Raízes sociais e ideológicas do lulismo
Talvez no futuro, quando for escrita a crônica factual dos dois mandatos
presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva, o pleito de 29 de outubro de 2006
apareça como mera repetição dos resultados numéricos de quatro anos antes, em
que o candidato do PT venceu o do PSDB por uma diferença em torno de 20 milhões
de votos1. Remanescerá então encoberto, sob cifras quase idênticas, o
deslocamento que, com o aspecto superficial da consagração do lulismo, pode ter
significado, na verdade, um importante realinhamento político de estratos
decisivos do eleitorado.
A hipótese que desejamos sugerir neste artigo é que a emergência do lulismo
expressa um fenômeno de representação de uma fração de classe que, embora
majoritária, não consegue construir desde baixo as suas próprias formas de
organização. Por isso, aos esforços despendidos até aqui para analisar a
natureza do lulismo2, achamos conveniente acrescentar a combinação de idéias
que, a nosso ver, caracteriza a fração de classe que por ele seria
representada: a expectativa de um Estado o suficientemente forte para diminuir
a desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida. Diante desse arranjo
ideológico, uma possível nova hegemonia não seria "às avessas", como sugeriu
Francisco de Oliveira, ainda que, ao juntar elementos de esquerda e de direita,
cause a impressão de subverter a lógica dos argumentos3.
A percepção desse movimento profundo, que definiu a reeleição, foi dificultada
porque ele se deu sem mobilização e "sem fazer-se notar", como assinalou um
observador4. O silêncio provocou confusão à direita e à esquerda. Dez meses
antes da reeleição, a revista Vejapublicava que Lula seria derrotado porque, de
acordo com pesquisa do Ibope, 40% do apoio obtido em 2002 tinha se esfumado e a
"política assistencialista" não estava conseguindo segurar o eleitor de baixa
renda. "A disputa eleitoral de verdade se dará entre Serra e Alckmin", escrevia
Veja,mesmo avisando que previsões de longo prazo falhavam tanto quanto as
meteorológicas5. Abertas as urnas, Oliveira ainda duvidava da "interpretação
corrente" segundo a qual "o Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e ricos".
"Seria ótimo, se fosse plausível que os 40% de votos de Alckmin foram dos
'ricos', e que a votação de Lula foi exclusivamente dos 'pobres'", escreveu
Oliveira sobre o primeiro turno6.
A origem do mal-entendido é dupla. De um lado, houve um deslocamento
subterrâneo de eleitores não de baixa renda, mas de baixíssima renda, o qual
passou despercebido, de outro, porque se deu de modo concomitante ao
estardalhaço em torno do "mensalão", escândalo que teceu, a partir de maio de
2005, um cerco político-midiático ao presidente, deixando-o na defensiva por
cerca de seis meses7. No período do "mensalão", o governo efetivamente perdeu
parcela importante do suporte que trazia desde a eleição de 2002. Nas camadas
médias, essa rejeição desdobrou-se numa forte preferência por um candidato de
oposição à presidência em 2006. "Entre os brasileiros de escolaridade superior,
a reprovação a Lula deu um salto de 16 pontos percentuais, passando de 24% em
agosto para 40% hoje", escrevia a Folha de S. Pauloem 23 de outubro de 2005.
Três meses depois, porém, enquanto os mais ricos, seguindo na linha anterior,
optavam em massa (65%) pelo então pré-candidato do PSDB, entre os de renda
familiar de até cinco salários mínimos ocorria uma inflexão, com um aumento dos
índices de satisfação a respeito do mandato de Lula8. Sobretudo no fundo da
sociedade, onde circulam personagens de escassa visibilidade, houve uma
crescente inclinação, desde pelo menos o início de 2006, no sentido de manter
no Palácio do Planalto o ex-retirante pernambucano que tinha as mesmas origens
dos seus recém-apoiadores9.
A divergência entre os estratos de renda irá crescer ao longo de 2006, e os
números encontrados pelo Ibope perto do primeiro e do segundo turnos expressam
uma disputa socialmente polarizada, como mostram as Tabelas_1 e 210. Nelas, a
disposição de sufragar em Lula da parcela mais pobre inverte-se de maneira
linear à medida que aumenta o rendimento, de modo que os mais ricos dão folgada
maioria a Alckmin. O que atrapalhou a compreensão e levou analistas como
Oliveira a considerarem pouco plausível que os quase 40 milhões de votos em
Alckmin no primeiro turno fossem apenas dos "ricos" é a dualidade brasileira,
que grosso modotransforma em "classe média" todos (aí incluídos setores
assalariados de baixa renda) os que não pertencem à metade da população que tem
baixíssima renda. Lula foi eleito, sobretudo, pelo apoio que teve no segmento
de baixíssima renda, enquanto Alckmin contou, além do voto dos mais ricos, com
certa sustentação na fatia de eleitores de classe média baixa, que vagamente
corresponde ao que os especialistas de mercado chamam de "classe C". Na faixa
de mais de dois a cinco salários mínimos de renda familiar mensal, por exemplo,
Alckmin quase empatava com Lula às vésperas do primeiro turno (Tabela_1), mas
entre os eleitores de baixíssima renda (até dois salários mínimos de renda
familiar mensal), Lula aparecia com uma vantagem de 26 pontos percentuais sobre
Alckmin. Por isso, é verdadeira a interpretação de que o Brasil eleitoral se
dividiu entre pobres e ricos. A polarização social do pleito deu-se pela
implantação de Lula entre os eleitores de baixíssima renda, visível desde o
primeiro turno, assim como a de Alckmin, entre os eleitores de renda mais alta
(acima de dez salários mínimos de renda familiar mensal).
Os dados mostram que o lulismo foi expressão de uma camada social específica, e
o descolamento entre eleitores de baixíssima renda e de "classe média", que
apareceu nos debates pós-eleitorais sob a forma de "questionamento do real
papel dos chamados 'formadores de opinião'"11, outorgou um caráter único à
eleição de 2006. Em perspectiva comparada, as cientistas políticas Denilde
Oliveira Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky observaram que em 2002 o voto em
Lula "não estava especialmente associado com nenhum estrato social", enquanto
em 2006 "os eleitores de classe baixa se mostram significativamente mais
inclinados a dar seu voto a Lula"12. Na realidade, o único caso anterior de
polarização por renda em eleições presidenciais, desde a redemocratização,
surgira no segundo turno de 1989, sendo que naquela ocasião a candidatura Lula
estava, não por acaso, no lado oposto da linha que dividia pobres e ricos, como
notaram Wendy Hunter e Thimoty J. Power13. Enquanto Fernando Collor de Mello
alcançava vantagem de dez pontos percentuais na faixa de eleitores que recebiam
até dois salários mínimos de renda familiar mensal, no segmento mais alto quem
obtinha essa vantagem era Lula (Tabela_3).
Se no primeiro turno de 1989 já havia uma nítida tendência de
crescimentodoapoioa Collor coma quedadarenda, levandoa uma concentração do voto
nele entre os mais pobres, no campo oposto ("classe média") ocorria uma
dispersão de votos entre Lula, Brizola, Covas e Maluf, não caracterizando,
ainda, a polarização,que viria a ocorrer no segundo turno14. Em entrevista
concedida depois daquele pleito, Lula afirmava:
A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de
comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais
desfavorecidos da sociedade [...]. Nós temos amplos setores da classe
média com a gente-uma parcela muito grande do funcionalismo público,
dos intelectuais, dos estudantes, do pessoal organizado em
sindicatos, do chamado setor médio da classe trabalhadora15.
Consciente do peso eleitoral dos "mais desfavorecidos", ele acrescentava:
A minha briga é sempre esta: atingir o segmento da sociedade que
ganha salário mínimo. Tem uma parcela da sociedade que é
ideologicamente contra nós, e não há porque perder tempo com ela:não
adianta tentar convencer um empresário que é contra o Lula a ficar do
lado do trabalhador. Nós temos que ir para a periferia, onde estão
milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa
e comida
16.
Em trabalhos sobre a eleição de 1989, notei, entretanto, que a vitória de
Collor não decorria apenas de promessas fáceis. Havia uma hostilidade às
greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 até as vésperas da
primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo
maior. Observava-se um aumento linear da concordância com o uso de tropas para
acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um
mínimo de 8, 6%, entre os que tinham renda familiar acima de vinte salários
mínimos, a um máximo de 41, 6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso
era de apenas dois salários mínimos (Tabela_4). Em outras palavras, ao
contrário do esperado, os mais pobres eram mais hostis às greves do que os mais
ricos. Em parte, é essa inversão que faz a nova hegemonia parecer "às avessas".
À época, assinalamos que a resistência às greves e à candidatura Lula,
manifestada por eleitores de baixíssima renda, estava associada, além do mais,
a uma autolocalização intuitiva à direita do espectro ideológico17. Não
obstante, tratava-se de uma direita peculiar, uma vez que favorável à
intervenção do Estado na economia, como se pode ver na Tabela_5. Como resolver
a aparente contradição? Sugerimos a interpretação de que os eleitores mais
pobres buscariam uma redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por
meio de uma intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que
pudessem desestabilizar a ordem.
Para eleitores de menor renda, a clivagem entre esquerda e direita não estaria
em ser contra ou a favor da redução da desigualdade e sim em comoobtê-la.
Identificada como opção que colocava a ordem em risco, a esquerda era preterida
em favor de uma solução pelo alto, de uma autoridadejá constituída que pudesse
proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o sentido da
adesão intuitiva à direita (muitas vezes entendida como o que é direito ou como
sinônimo de governo versusoposição) no espectro ideológico e tornaria
inteligível o viés desfavorável a Lula.
O modelo de comportamento político desenhado acima tem antecedentes clássicos.
Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte18, revela que a projeção de anseios em
uma força previamente existente, que deriva da necessidade de ser constituído
como ator político desde o alto, é típica de classes ou frações de classe que
têm dificuldades estruturais para se organizar. A natureza do vínculo esclarece
por que o seu surgimento sempre causa surpresa. Como eles "não podem
representar-se, antes têm que ser representados"19, aparecem na política como
raio em céu azul, uma vez que surgem de cima para baixo, sem aviso prévio, sem
a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma
das classes subalternas quando ela se dá nos moldes típicos do século XIX, isto
é, dos partidos e movimentos de classe.
O fato de Collor ter decepcionado a base social que o elegeu ao provocar a
recessão de 1990/1991, levando à perda de suporte que facilitou o impedimento
em 1992, não mudou a estrutura de comportamento político que o pleito de 1989
iluminara. Em 1994 e 1998, o "conservadorismo popular", acionado pela inflação
e pelo medo da instabilidade, venceu Lula outra vez. Era relativamente claro
que havia um poder de veto das classes dominantes, o qual residia na capacidade
de mobilizar o voto de baixíssima renda. O que não se distinguia com nitidez
eram as raízes ideológicas do mecanismo, embora os levantamentos de opinião
indicassem permanente supremacia conservadora na distribuição do eleitorado
entre esquerda e direita. O campo da direita aparecia sempre tendo uma adesão
50% superior ao da esquerda, como se observa no Quadro_1, desequilíbrio que
decorria da inclinação dos eleitores de menor renda para a direita.
Nesse sentido, as derrotas de Lula em 1994 e 1998 podem ser entendidas como
reedições de 1989, apesar da estabilidade monetária ter se sobreposto, em 1994,
aos argumentos abertamente ideológicos utilizados por Collor (ameaça comunista)
em 1989. Tal como em 1989, as duas campanhas de Fernando Henrique Cardoso
mobilizaram os eleitores de menor renda contra a esquerda. Antonio Manuel
Teixeira Mendes e Gustavo Venturi demonstraram que, na esteira do Plano Real, o
melhor resultado de Lula em 1994 ocorreu entre os estudantes, entre os
assalariados registrados com escolaridade secundária ou superior e entre os
funcionários públicos. Já os trabalhadores sem registro formal, portanto,
desvinculados da organização sindical, deram os melhores resultados a Fernando
Henrique20. Em 1998, a coligação vencedora procurou convencer, com sucesso, os
eleitores mais pobres de que Cardoso seria o melhor condutor do país em meio à
crise financeira internacional que ameaçava a estabilidadeconquistada quatro
anos antes21. De acordo com Tarso Genro, "boa parte das massas excluídas
simplesmente repercutiram esta estratégia manipuladora" [...]. Para Genro, em
1998 "pesou significativamente, mais do que ocorreu com a eleição de Collor,
uma grande parte da população marginalizada, lumpesinada ou meramente excluída
do mundo da Lei e do Direito"22. Em decorrência, os argumentos da campanha de
Lula de que Fernando Henrique tinha abaixado "a cabeça para os banqueiros e
agiotas internacionais [...], aumentou os juros [...] e as empresas estão
fechando e demitindo"23 não atraíram mais do que os cerca de 30% de votos
válidos que pareciam, então, constituir o teto do candidato, quando, na
realidade, eram o teto da esquerda, socialmente limitada pela rejeição do
subproletariado no extremo inferior de renda.
Mesmo em 2002, depois de unir-se a um partido de centro - direita, anunciar um
candidato a vice de extração empresarial, assinar uma carta-compromisso com
garantias ao capital e declarar-se o candidato da paz e do amor, Lula tinha
menos intenção de voto entre os eleitores de renda mais baixa do que entre os
de renda superior. Hunter e Power notaram corretamente que "que em suas quatro
corridas presidenciais entre 1989 e 2002, a principal base de apoio a Lula
estava entre os eleitores dos níveis superiores de escolarização nos Estados
mais urbanizados e industrializados do Sul e do Sudeste"24. Em suma, a base
social de Lula e do PT expressavam as características da esquerda em uma nação
cuja metade mais pobre pendia para a direita.
Só depoisde assumir o governo, Lula obteve a adesão do segmento de classe que
buscava desde pelo menos 1989. "Lula perdeu intenções e, provavelmente, votos
entre alguns de seus eleitores 'tradicionais', 'decepcionados' com os
'escândalos'. Substituiu-os, porém, e compensou as perdas, com votos de 'não-
eleitores', pessoas que nunca haviam votado nele antes", afirma Marcos Coimbra,
diretor do Instituto Vox Populi25. Entre a eleição de 2002, comemorada como
sendo a da demorada ascensão da esquerdaem país de tradição conservadora, e a
reeleição de Lula por outra base social e ideológica, em outubro de 2006,
operou-se uma transformação que se faz necessário entender.
AS BASES MATERIAIS DO REALINHAMENTO
[...] as primeiras pesquisas feitas logo após o começo do governo
captaram uma nítida mudança nas atitudes dos eleitores de classe
popular, apontando para o aumento de sua auto-estima e da confiança,
de que o Brasil iria melhorar, agora que as políticas de governo
passariam a ter outra intenção e finalidades: um governo diferente,
com gente diferente, fazendo coisas diferentes26.
Mas só três anos depois da posse em primeiro de janeiro de 2003, quando outro
pleito já apontava no horizonte, é que tais "mudanças nas atitudes" se
expressaram na forma de uma adesão que salvou o presidente da morte política a
que parecia condenado pela rejeição da classe média.
Uma explicação para esse lapso de tempo emana da própria análise de Coimbra. De
acordo com ela, o "fundamento" da aprovação ao governo, que por sua vez levou
ao voto em Lula em 2006, "foi a sensação de eleitores de renda baixa e média de
que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos,
material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)"27.
Essa "sensação" não caberia no começo do mandato, marcado por política
econômica recessiva. No entanto, a partir do final de 2003, com o lançamento do
Programa Bolsa Família (PBF), inicia-se uma gradual melhora na condição de vida
dos mais pobres. No princípio apenas unificação de programas de transferência
de renda herdados da administração Fernando Henrique, o qual, por sua vez,
copiara a fórmula de governos petistas, aos poucos a quantidade de recursos
destinados ao PBF o converteu em uma espécie de renda mínima para todas as
famílias brasileiras que comprovassem situação de extrema necessidade. Em 2004,
o PBF recebeu verba 64% maior e, em 2005, ano do "mensalão", teve um aumento de
outros 26%, mais do que duplicando o número de famílias atendidas, de 3, 6
milhões para 8, 7 milhões, em dois anos. Entre 2003 e 2006, a Bolsa Família viu
o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de R$ 570 milhões de reais para
7, 5 bilhões de reais, atendendo a cerca de 11, 4 milhões de famílias perto da
eleição de 200628.
Diversos estudosencontraramindícios de queoPBF teve influência nos votos
recebidos por Lula em 2006. Elaine Cristina Licio e colaboradores verificaram,
por meio de survey, "no que se refere à atitude dos beneficiários do Programa",
que "a porcentagem de voto em Lula foi cerca de 15% maior no primeiro e segundo
turnos" em comparação com a obtida na média do eleitorado29. Em segundo lugar,
Yan de Souza Carreirão relaciona a alta votação de Lula nas regiões nordeste e
norte com o fato de o programa ter-se concentrado naquelas áreas. Lulateve,
noprimeiroturno, porexemplo, cercade60% de votos no Nordeste e apenas 33% no
Sul, sendo que o investimento do PBF na primeira região foi três vezes maior do
que na segunda30. Em observação mais segmentada, Nicolau e Peixoto notaram que
"Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais
recursos per capitado Bolsa Família"31, mostrando a repercussão do programa nos
chamados grotões, tipicamente o interior do Norte/Nordeste, que sempre fora
tradicional território do conservadorismo. Por fim, vale notar que, de acordo
com Coimbra, entre os que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria
eram mulheres de renda baixa, "o público alvo por excelência do Bolsa Família",
pois em geral são as mães que recebem o benefício32.
Assim, soa consistente a afirmação de que o PBF cumpriu um papel na vitória de
Lula. Porém, "a importância do Bolsa Família não deve ser subestimada e nem
exagerada", adverte Coimbra. "Sozinho não bastaria para explicar o resultado da
eleição"33, diz o diretor do Vox Populi. Cláudio Djissei Shikida e
colaboradores argumentam que raciocínios centrados no local de votação correm o
risco de apenas mostrar a coincidência geográfica de dois fatores, a saber, a
presença do PBF, dada a pobreza do lugar, e o voto em Lula, mas não a sua
relação causal. A Bolsa Família foi obviamente destinada em maior proporção às
regiões pobres e aos municípios de menor IDH. Mas o fato de a votação em Lula
ter sido maior nessas regiões e municípios não implica que ela fosse
causadapelo PBF ou só por ele. Fazendo uso de outro instrumental estatístico
para compulsar as tendências municipais, Shikida e colaboradores concluem:
O PBF mostrou alguma evidência de impacto positivo na eleição, porém
os resultados não se mostraram robustos. Mesmo se significativo
fosse, o valor do estimador seria bem menor do que o necessário para
que essa fosse a variável-chave para a compreensão da eleição de
Lula.
34
Shikida e colaboradores sugerem que o controle dos preços, como um componente
central do aumento do poder de compra entre as camadas pobres, pudesse ser mais
explicativo da virada ocorrida em 2006. Chamam a atenção, por exemplo, para o
fato de que entre 2003 e 2006, a cesta básica subiu 8, 5% e 10, 4% em Porto
Alegre e São Paulo, mas, em Recife e Fortaleza, a variação foi de 4% e de - 3%.
Terá sido coincidência Lula ter perdido no Rio Grande do Sul e em São Paulo nos
dois turnos, ao passo que no Estado de Pernambuco recebeu 82% dos votos no
segundo turno e no Ceará, 75%35?
Na mesma linha, de mirar além da Bolsa Família, Hunter e Power lembram que o
aumento real de 24, 25% no salário mínimo durante o primeiro mandato teve um
impacto mais abrangente do que o PBF. Além disso, a Bolsa Família e a elevação
do salário mínimo, somadas, dinamizaram as economias locais menos
desenvolvidas,
[...] que dependem pesadamente de despesas pessoais de pequena escala
para o seu sustento. Assim, não é surpreendente que as vendas do
varejo tenham subido dramaticamente nos últimos três anos no norte e
nordeste do Brasil [...]. Também não é surpreendente que essas sejam
as duas regiões nas quais o comparecimento eleitoral e o apoio a Lula
tenham crescido em 2006 comparado a 200236.
O primeiro aumento importante do salário mínimo ocorreu em maio de 2005, e é
razoável imaginar que a poderosa combinação Bolsa Família - salário mínimo
tenha demorado alguns meses para produzir efeitos. Mas além do aumento obtido
pelos milhões que recebem um salário mínimo da Previdência Social, outra
possibilidade aberta aos aposentados, às vezes principal fonte de recursos em
pequenas comunidades, foi o uso do crédito consignado. O crédito consignado fez
parte de uma série de iniciativas oficiais que tinha por objetivo expandir o
financiamento popular, que incluiu um aumento expressivo do empréstimo à
agricultura familiar, do microcrédito e da bancarização de pessoas de
baixíssima renda.
Criado em 2004, o crédito consignado permitiu aos bancos descontar empréstimos
em parcelas mensais retiradas diretamente da folha de pagamentos do assalariado
ou do aposentado. A redução do risco decorrente do pagamento garantido
acarretou uma queda em quase treze pontos percentuais da taxa de juros, e, em
2005, depois de crescer quase 80%, o crédito consignado colocava em circulação
dezenas de bilhões de reais, usados, em geral, para o consumo popular. Ainda no
capítulo da assistência social, com a promulgação do Estatuto de Idoso, em
janeiro de 2004, a idade mínima para receber o Benefício de Prestação
Continuada (BPC), que paga um salário mínimo para idosos ou portadores de
necessidades especiais cuja renda familiar per capita seja inferior a ¼ de
salário mínimo, caiu de 67 para 65 anos. Em 2006, 2, 4 milhões de cidadãos
recebiam o BPC.
Além dessas medidas de alcance geral, que propiciaram a ativação de setores
antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa
renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de
eletrificação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de
cisternas no semi-árido etc. favoreceram o setor de baixíssima renda. Carreirão
reproduz um cruzamento realizado pelo Datafolha em junho de 2006, que mostra a
influência de ser atendido por programa governamental sobre a disposição de
reeleger o presidente. Os números mostram que a intenção de voto em Lula pulava
de 39%, na média, para 62%, quando o entrevistado participava de algum programa
federal37.
O tripé formado pela Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do
crédito, somado aos referidos programas específicos, resultaram em uma
diminuição significativa da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou
a crescer e o emprego a aumentar. É isso que Marcelo Neri chama de "o Real de
Lula": "No biênio 1993 - 1995 a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria
cai 18, 47% e, no período 2003 - 2005, a mesma cai 19, 18%"38.
Em particular no ano de2005, quando eclodiu o escândalo do"mensalão", ocorreu,
segundo classificação de Waldir Quadros, a primeira redução significativa da
miséria desde o Plano Real39, presumivelmente em conseqüência do conjunto de
medidas tomadas pelo governo Lula. Assim, enquanto os atores políticos tinham a
atenção voltada para a seqüência de denúncias do "mensalão", o governo produzia
em silêncio o "Real do Lula" que, diferentemente do original, beneficiava,
sobretudo, a camada da sociedade que não aparece nas revistas.
FRAÇÃO DE CLASSE E IDEOLOGIA
Examinadas em seu conjunto, as ações governamentais do primeiro mandato vão
muito além de simples "ajuda" aos pobres. Sem falar nos programas específicos,
o aumento do salário mínimo, a expansão do crédito popular com aumento da
formalização do trabalho (o desemprego caiu de 10, 5% em dezembro de 2002 para
8, 3% em dezembro de 2005)40 e a transferência de renda, aliados à contenção
depreços, sobretudo da cesta básica (e em alguns casos deflação, como de
corrência da desoneração fiscal), constituem uma plataforma no sentido de
traçar uma direção política para os anseios de certa fração de classe. Não
apenas porque objetivamente foram capazes de aumentar a capacidade de consumo
de milhões de pessoas de baixíssima renda, como atesta o acesso em grande
escala à "classe C", mas também porque sugerem um caminho a seguir: manutenção
da estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo para os setores de
baixa renda. Nesse sentido, tais ações colocam Lula à frente de um projeto, que
é compatível com aspectos de sua biografia.
Coimbra, orientador de diversas pesquisas quantitativas e qualitativas no
período, chama a atenção para o fato de Lula ser o político de origem mais
humilde a ter chegado ao topo do sistema, assim como para o fato de "a intensa
campanha negativa que sofreu em suas tentativas anteriores" ter feito dele
alguém que mexeu com a "auto-imagem e o amor-próprio" do eleitorado popular41.
Convém lembrar que Lula é o primeiro presidente que viveu a experiência da
miséria, o que não é irrelevante, dada a sensibilidade que demonstrou, uma vez
na presidência, para a realidade dos miseráveis. Por isso, é plausível a
suspeita de Francisco de Oliveira de que a eleição de 2006 comprove ter Lula se
elevado "à condição de condottieree de mito"42.
Oliveira acrescenta, entretanto, que é um tipo de liderança que "despolitiza a
questão da pobreza e da desigualdade", o que leva o autor a questionar a
natureza da hegemonia que estaria surgindo e a propor que ela agiria às
avessas, isto é, para consolidar a "exploração desenfreada", em lugar de minar
o modelo superexplorador. À primeira vista, um lulismo despolitizante seria
compatível com a "síndrome do Flamengo", hipótese formulada por Fábio Wanderley
Reis para explicar a ascensão do MDB nos anos de 1970 e depois generalizada
como visão estrutural da política brasileira. Esse ponto de vista sustenta que
um eleitorado de baixa escolaridade terá necessariamente que orientar-se por
"imagens toscas"43, não se devendo esperar que ele esteja informado das
orientações substantivas adotadas pelos atores nem que se guie por elas. Da
mesma maneira que o voto popular no MDB não simbolizava, para espanto do senso
comum, rejeição ao governo militar, o voto em Lula não representaria qualquer
tipo de opção ideológica, antes pelo contrário, seria fruto de uma
desideologização. As opções populares, regidas por mecanismos de identificação
acionada por imagens difusas, nada expressariam de substantivo.
Esse esquema interpretativo foi relançado pelo Estudo Eleitoral Brasileiro
(Eseb) que, em dezembro de 2006, detectou declínio do apoio à esquerda quando
comparado a 2002 (de 25, 7% para 9%). O resultado do Eseb-2006, discrepante do
encontrado pelas pesquisas resumidas no Quadro_1, as quais indicam uma
estabilidade das preferências ideológicas44, foi acompanhado de um aumento
equivalente do número de entrevistados que não sabia se posicionar na escala
(de 23, 2% para 41, 8%). O Eseb-2002 já encontrava à direita um número dez
pontos percentuais menor de eleitores do que a Criterium - 2002 (28% contra
39%), sendo em compensação sete pontos percentuais maior a quantidade de
entrevistados que não se classificavam na escala (23% no Eseb-2002 contra 16%
na Criterium-2002). Ou seja, aparentemente o Eseb-2006 acentuou uma tendência
já existente no Eseb-2002 (a de detectar um número superior de eleitores que
não sabem se colocar no espectro ideológico) e, por caminhos diversos, chegou a
uma proporçãoentre esquerda e direita mais próxima à das demais pesquisas,
embora no conjunto continue a ressaltar o número muito superior de
entrevistados que não sabem se localizar na escala: 41, 8% no Eseb-2006 contra
16% da pesquisa da Fundação Perseu Abramo de novembro de 2006.
O aumento dos que não se classificavam na escala registrado pelo Eseb-2006 foi
entendido por Carreirão como corroboração de que "após o primeiro mandato do
presidente Lula ocorreu", na percepção dos eleitores brasileiros, "uma diluição
das diferenças ideológicas entre os partidos (e lideranças políticas)"45.
Conclusão semelhante à de Holzhacker e Balbachevsky, segundo as quais ocorrera
"um esvaziamento da dimensão ideológica e do confronto de classes para explicar
a vitória de Lula nas eleições de 2006"46. Nessa visão, é como se, depois do
primeiro mandato de Lula, uma parte dos eleitores localizados à esquerda
passasse a seguir o caminho já antes trilhado por cerca de ¼ dos eleitores, e
deixasse de saber como se classificar na escala ideológica, retirando desta a
influência que antes pudesse ter.
Se de um lado teria havido perda de substância ideológica, Carreirão sustenta
que os "sentimentos partidários", a saber, tanto a preferência como a rejeição
a determinado partido, "mostraram-se associados à decisão do voto". Pergunta
ele, então, se estaríamos diante do que havia sido previsto por Fábio Wanderley
Reis e Mônica Mata Machado de Castro em 1992 quando, inspirados pela noção de
"síndrome do Flamengo", previam, em artigo que analisava dados colhidos no
começo da reestruturação partidária (1982), que decantada a nova configuração
se divisariam novamente "as linhas básicas de clivagem", com uma sigla
adquirindo "a imagem de partido dos pobres - ou dos trabalhadores, desde que
esta expressão seja tomada de maneira suficientemente difusa para tornar-se
equivalente àquela"47. Nesse script, o PT estaria agora substituindo o MDB,
tanto na falta de conteúdo como na capacidade de reter a lealdade popular.
Hunter e Power, contudo, detectam sinais de que, na eleição de 2006, o PT
nãoacompanhou Lula em sua troca de base. Lula teria deixado um eleitorado
tipicamente urbano e escolarizado por um francamente popular, mas o mesmo não
teria ocorrido com o PT.
A tendência do apoio ao partido na Câmara dos Deputados, comparado ao
de Lula, é cada vez mais incongruente. Enquanto Lula fez
impressionantes avanços nas regiões mais atrasadas do país (os
grotões, o mais duradouro calcanhar de Aquiles do PT), a fortaleza do
partido continua a ser a área mais urbana e industrializada do
Brasil48.
Em outras palavras, Lula foi mais sufragado quanto menor o IDH do Estado, mas a
votação da bancada federal do PT manteve-se associada aos de maior IDH49. Em
conseqüência, Lula teve particular sucesso no Nordeste e no Norte, ao passo que
a votação do PT continuou relevante no Sudeste e no Sul. Por isso, Lula teria
crescido entre o primeiro turno de 2002 e o de 2006, passando de 46, 6% para
48, 6% dos votos válidos, enquanto a bancada federal petista caiu, de 91 para
83 eleitos50.
A desconexão entre as bases do lulismo e as do petismo em 2006 pode significar
que entrou em cena uma força nova, constituída por Lula à frente de uma fração
de classe antes caudatária dos partidos da ordem e que, mais do que um efeito
geral de desideologização e despolitização, indicava a emergência de
outraorientação ideológica, que antes não estava posta no tabuleiro. Parece-nos
que o lulismo, ao executar o programa de combate à desigualdade dentro da
ordem, confeccionou nova via ideológica, com a união de bandeiras que não
pareciam combinar.
A "continuidade do governo Lula com o governo FHC" na política macroeconômica -
"baseada em três pilares: metas de inflação, câmbio flutuante e superávit
primário nas contas públicas"51 - foi uma decisão política e ideológica. A
elevação do superávit primário para 4, 25% do PIB, a concessão de independência
operacional ao Banco Central, que teve à sua frente um deputado federal eleito
pelo PSDB com autonomia para determinar a taxa de juros, e a inexistência de
controle sobre a entrada e a saída de capitais foram o modo encontrado para
assegurar um elemento vital na conquista do apoio dos mais pobres: a manutenção
da ordem.
Nossa hipótese é de que o governo se afastou de aspectos do programa de
esquerda adotado pelo PT até o final de 2001, o qual criticava "a estabilidade
de preços [...] alcançada com o sacrifício de outros objetivos relevantes, como
o crescimento econômico", a abolição das "restrições ao movimento de capitais"
e a Lei de Responsabilidade Fiscal por tolher "elementos importantes de
autonomia dos entes federados, engessando, em alguns casos, os investimentos em
políticas sociais"52, com a finalidade de impedir que uma reação do capital,
voltada para criar dificuldades à mudança, provocasse instabilidade econômica e
atingisse os excluídos das relações econômicas formais. Para trabalhadores com
carteira assinada e organização sindical, a luta de classes em regime
democrático oferece alternativas de autodefesa em momentos de instabilidade.
Mas os que não podem lançar mão de instrumentos equivalentes, por não estarem
organizados, seriam vulneráveis à propaganda oposicionista contra a "bagunça".
Os anos FHC legaram um pacto com a burguesia que envolvia juros altos,
liberdade de movimento dos capitais e contenção do gasto público. Se é verdade
que o desemprego resultante inviabilizou o sonho pessedebista de vinte anos
seguidos no poder (a perene quimera da presidência rooseveltiana), também é
certo que o Real conquistara o eleitorado popular. Se nossa hipótese estiver
correta, a continuidade do pacote "FHC" foi posta pela burguesia como condição
de não haver "guerra" de classes e conseqüente risco de o governo ser acusado
de destruir o Real.
Não é aqui o lugar para discutir se, acaso fosse tentada outra via, implicando
algum grau de confronto com o capital, teria sido exeqüível impor outra
correlação de forças. O fato é que o governo preferiu conter a subida dos
preços pelo caminho ortodoxo, aprofundando as receitas neoliberais, como foi o
caso da combinação de corte no gasto público e aumento de juros em 2003. Com a
redução da demanda e a volta dos dólares que haviam fugido com medo de um
governo de esquerda, a inflação, que tinha alcançado a marca de 12, 53% em
2002, foi reduzida a 9, 3% em 2003, 7, 6% em 2004 e 5, 69% em 2005. O
presidente vocalizou, então, o discurso conservador de que o seu governo não
adotaria qualquer plano que pusesse em risco a estabilidade, preferindo
administrar a economia com a "prudência de uma dona de casa". Se ao fazê-lo
estabelecia um hiato em relação ao seu próprio partido, em troca criava uma
ponte ideológicacom os mais pobres.
Porém se tivesse ficado nisso, só repetiria o relativo sucesso do primeiro
mandato de FHC, o qual não provocou um realinhamento do eleitorado, apesar de
emplacar o discurso de que "tudo é um processo", equivalente tucano da
"prudência da dona de casa". O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo
da ortodoxia econômica, construir uma substantiva política de promoção do
mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da
estabilidade, corresponde nada mais nada menos que à realização de um completo
programa de classe. Não o da classe trabalhadora organizada, cujo movimento
iniciado no final da década de 1970 tinha por bandeira a "ruptura com o atual
modelo econômico"53, mas à fração de classe que Paul Singer chamou de
"subproletariado" ao analisar a estrutura social do Brasil no início dos anos
de 1980.
Subproletários são aqueles que "oferecem a sua força de trabalho no mercado sem
encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua
reprodução em condições normais"54. Estão nessa categoria "empregados
domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores
destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes"55. Para
encontrar uma maneira de quantificá-los, Singer usou informações sobre ocupação
e renda fornecidas pela PNAD de 1976, concluindo que seria razoável considerar
subproletários os que tinham renda de até um salário mínimo per capitae metade
dos que tinham renda de até dois salários mínimos per capita56. De acordo com
esse critério, 63% do proletariado era constituído por subproletários57. Em
números absolutos, significava dizer que dos 29, 5 milhões de proletários
existentes no Brasil naquela época, 18, 6 milhões faziam parte da fração
subproletária da classe. Dos outros participantes da População Economicamente
Ativa (PEA), 8 milhões seriam pequeno - burgueses e 1, 3 milhão, burgueses58.
Em outras palavras, o subproletariado constituía 48% da PEA.
Apesar de não dispormos de uma atualização para o trabalho realizado por
Singer, a lógica permite supor que os processos de aumento da produtividade,
desindustrialização, desemprego estrutural, subemprego, precarização do
trabalho em geral e crescimento da pobreza que acompanharam a implantação do
neoliberalismo nos anos de 1990 tenham, no mínimo, mantido a proporção de
subproletários no proletariado em geral. Vai nessa direção Oliveira, em texto
originalmente publicado em 2003, quando afirma que
[...] o trabalho sem-formas inclui mais de 50% da força de trabalho,
e o desemprego aberto saltou de 4% no começo dos anos 1990 para 8% em
2002, segundo a metodologia conservadora do IBGE; entre o desemprego
e o trabalho sem-formas, transita, entre o azar e a sorte, 60% da
força de trabalho brasileira59.
Em 1980, 44% das famílias no Brasil tinham renda de até dois salários mínimos60
e um quarto de século depois, 47% do eleitorado estava nessa faixa de renda61.
Em virtude de seu tamanho, o subproletariado encontra-se no centro da equação
eleitoral brasileira, e seu coração está no Nordeste. Não somente porque nessa
região empobrecida, que é a segunda mais populosa do país, habitam boa parte
dos subproletários, mas também porque dela irradiam aqueles que buscam
oportunidade no centro capitalista, o Sudeste. Nucleado no Nordeste, onde conta
com elementos biográficos, mas estendendo-se para o conjunto do país, o
lulismo, segundo indicam os dados eleitorais de 2006, pode ter fincado raízes
duradouras no subproletariado brasileiro.
E AGORA, JOSÉ?
Como vimos, a persistência do que poderíamos chamar de "conservadorismo
popular" marca a distribuição das preferências ideológicas no Brasil pós -
redemocratização, com a direita reunindo sempre cerca de 50% mais eleitores do
que a esquerda. Gustavo Venturi mostra que a pendência para a direita do
eleitorado de menor escolaridade (que está associada à renda), já observada em
1989, continuava presente quase duas décadas depois. Em 2006, enquanto os
eleitores de escolaridade superior dividiam-se por igual entre os campos da
esquerda (31%), do centro (32%) e da direita (31%), entre os que freqüentaram
até a quarta série do ensino fundamental, a direita tinha 44% de preferência,
mais do que triplo de adesão que tinha a esquerda (16%) e o centro (15%)62.
Essa é a explicação para a conclusão de Venturi: "Passadas mais de duas décadas
de democracia, a construção de uma hegemonia político-cultural identificada
como de esquerda não avançou"63. Em que pese o sucesso do PT e da CUT, a
esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, uma fração de
classe particularmente difícil de organizar. O subproletariado, a menos que
organizado por movimentos como o MST, tende a ser politicamente constituído
desde cima, como descobriu Marx a respeito dos camponeses da França em 1848.
Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que
possa, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações.
Buscamos aqui mostrar que, na ausência de um avanço da esquerda, o primeiro
mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado,
amoldando-se a ele, mais do que o modelando, porém, ao mesmo tempo,
constituindo-o como ator político. Isso implicou um realinhamento do eleitorado
e a emergência de uma força nova, o lulismo, tornando necessário um
reposicionamento dos demais segmentos.
O discurso de Lula em defesa da estabilidade tirou a plataforma a partir da
qual o centro mobilizava os mais pobres, sobrando-lhe apenas o recurso às
denúncias de corrupção, assunto limitado à classe média. Isso implicou um
aumento dos votos para Lula à direita, como se pode verificar na comparação
entre as Tabelas_6 e 7, limitando ao centro a base da oposição. Diante da
dificuldade de ganhar eleições presidenciais só com a classe média, os
oposicionistas não sabem para aonde ir.
Em 2002, embora os índices de Lula tivessem aumentado em todos os segmentos, a
tendência permanecia a de 1989: aumento da intenção de voto conforme se
caminhava da direita para a esquerda. Em uma situação como essa, o centro ainda
tinha chances de recuperar, adiante, o eleitorado de direita e sonhar com uma
volta ao Planalto, sobretudo se a ordem estivesse ameaçada64. Em 2006, como
reflexo do realinhamento, o voto em Lula sofre uma mudança ideológica: aumenta
em direção aos extremos, tanto esquerdo como direito, e cai em direção ao
centro (Tabela_7). O fato de Lula receber votos à esquerda e à direita de modo
equivalente seria o reflexo do realinhamento em curso, a partir do qual Lula
passa a representar uma opção nova, que mistura elementos de esquerda e de
direita, contra uma alternativa de classe média organizada em torno de uma
formulação de centro.
Para a esquerda, fica a tarefa de redefinir o discurso de classe à sombra de
uma liderança popular no sentido pleno da palavra. Não será surpresa se tiver
que se defrontar, outra vez, com a impregnação de imagens que marcaram a era
Vargas. Tem razão Francisco de Oliveira quando afirma que há "um fenômeno novo"
em curso, que "não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação
exercidas ao longo da existência do Brasil"65 (embora não seja a "hegemonia às
avessas" e sim, talvez, uma efetiva representação do subproletariado), mas há
sintomas de que, como soe acontecer na história, o novo possa buscar no passado
a linguagem em que se expressar, como lembra Marx nas primeiras páginas de O 18
Brumário.
O popularque havia ficado fora de moda, seja pela retórica da modernização, ao
centro, seja pelo discurso de classe, à esquerda, está de volta. Diferentemente
da experiência peessedebista, o "Real de Lula" veio acompanhado de uma mensagem
que faz sentido para os de menor renda: pela primeira vez o Estado brasileiro
olha para os mais frágeis e, portanto, se popularizou. Essa é a razão pela qual
o presidente insiste que "nunca na história deste país... etc. etc. ".
Irritados, os supostos "formadores de opinião" não percebem que Lula não está
se dirigindo a eles e insistem na tecla de que a história não começou com Lula,
o que é verdade, mas ouvido vários degraus abaixo, o bordão adquire outro
sentido.
O relativo desinteresse de Lula pelos "formadores de opinião" significa que o
realinhamento tirou centralidade dos estratos médios, que eram mais importantes
no alinhamento anterior. Nele, a esquerda organizava segmentos baixos e médios
da "classe média", notadamente operários industriais e servidores públicos, em
torno de uma ideologia de esquerda, isto é, do discurso de classe. O centro
agregava as classes médias ao redor da modernização do capitalismo e mobilizava
o subproletariado contra a esquerda nos momentos cruciais. Assim, o conflito
político geral era filtrado pelo debate entre os setores médios.
À medida que passou a ser sustentado pela base subproletária, Lula obteve uma
autonomia bonapartista (sem qualquer conotação militar). Com ela, criou um
ponto de fuga para a luta de classes, que começou a ser arbitrada desde cima ao
sabor da correlação de forças. Se a reforma da previdência, que tirava
benefícios do servidor público, passou, a reforma trabalhista, que visava tirar
direitos dos assalariados, foi adiada sine die, e assim por diante.
Árbitro acima das classes, o lulismo não precisa afirmar que o povo alcançou o
poder ou que "os dominados comandam a política", como na formulação que
Oliveira foi buscar na África do Sul pós-apartheid66. Ao incorporar tanto
pontos de vista conservadores, principalmente o de que a conquista da igualdade
não requer um movimento de classe auto-organizado que rompa a ordem
capitalista, como progressistas, a saber, o de que um Estado fortalecido tem o
dever de proteger os mais pobres, independentemente do desejo do capital, ele
achou em símbolos dos anos de 1950 a gramática necessária. A noção antiga de
que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo se sobrepunha a todos
os outros poderá cair como uma luva para o próximo período. Agora enunciada por
um nordestino saído das entranhas do subproletariado, ganha uma legitimidade
que talvez não tenha tido na boca de estancieiros gaúchos. Por isso, se a
hipótese do realinhamento se confirmar, o debate sobre o populismo ressurgirá
das camadas pré-sal anteriores a 1964, em que parecia destinado a dormir para
todo o sempre.
ANDRÉ SINGER é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de
São Paulo.
[1] No segundo turno de 2002, Lula teve 52. 788. 428 votos contra 33. 366. 430
votos para José Serra. No segundo turno de 2006, Lula ficou com 58. 295. 042
votos, contra 37. 543. 178 votos para Geraldo Alckmin.
[2] Ver, por exemplo, Viana, Gilney. "O PT e o lulismo", 2007, <www.pt.org.br>,
acessado em 25/08/2009; Simões, Renato. "Duas agendas: na
crise, de duas, uma", 2009, <www.pt.org.br>, acessado em 25/08/2009. Em outra vertente, e de modo mais ligeiro, ver a menção ao lulismo na
entrevista de Carlos Augusto Montenegro ao jornal Valor, 23/09/2009, intitulada
"Identificação ao PT derrota Dilma".
[3] Ver Oliveira, Francisco de. "Hegemonia às avessas". Piauí, nº 7, jan. 2007.
[4] Amaral, Roberto. "As eleições de 2006 e as massas: uma emergência
frustrada?" <www.psbnacional.org.br>, acessado em 25/08/2009.
[5] Veja, nº 1936, 21/12/2005, p. 55: "De agosto para cá ,
segundo o Ibope, Lula perdeu 9 pontos porcentuais entre aqueles que, até a
eclosão da crise, eram seus eleitores mais fiéis: brasileiros que ganham até um
salário mínimo".
[6] Oliveira, op. cit. No primeiro turno de 2006, que ocorreu a primeiro de
outubro, Lula teve 46. 662. 365 votos e Geraldo Alckmin, 39. 968. 369, Heloísa
Helena, 6. 575. 393 e Cristovam Buarque, 2. 538. 544.
[7] Usando balizamentos de mídia, pode-se dizer que a fase aguda do "mensalão"
iniciou-se com a reportagem de Vejaque começou a circular em 14 de maio de 2005
e terminou com a entrevista presidencial ao programa Roda Viva, da TV Cultura
de São Paulo, em 7 de novembro do mesmo ano.
[8] Folha de S. Paulo, 5/02/2006.
[9] Ver resultados das pesquisas Datafolha nas edições da Folha de S. Paulode
23/11/2005 e 5/02/2006.
[10] Agradeço ao Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp a cessão de
dados do Ibope/2006 utilizados neste artigo e a Gustavo Venturi a cessão de
dados da Fundação Perseu Abramo.
[11]Amaral, op. cit. , p. 9.
[12] Holzhacker, Denilde e Balbachevsky, Elizabeth. "Classe, ideologia e
política: uma interpretação dos resultados das eleições de 2002 e 2006".
Opinião Pública, vol. 13, nº 2, nov. 2007, pp. 294 - 96.
[13] Hunter, WendyePower, Thimoty J. "Rewarding Lula: executive power, social
policy, and the brazilian elections of 2006". Latin American Politics and
Society, vol. 49, nº 1, 2007, p. 4.
[14] Singer, André. "Collor na periferia: a volta por cima do populismo?". In:
Lamounier, B. (org. ), De Geisel a Collor, o balanço da transição. São Paulo:
Sumaré, 1990, p. 138.
[15] Idem. Sem medo de ser feliz. São Paulo: Scritta, 1990, pp. 98-99.
[16] Ibidem, p. 98.
[17] Sobre os dados que evidenciam a adesão intuitiva à direita, ver Singer, A.
Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. São Paulo: Edusp, 2000.
[18] Marx, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Paz e Terra, 1986,
p. 116.
[19] Ibidem.
[20] Mendes, Antonio Manuel Teixeira e Venturi, Gustavo. "Eleição presidencial:
o Plano Real na sucessão de Itamar Franco". Opinião Pública, vol. 2, nº 2, dez.
1994, pp. 43 - 45.
[21] "Muitos votaram pela reeleição porque Fernando Henrique Cardoso tinha
apoio internacional, do qual Lula carecia" (Singer, Paul. "No olho do furacão".
Teoria e Debate, nº 39, out.-dez. 1998, p. 22).
[22] Genro, Tarso. "Um confronto desigual e combinado". Teoria e Debate, nº 39,
out.-dez. 1998, p. 5.
[23] Almeida, Jorge. Marketing político, hegemonia e contra-hegemonia. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002, p. 219.
[24] Hunter e Power, op. cit. , p. 4. Tradução minha (AS).
[25] Coimbra, Marcos. "Quatro razões para a vitória de Lula". Cadernos Fórum
Nacional, nº 6, fev. 2007, p. 7, grifos meus.
[26] Ibidem, p. 13.
[27] Ibidem, p. 11.
[28] Sobre o crescimento do Programa Bolsa Família, ver Nicolau, Jairo e
Peixoto, Vitor. "As bases municipais da votação de Lula em 2006". Cadernos
Fórum Nacional, nº 6, fev. 2007, p. 20; Araújo, José Prata.
Um retrato do Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 155.
[29] Licio, Elaine Cristina, Rennó, Lucio R. e Castro, Henrique Carlos de O.
de. "Bolsa Família e voto na eleição presidencial de 2006: em busca do elo
perdido". Opinião Pública, vol. 15, nº 1, jun. 2009, p. 43.
[30] Carreirão, Yan de Souza. "Evolução das opiniões do eleitorado durante o
governo Lula e as eleições presidenciais brasileiras de 2006", 2007,
<www.waporcolonia.com>, acessado em 30/08/2009.
[31] Nicolau e Peixoto, op. cit. , p. 21.
[32] Coimbra, op. cit. , p. 7.
[33] Idem, ibidem.
[34] Shikida, Cláudio Djissey e outros. "'It's the economy, companheiro!': an
empirical analysis of Lula's re-election", 2009, <http://works.bepress.com>,
acessado em 30/08/2009. A citação é da versão em português do
mesmo artigo.
[35] Idem, ibidem.
[36] Hunter e Power, op. cit. , p. 16, trad. minha.
[37] Carreirão, op. cit.
[38] Neri, Marcelo. "Miséria, desigualdade e políticas de renda: o Real do
Lula", 2007, <www3.fgv.br>, acessado em 30/08/2009.
[39] Holzhacker e Balbachevsky (op. cit. , p. 289), reproduzem interessante
estudo de Waldir Quadros, segundo o qual a massa de miseráveis teria caído de
38% em 2004 para 22% em 2005.
[40] Dados do IBGE citados por Araújo, op. cit. , p. 145.
[41] Coimbra, op. cit. , p. 12.
[42] Oliveira. "Hegemonia às avessas", op. cit.
[43] Reis, Fábio Wanderley. "Participação política". Valor, 07/07/2008.
[44] O fato de o Eseb - 2006 ter ido a campo em dezembro, nove meses depois da
pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo (FPA) que consta do Quadro_1,
não chega a constituir explicação para a diferença, pois nova rodada da FPA, em
novembro de 2006, encontrou uma diminuição pouco significativa da esquerda (de
26% em março para 23% em novembro) e uma estabilidade nas demais posições,
inclusive no número dos que não sabiam se localizar (16%).
[45] Carreirão. "Identificação ideológica, partidos e voto na eleição
presidencial de 2006". Opinão Pública, vol. 13, nº 2, nov. 2007, p. 332.
[46] Holzhacker e Balbachevsky, op. cit. , p. 304.
[47] Reis, Fábio Wanderley e Castro, e Mônica Mata Machado de. "Regiões, classe
e ideologia no processo eleitoral brasileiro". Lua Nova, nº 26, 1992, p.131.
[48] Hunter e Power, op. cit. , p. 8, trad. minha.
[49] Ibidem, p. 11.
50 Ibidem, p. 7.
[51] Araújo, op. cit. , p. 75.
[52] Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores. "Concepção e diretrizes
do programa de governo do PT para o Brasil", mar. 2002, pp. 20, 21 e 25.
[53] Ibidem, p. 15.
[54] Singer, P. Dominação e desigualdade. São Paulo: Paz eTerra, 1981, p. 22.
[55] Ibidem, p. 83.
[56] Ibidem, p. 86.
[57] Ibidem, p. 129.
[58] Ibidem, p. 108.
[59] Oliveira. "Política numa era de indeterminação: opacidade e encantamento".
In: Oliveira, Francisco de e Rizek, C. A era da indeterminação. São Paulo:
Boitempo, 2007, p. 34.
[60] Singer, P. Repartição da renda: pobres e ricos sob o regime militar. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 42.
[61] "Segundo o Datafolha, os eleitores com renda de até dois salários mínimos
representam 47% do total", publicou a Folha de S. Pauloem 08/10/2006.
[62] Venturi, Gustavo. "Esquerda ou direita?". Teoria e Debate, nº 75, jan.-
fev. 2008, p. 39. As posições no espectro ideológico foram
agregadas em 1 e 2 = esquerda;3, 4 e 5 = centro; 5 e 6 = direita. Dados de
pesquisa da Fundação Perseu Abramo realizada com uma amostra nacional de 2. 400
entrevistados em novembro de 2006.
[63] Idem, ibidem.
[64] Acredito que em virtude da existência de uma "direita popular", o centro é
a posição mais associada à classe média conservadora no Brasil e não a direita,
como ocorre em outras formações sociais.
[65] Oliveira, "Hegemonia às avessas", op. cit.
[66] Ibidem.