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BrBRHUHu0101-33002009000300006

BrBRHUHu0101-33002009000300006

National varietyBr
Country of publicationBR
SchoolHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0101-3300
Year2009
Issue0003
Article number00006

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Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual Brasileiro na primeira década republicana

[...]andava meu pobre corpo aos solavancos[...]nos bancos do expresso, tendo por fronteiros dois homens terríveis, de idéias contrárias-um rotundo, conservador, católico, saudoso da monarquia, bramando contra a indiferença do povo, que deixara partir o velho soberano, sem um protesto, sem um tiro ao menos; o outro, de pêra, esgalgado e nervoso, livre pensador, formidável em teorias republicanas,[...], discorria sobre as revoluções, reclamando um batismo de sangue, como o de 89, em França, sem o que a república nunca chegaria à consolidação perfeita2.

Os dois personagens de A capital federal, do republicano Coelho Neto, não podiam ser mais expressivos do debate público brasileiro no comecinho da República. O golpe republicano de 1889 suscitou manifestos, ensaios, romances, historiografia, memórias e autobiografias que permitem mapear duas movimentações intelectuais. Os republicanos escreveram legitimando o novo arcabouço político e a sociedade também nova que com ele se estabelecia. Os monarquistas arremeteram contra essa "decadência", louvando o antigo regime e a sociedade aristocrática consigo desmoronada. A luta entre republicanos e monarquistas travou-se, pois, tanto em torno da dominação política como da representação simbólica do Império deposto e da República nascente.

Se a legitimação do novo regime atraiu intérpretes3, o protesto simultâneo dos decadentes segue pouco estudado4. É esse ângulo que privilegio aqui, ao tratar do debate político-intelectual da primeira década republicana, registrando antes, rapidamente, o tempo emquerepublicanos e monarquistas se albergavam sob o mesmo teto reformista.

REFORMISTAS E TRADICIONALISTAS Nos anos de 1870 e 1880, o debate público brasileiro opunha reformistas e tradicionalistas. Não havendo campos político e intelectual autônomos no Brasil de então, o conflito corria sobreposto em livros e palanques.

Os tradicionalistas eram membros da elite imperial no comando político e social do regime, baluartes das instituições monárquicas e da tradição que a legitimava - o tripé liberalismo estamental, catolicismo hierárquico, indianismo romântico. Os reformistas eram letrados marginalizados pelas instituições políticas do Segundo Reinado, que buscaram no repertório político- intelectual europeu armas para criticar o estado de coisas que bloqueava seus projetos e demandas5.

Inspirados na "política científica" francesa e em teses sobre a desagregação do Império Português, construíram interpretações do Brasil focalizando as tópicas do progresso e da decadência. A primeira situava as sociedades numa escala de desenvolvimento econômico, complexidade social, secularizaçãoe expansão da participação política, em relação à qual o Brasil estaria atrasado. A segunda rezava que, ex-colônia, o país herdara fundamentos socioeconômicos e instituições políticas contaminados pelos germes da decadência portuguesa.

Apenas a superação da herança colonial-identificada ora com a escravidão6, ora com a monarquia7 e quase sempre com ambas8 - e da forma de pensar a ela associada, a tradição imperial, facultaria o engate do país na Marcha da Civilização.

O presente era, então, momento de decadência do legado colonial. Mas para atingir o futuro de promissão, cumpria acelerar o processo por meio de reformas modernizadoras - indo da laicização do Estado à abolição da escravidão.

Os reformistas, contudo, dissentiam quanto ao modo de efetuar as reformas, se no interior da Monarquia, se instituindo a República. A divergência virou cisão quando da Abolição, em 1888. Desde , outra distinção cristalizou-se. Enquanto discutiam reformas econômicas e sociais, a heterogeneidade social entre os reformistas não fora problemática. Colaboravam pacificamente gente nascida na aristocracia burocrática, como Joaquim Nabuco, rebentos dos grupos econômicos crescendo com o café, como Alberto e Campos Sales, ascendentes pela educação, como Silva Jardim, e oriundos de famílias estacionárias, como Júlio de Castilhos e Teixeira Mendes9. Mas quando a balança de poder político e o próprio regime monárquico entraram na linha de fogo, as distinções sociais ganharam saliência. Os oriundos da "nova sociedade" precipitaram a mudança.

Parte dos aristocratas resistiu.

MONARQUISTAS E REPUBLICANOS Com a instauração da República, em 1889, o debate político-intelectual brasileiro ganhou nova estruturação, sobrepondo duas clivagens. A primeira refere-se ao contexto político e aos conflitos, palpáveis e nevrálgicos, acerca do formato e dos mandatários do novo regime. O movimento reformista bifurcou-se em diversas facções republicanas e minguados monarquistas militantes. Some-se a leva de tradicionalistas aderentes, que encarou a dominação republicana como a nova ordem natural das coisas. A outra clivagem, menos lembrada, e de visibilidade mais difícil, diz respeito ao contexto social de luta entre os estratos sociais dominantes na monarquia e os estratos ascendentes com o novo regime.

Embora a celeuma intra-republicana seja relevante, tanto simbólica como politicamente - o demonstraram respectivamente Carvalho10 e Lessa11 (1987) - , parece-me que a inteligibilidade da produção intelectual da década de 1890 depende de atentar para um amálgama dos antagonismos apontados acima. Como argumentam McAdam, Tarrow e Tilly12, em situações de mudança e conflito, as diversas identidades sociais rotineiras - e as solidariedades cotidianas e ligações históricas e afetivas a elas vinculadas-ficam suspensas em favor de uma clivagem principal, que ilumina características contrastivas dos grupos em disputa. As identidades políticas são essas identificações sociais construídas em meio a uma interação conflitiva e inteligíveis se reportadas à conjuntura. São, pois, contextuais, nascendo aos pares, numa relação binária de oposição. Não são substantivas-a exprimir alguma essência dos agentes - , mas relacionais, categorias simplificadoras, que ajuntam por exclusão.

No nosso caso, as afinidades entre os antigos reformistas e suas diferenças para com os tradicionalistas dissolveram-se diante do contexto político-social de estabelecimento da República, facultando a emergência, em interação e litígio, de duas identidades políticas relacionais: monarquistas-aristocratas e republicanos-ascendentes. A produção intelectual da primeira metade dos anos de 1890 o denota num enfrentamento a um tempo político e simbólico. Nela, perdurou o par decadência-progresso dos tempos de reformismo. Mas enquanto os republicanos conservaram a equação Império = decadência e se lançaram à edificação de uma tradição republicana que suplantasse a imperial, os monarquistas se puseram a resgatar a tradição imperial, invertendo os vetores: o regime deposto virou um ápice de civilização e a República, sua ruína.

Criaram-se, assim, duas versões da história nacional, uma legitimando o novo status quo, outra defendendo a ordem caída. Significando isso tanto uma forma de governo como um modelo de sociedade.

A NOVA SOCIEDADE E SEU ESTILO Desbancando os "casacas" do Império no comando político e no mando social, a República abriu alas para uma "nova sociedade". Grupos cuja ascensão social ou negócios estavam bloqueados pelo funcionamento letárgico da sociedade imperial desabrocharam. No segundo caso estavam os sempre lembrados afluentes plantadores de café do Oeste Paulista, ganhando expressão política compatível com sua força econômica, mas também toda a sorte de negociantes a eles associados. Financistas e empresários urbanos cresceram vertiginosamente, graças ao incentivo de Rui Barbosa, ministro das Finanças de Deodoro, ao empreendedorismo. Assim surgiu, da noite para o dia, um estrato de novos ricos, no modelito de Serapião Ribas, outro personagem de Coelho Neto:"Enriquecido de um dia para outro em transações felizes [...]. Aferrolhou mil e tantos contos em apólices, comprou vários prédios, e, estirado agora, resfolga na sua Voltaire ampla [...]"13.

Artur de Azevedo14 também registrou em romance esses novos ricos da bolsa de valores, cheios de dinheiro e carentes de requinte, crescendo e aparecendo na Capital federal, em companhia das coquetes, que viviam de explorá-los. Todos arrodeados de militares, muitos deles membros do movimento reformista da geração de 1870, que acharam no novo regime o poder e o prestígio que tanto demandaram ao velho. Granjeavam visibilidade reformistas civis, alocados em peso na administração federal15. O governador do estado do Rio de Janeiro, Francisco Portela, por exemplo, abriu a burocracia estatal para um rol de letrados republicanos, como Olavo Bilac, Pardal Mallet, Raul Pompéia e o nosso conhecido Coelho Neto.

Na balança de poder social, a ascensão da "nova sociedade" ao ápice da hierarquia social significou naturalmente o declínio em poder e prestígio dos estratos sociais associados ao Império, sobretudo da velha aristocracia fundiária do Vale do Paraíba, mas também, obviamente, da aristocracia burocrática, que vivia dos empregos na máquina do Estado, e da aristocracia de corte, que simplesmente perdeu sentido na ausência de um rei. Era a transição da sociedade de corte para a sociedade citadina:"Encheram-se os salões de fardas, casacas e vestidos. [...] nomes distintos e belas elegantes eliminaram- se inteiramente"16.

A nova sociedade tinha de prover regras e instituições para a nova ordem e, ao mesmo tempo, criar um repertório de legitimação de seu mando e combate da tradição imperial e do estilo de vida nobiliárquico.

É verdade que a dinâmica do Governo Provisório, as controvérsias quanto às primeiras medidas sancionadas, as eleições para a Constituinte e os alinhamentos durante seu funcionamento, a política econômica, que levaria ao Encilhamento, e o estilo centralizador de Deodoro da Fonseca fomentaram o surgimento de facções-federalistas versuscentralistas, liberais versuspositivistas, parlamentaristas versuspresidencialistas, defensores do governo forte e seus críticos. Celeumas alongadas no governo Floriano. Contudo, aliavam-se no fogo coletivo ao arcabouço político imperial. Em Ciência política, Alberto Salles17, por exemplo, defendia o presidencialismo contra "a turba de especuladores", parlamentaristas, que associava à monarquia, propondo a abordagem da política científica para a questão da divisão de poderes no governo republicano18.

A política científica dos reformistas orientou também um simbolismo encharcado de remissões à Revolução Francesa - patente desde a campanha republicana.

Apenas a igreja positivista adotou o calendário revolucionário, mas todos os documentos governamentais passaram a se abrir com "cidadãos" e se fechar com "saúde e fraternidade". Os republicanos quebraram o protocolo de distinção social aristocrático, com tratamentos democratizantes, horizontais, mais condizentes com sua própria extração: Manda a República agora Novo trato em moda pôr: se não diz mais-senhora; Ninguém mais tem-senhor Excelência nem de graça.

Foi-se a moda cortesã.

Dama altiva agora passa A chamar-se cidadã.19 Como demonstrou Carvalho20, a invenção de uma tradição republicana valeu-se de símbolos que espelhavam a França de 1789, filtrada pelo positivismo, e das rebeliões coloniais e regenciais abafadas pelo Segundo Reinado. Assim surgiram bandeira, hinos e heróis nacionais, como Tiradentes, em alternativa aos anteriores, imperiais.

A nova tradição englobava um panteão de lideranças. Daí a profusão de biografias edificantes de republicanos históricos, caso de O perfil biográfico do Dr. Bernardino de Campos, 1890, de Garcia Redondo, e de A morte de Silva Jardim, ou O Vesúvio em erupção(1891), de Virgílio Cardoso. Conversa incendiada pelas mortes vizinhas de Benjamin Constant e D. Pedro II. se pôs com veemência a disputa simbólica em torno do construtor da nação. Enquanto os monarquistas publicavam elegias ao monarca deposto (por exemplo, Nabuco, 1891), os republicanos lançaram Benjamin Constant a patriarca republicano. A igreja positivista enviou projeto à Câmara dos Deputados, que angariou para Constant o epíteto de "fundador da República brasileira" nas disposições transitórias da Constituição, promulgada em fevereiro de 1891. Teixeira Mendes prontamente produziu extensa narrativa da vida e feitos de Constant: Enquanto atravessarmos a tremenda crise em que se acha empenhada a sociedade moderna, Benjamin Constant continuará a ser o gênio da concórdia entre os patriotas brasileiros.[...]os seus corações desalentados evocarão espontaneamente a sombra augusta do Patriarca republicano[...]21.

Visando à deslegitimação simbólica do Segundo Reinado, proveu-se a difusão de um nacionalismo republicano via processo educacional clássico e educação moral e cívica, voltados para formar os cidadãos republicanos. Isto aconselhavam Sílvio Romero (Ensino cívico)e José Veríssimo (Educação nacional), em 1890. A literatura também participava, em arroubos de civismo (Contos verdes e amarelos, de 1890, de Luís de Andrade).

A reclamação coletiva dos republicanos contra a permanência da tradição imperial foi bem expressa pelos reformistas albergados na igreja positivista.

Em opúsculos e artigos, criticavam antes de tudo o catolicismo. A secularização do Estado, grande bandeira da geração de 1870, institucionalizada pela República, sofria a resistência aberta da Igreja Católica e desobediências sutis, como a manutenção do crucifixo nas salas do júri. Segundo, a hierarquia estamentalmantivera-se, expressa no uso ainda corrente de títulos, condecorações e honrarias nobiliárquicas, como fica evidente na proverbial resposta de um funcionário do governo brasileiro à proibição de uso de títulos concedidos pelo Império: "ciente, Barão do Rio Branco". Terceiro, a liturgia da sociedade de corte perdurava sob a forma de culto ao Imperador, o sebastianismo.Por isso: [...]continuamos a exigir a extinção legal imediata dos títulos nobiliárquicos e das condecorações, em obediência ao preceito constitucional, [...]a defender a fórmula - ordem e progresso - inscrita em nossa bandeira nacional, alvo dos ódios metafísicos, clericais e sebastianistas[...]. [E a combater] [...]a absurda legendaquequer fazer do nosso último imperante um grande homem, um grande patriota, um grande estadista e um grande sábio.[...]Agora era preciso desfazer a legenda imperial e rebater as ousadias restauradoras22.

O combate à tradição imperial ficou acirrado e violento no segundo governo da República. Floriano Peixoto, ao assumir em fins de 1891, centralizou o poder, nomeando jovens militares para os governos de estado23, interveio na economia, para conter a crise econômica do Encilhamento, e abriu a temporada de "purificação" das instituições, com empastelamento de jornais e prisão de opositores. Amparou-se no exército, em emblemas e palavras de ordem da Revolução Francesa e num civismo de matiz positivista. O florianismo ficou próximo do que Vovelle24 chamou de "jacobinismo transhistórico": "uma atitude, um comportamento e até uma visão de mundo", nascidos com a Revolução Francesa, mas que adquiriram caráter plástico, plasmando-se a diferentes realidades históricas. Essa "maneira" condensa a idéia de regime de salvação pública, baseado na vontade popular; no centralismo político, no Estado laico, no nacionalismo; na moralização da política; na crença na ascensão social e na crítica à sociedade aristocrática. Programa a ser implementado pela pedagogia política e pela força25.

Tudo isso se vislumbra nos textos florianistas. Embora o florianismo não seja sinônimo de republicanismo26, ele ressalta, por exageração, o núcleo compartilhado de significados e os contornos da identidade política republicana, erigidos relacionalmente, por contraste com seus correlatos imperiais. O regime de moralidade pública achacava reações e remanescentes da sociedade imperial. A ele se associava um éthosantiaristocrático, que três figuras ilustram, expressando também os canais de legitimação da tradição republicana: a força, a religião, a literatura.

A primeira é a do líder político-militar, Floriano Peixoto. Estóico, com seus hábitos comedidos de sertanejo, seco no trato, sem erudição, charme ou delongas, que pouco falava e nada escrevia, era o perfeito inverso dos gentlemendo Império. Adquirira na Guerra do Paraguai a reputação de valente e resoluto, que exibiu nas rebeliões que contra ele se levantaram e que lhe valeu a admiração ardente de jovens militares, de parte dos antigos reformistas e de setores urbanos em ascensão, por ele protegidos das avarias do Encilhamento.

Para seus seguidores, era o demolidor da ordem estamental do Império, o modernizador.

Outra figura é Raimundo Teixeira Mendes. Reformista durante o Império, na República corporificou o empenho prático, cotidiano, de assentamento das instituições republicanas como valores morais e como estilo de vida. Em prédicas dominicais, repletas de adeptos]27, celebrava as novas instituições, a laicização do Estado e os símbolos republicanos. A igreja positivista apresentava-se como alternativa ao catolicismo imperial, como religião civil, com seu ilibado Sacerdote candidato a líder moral dos republicanos. João do Rio reporta: Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, uma cátedra, onde se senta Teixeira Mendes com as vestes sacerdotais negras debruadas de verde.[...].A voz de Raimundo corre com a continuidade de uma queda de águas; na nave cheia cintilam galões e lunetas graves;na capela-mor, senhoras ouvem com atenção essa palavra, que não deixa de ser demolidora.[...].do alto da cátedra, relampejava.[...]., partia contra os fatos, contra a anarquia atual: e umesto[...].de amor pela Vida, subia, como um incensório[...]..

Fiquei enlevado a ouvi-lo.[...].homem puro como um cristal, que tem o saber nas mãos[...]28.

Raul Pompéia é a terceira figura emblemática. Era o entusiasmo revolucionário em pessoa. Seu civismo exacerbado preenchia artigos diários de jornal enaltecendo líderes republicanos, com devoção por Floriano. Lançava-se sem armistícios contra qualquer sinal de monarquismo. Professava um nacionalismo, que desabrochou em antilusitanismo e que ia de braços com uma atitude de "ódio vivificante" contra os monarquistas-aristocratas: "Do ódio em nome do Brasil: não do ódio mau que ofende a vítima-do ódio que reage, do ódio que reivindica, do ódio que redime, do ódio pela Justiça, do ódio santo que é apenas uma forma militante de amor".29 O amor de Teixeira Mendes e o ódio de Pompéia entrelaçaram-se na defesa da repressão de Floriano aos monarquistas. Eram três intransigências. Contra o éthosda Conciliação, da negociação e da tergiversação imperial, aferraram-se ao éthosda purificação, da transparência, da moralidade pública, que se encarnava no estilo de vida de partes da nova sociedade, marcada pela singeleza, o estoicismo, a moral do trabalho e da família. Maneira de conduzir a vida nas antípodas da "futilidade" cortesã do Segundo Reinado.

Os florianistas superpunham os sentidos de República como regime de governo, nova moralidade e nova sociedade. No afã de afirmá-los, guerrearam quaisquer manifestações políticas, culturais e mesmo pessoais de adesão à sociedade aristocrática imperial. O florianismo foi a hipérbole do republicanismo. Por isso mesmo tornou salientes os traços de diferenciação entre duas identidades políticas, dois éthos, duas tradições inventadas, dois padrões de sociedade.

DECADÊNCIA COM ELEGÂNCIA Os monarquistas que não aderiram à República, nem emigraram, mesmo quando tivessem sido inimigos viscerais, acabaram, pela força das coisas, por se aproximar. Havia dois gêneros. Os monarquistas de espada eram políticos, como Silveira Martins, e militares, como Saldanha da Gama, que acabaram por pegar em armas para defender o antigo regime. Os monarquistas de pena eram órfãos da sociedade de corte, incluídos tanto membros do extinto Partido Conservador, como Afonso Taunay, Rio Branco e Eduardo Prado, quanto do movimento reformista, como Rodolfo Dantas, André Rebouças, Joaquim Nabuco e Afonso Celso Junior.

Essas criaturas da cultura aristocrática e da liturgia dos salões eram filhos da elite imperial, em preparação para assumir o comando do país quando o golpe de 1889 os tolheu. Como seus sucedâneos franceses, "eles conservaram um prestígio tradicional, fortemente psicológico, [...], mas tinham perdido as bases reais do poder. Foram incapazes de manter o caráter fechado de seu estamento [...]"30.

O desaparecimento do Império pôs abaixo sua carreira política, a perspectiva de futuro e o lastro social. Essa conjunção de estragos gerou amarguras intensas.

Com sua repugnância pelo belicismo, nisso devedores de sua formação de corte, viram que seu terreno de briga era a palavra. Em ensaios, manifestos, romances, defenderam a tradição monárquica, que esboroava, e criticaram a republicana, que se construía, concentrados em duas tópicas:a forma da mudança (o golpe militar) e a arquitetura política do novo regime, de um lado, e os valores e o estilo de vida da sociedade republicana, de outro.

Quem abriu ataque ao designdas instituições políticas foi Eduardo Prado, em 1889, na Revista de Portugal31, voltando à carga em 1890, com Fastos da ditadura militar.Na mesma hora, Cristiano Ottoni deu a versão monarquista de O advento da República no Brasil. O Visconde de Ouro Preto, em 1891, igualmente execrou o Advento da ditadura militar no Brasil. Joaquim Nabuco argumentou que a República, no Brasil como em toda a América do Sul, seria endemicamente instável, dada a ausência de instrumento de mediação das facções em luta.

Abolido o poder moderador, o "elemento militar" ascenderia naturalmente a condutor da política partidária: "substituíram o Imperador pelo Imperator [...]. Deodoro pelo simples fato de suceder o Imperador ele se achou com os mesmos poderes, sem as normas, está visto"32.

A República não era jamais atribuída à longeva propaganda republicana, mas somente à violência militar. O militarismoseria origem e fonte de sustentação do novo regime. Cristiano Ottoni resumia o pensamento dos monarquistas de pena sobre a "autocracia militar": "não sustentavam eles idéia ou princípio político, não aspiravam à reforma alguma de interesse geral"33.

A crítica abrangia o repertório de idéias que legitimava o novo regime. Uma delas vinha no título de Eduardo Prado: A ilusão americana34 Seu ataque à "mania" republicana de replicar instituições dos Estados Unidos era meio de investir contra o principal aliado internacional dos republicanos. Em contraponto, elogiava a Inglaterra, que apoiava os restauracionistas35. Prado via sem número de males na influência norte-americana sobre o Brasil, inclusive a manutenção da escravidão - durante o Império!: "Não teríamos conservado por tanto tempo aquela instituição iníqua, se a maior nação da America não tivesse tentado legitimá-la, e se, da parte escravocrata dos Estados Unidos, não nos viesse o incentivo [...]"36.

Em manifesto, Nabuco também lançava argumento nacionalista contra o americanismo: Eu lastimo a atitude suicida da atual geração, arrastada por uma alucinação verbal, a de uma palavra-república, desacreditada perante o mundo inteiro quando acompanha o qualificativo-Sul Americana. [...] a esse plagiarismo Americano, devemos opor outro sentimentalismo natural, vivo, verdadeiro: o Brasileirismo 37.

O americanismoenfileiraria o Brasil com outra América, a Espanhola, rumo ao caudilhismo, ao despotismo, ao militarismo e, quiçá, mesmo à fragmentação do país. Eram os velhos temores da elite imperial, que aspirara elevar o Império à altura das monarquias européias e afastá-lo das repúblicas abaixo do Equador: "A República, nos países latinos americanos, é um governo no qual é essencial desistir da liberdade para obter a ordem"38.

O positivismoera o outro corpusde idéias que chateava deveras os monarquistas.

Todos escreveram em achincalhe à "República de Comte"39, receosos de sua influência crescente no Brasil: Logo depois do 15 de novembro circulou a notícia, com grandes vesos de verossimilhança, que parte do ministério compunha-se de sectários convictos da Filosofia Positiva, e entendia bem servir a sua pátria organizando o governo segundo as fórmulas do Mestre A. Comte 40.

Abismavam-se com a diligência dos positivistas em soterrar a história do Segundo Reinado e desencavar ícones e símbolos republicanos41:"no martírio de Tiradentes, no centenário de 1789, na juventude rio-grandense de Garibaldi, na unidade exterior da América, ou na Humanidade de Augusto Comte"42.

"Americanistas", "positivistas" e militares eram alvos dos monarquistas não somente por conduzirem o governo, mas também pelo estilo de vida que disseminavam. A substituição de elites sociais em compasso com o golpe obviamente não foi bem vista pelos que descendiam: Em tais épocas, em que o sistema da propriedade se transforma, as fortunas mudam de mãos e desaparecem umas classes para surgirem outras, parece que ficam paralisadas a consciência, a energia e a vontade coletivas, e que nada liga ninguém a nada ou a ninguém43.

Para os monarquistas de corte, era uma sociedade de parvenus. Afeitos à etiqueta aristocrática, ficaram enojados com a ascensão meteórica de uma gente sem nome ou maneiras. Tão distantes da polidez, elegância e refinamento em que cresceram e floresceram gentlemencomo Nabuco. Por contraste, sobressaía a "qualidade" da elite imperial: "A República [...] vemo-la reduzida a homens e a fatos que podem todos ser comparados aos da monarquia com vantagem para a casa"44.

A ojeriza dos monarquistas de corte aos republicanos exprime, pois, a fidelidade a um modo de vida, no qual o monarquismo era apenas um dos elementos. Uma revolta da sociedade de Corte contra a sociedade citadina. Prado exibia esse desdém ao descrever o capitalismo como baixeza e ambição de lucro, sinonimizando americanismo e arrivismo, para produzir o contraste entre os parvenuse boa sociedade: "Tal qual como o parvenuenriquecido gosta de mostrar a sua casa, os seus carros, ao homem da boa sociedade e, dando a beber ao gentlemanelegante os seus vinhos preciosos, pergunta-lhe com insistência: Então, que tal acha?"45.

O texto mais expressivo desse contraponto é o romance à clefde Taunay, disfarçado de "Heitor Malheiros": Encilhamento: cenas contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro em 1890, 1891, 1892. Carente de elaboração literária, o livro não descola da matéria que narra, prestando-se admiravelmente como documento da percepção de um membro da corte deposta acerca da nova sociedade. Ao mesmo tempo descrição e sintoma.

Taunay traçou galeria de tipos sociais ascendentes com a República: militares e ricos com lastro, como os cafeicultores paulistas, e, mormente, ricos sem ele, caso do estrato de "empresários" sem empresas e capitalistas sem capital surgido com a bolha especulativa de 1890. Somavam-se barões de títulos forjados, advogados sem banca, militares corruptos, consumidoras frívolas, coquetes desvairadas, movendo-se como marionetes ao ritmo vertiginoso de negociatas e boatos, que consolidavam e demoliam instantaneamente empresas e reputações.

Espantava aos aristocratas acostumados à letargia da sociedade imperial a intensidade dessa sociedade republicana, que quebrava maneiras e distâncias aristocráticas: [...] a construção de palácios de péssimo gosto arquitetônico, jóias, jóias a mais não poder [...]; tornava-se obrigatória certa notoriedade, de bens, de audácia, de relações sociais [...].

[...] muita familiaridade; os empregados a apresentarem a mão, [...], interpelando as habituées pelos nomes do tratamento íntimo e fazendo- lhes cumprimentos à queima - roupa [...]46.

Esse novo estilo de vida, de "dourados e lantejoulas, tão ao sabor dos parvenuse rastaquouéres!" suscitava reprovação moral dos monarquistas, que se expandia para incluir o capitalismo, a busca de lucro, esse "indecorosíssimo e frenético jogo"-no qual o próprio Taunay perdera sua fortuna.

A indignação contra a proeminência, tanto na sociedade como na política, de novos grupos sociais, encharcados de valores e atitudes que confrontavam a tradição imperial, o paralelo entre o brilho da corte e a falta de lustro dos citadinos, o desprezo para com os emergentes, é tenaz entre os monarquistas de pena. Aparece, em diferentes modulações, nos escritos de todos os órfãos da corte, guarnecendo desde manifestos, ensaios e artigos do periódico que, liderados por Rodolfo Dantas, formaram em abril de 1891, o Jornal do Brasil, até correspondências e textos íntimos: [...]a civilização do Brasil acabou com a monarquia[...].Os agentes principais do governo são os déclassés de todas as classes [...].enriqueceram também nessa chamadaorgia financeira do Provisório [...].Os pais desmoralizam-se em companhia com os filhos. Não mais respeito nas famílias [...].Tudo que é honesto, sério, normal, em outros países, está atrofiado - tudo que é instinto torpe, cobiça, podridão interior, isso sim desenvolve-se e domina a sociedade [...].uma prostituição[...].. Nada resistiu, nada ficou limpo, e dessa sociedade assim mexida são as fezes que se vêem hoje[...]47.

Os escritos dos monarquistas de pena no começo da década de 1890 portam, pois, críticas à República sobretudo como gênero de sociedade. Reiteram valores aristocráticos-a honra - para arremeter contra valores burgueses - o lucro: "a religião dos sentimentos nobres, a altivez da honra, não têm mais representantes públicos [...]"48.

Apreciação moral, que exprime a experiência vivida por ex-membros da sociedade aristocrática, inconformados com a supremacia dos estratos sociais ascendentes com a República e a disseminação de seu estilo de vida. Reação dos gentlemencontra os parvenus.

A República não é avaliada a partir de estruturas macroeconômicas. O foco vai para as elites social e política, o modo de vida que ostentam, as idéias que as orientam, e as decisões de suas lideranças. É uma história de costumes e personalidades. Assim, Floriano, o positivismo e os militares são demonizados na exata medida em que a figura de D. Pedro se torna modelar e os políticos imperiais todos adquirem ares de estadistas.

Os monarquistas de pena dedicaram-se, pois, à contraposição entre a República jacobina e o Segundo Reinado, ao enaltecimento de símbolos, feitos e líderes da história imperial e ao combate à ordem e aos símbolos da tradição republicana em constituição. Suas críticas à República podem ser sumarizadas em três tópos.

O primeiro visava ao repertório de idéiasque orientava a nova ordem: americanismo e positivismo. O americanismo estaria vinculado a um modo de vida burguês, que cafeicultores de São Paulo e novos ricos da bolsa de valores disseminavam e que, supunham, se basearia na ambição, na sede de enriquecimento. o positivismo encaminharia a dessacralização do mundo público, a ratificação da ciência como princípio condutor das decisões públicas. Os monarquistas de pena associavam-no a um terceiro estrato de ascendentes com o novo regime:os militares, a quem atribuíam toda sorte de incivilidades. Essa substituição de elites sociaisé seu segundo ângulo de censura. A última tônica diz respeito à forma de conduçãoda República pelos ascendentes. Aos parvenuspositivistas e jacobinos, acoplavam o formato militarista e centralista da República, reprovando seu barbarismo e vaticinando desfecho fratricida e separatista. Em tudo isso expressam o ponto de vista dos aristocratas sem corte.

O monarquismo de pena foi um decadentismo. Mais do que projetar novo estado de coisas, exibia atitude blasécom respeito ao presente, ancorada na nostálgica idealização do passado e num catastrofismo quanto ao futuro. Tratava-se também de esforço coletivo e deliberado de defender a tradição imperial e o estilo de vida a ela associado por meio da criação de estereótipos e da narração de uma versão monarquista do presente republicano e da história nacional. Como argumenta Tilly49, a maneira usual de narrar histórias de legitimação consiste em distribuir créditos e maldições, dramatizando "uma divisão moral do mundo social. " "Estórias" retrabalham e simplificam os processos sociais em seqüências diretas de causa e efeito, imputadas a agentes sociais concretos, que são, então, moralmente avaliados. As estórias ignoram complicações, contradições, oscilações dos agentes e de seus cursos de ação. São sempre relacionais, mas sua base é uma assimetria nós-eles, em que o primeiro pólo é digno de crédito e o segundo de maldição. No caso dos monarquistas de pena, crédito aos líderes do antigo regime, maldição aos do novo.

DA POLÍTICA ÀS LETRAS Floriano suscitou grande entusiasmo cívico, o jacobinismo, mas também seu contrário. Em 1892, começou a reação. De republicanos descontentes, em São Paulo, Minas Gerais e no Mato Grosso, onde surgiu uma efêmera República Transatlântica, e de monarquistas belicosos. Em fevereiro de 1893, Silveira Martins, um dos líderes do movimento restaurador50, incendiou o país com a revolta "Federalista", no Rio Grande do Sul, contra o governo de Júlio de Castilhos. Em seguida, veio a Revolta da Armada, na Capital Federal, principiada por um republicano, Custódio de Melo, mas prontamente endossada por monarquistas da Marinha. O governo então legalizou o estado de exceção, encompridado nas ruas por "batalhões patrióticos", ocupados em salvar a pátria com canhões, porretes e baionetas51.

A conjuntura de radicalização política e guerra civil imprimiu mudanças no debate público. Sumiu sua estruturação simples: monarquistas versusrepublicanos. Havia agora os florianistas, como Lauro Sodré, Raul Pompéia e Teixeira Mendes, defendendo a ordem, enquanto monarquistas de corte e republicanos estarrecidos com os excessos do militarismo - , caso de Rui Barbosa e do grupo de José Patrocínio-a execravam.

Outra mudança diz respeito à forma. No Império e no primeiro governo da República, o debate correra em manifestos e panfletos de combate e proselitismo. Sob Floriano, houve clivagem. Ocupados da política e da guerra, os florianistas de pena não tinham tempo para ensaios e tratados. O sumo de sua produção era ainda o panfletismo e o artigo curto de jornal. Neles escoaram o elogio a Tiradentes, a censura a ícones do Segundo Reinado e brados nacionalistas e xenófobos52. Artur de Azevedo (1895)53 usou forma breve para debochar do inimigo, nesse caso o Almirante Custódio de Melo: Tem uma flor no princípio O nome do Marechal, Mas o nome do Almirante Principia muito mal...

os antiflorianistas, constrangidos pela censura, não se arriscaram em panfletos e jornais. O Jornal do Brasil, monarquista, foi empastelado, assim como o Cidade do Rio, periódico de José do Patrocínio. Quem carregava nas tintas contra o governo tinha dois destinos, a prisão, onde foram parar Patrocínio e sua trupe, ou o exílio, recurso de Eduardo Prado, depois que A ilusão americana(1893), que delatava o apoio norte-americano a Floriano na Revolta da Armada, foi apreendido, um dia após ser publicado54.

Textos incisivos podiam vir de fora, como O imperador no exílio(1893), que Afonso Celso Junior enviou da Europa. Mas eram, de pronto, respondidos por republicanos;nesse caso por Felício Buarque, com Origens republicanas: estudos de gênese política em refutação ao livro do Sr. Dr. Afonso Celso, o Imperador no exílio, dedicado às "vítimas sacrificadas em defesa da República na insurreição de 6 de setembro [a Revolta da Armada]" e no qual incensava heróis republicanos e investia contra os monarquistas e sua divinização de D. Pedro II. Diante do "perigo de desagregação", Buarqueabraçava "um governo forte, conciliador e enérgico"55, como o de Floriano.

O panfletismo antigoverno ficou então perigoso e rareou. De fins de 1893 até 1897, as críticas à República se esfumaçaram. Monarquistas de pena desertaram da crítica incisiva e se refugiaram em biografias, autobiografias, livros de história e de memória, ensaios. Formas mais seguras de emitir opiniões em tempos de guerra civil. Embora o assunto ainda seja a comparação entre os regimes, o comentário do presente ficou oblíquo, via análise de circunstâncias análogas no passado ou no exterior.

Prudente de Morais foi eleito em 1894, mas a guerra civil seguiu no Sul, e temia-se que Floriano, vencedor da Revolta da Armada, não passaria o cargo.

Idéia enterrada com a morte do ex-presidente. Mas os jacobinos perderam um líder e ganharam um ícone: o Marechal de Ferro, o Consolidador da República56, o "fundador da República - o proclamador magnânimo da Nacionalidade", o "grande iluminado"57.

Então os monarquistas de pena e os de espada arriscaram uma volta. Uniram-se, ativaram seus jornais e fundaram o Partido Monarquista. EduardoPradocoordenava esforçosemSão Paulo. Delásaiu, em 15 denovembro de 1895, dalavradenotóriotradicionalista, JoãoMendes de Almeida, manifesto católico e antipositivista. Em 12 de janeiro de 1896, foi a vez de os cariocas lançarem o seu À nação brasileira, redigido por Nabuco-antimilitarista, antiamericanista, antipositivista. A novidade era o chamamento à Restauração pacífica, via persuasão de "todas as classes ou pessoas, sem distinção de partidos antigos e novos". Explorando a cisão entre republicanos, os monarquistas pediam apoio da nova sociedade que execravam para voltar ao antigo regime.

Sob governo civil, os petardos ao militarismo diminuíram, mas ficou superlativo o ataque às bases simbólicas de legitimação da República, em particular o positivismo. Isso aparecia em discursos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ilha intelectual do Segundo Reinado em meio ao mar republicano. , guardiões da tradição imperial resistiam contra a "conspurcação" de símbolos e heróis da história nacionalpelos positivistas: Uma escola religiosa-se se pode dar com propriedade o nome de religião a uma crença que suprime Deus - mais política em todo caso do que a religiosa, pretende reduzir a História nacional a três nomes: Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant. [...]A idéia é que entre Tiradentes e José Bonifácio de um lado e Benjamin Constant de outro, isto é, entre a Independência e a República, estende-se um longo deserto de quase setenta anos, a que posso dar o nome de deserto do esquecimento58.

Nabuco reagiu, "no momento em que o passado nacional corre risco de ser mutilado" 59, com três livros. Balmaceda(1895) e A Intervenção estrangeira durante a revolta(1896), umbilicalmente ligados à conjuntura da guerra civil, emparelhavam virtudes do Império e vicissitudes da República e ambicionavam vedar a consagração de Floriano como estadista: "A legenda não é positivista, é também jacobina [...]"60. Ali desenha-se um Floriano sanguinário enquanto o líder monarquista da Revolta da Armada, Saldanha da Gama, aparece como gentlemanda velha estirpe. Um estadista do Império: Nabuco de Aráujo, sua vida, suas opiniões, sua época,escrito durante a guerra civil, edifica "legenda" alternativa, pelo elogio dos "verdadeiros" estadistas, os do Império.

D. Pedro aparece agigantado na comparação com os chefes republicanos61. O Segundo Reinado teria sido o "apogeu" da história brasileira, orientado pelo "espírito de prudência e sisudez, a circunspeção, a nobreza e o patriotismo desinteressado de um período de funda cultural moral [...] tão diverso do campo da guerra civil"62.

A quentura da guerra civil não amornara ainda. Em fins de 1896, Prudente de Morais, doente, afastou-se da presidência. Com seu vice, o jacobino Manoel Vitorino, voltou o clima de intransigência. Em novembro, o governo federal enviou tropas contra a insurreição em Canudos, rotulada de monarquista. Logo, os jacobinos empastelaram redações de jornais monarquistas e o diretor de um deles, Gentil de Castro, foi linchado no Rio de Janeiro.

A reação podia vir do exílio, caso das Cartas da Inglaterra(1896), de Rui Barbosa, e da denúncia de O assassinato do coronel Gentil de Castro, pelo Visconde de Ouro Preto. Eduardo Prado, dirigindo O Comércio de São Paulo, cancelou as Notas Políticasde Nabuco e encaminhou os correligionários para a luta cultural, mais alusiva, como nas celebrações do terceiro centenário de Anchieta, em 1897. Além de somar outro ícone ao panteão monarquista, era um meio de apresentar o catolicismo como valor fundacional da nacionalidade, em revide à religião civil do positivismo: "Não, nós, os católicos, nada temos que temer do positivismo [...]. [...] o centenário de Anchieta toma o caráter de um apelo à nossa consciência religiosa [...]"63.

A guerra escrita perdeu o vigor com o apaziguamento da conjuntura política. A partir de 1897 se desarticularam conjuntamente jacobinismo e monarquismo. O primeiro, por seus excessos - incluído atentado malogrado contra Prudente de Moraes - , o segundo, por inanição. Sem apoio armado, sem entusiasmo da Princesa herdeira, o monarquismo desfaleceu. A eleição de Campos Sales sinalizou novos tempos, de uma República civil, consolidada. O radicalismo perdeu espaço e sentido.

O debate intelectual foi ganhando nova tônica, cada vez mais apartado da política militante. Exaustos de tinta e sangue derramados, monarquistas de pena e republicanos desalentados selaram a paz. Em encontros na Livraria Garnier, reuniam-se para dois dedos de prosa sobre assuntos frios, pois a política ainda era tema melindroso. A literatura brotou como ponto de convergência, graças ao protagonismo de Machado de Assis, um monarquista platônico. Confluíram para uma Revista Brasileira, que José Veríssimo relançou em 1895: [...]vi que o nosso chefe tratava não menos que de criar também uma República, mas[...]os partidos podiam comer juntos, falar, pensar e rir, sem atributos, com iguais sentimentos de justiça. Homens vindos de todos os lados, - desde o que mantém nos seus escritos a confissão monárquica, até o que apostolou, em pleno Império, o advento republicano - estavam ali plácidos e concordes, como se nada os separasse64.

Por cansaço ou fracasso, muitos se insularam da política institucional. Em 1897, ex-reformistas, ex-monarquistas, ex-republicanos, mesmo ex-jacobinos criaram sua própria República, a das letras. Na Academia Brasileira de Letras, fundiram suas identidades políticas contrastivas, de monarquista-aristocrata e de republicano-ascendente, numa identidade compartilhada, a de "intelectuais": "Os espíritos estavam fatigados da política. Os homens feitos, desiludidos; os homens novos, enojados. [...] as letras apresentaram-se como o único refúgio do talento"65.

Formava-se uma nova aristocracia, a do "talento", assim distinguida da aristocracia de corte e capaz de encapsular arrivistas e desbancados num mesmo estilo de vida, dedicado à cultura do espírito e destacados da lida política, vista agora como ocupação menor.

Essa identidade de letrados sobrepujou então as identidades políticas. Ao longo da década de 1890, porém, esses mesmos homens se valeram da história nacional e de análises interessadas da conjuntura para produzir duas estórias antagônicas do presente republicano e do passado imperial. Uma atribuindo crédito à tradição, outra amaldiçoando-a.

Na longa duração, o saldo foi monarquista. Se os republicanos ganharam a batalha política do presente, criando instituições e ícones de um novo regime, os monarquistas venceram a luta simbólica do futuro. Talvez o fato de os republicanos mais talhados para essa briga, como Alberto Salles, terem preferido travar outra, fratricida, ou quiçá o refinamento do estilo e da argúcia dos gentlemencomo Nabuco respondam pela cristalização ulterior da estória monarquista em historiografia do Império e do começo da República. Essa versão abasteceu de heróis, imagens, símbolos, citações e tópicas ao menos as duas gerações seguintes de "interpretações do Brasil"66. Se é certo, como argumenta Carvalho67, que a década de 1890 foi tempo de montagem de um imaginário da República, é preciso também considerar o outro lado dessa moeda: a estilização da sociedade imperial e a estigmatização da Primeira República. O tóposmonarquista da República como decadência, produzida por parvenus, positivistas, americanistas, militaristas, em contraste com a "Grande Era Brasileira", perdurou. Ao passo que ficou esmaecido o sentido primeiro desses juízos: seu caráter político e de defesa de um estilo de vida ameaçado pela mudança.

Nos escritos posteriores desses monarquistas, a política ainda alimentou narrativas nostálgicas, de um tempo em que seus autores eram também atores da política com P maiúsculo. Homens de corte, lamentaram o fim de uma época em que tinham sido fidalgos. Elidiram o fato que haviam antes denunciado (caso de Nabuco e Afonso Celso), do Império repousar sobre a escravidão, e sublinharam um reinado de temperança, de civilização, de finesse, em chocante contraste com um presente comezinho, aburguesado, no qual se viram confinados à antecâmara do grande salão da política. Um tempo que os elegantes podiam ler como decadência.

ANGELA ALONSO é professora de sociologia da USP, pesquisadora do Cebrap e autora, entre outros, de Joaquim Nabuco: os Salões e as ruas(Companhia das Letras, 2007). Atualmente é pesquisadora visitante na Universidade de Yale e Fellow da Fundação Guggenheim.

[1] Agradeço os comentários dos membros do GT "Pensamento Social no Brasil", da Anpocs, e aos participantes do seminário "Nabuco e a República" (USP/Yale, 2008), pelos comentários a versões preliminares desse texto. Este mesmo artigo foi aprovado para publicação em Prismas-Revista de Historia Intelectual (Universidad Nacional de Quilmes, Argentina).

[2] Coelho Neto, H. M. A capital federal. Porto: Livraria Chardon, 1915 [1893], p. 10.

[3] Carvalho, J. M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.

São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

[4] poucas análises nessa direção, como Oliveira, L. L. "As festas que a República manda guardar". Estudos Históricos, vol. 2, 4, 1989; e, tangencialmente, Viotti, E. Do Império à República: momentos decisivos. SãoPaulo: Grijalbo, 1977. O único estudo de maior fôlego documental é o de Janotti, M. L. M. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.

[5] Alonso, A. Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil- Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

[6] Nabuco, J. O abolicionismo.Petrópolis, Vozes, 1988 [1883] .

[7] Salles. A. Política republicana. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1882.

[8] Lemos, M. (org. ). O positivismo e a escravidão moderna.Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1884.

[9] Cf. Alonso, op.cit.

[10] Cf. Alonso, op.cit.

[11] Lessa, R. A invenção republicana.São Paulo: Vértice, 1987.

[12] McAdam, D. , Tarrow, S. e Tilly, C. Dynamics of contention. Nova York: Cambridge University Press, 2001, pp. 132ss.

[13] Coelho Neto, op. cit, p. 25.

[14] Azevedo, Artur. A capital federal. São Paulo: Martin Claret, 2003 [1897] .

[15] Nachman, R. G. "Positivism, modernization, and middle class in Brazil".

Hispanic American Historical Review, vol. 57, 1, 1977.

[16] MachadodeAssis, J. M. A Semana[17/11/1895]. In:Obra Completa.Rio de Janeiro:Nova Aguilar, vol. 3, 1994.

[17] Salles. Sciencia política.Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1891, p. 297.

[18] Havia outros debates, como por exemplo em torno da conjuntura política (Notas políticas, de Valentim Magalhães, 1891) e econômica (Finanças e política da República, de Rui Barbosa, 1891).

[19] Azevedo, 7/12/1889, apud Bernardes, M. C. C. "A República em jornais femininos da época (1889-1890)". Cadernos de Pesquisa/Ceru, vol. 71 20-8, nov. , 1989.

[20] Cf. Alonso, op.cit. , pp. 75ss.

[21] Mendes, R. T. Benjamin Constant, esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do Fundador da República Brasileira.Rio de Janeiro: Apostolado Positivista do Brasil, 1913 [1891], pp. 508 - 9.

[22] Lemos. Undécima circular do Apostolado Positivista do Brasil (ano de 1891).Rio de Janeiro: Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, 1892. pp. 26, 31.

[23] Nachman, op. cit.

[24] Vovelle, M. Jacobinos e jacobinismo. São Paulo: Edusc, 2000, p. 25.

[25] Ibidem, pp. 27, 194.

[26] Cf. Alonso, op.cit. , pp. 17ss.

[27] Pagavam subsídio para a manutenção da Igreja, em 1892, 220 indivíduos (cf.

Lemos, Undécima circular do Apostolado Positivista do Brasil, op. cit. ), mas a assistência aos cultos era maior. no declínio da Igreja, em 1904, João do Rio registrou público de cerca de 700 pessoas (Rio, J. do. "As religiões do Rio" <www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/asreligioesdorio.htm>, 1904).

[28] Rio, op. cit.

[29] Pompéia, R. "Carta ao autor das 'festas nacionais'" (24/03/1893). In: Coutinho, A. (org. ). Raul Pompéia: escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 289.

[30] Auerbach, E. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo:Editora 34, 2007, p. 247.

[31] Sob os títulos "Destinos políticos do Brasil"; "Os acontecimentos do Brasil"; "Práticas e teorias da ditadura no Brasil".

[32] Nabuco. Porque continuo a ser monarquista. Londres: Abraham Kingdon & Newnham, 1890, p. 10 (Carta ao Diário do Commercio).

[33] Ottoni, C. B. O advento da República no Brasil.Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1890, p. 84.

[34] Prado, E. A ilusão republicana. São Paulo: Alfa - omega, 2005 [1893] .

[35] Topik, S. C. Trade and Gunboats: The United States and Brazil in the Age of Empire. Nova York/Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

[36] Prado, op. cit. , p. 123.

[37] Nabuco. Agradecimentos aos pernambucanos. Londres: Abrahan Kingdon e Newnhaim, 1891, pp. 4, 15, grifos do autor.

[38] Nabuco, Porque continuo a ser monarquista, op. cit. , p. 14.

[39] Ibidem, p. 15.

[40] Ottoni, op. cit. , p. 119.

[41] Oliveira (op. cit. , p. 12) atenta para artigos de Taunay de teor similar.

[42] Nabuco. Resposta às mensagens do Recife e de Nazaré. Acervo Digital Fundaj, 1890, pp. 58 - 9.

[43] Ibidem, p. 66.

[44] Idem, Porque continuo a ser monarquista, op. cit. , p. 6.

[45] Prado, op. cit. , p. 92.

[46] Taunay, A. Encilhamento: cenas contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro em 1890, 1891, 1892. Belo Horizonte: Itatiaia, 1971 [1893], pp. 189, 34.

[47] Nabuco. Diários(17/10/1893). Ed. E. C. Mello. Recife:Bem Te Vi Produções Literárias/Massangana, vol. 2, 2005, grifos do autor.

[48] Ibidem.

[49] Tilly, C. Credit & blame. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2008, p. 90.

[50] Janotti, M. L. M. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.

[51] Para uma descrição das ações jacobinas, ver Reis, S. R. Os radicais da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.

[52] Pompéia, op. cit.

[53] Apud Magalhães Jr. , R. Arthur Azevedo e sua época. Rio de Janeiro: Saraiva, 1955, p. 89.

[54] Janotti, op. cit. , p. 79.

[55] Buarque, F. Origens republicanas: estudos de gênese política em refutação ao livro do Sr. Dr. Afonso Celso, o Imperador no exílio. São Paulo: Edaglit, 1962 [1894], p. 206.

[56] Sodré, L. Crenças e opinioes. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1997 [1896] .

[57] Pompéia. "Clamor maligno" (O País, 3/10/1895). In: Coutinho, op. cit.

[58] Nabuco. "Discurso de recepção, na sessão de 25 de outubro de 1896" [Instituto Histórico]. In: Escritos e discursos literários. São Paulo/Rio de Janeiro: Companhia Editora, pp. 105-7. Nacional/Civilização Brasileira, 1939.

[59] Ibidem, p. 109.

[60] Idem, A intervenção estrangeira durante A Revolta de 1893[1896]. In: Obras completas. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, vol. 2, p. 263.

[61] Alonso. "Joaquim Nabuco: o crítico penitente". In: Schwarcz, L. e Botelho, A. (orgs. ). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

[62] Nabuco, "Discurso de recepção, na sessão de 25 de outubro de 1896", op.

cit. , p. 108.

[63] Nabuco. "Significação nacional do Centenário Anchietano" [1897]. In: Escritos e discursos literários, op. cit. , pp. 130 - 31.

[64] Machado de Assis. A semana[17/05/1896]. In: Obra completa, op. cit.

[65] Graça Aranha. Machado de Assis e Joaquim Nabuco. comentários e notas à correspondência. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia, 1923, p. 26.

[66] Oliveira (op. cit. , pp. 13-14) jáchamou a atenção para esse resultado.

[67] Cf. Alonso, op.cit.


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