).
Porém, quando a sociabilidade é menor, a confiança não é necessariamente menor;
quando a sociabilidade é alta, não necessariamente há confiança estabelecida
nas relações, pois estas variam não pela localidade, mas pelas características
pessoais dos entrevistados. A maioria dos jovens, por exemplo, considera sua
vizinhança apenas o prédio, a rua ou a viela em que moram, e são os que menos
confiam nos vizinhos, embora sejam os mais sociáveis em termos de contatos com
outras pessoas do local. Já os mais velhos são os mais flexíveis e amplos na
definição de sua vizinhança, os mais sociáveis e os que mais confiam nos
vizinhos. Explica-se: a confiança é uma aposta afetiva em que não se gasta
nada, mas que aumenta quanto mais se aposta, fortalecendo a relação
interpessoal ao longo dos anos.
Por fim, outra bateria de perguntas abordava o tema da interferência de
vizinhos sobre os comportamentos desordeiros e criminosos dos jovens da
vizinhança. Perguntou-se o que fazem quando: "vêem um bando de adolescentes em
bares" ou "nas esquinas das ruas" ou "se drogando em locais públicos" ou
"xingando, ofendendo, insultando outras pessoas" ou "envolvidos em brigas ou
discussões nas proximidades da sua casa". Em torno de 92% dos entrevistados
responderam não saber nem se havia jovens nessa situação, nem o que fariam. Os
poucos que puderam revelar o que viram e o que fariam (cerca de 7%), ou
avisariam os pais ou conversariam com os jovens, esta opção escolhida na quase
totalidade dos casos. Só no caso do uso de drogas a opção mais indicada foi
avisar os pais. Ora, o percentual tão alto de resposta "não sabe" indica não
apenas a indiferença, mas principalmente o medo diante da agressividade de
jovens ou o seu envolvimento com grupos de traficantes.
Em briga de casal os bandidos se metem... e se a mulher está errada,
e se eles julgarem que a mulher está errada, eles batem e cortam o
cabelo. O julgamento é entre eles... (E., agente comunitária de
saúde).
Quando me separei, que eu morava bem no meio da comunidade, eu não
conseguia me acostumar, mesmo tendo nascido ali, com as coisas que
muitas vezes nós éramos obrigadas a assistir: violência, muita
violência com o morador, e a Polícia quando entrava não respeitava
ninguém e às vezes, assim, os bandidos sabiam que as pessoas tinham
feito coisas erradas e pegavam pra bater, sem saber se aquilo era
verdade mesmo e às vezes éramos obrigados a assistir. Meus filhos
ficavam muito nervosos dentro de casa e eu também, e meu filho mais
velho estudava longe e chegava muito tarde em casa. Dava dez horas,
tinha tiroteio e eu ficava nervosa querendo ir buscar ele. Eu peguei,
vendi minha casa que era no meio da comunidade e comprei outra mais
na estrada, na beirada da rua, ainda na comunidade, então assim:
vendi minha casa que era uma casa muito grande, muito boa, e as
pessoas diziam que eu era muito boba porque estava dando minha casa.
Mas eu preferi 'dar' minha casa e comprar uma pequenininha, pra ficar
mais lá na frente e meus filhos não assistirem certas coisas [... ]
eu moro lá, mas não entro na comunidade à noite. Trabalho lá dentro
durante o dia, mas não entro durante a noite (E., agente comunitária
de saúde).
A nossa comunidade não tinha tráfico de drogas. A gente era livre.
Nós crescemos lá e não tinha tráfico. E depois de muitos anos, quando
já era adolescente foi que aconteceu deles venderem a comunidade, e
foi implantado o tráfico de drogas lá. Quem vendeu na época foi o
dono da associação de moradores de lá. Vendeu para uma facção de
tráfico de drogas... tanto que o líder comunitário da época ele foi
morto e arrancaram a cabeça dele. Aí começou a disputa por vários
traficantes e aí durante muitos anos ficou o ADA lá (S., agente
comunitária de saúde).
Por que não chamam a Polícia? Por que infelizmente os policiais são
corruptos... na última guerra que teve passamos por maus bocados, de
ter que deitar na rua às 16h, voltando do trabalho. Assim, guerra,
guerra mesmo. Porque a Polícia vem, entra na frente e vem abrindo o
caminho para os traficantes [... ] nós somos refém do medo. Ninguém
faz nada, se fizer morre (E., agente comunitária de saúde).
Ao longo de pesquisas etnográficas feitas a partir de 1980 em vizinhanças
pobres na cidade, foi possível observar como os vizinhos encolheram a
participação na socialização informal dos jovens por conta do medo dos
traficantes, dos milicianos e dos policiais violentos e corruptos. No início
dos anos de 1980, ainda era possível ver adultos admoestando, ensinando,
cuidando das crianças que brincavam nas ruas do bairro, o que foi ficando cada
vez mais raro à medida que os vizinhos passavam a demonstrar claramente o medo
em comentar, criticar ou apenas falar sobre o domínio militar já estabelecido e
os conflitos armados resultantes nos locais onde moravam.
Portanto, a eficácia coletiva só aconteceria quando houvesse condições locais
de segurança que permitissem a intervenção dos vizinhos, além de estar dentro
das práticas socialmente aceitas para alguém se imiscuir nas atitudes de outra
pessoa, mesmo que seja um adolescente. Basta lembrar, por exemplo, que no Rio
de Janeiro as expressões "dar sugestão" ou "na sugesta", registradas em nossas
pesquisas de campo etnográfico, e presentes nas letras de música popular da
cidade, remetem à apreciação negativa de quem se mete na vida alheia, um
problema principalmente, mas não só, para os homens, sobretudo os mais jovens.
Isso não quer dizer que não tenham consciência moral ou que sejam incapazes de
indignação moral, comumente expressa sempre que a ação entre na categoria
"covardia", quando o mais forte abusa do mais fraco. Mas o medo das armas
calou-os nos últimos vinte anos.
Na AP3, por exemplo, onde a cultura do samba é mais disseminada, essa
ingerência na vida alheia (e sobre os filhos jovens alheios) é mal vista, o que
pode resultar em maior tolerância para com os desvios, especialmente dos
jovens, apesar de incomodar os mais velhos. A informalidade e a maior
tolerância para com os desviantes, sobretudo no que diz respeito ao uso da
maconha, uma das drogas ilegais de uso secular no Brasil, abriram caminho para
o estabelecimento das "bocas de fumo" nas favelas, inicialmente sem guerra de
quadrilhas. Este é um dos elementos que permitem compreender a facilidade com
que se deu o domínio dos traficantes armados sobre seus territórios a partir
dos anos de 1970. Mas não quer dizer ausência completa de julgamento moral
entre vizinhos. Quando ainda é possível, vizinhos comentam intensamente as
ações que consideram "covardia", em que os mais fortes enganam, traem ou
destroem física e moralmente os mais fracos. Era a palavra usada para falar da
desigualdade entre os trabalhadores desarmados e os bandidos que portam armas
todo o tempo36.
Ao mesmo tempo, tal manifestação musical criou associações vicinais que se
tornaram centros de lazer e de socialização para os mais jovens: blocos de
carnaval e escolas de samba que possuem ala das crianças (desde os anos de
1960) e departamentos de escolas mirins (desde os anos de 1980). Nesses
centros, desencorajaram-se exibições de masculinidade exacerbada ou
hipermasculinidade, mais presentes na música e nos bailes funk do que nas
letras dos sambas e nas práticas dos sambistas37.
Na cidade do Rio de Janeiro, o hábito de festejar, desde o difundido "churrasco
na rua", reunindo os vizinhos, as peladas nas ruas e praças do bairro,
agrupando pessoas das vizinhanças próximas, inclusive de favelas, até as
paradas ou desfiles, congregando pessoas vindas de diferentes áreas da cidade
para competir ou comemorar, possibilitou o controle das emoções, base do
comportamento civilizado. Os laços sociais de confiança entre os iguais sempre
foram reforçados pelos primeiros e as pontes entre os diversos, pelos segundos.
As regras que presidiam as competições, tal como acontece no esporte, não
permitiam que, nos desfiles, os adversários fossem atacados e destruídos,
regras interiorizadas pelos participantes e que contagiavam os demais com uma
formação subjetiva mais próxima do espírito esportivo38 e do respeito aos
preceitos que presidiam as associações musicais vinculadas aos bairros, também
presentes nesses encontros festivos que as reuniam. Um exemplo de interseção
entre o privado, o paroquial e o público, isto é, um fato social total39.
Embora isolados internamente e alvo de desconfiança e medo dos seus vizinhos
mais prósperos, os bairros e as favelas onde moram principalmente pessoas
pobres, como na AP3 e AP1, historicamente contaram com grande capacidade
organizativa que se concretizou em escolas de samba, blocos de carnaval, times
de peladeiros, assim como associações de moradores. Porém não se pode dizer o
mesmo daquelas organizações vinculadas ao poder público. Os moradores dessas
áreas pobres não contam com os serviços públicos de qualidade nos setores da
saúde e da educação e têm de enfrentar os efeitos desastrosos da falta de
policiamento, com incursões eventuais e violentas de forças policiais que não
se guiam pelas normas estabelecidas na lei. Este é mais um elemento a ser
adicionado para se compreender a facilidade com que se deu o domínio dos
traficantes armados sobre seus territórios. As falhas dos serviços públicos,
como os transportes públicos precários e a própria moradia, acabam por garantir
ainda mais a criação de mercados ilegais de transportes alternativos e outras
mercadorias e serviços inflacionados no local, além de transações imobiliárias
informais, negócios dominados tanto pelas "milícias" como pelos comandos do
tráfico.
Desde os anos de 1980, o comércio de drogas tornou-se sinônimo de guerra em
muitos municípios do Brasil, mas com diferenças regionais entre cidades e entre
bairros na mesma cidade. A grande quantidade de armas disponíveis para os
jovens moradores das favelas, grande parte das quais exclusivas das Forças
Armadas Brasileiras, são também trazidas por policiais corruptos ou por
contrabandistas. No Rio de Janeiro, as armas são mais facilmente obtidas por
causa dos portos e dos vários aeroportos, assim como os mais importantes
depósitos de armamentos das Forças Armadas que estão no seu território.
Os "comandos" inimigos disputam hoje violentamente o território onde controlam
os negócios, proibindo os moradores de áreas dominadas por seus inimigos de
cruzar os limites do seu perímetro, até mesmo para visitar amigos ou parentes.
É por isto que favelados, de alguns bairros da cidade, falam de uma "guerra sem
fim" que opõe traficantes pertencentes a comandos inimigos ou policiais versus
traficantes. Por isso, os vizinhos não têm permissão de cruzar as fronteiras
artificiais entre as favelas, quanto mais admoestar adolescentes que usam
drogas legais ou ilegais.
Diante desse quadro, não admira que favelas em áreas da cidade de povoamento
recente tenham aceito outra forma de domínio militar, o exercido pelas
"milícias". Primeiramente, a mistura de respeito e medo, que resultou da
presença de "polícia mineira" (ou grupo de extermínio) dentro da associação de
moradores, leva muitas vezes os moradores a aceitar os milicianos. As normas
impostas por estes, que proíbem a venda e o uso de drogas, ou ladrões armados
no local, passaram a ser vistas como algo "natural", tornando desnecessárias as
demonstrações conspícuas de força. Não há armas à vista, nem atitudes
visivelmente violentas, mesmo quando os milicianos estendem seus negócios além
da segurança para incluir outros bens e serviços, todos logo cobrados.
Posteriormente, a associação passou a fazer também a intermediação entre o
poder público e a favela, promovendo redes de solidariedade entre seus
dirigentes e os moradores. Daí para entender o potencial eleitoral do local, a
real possibilidade de se eleger candidatos de dentro da favela, foi um passo.
Os líderes da associação/polícia mineira, sob o discurso da necessidade de
representação no governo como meio de alcançar reivindicações e sanar carências
locais, começaram a candidatar-se a deputados estaduais ou vereadores. Em 2002
e 2003, a Associação promoveu campanha de regularização e transferência de
títulos eleitorais dos moradores de Rio das Pedras, favela predominantemente
habitada por migrantes nordestinos, e um líder local pertencente à "milícia"
elegeu-se vereador. A partir daí, outras favelas assim dominadas começaram a
eleger representantes para o Legislativo da cidade e do estado40.
Mais recentemente, em áreas recém-povoadas e recém-conquistadas, nas quais
estabelecem logo os novos negócios e os compromissos eleitorais com políticos,
as "milícias" dominam passando por cima dos moradores, portanto sem receber o
apoio deles no cumprimento do código de conduta. Nessas favelas, componentes
das novas "milícias" mantêm postura mais truculenta, exercendo seu poder com
ostentação de armas e espancamentos seguidos ou ameaças aos moradores que se
recusam a cumprir as ordens. Em algumas, a obrigação de votar no candidato
indicado pelo poder armado passou a imperar.
Apesar da evidente eficácia eleitoral, os moradores entrevistados consideram
como os principais motivos de ação de todos os "milicianos" - novos e antigos -
o interesse no ganho financeiro e no poder político, todos obtidos pelo
controle militar do território. Salvo diretores e ex-diretores da Associação de
Moradores, não há ninguém que acredite em solidariedade e luta pelo bem comum
como valores motivadores das ações de "milicianos"41. Isto não quer dizer que
não haja evidências de contenção de alguns crimes, excetuando, claro, os
cometidos pelos agentes do domínio militar.
Qualquer uma das formas de segurança privada nas favelas parece ser muito mais
eficaz no que se refere aos assaltos: nas favelas, um percentual de 3, 5% de
moradores viu pessoas sendo assaltadas na vizinhança, enquanto 16% dos
moradores de toda a cidade observaram o mesmo crime nas suas respectivas
vizinhanças. Porém, quando comparamos as favelas dominadas por milícias com as
dominadas por traficantes, constatamos grande disparidade. Nas favelas
controladas por tráfico de drogas, mais do que o triplo dos entrevistados (45,
0%) afirmou ter visto venda de drogas em sua vizinhança por comparação aos
entrevistados das favelas dominadas por "milícia" (14, 9%). O consumo de drogas
nas ruas também se apresentou muito maior nas favelas dominadas por grupos de
tráfico (52, 2%) do que nas favelas dominadas por "milícia" (18, 5%). Este
resultado demonstra que a tolerância dos moradores, forçada ou não, e a
convivência com o uso e o tráfico de drogas são várias vezes maior, como seria
de se esperar, nas favelas dominadas por traficantes. Isso indica que, pelo
menos publicamente, um dos objetivos claros da "milícia" é reprimir o uso e o
tráfico de drogas.
Em relação a outros crimes temidos pela população, há ainda mais disparidades
entre as favelas. Naquelas dominadas por "milícias", 26, 6% dos entrevistados
afirmaram ter visto assaltos na vizinhança, em contraponto aos 47% nas
dominadas por grupos de tráfico. As "milícias", força para-estatal vinda dos
grupos de extermínio, desde sempre foram criadas com o objetivo de impedir, por
meios ilegais, a presença de suspeitos de praticarem assaltos; traficantes
sempre se associam a assaltantes para fazer capital de giro.
Essa atividade das "milícias" manifesta-se também no barulho de tiros ouvido
pelos moradores das diferentes áreas que apresentam tendências bem mais baixas
na freqüência de barulho de tiros ouvido: 62% dos entrevistados nas favelas
dominadas por tráfico ouvem sempre ou freqüentemente barulho de tiros, contra
15% dos entrevistados nas dominadas por "milícia". Raramente ou nunca ouvem
barulho de tiros 34, 2% dos entrevistados nas favelas dominadas por "milícia" e
apenas 11, 6% nas dominadas por tráfico; 42, 5% dos residentes nas favelas
dominadas por "milícia" afirmaram nunca ter ouvido barulho de tiro, contra 12,
3% dos residentes em favelas controladas por traficantes. A proporção nestas
últimas é, portanto, três vezes maior.
Outro fator interveniente seria a confiança na instituição policial. A pesquisa
revelou que a desconfiança em relação à polícia é muito maior entre os
favelados. Surpreendentemente, são as mulheres faveladas que menos confiam nos
policiais, em todas as idades. São elas também que afirmam, em mais altas
proporções, que a população da cidade não confia na Polícia Militar. Como são
elas as que menos se locomovem fora da vizinhança, provavelmente observam mais
ações dos policiais que empregam excessiva e injustamente a força, atingindo
pessoas inocentes, ou aceitam o "arrego" dos traficantes. As imagens da PM como
violenta e corrupta atingem percentuais mais altos entre os jovens favelados,
especialmente do sexo feminino: mais de 70% deles concordam que a PM é violenta
e corrupta, chegando a 92% das faveladas entre 15 e 19 anos. As elevadas
proporções de favelados, mas principalmente faveladas, que consideram a Polícia
Militar violenta e corrupta revelam a quase completa ausência de legitimidade
desta instituição junto aos jovens.
Sem contar com os controles informais dos vizinhos que se enfraqueceram no
processo de militarização dos traficantes, nem com a mediação de conflitos
entre estes últimos sempre disputando o controle dos pontos de venda e de poder
local, a polícia entra em locais já conflagrados pelo conflito armado. Em um
círculo vicioso infindável, essa situação só faz reforçar práticas policiais
baseadas no seu poder de fogo e práticas repressivas da "guerra contra os
inimigos inter-nos" ou da "caça aos bandidos", estabelecidas nas últimas
décadas. A idéia da guerra contra outro poder armado "paralelo", com alta
capacidade de corromper, dificulta enormemente a adesão às normas legais que
deveriam orientar a ação policial, já dificultada pelo alto poder de corrupção
dos traficantes de drogas ilegais, além de impossibilitar a cooperação baseada
na capacidade de organização vicinal demonstrada pela população pobre da
cidade. Trata-se do capital social negativo tornando inviável a participação
vicinal informal, como também a cívica no confronto dos problemas da
vizinhança.
Apesar da sociabilidade, da confiança mútua e da capacidade organizacional
demonstradas pelos moradores de vizinhanças pobres do Rio de Janeiro, inclusive
os moradores de favelas, ainda não foi possível construir uma sólida e eficaz
cultura cívica de participação na resolução dos problemas locais, especialmente
o da segurança vicinal. As conspícuas e sempre presentes armas, tanto estatais
como paraestatais e criminais, não deixam isso se tornar uma realidade.
[1] Bauman, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
[2] Sennett, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1998.
[3] Putnam, Robert D. Bowling alone: the collapse and revival of American
community. Nova York: Simon & Schuster, 2000.
[4] Neste texto, como na maioria dos autores, vamos seguir o conceito de
sociabilidade definido por Simmel como a interação em que não há motivos, fins
ou interesses a não ser a própria interação, ou seja, a interação pela
interação. Um exemplo claro do que este autor entendia por sociabilidade seria,
no jargão popular, "jogar conversa fora". Por isso a expressão sociabilidade
violenta é uma contradição em termos, pois a violência é um meio para atingir
um fim, material, político ou simbólico.
[5] Hunter, Albert. "Private, parochial and public social orders: the problem
of crime and incivility in urban communities". In: Suttles, G. e Zald, M.
(eds.). The challenge of social control. Norwood, NJ: Ablex Publishers, 1985.
[6] Shils, Edward. Center and periphery: essays in microsociology. Chicago:
University of Chicago Press, 1975.
[7] Hunter, op. cit.
[8] Godbout, Jacques T. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1999.
[9] D'Araújo, Maria Celina. Capital social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003,
p. 7.
[10] Godbout, op. cit.
[11] Putnam. "Pluribus unum: diversity and community in the Twentyfirst
century". Scandinavian Political Studies, vol. 30, nº 2, 2007, pp. 137174 (The
Johan Skytte Prize Lecture, 2006).
[12] Milícia está sempre entre aspas neste texto porque não se trata do modelo
de organização popular de autodefesa, do tipo "cidadão em armas defendendo sua
localidade". No Rio de Janeiro, é o nome dado a variadas formas de exercício da
segurança privada informal e para-estatal montadas a partir das associações de
moradores, algumas com a colaboração de ex-policiais, agentes penitenciários e
ex-militares, que podem também contar com moradores civis armados. A milícia
institui uma hierarquia entre os que andam armados e os moradores sem armas
(Zaluar, Alba e Conceição, Isabel Siqueira. "Favelas sob o controle das
milícias no Rio de Janeiro: que paz?". São Paulo em Perspectiva. vol. 21, nº 2,
pp. 89-101, jul. /dez. 2007).
[13] Hunter, op. cit.
[14] A cordialidade brasileira, por exemplo, pode ser entendida como uma
articulação entre o privado e o paroquial que nunca chega à ordem pública, na
qual deveria ser transformada em civilidade.
[15] Putnam. "Vamos jogar juntos". Rio Estudos Especial, maio 2003.
[16] Idem, Bowling alone..., op. cit., seção IV.
[17] Sampson, Robert. J., Raudenbush, Stephen, W. e Earls, F. "Neighbourhoods
and violent crime: a multilevel study of collective efficacy". Science, nº 277,
1997, pp. 918-24.
[18] Ibidem, p. 918.
[19] Ibidem.
[20] Zaluar. "Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e
violência". In: Vianna, Hermano. Galeras cariocas. Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ, 1997.
[21] Este entendimento de como se organiza uma vizinhança é tão importante hoje
na literatura que discute a violência e a criminalidade que existem vários
projetos de segurança pública baseados nele. Um deles é o que propõe a política
de tolerância zero para tornar a vizinhança mais segura, diminuindo a aceitação
de delitos e reprimindo qualquer transgressão à lei, tais como atravessar a rua
fora das faixas para pedestre, jogar lixo na rua, fazer pichação ou
mendicância. São várias as críticas à política de tolerância zero, porém, entre
as políticas propostas, está a "volta do patrulhamento a pé... e a cooperação
dos residentes" (Wendel, Travis e Curtis, Ric. "Tolerância zero: a má
interpretação dos resultados". Horizontes Antropológicos, ano 8, nº 18, dez.
2002, p. 276).
[22] Carneiro, Leandro Piquet e Young, Clifford. "Contextual effects on
criminal victimization risks: estimating the impact of social disorganization".
Paper apresentado no 31º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, MG, out. 2007. O trabalho de Carneiro e Young foi o único que, no contexto
do Brasil, afirmou ser impossível medir a eficácia coletiva.
[23] Putnam, "Vamos jogar juntos", op. cit. ; Idem, "Pluribus unum... ", op.
cit. ; D'Araújo, Capital social, op. cit. ; Field, John. Social capital.
Londres: Routledge, 2008.
[24] Sampson, Robert. J., Raudenbush, Stephen. W. e Earls, F. "Neighbourhoods
and violent crime... ", op. cit.
[25] Sampson, Robert J., Morenoff, Jeffrey D. e Gannon-Rowley, Thomas.
"Assessing neighborhood effects: social processes and new directions in
research". Annual Reviews Sociology, vol. 28, 2002, pp. 443-78.
[26] Ibidem.
[27] Isto foi também medido como vigilância ou guarda informal de crianças e o
monitoramento dos jovens em outros estudos citados.
[28] Putnam, Bowling Alone..., op. cit.
[29] Hunter, op. cit.
[30] Fedozzi, Luciano. "Participação e transformação da consciência social: o
orçamento participativo de Porto Alegre". In: Freury, Sonia e Subirats, Joan
(orgs.). Seminário internacional inovações locais frente a inseguranças
globais: Brasil e Espanha, 2007 (publicado em espanhol em Freury, Sonia, Subirats, Joan e Blanco, Ismael. Respuestas locales a
inseguridades globales. Barcelona: Fundació Cidob, 2008).
[31] Zaluar e Conceição, op. cit. ; Cano, Inácio (org.). Segurança, tráfico e
milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ONG Justiça Global, 2008.
[32] Ana Paula Alves Ribeiro, co-autora, contribuiu nessa parte do presente
artigo e deverá desenvolver sua tese de doutorado sobre o que está aqui
discutido, aprofundando a análise do associativismo vicinal no subúrbio
carioca.
[33] Zaluar e outros. "Pesquisa de vitimização do Rio de Janeiro, relatório
técnico". Rio de Janeiro: Núcleo de Pesquisa das Violências/Instituto de
Medicina Social/UERJ, 2007. Em 2005-2006, o Nupevi realizou
um inquérito domiciliar de vitimização cujo universo foi a população de 15 anos
ou mais na cidade do Rio de Ja neiro. Foram aplicados 3. 435 questionários
aleatoriamente em duzentos setores censitários, vinte domicílios em cada setor
e uma pessoa de 15 anos ou mais em cada domicílio, ou seja, a amostra foi
aleatória em três estágios. Em 2007, repetiu-se o mesmo instrumento em favelas
da cidade, contando 660 pessoas entrevistadas. Nas duas, procurou-se manter uma
fração de amostragem de aproximadamen te 1/1500.
[34] Talvez resida aqui o maior problema urbano na construção dos con domínios
fechados. Não tanto as cercas e muros físicos, mas a incapacidade de aprender a
interagir civilmente no espaço público, o que vem a explicar tanto a violência
dos jo vens oriundos de tais condomínios de classe média próspera, como a dos
jovens favelados que pouco vão ao asfalto.
[35] Esta variável foi montada por Mario F. G. Monteiro com uma grade para a
freqüência com que a pessoa conversa com os vizinhos, freqüência com que a
pessoa e seus vizinhos fazem gentilezas e/ou favores uns aos outros e para
quantos parentes e amigos moram na vizinhança da pessoa.
[36] Zaluar. A máquina e a revolta. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.
[37] Idem, "Gangues, galeras e quadrilhas... ", op. cit. ; Idem. Integração
perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
[38] Elias, Norbert e Dunning, Eric. Quest for excitement, sport and leisure in
the civilizing process. Oxford: Blackwell, 1993.
[39] Zaluar, "Para não dizer que não falei de samba". In: Schwarcz, Lilia
Moritz (org.), História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, vol. 4.
[40] Zaluar e Conceição, op. cit.
[41] Ibidem.