História e desventura: o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos
Lançado em dezembro de 2009 por força do Decreto 7. 037, o III Programa
Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3, o primeiro elaborado pelo governo Lula
(2003-2010), suscitou duras reações de alguns segmentos da sociedade
brasileira. Certamente, como nas edições anteriores, ambas durante o governo
FHC (1994-2002), o assunto teria merecido discreta atenção da mídia impressa e
eletrônica não fossem as polêmicas que provocou. As duras críticas colocaram
novamente em evidência termos de debate que pareciam superados. Durante a
transição para a democracia no Brasil (1979-1988) e por quase duas décadas,
temas de direitos humanos suscitavam reações depreciativas, freqüentemente
associados, pela opinião pública, à defesa dos direitos de bandidos, à utopia
de militantes que imaginavam uma sociedade despida de violência e de graves
violações de direitos humanos ou ainda à sede de vingança por parte de quem
havia sido perseguido pela ditadura militar. Desde a promulgação da
Constituição de 1988, muito se fez pelo avanço dos direitos humanos nas esferas
dos governos federal e estaduais. Pouco a pouco, direitos humanos entraram
definitivamente para a agenda política nacional. Comparado às edições
anteriores, o PNDH-3 situa-se na linha evolutiva das idéias e dos programas
governamentais que apontam antes continuidades do que rupturas entre os
governos FHC e Lula. Além do mais, todos os Programas buscaram mover-se dentro
dos marcos constitucionais, ainda que algumas iniciativas estivessem sujeitas à
interpretação desses preceitos.
Que as polêmicas surgissem já era esperado. Não poderia ser diferente, dada a
amplitude e a abrangência das iniciativas, dos programas e das medidas
adotadas, muitas das quais reclamando, em pleno ano eleitoral, edição de leis e
regulamentos para sua execução. As tradicionais dificuldades para aprovação de
projetos de lei - morosidade, excesso de trâmites burocráticos, contingências
conjunturais, leque de apoio partidário etc. - tendem a se tornar mais
acentuadas, em parte porque o congresso acaba refém das agendas eleitorais e
das expectativas dos resultados das urnas. Nada disso é surpreendente, exceto
por alguns de seus aspectos. Primeiramente, o fato de que as reações tenham
ressuscitado suas expressões mais conservadoras e simplórias, justamente do
tipo que se suspeitava superado - mais propriamente, o embate dicotômico,
simplificador, entre defensores e críticos dos direitos humanos. Em segundo
lugar, o Programa trata de questões com as quais o PT - o partido no governo -
tem larga afinidade. Não seria equivocado dizer que esta agremiação partidária
também ganhou projeção política nacional em torno da mobilização e da defesa de
direitos humanos. O PNDH-3 esteve, assim, desde sua concepção, identificado com
essa face do PT, representada principalmente pela figura do ministro Paulo
Vannuchi, expreso político e homem público reconhecido tanto por suas ações
governamentais neste campo político quanto por suas virtudes como articulador
de alianças suprapartidárias, sempre em nome de avanços e progressos no âmbito
dos direitos humanos.
A despeito desse patrimônio, e de sua larga aprovação popular, o governo Lula
hesitou diante das críticas e realizou alterações no Programa original para
apaziguar setores exaltados do governo, em especial o segmento de defesa,
ancorado nas forças armadas. O mais surpreendente foi o silêncio dos
intelectuais de esquerda, principalmente os identificados publicamente com o
PT. Por razões as mais diversas, poucos saíram à defesa do Programa e de suas
teses. Houve, é certo, quem se manifestou através de blogse abaixo-assinados
circulantes em sitesda internet. Salvo exceções, textos densos e copiosamente
argumentados, como ocorrera com freqüência em passado recente, não compareceram
no espaço público proporcionado pela mídia impressa e eletrônica - dominado,
aliás, pelas críticas. O ministro Vannuchi ficou praticamente desprovido de
apoio, o que teria suscitado rumores de sua demissão no auge das polêmicas.
Mas por que tanta polêmica, se o PNDH-3 não é tão diferente de seus
antecessores? Quais hipóteses podem explicar as reações e as resistências?
HISTÓRICO
À primeira vista, a leitura de notícias, opiniões, reportagens, entrevistas e
editorais que se disseminaram pela mídia impressa desde dezembro de 2009 até
meados do mês de fevereiro de 2010 parece sugerir que o PNDH-3 é uma criação do
governo Lula, razão por que teria incorporado não apenas reivindicações
históricas de seu partido como também assimilado seus traços ideológicos. Não
poucos artigos de opinião parecem respaldar essa suspeita. A senadora Kátia
Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA), em artigo no jornal Folha de S. Paulo, no qual critica o
tratamento conferido ao agronegócio pelo Programa, que ela julga
preconceituoso, e destaca os programas do governo anterior, referenda esse
ponto de vista ao afirmar que
[. . . ] no novo Programa Nacional dos Direitos Humanos, PNDH-3, o
desenho é outro: saem a democracia, a justiça, a tolerância e o
consenso e entra a velha visão esquerdista e ideológica que a
humanidade enterrou sem lágrimas nas últimas décadas, depois de muito
sofrimento e muita miséria1.
Na mesma direção, Ives Gandra da Silva Martins, jurista e professor emérito da
Universidade Mackenzie, critica em artigo publicado no mesmo jornal o que chama
de "viés ideológico ditatorial", supostamente presente no plano. De tão
afirmativo, vale a pena transcrevê-lo parcialmente:
O Programa Nacional de Direitos Humanos, organizado sob inspiração
dos guerrilheiros pretéritos [. . . ] é uma reprodução dos modelos
constitucionais venezuelano, equatoriano e boliviano, todos
inspirados num centro de políticas sociais espanhol para o qual o
Executivo é o único Poder, sendo o Judiciário, o Legislativo e o
Ministério Público Poderes vicários, acólitos, subordinados. No
programa, pretende-se fortalecer o Executivo, subordinar o Judiciário
a organizações tuteladas por "amigos do rei", controlar a imprensa,
pisotear valores religiosos, interferir no agronegócio, afastar o
direito de propriedade, reduzir o papel do Legislativo e aumentar as
consultas populares, no estilo dos referendos e plebiscitos
venezuelanos, além de valorizar o homicídio do nascituro e a
prostituição como conquistas de direitos humanos. Quem ler a
Constituição venezuelana verificará a extrema semelhança entre os
instrumentos de que dispõe Chávez para eliminar a oposição e aqueles
que o PNDH-3 apresenta, objetivando alterar profundamente a lei
brasileira2.
Várias outras análises, disseminadas por outros veículos de imprensa, revelam
inclinação semelhante. Identificam o programa com uma espécie de populismo de
esquerda, nostalgia ideológica de ex-militantes políticos que reclamam a
vingança dos vencidos contra os vencedores. Ainda que de forma caricatural,
relembram em parte o mesmo clima de polarização ideológica pré-golpe de Estado
em março de 1964.
Todavia, essas suspeitas não resistem aos fatos. A história dos direitos
humanos no Brasil - de suas origens à contemporaneidade - ainda está por ser
reconstruída. Há poucas menções na historiografia a reivindicações de direitos
humanos nos primórdios do regime republicano e mesmo no curso das sucessivas
interrupções da normalidade constitucional, por exemplo entre 1937 e 1945. Tudo
indica que os direitos humanos emergem como tema na arena pública e política
apenas no contexto das lutas contra a ditadura militar (1964-1985), fortemente
inspiradas pela Declaração Universal de 1948 e de seus desdobramentos. No
processo de transição democrática, assistiu-se à constituição de movimentos de
defesa de direitos humanos por todo o país, em especial em cidades como São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, em parte por
influência de pressões externas, como a da Liga dos Direitos Humanos da França
e a política de direitos humanos do governo Carter (1977-1981).
A despeito das desconfianças em relação à política externa da administração
Carter, grupos tradicionalmente sensíveis à mobilização política - como
profissionais liberais, jornalistas, professores universitários, estudantes,
lideranças sindicais -, ainda que motivados por distintas orientações político-
ideológicas, foram progressivamente articulando suas lutas com as organizações
internacionais de direitos humanos. No curso dos acontecimentos, eclodiram a
luta pela anistia ampla, geral e irrestrita (1978-1979) e a Campanha pelas
Diretas Já(1984). Na mesma época, forças políticas conservadoras, comprometidas
com a herança deixada pelo regime autoritário, opuseram-se tenazmente aos
avanços democráticos nessa direção, entre outras razões porque cuidaram de
evitar que denunciados por crimes contra os direitos humanos viessem a ser
julgados por tribunais civis e fossem, ao final, condenados. A lei da anistia
é, por certo, um dos resultados desses embates.
Qualquer que seja a interpretação que se possa atribuir aos rumos da democracia
no Brasil pós-transição, é inegável que os direitos humanos constituem a
espinha dorsal da Constituição de 1988. Ela afirma que a República Federativa
do Brasil constitui um Estado democrático de direito, fundado, além da
soberania e da cidadania, na dignidade da pessoa humana e no pluralismo
político. Sob o ponto de vista das relações internacionais, orienta-se por
inúmeros preceitos inscritos na Declaração Universal de 1948, tais como
independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos
povos, não-intervenção, igualdade entre Estados, defesa da paz, solução
pacífica de conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político. A
Constituição atribui ao Estado a tarefa de promover, mediante políticas
públicas, a universalização do acesso aos direitos econômicos, sociais,
políticos e culturais e de elaborar e executar políticas conseqüentes que
assegurem a distribuição eqüitativa do direito à educação, à saúde, à
habitação, ao transporte público, ao meio ambiente saudável, ao lazer e à livre
produção cultural, metas afinadas tanto com a agenda internacional dos direitos
humanos como com os Objetivos do milênio3.
A bem da verdade, os governos civis pós-redemocratização deram início à
incorporação de direitos humanos nas políticas governamentais. Todavia, foi no
governo FHC que o tema entrou definitivamente para a agenda política nacional,
em parte graças a uma conjuntura internacional favorável, em parte devido à
presença mais destacada no governo de lideranças reconhecidas e identificadas
com direitos humanos, como os ministros José Gregori e Paulo Sérgio Pinheiro.
Ainda assim, é bom lembrar, não se pode dizer que a composição de forças e
alianças de sustentação do governo FHC fosse inteiramente simpática à agenda,
sobretudo quando em pauta estavam iniciativas que visassem exercer férreo
controle civil sobre as forças policiais militares, ou que pretendessem
reparação diante das graves violações de direitos humanos ocorridas no curso da
ditadura militar. Quando isto aconteceu, as reações e as críticas não passaram
em branco.
A idéia de Programas Nacionais de Direitos Humanos nasceu na Conferência
Mundial dos Direitos Humanos (Viena, 1993). Nessa Conferência, decidiu-se
recomendar aos países presentes que elaborassem programas nacionais com o
propósito de integrar a promoção e a proteção dos direitos humanos como
programa de governo4. Em 7 de setembro de 1995, o governo FHC anunciou sua
intenção de propor um plano de ação para os direitos humanos.
Contendo 228 propostas, o PDDH-1 foi lançado em 13 de maio de 1996, primeiro
documento do tipo na América Latina e um dos primeiros no mundo, a exemplo de
Austrália, África do Sul e Filipinas5. Seis anos depois, ainda no governo FHC,
foi lançado o PNDH-2, resultado de revisão e aperfeiçoamento do primeiro
programa à vista das críticas e recomendações da IV Conferência Nacional dos
Direitos Humanos (1999). O PNDH-3 insere-se, por conseguinte, nessa mesma linha
de orientação. Trata-se de uma revisão, aperfeiçoamento e ampliação do elenco
de direitos humanos a serem protegidos e promovidos. A propósito, no texto
introdutório ao PNDH-2, afirma-se que
[. . . ] embora a revisão do Programa Nacional esteja sendo
apresentada à sociedade brasileira a pouco mais de um ano da posse do
novo governo, os compromissos expressos no texto quanto à promoção e
proteção dos direitos humanos transcendem a atual administração e se
projetam no tempo, independentemente da orientação política das
futuras gestões ("Introdução", Decreto nº 4. 229, de 13 de maio de
2002).
Os Programas Nacionais de Direitos são, antes de medidas governamentais,
políticas de Estado. Resultam de uma história recente de consolidação das
instituições democráticas na sociedade brasileira. Têm por referência a
Constituição de 1988, conhecida como "Constituição cidadã"6. O PNDH-3 não é,
sob essa perspectiva, uma iniciativa absolutamente nova, tampouco um
tresloucado gesto de militantes políticos da velha esquerda ou de guerrilheiros
do passado, hoje convertidos às regras da sociedade política democrática. Ao
sancionar o Decreto 7. 037, de 21 de dezembro de 2010, o presidente Lula agiu
como chefe de Estado, tal como seu predecessor o fizera, representando todos os
poderes constitucionais. Era o que se esperaria de seu papel constitucional.
CONTINUIDADES E INOVAÇÕES
Uma breve comparação entre os PNDHs reforça ainda mais as linhas de
continuidade. As três edições têm características comuns. Em primeiro lugar,
sua natureza suprapartidária. Como aponta a literatura especializada, cada vez
mais o respeito, a proteção e a promoção dos direitos humanos têm se convertido
em requisito para consolidação das instituições democráticas. A despeito de sua
jovem democracia, em comparação com outras experiências do mundo ocidental, a
sociedade brasileira está imersa nesta mesma tendência. Em segundo lugar, os
programas pretendem enfrentar a desarticulação entre instâncias decisórias do
aparato de Estado e de governo bem como entre governantes e governados,
representados na esfera civil pelas organizações não-governamentais (Ongs). Os
programas cuidam não apenas de promover articulações entre poderes, como entre
ministérios e seus mais distintos organismos e, sempre que possível, entre
governos federal, estaduais e municipais. Do mesmo modo, convocam parcerias
entre governos e Ongs para além de um mero contrato de confiança. Não sem
razão, as edições indicam órgãos responsáveis pela execução do programa, assim
como parceiros. Ao mesmo tempo, sempre que a execução de medidas envolva
governos estaduais e municipais, o Programa mantém cautelas em respeito ao
pacto federativo, motivo pelo qual optam pelo formato de recomendações.
As três edições incorporam, também, uma nova concepção de direitos humanos.
Seguindo a orientação da Conferência Mundial de 1993, reconhece-se a
indivisibilidade dos direitos humanos: direitos humanos não são apenas direitos
civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais, culturais e
coletivos, o que é uma grande novidade na história social e política
republicana no Brasil. Por fim, todas elas resultam de consultas à sociedade
civil, em praticamente todo o território nacional, seja sob a forma de
seminário para acolhimento de propostas e sugestões (PNDH-1), seja sob a forma
de Conferências Nacionais de Direitos Humanos (como nos PNDH 2 e 3).
Sob esta perspectiva, as três edições compreendem metas (de curto e médio
prazos) com objetivos claros e precisos, consubstanciados em medidas e ações
que se irradiam em múltiplas direções e com distintos alcances. O propósito
final é traduzir direitos, consagrados tanto na Constituição como em acordos
internacionais de que o Brasil é signatário, em planos visando reduzir
desigualdades sociais de toda espécie e assegurar o exercício das liberdades
civis e públicas. Em última instância, pretendem conferir maior consistência e
integração às ações governamentais capazes de promover e garantir direitos.
A comparação entre as três edições indica continuidades, aperfeiçoamentos e
inovações. No PNDH-1, o maior foco residiu no combate às injustiças, ao
arbítrio e à impunidade, nomeadamente daqueles encarregados de aplicar leis. O
Programa cuidou da proteção do direito à vida, do direito à liberdade, do
tratamento igualitário das leis - "direitos humanos para todos" -, dos direitos
de crianças e adolescentes, das mulheres, da população negra, das sociedades
indígenas, dos estrangeiros, refugiados e migrantes, e das pessoas portadoras
de deficiência, assim como se propôs lutar contra a impunidade. Abordou
igualmente a educação para os direitos humanos com vistas a fomentar uma
cultura de respeito e de promoção. Sinalizou para ações internacionais,
inclusive ratificação de convenções internacionais de que o país é signatário.
Referiu-se ainda ao apoio às organizações de defesa dos direitos humanos, bem
como ao monitoramento dos programas. Silenciou quanto aos direitos à livre
orientação sexual e às identidades de gênero, o que motivou protestos do
movimento LGBT.
Os principais resultados foram alcançados no campo da segurança pública, entre
os quais se destacam: transferência da competência, da Justiça Militar para a
Comum, para julgamento de policiais militares acusados de crimes dolosos contra
a vida;tipificação do crime de tortura com a fixação de penas severas;
criminalização do porte ilegal de armas e criação do Sistema Nacional de Armas
(Sinarm);aprovação do Estatuto dos Refugiados; criação da Secretaria Nacional
de Direitos Humanos; regulamentação da escuta telefônica (artigo 5º da
Constituição federal). Outra medida, com repercussão, foi a gratuidade do
registro de nascimento, à vista da existência de parcela não desprezível de
brasileiros desprovida desse título, que assegura nacionalidade e cidadania.
O PNDH-2 manteve essas orientações e ampliou o escopo de direitos a serem
protegidos. Compreendeu 518 medidas. Em face das críticas que o anterior
mereceu, este incorporou os direitos de livre orientação sexual e identidade de
gênero, assim como proteção dos ciganos. Conferiu maior ênfase à violência
intrafamiliar, o combate ao trabalho infantil e ao trabalho forçado, bem como à
luta para inclusão dos cidadãos que demandam cuidados especiais ("pessoas
portadoras de deficiência", conforme o texto do programa).
Para além desses avanços, o PNDH-2 é reconhecido por dois enfoques: a
incorporação dos direitos econômicos, sociais e culturais que, por razões
políticas, haviam sido sombreados no PNDH-1, e os direitos de afrodescendentes.
De fato, anteriormente, a área econômica do governo FHC, sobretudo no primeiro
mandato, manteve sob férreo e cerrado controle a política econômica e sua
execução orçamentária. Essa política de controle fiscal, visando garantir a
estabilidade monetária e os indicadores macroeconômicos, exerceu uma espécie de
interdito a todas as demais iniciativas governamentais que demandassem
aplicação de recursos extra-orçamentários. Daí porque o PNDH-1 não pôde, na
prática, aplicar o preceito de indivisibilidade dos direitos, tal como
anunciado na Cúpula Internacional de Viena e incorporado à agenda política
brasileira. No PNDH-2, foi possível incorporar aqueles direitos. A economia
apresentava sinais de maior estabilidade, a despeito da crise de desvalorização
monetária ao final do segundo mandato do governo FHC. Por isso, o PNDH-
2 detalhou a proteção de direitos à educação, à saúde, à previdência e
assistência social, à saúde mental, aos dependentes químicos e portadores de
HIV/Aids, ao trabalho, ao acesso à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável,
à alimentação, à cultura e ao lazer.
O segundo enfoque diz respeito aos direitos de afrodescendentes. Pela primeira
vez, o Estado brasileiro reconhece a existência do racismo e aponta iniciativas
visando promover políticas compensatórias com o propósito de eliminar a
discriminação racial e promover a igualdade de oportunidades. Trata-se de
medidas de ação afirmativa, que contemplaram possibilidades de reparação diante
da violação sistemática de direitos humanos contra essa população, ampliação do
acesso dos afrodescendentes à justiça, cadastramento e identificação de
comunidades remanescentes de quilombos, preservação da memória e da cultura
afrodescendente, participação equilibrada desses grupos sociais nas propagandas
governamentais e em matérias e campanhas publicitárias em geral e revisão dos
livros didáticos de modo a resgatar a contribuição de afrodescendentes para a
construção da identidade nacional.
O PNDH-3 cuidou de aprofundar e ampliar o elenco de direitos. Ele responde, em
grande medida, às demandas nascidas de cinqüenta conferências temáticas
realizadas desde 2003 (segurança alimentar, educação, saúde, igualdade racial,
direitos da mulher, crianças e adolescentes, habitação, meio ambiente, entre
outras) e às conclusões da XI Conferência Nacional de Direitos Humanos
(realizada em dezembro de 2008), precedida de amplo processo consultivo por
meio de conferências prévias ("Conferências Livres"), conferências estaduais e
distritais, que elegeram 1. 200 delegados e indicaram 800 observadores e
convidados.
Comparado aos anteriores, é mais extenso e com organização distinta. Está
estruturado em torno de seis eixos - interação democrática entre Estado e
sociedade civil; desenvolvimento e direitos humanos;universalização de direitos
em contexto de desigualdades sociais; segurança pública, acesso à justiça e
combate à violência; educação e cultura em direitos humanos; e direito à
memória e à verdade. Esses eixos estão subdivididos em 25 diretrizes, 82
objetivos estratégicos e 521 ações programáticas. Sua redação identifica
organismos responsáveis pela execução e parcerias. É flagrantemente mais
extenso do que as edições anteriores, mas sua linguagem e mesmo redação não se
diferenciam substantivamente.
As ações programáticas gravitam em torno de um universo léxico: apoiar,
fomentar, criar mecanismos, aperfeiçoar, estimular, assegurar e garantir,
articular e integrar, propor, elaborar, definir, ampliar, expandir, avançar,
incentivar, fortalecer, erradicar, promover, adotar (medidas), desenvolver,
produzir (informações, pesquisas), instituir (código de conduta), incluir,
implementar. Opiniões veiculadas na mídia impressa e eletrônica observaram que
os direitos foram anunciados nos PNDHs 1-2 em linguagem mais contida, enquanto
no PNDH-3 a linguagem é mais direta, "desabrida" como lembrou o ex-ministro da
Justiça José Gregori, cujo ministério foi responsável pela primeira edição. A
despeito desses reparos, em essência, o PNDH-3 conserva as ações programáticas
das edições anteriores, porém com maior detalhamento. Igualmente, como nas
anteriores, algumas medidas dependem de leis e inclusive de mudanças
constitucionais.
Todavia, forçoso é reconhecer, o PNDH-3 introduziu várias inovações, como
respostas às crescentes demandas da sociedade civil. Entre elas, algumas
provocaram ruidosa polêmica, como a proposta de criação da Comissão Nacional de
Verdade, a descriminalização do aborto, a união civil entre pessoas do mesmo
sexo, o direito de adoção por casais homoafetivos, a interdição à ostentação de
símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União, o "controle da
mídia" e a adoção de mecanismos de mediação judicial nos conflitos urbanos e
rurais,
[...] priorizando a realização de audiência coletiva com os
envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público
local, órgãos especializados e Polícia Militar, como medida
preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares, sem
prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos
(Eixo IV, diretriz 17, objetivo estratégico VI - Acesso à justiça no
campo e na cidade).
De um modo ou outro, esses temas polêmicos já estavam presentes nas edições
anteriores, ainda que em formulações mais contidas e discretas. No caso da
descriminalização do aborto, o PNDH-1 nada disse. No PNDH-2, o tema comparece,
porém sob uma formulação muito próxima de sua atual inscrição legal. Fala-se em
direitos reprodutivos como conceito a ser disseminado e estimulado em campanhas
de pré-natal e parto humanizado, bem como na prevenção da mortalidade materna e
da gravidez na adolescência. Ao mesmo tempo, considerou o aborto como "tema de
saúde pública, com garantia do acesso aos serviços de saúde nos casos previstos
em lei". Na mesma direção, propõe o desenvolvimento de programas educativos de
planejamento familiar, "promovendo acesso aos métodos anticoncepcionais no
âmbito do SUS". Portanto, a polêmica com as igrejas já estava instaurada. No
PNDH-3, o tema é deslocado do âmbito da saúde pública para a diretriz "combate
às desigualdades estruturais" (Eixo III, objetivo estratégico III - Garantia
dos direitos das mulheres para o estabelecimento das condições necessárias para
sua plena cidadania). Nesta edição, propõe-se "apoiar a aprovação do projeto de
lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para
decidir sobre seus corpos". Trata-se de substantiva mudança de enunciado. O
deslocamento dá-se da esfera da saúde pública (portanto, de uma esfera pública
de cuidados coletivos) para a esfera de decisão individual e subjetiva, nem
sempre considerada pela opinião pública como fonte legítima de direitos que
envolvem direitos de amplas maiorias. Portanto, sustenta-se aqui a hipótese de
que a linguagem do PNDH-3 é direta e, mesmo até, isenta do pudor político de
que se costumam cercar os formuladores de políticas públicas em áreas da vida
associativa tão sensíveis a polêmicas e a valores e visões de mundo dicotômicas
e polarizadas.
Como afirmado anteriormente, o PNDH-1 silenciou a respeito da livre orientação
sexual e identidade de gênero. O PNDH-2 incluiu esses direitos, priorizando
duas diretrizes: luta contra o preconceito e as formas de discriminação e
combate à violência contra os GLTTB (gays, lésbicas, travestis, transexuais e
bissexuais). No entanto, nas diretrizes pertinentes à orientação sexual já
propunha "apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas do
mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação de sexo e mudança de
registro civil para transexuais". O PNDH-3, portanto, reafirmou esses
objetivos, embora tenha sido mais ousado em reconhecer o direito à adoção por
casais homoafetivos. Na mesma direção, as três edições afirmam a liberdade de
culto e de crença. Combatem a intolerância religiosa, a veiculação de mensagens
racistas e/ou xenofóbicas e incentivam o diálogo entre movimentos religiosos
com vistas à construção de uma sociedade pluralista. O PNDH-3 foi mais além ao
propor a extinção de símbolos religiosos das dependências onde funcionam
serviços da União como garantia de laicidade do Estado.
Tanto nas edições anteriores como na atual essas questões não deixaram de ser
alvo de críticas. Afinal, o conservadorismo moral é ainda forte na sociedade
brasileira, incentivado por igrejas e seitas, segmentos da mídia impressa e
eletrônica e pelo tradicionalismo da educação básica no Brasil. As mudanças
custam a ser assimiladas, mesmo quando muitos reconheçam que o aborto e a
homossexualidade façam parte da realidade de muitas famílias, nas suas
múltiplas formas de organização e associação, ou que muitos se declarem
formalmente religiosos, embora ausentes das igrejas e dos rituais cotidianos de
reafirmação da fé.
Quanto ao controle da mídia, esse é um tema que mereceria maior atenção. A
Constituição garante a liberdade de expressão e opinião e veda a censura sob
quaisquer formas. Nos artigos 220 e 221, estabelece que lei federal regulará
diversões e espetáculos públicos e indica os princípios que devem reger a
produção e a programação das emissoras de rádio e televisão, o que pode apontar
para instrumentos regulatórios. Já o artigo 224 previu a instituição, no
Congresso Nacional, de um Conselho de Comunicação Social7. As fronteiras e os
limites entre regulação e restrição de direitos é, por conseguinte, tênue e não
raro estão subordinados aos humores dos governantes e legisladores. O PNDH-
1 apostou no diálogo entre produtores e distribuidores visando à cooperação
para o cumprimento da legislação em vigor. O PNDH-2 foi mais direto: propôs
garantir a
[...] possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de
rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os
meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de
telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória
aos direitos humanos.
O PNDH-3 mantém a mesma diretriz; contudo, propõe criar um "rankingnacional de
veículos de comunicação comprometidos com os princípios dos Direitos Humanos,
assim como os que cometerem violações".
Não é o caso de se fazer, aqui, um debate acurado a respeito do alcance dessas
propostas. É certo que os programas não pretendem exercer controle social8
sobre toda a mídia, tão-somente sobre as informações a respeito de direitos
humanos. Se isto é censura, é questão para o debate público e político. Nunca é
demais lembrar, como já dito antes, que direitos humanos são o alicerce da
Constituição federal. Pode-se argumentar que os programas pretendem justamente
proteger esse alicerce contra possíveis e eventuais ataques, o que, no limite,
estaria colocando em risco a própria estabilidade institucional da sociedade
brasileira. Desde logo se vê que o debate é complexo justamente porque imerso
no emaranhado de direitos de várias espécies, referido a distintos escopos e
voltado à proteção de bens diversos.
No tocante ao acesso à justiça, O PNDH-1 não se referiu diretamente aos
mecanismos de mediação de conflitos agrários e urbanos. PNDH-2 refere-se a
estes mecanismos. E mais, propôs apoiar a lei complementar 88/96, que
estabeleceu rito sumário, assim como outros instrumentos legais para dinamizar
expropriação de terra para fins de reforma agrária, "assegurando-se, para
prevenir atos de violência, maior cautela na produção de liminares". O PNDH-
3 conservou este propósito, conquanto tenha introduzido o diálogo entre as
partes como medida preliminar à concessão de liminares. Portanto, a questão já
estava presente na edição anterior. Se pertinentes, as duras críticas da
presidente da CNA e do ministro Reinhold Stephanes (Agricultura, governo Lula),
segundo as quais a medida provocará instabilidade jurídica no campo, deveriam
ser estendidas à edição sob responsabilidade do governo FHC. Certamente, se há
instabilidade nos conflitos sociais no campo, eles se devem a razões mais
complexas, e não se resumem às intervenções judiciais.
Por fim, o direito à memória e à verdade. Não é o caso de historiar a luta da
sociedade brasileira, ou ao menos de seus segmentos mais organizados, pelo
acesso aos arquivos da ditadura, pelo direito a tomar conhecimento do que se
passou com aqueles que desapareceram ou foram mortos durante a ditadura,
especialmente os que estavam sob custódia das forças repressivas, e pela
responsabilização daqueles que cometeram graves violações de direitos humanos.
Essas reivindicações estiveram presentes em todos os movimentos pela
reconstrução da normalidade democrática, desde a edição de Brasil: nunca mais,
na luta pela anistia, nas campanhas pelas Diretas-já e tantos outros movimentos
de afirmação de direitos. Na transição para a democracia, foram postergados
para permitir o retorno ao Estado de direito com o aval dos militares e da
classe política que havia sustentado o regime autoritário. As duas primeiras
edições não fizeram menção a esses direitos, senão indiretamente quando
advogaram reparações para graves violações de direitos humanos. Foi com o PNDH-
3 que se incorporou o tema.
Havia antecedentes. A Secretaria Nacional de Direitos vinha se ocupando do
assunto: publicou o relatório "Direito à memória e à verdade" (2007), reunindo
resultados de pesquisas a respeito da repressão à dissidência política durante
a ditadura. Igualmente, a Comissão de Anistia havia alcançado a marca de 700
sessões de julgamento. Desde 2008, patrocinava as caravanas de anistia, com o
propósito de divulgar os casos julgados em todo o país. Reivindicações nessa
direção e sentido foram se fortalecendo na sociedade brasileira há, pelo menos,
uma década, seja em virtude da responsabilização de governantes e agentes
públicos comprometidos com as ditaduras no Chile, na Argentina e no Peru, seja
por força da descoberta, aqui e acolá, de arquivos que se julgavam perdidos ou
destruídos. Nestas sociedades, esses casos ensejaram abertura de processos
penais em cortes civis, levando os autores à condenação e à prisão por penas
longas.
Foi neste contexto que o PNDH-3 propôs a criação de uma Comissão Nacional de
Verdade, composta de forma plural e suprapartidária, com mandatos e prazos
definidos, "para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no
contexto da repressão política no período mencionado". O Programa ousou mais ao
"propor legislação de abrangência nacional proibindo que logradouros, atos e
próprios nacionais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram
crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já
tenham sido atribuídos" (Eixo 6 - Direito à Memória e à Verdade, Diretriz 25,
ação programática c).
Não é necessário esforço para compreender as razões pelas quais essas
proposições suscitaram crise no governo, ameaçaram dois ministros - o da Defesa
e o dos Direitos Humanos - de demissão, provocaram protestos de setores das
forças armadas e uma torrente de críticas contra o "revanchismo" do PNDH-3,
inclusive de segmentos civis da opinião pública. Associados a ex-militantes de
esquerda com posições proeminentes no governo, a ministra Dilma Rousseff, o
ministro Franklin Martins e o próprio ministro Vannuchi, as críticas arrastaram
na sua cauda todas as demais críticas referidas anteriormente. Tão contundentes
foram as críticas e as tensões entre o Ministério da Defesa e a Secretaria
Nacional de Direitos Humanos que o governo se viu constrangido a rever os
termos de criação da Comissão Nacional de Verdade.
Se, com exceção do domínio do direito à memória, existem linhas de continuidade
e de evolução entre as três edições do Programa Nacional de Direitos Humanos,
por que tanta celeuma? O que explicam essas reações tão duras, que os programas
anteriores não conheceram?
RAZÕES DA POLÊMICA
Certamente, a introdução do tema memória e verdade é um dos motivos9. Entre
outras questões sensíveis à polarização político-ideológica, a apuração de
responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos durante a ditadura
militar permanece um divisor de águas. Neste domínio, o corporativismo mantém-
se forte a despeito da sucessão geracional e da renovação dos quadros
militares. Aparentemente, não há fissuras, tampouco a geração de novos
comandantes parece inclinada a rever sua história - a história dos vencedores,
como costumam dizer -, o que poderia abrir as portas, para além das reparações
aceitas com certa resistência, para a responsabilização e punição daqueles
diretamente envolvidos na repressão, e turvar imagens socialmente construídas.
A ausência de uma justiça de transição, logo após o retorno à democracia,
contribuiu para a persistência de tabus - isto é, interdição de se falar
livremente e em público a respeito de temas "delicados" ou "perigosos", de
abordar zonas de conflitos não resolvidos ou superados.
A ausência de uma justiça de transição contribuiu igualmente para que esses
temas - e talvez mesmo não seja menos verdadeiro para outros como a
descriminalização do aborto, a união civil entre casais do mesmo sexo, a adoção
por casais homoafetivos, o controle social da mídia - fossem abordados segundo
um estilo, por assim dizer, direto, abrupto e em direção ao confronto. Esse é,
ou era, em grande medida, um estilo de fazer política muito próximo do partido
que elegeu o presidente Lula. Como se sabe, os vínculos do PT com movimentos
sociais são embrionários. A idéia de democracia direta, baseada em amplas
consultas populares, com destacada organização e participação de delegados e
representantes, com assento em conselhos consultivos e diretivos, com elevada
capacidade de traduzir reivindicações em regulamentos e planos de ação, sempre
esteve identificada com este partido e seus militantes. Não raro, este estilo
de poder caminhou no sentido de confrontação de idéias e posições, de que
resultaram protestos coletivos sob as mais distintas formas (das greves e
manifestações de rua, às campanhas partidárias e obstruções parlamentares).
No poder, sob a liderança do presidente Lula e com governabilidade assegurada
por um leque de alianças - da extrema direita à extrema esquerda -, esse estilo
de fazer política não é mais hegemônico. Talvez, mais do que o governo FHC, que
dependeu de uma aliança majoritária entre PSDB e DEM, partidos cuja imersão nos
movimentos sociais é rarefeita, o governo Lula é flagrantemente menos
"uniforme" em seu perfil do que talvez pareça. Embora a unidade no interior de
governos que dependem de alianças entre partidos com perfil ideológico distinto
seja quase um mito, é certo que neste governo ela aparece mais vulnerável ao
loteamento interno, à disputa entre ministérios, ao encastelamento de
interesses - e tudo isso a despeito das virtudes reconhecidas do presidente em
mediar conflitos e alcançar consensos. Não é o caso de repertoriar os
principais embates. Basta apenas lembrar os confrontos entre os Ministérios da
Agricultura e do Meio Ambiente e, mais recentemente, entre o Ministério da
Defesa e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos em torno do lançamento do
PNDH-3.
Dadas as suas características e suas relações contidas com os movimentos
sociais, o governo FHC tinha condições políticas mais favoráveis para exercer
com pudor a oportunidade política de discutir temas e questões delicados, como
se viu, ainda que isto gerasse protestos e críticas de movimentos sociais,
ligados ou não ao PT. Embora livres, as consultas populares produziam
reivindicações que eram politicamente tratadas. Evitou-se, o quanto possível,
confrontos, conquanto as críticas fossem, a par de inevitáveis, necessárias. Em
matéria de direitos humanos, atravessou oceanos sem grandes turbulências.
Não é de se esperar que os movimentos de defesa de direitos sejam contidos. A
paixão lhes é inerente, sobretudo quando se trata de colocar, lado a lado, como
se fosse um acerto de contas, as heranças do passado e as tarefas do futuro.
Todavia, essa estreita ligação entre assembléias e decisões políticas, quando
transportada para a esfera governamental, não pode deixar de trazer consigo um
turbilhão de críticas. As mais exageradas viram no PNDH-3 a substituição da
carta constitucional, o prenúncio de uma ruptura institucional ou a anulação do
papel exercido nas democracias pelo parlamento, este espaço onde os
representantes do povo votam as leis e referendam programas de governo. Quando,
além da memória e da verdade, veio à tona o tema do "controle social" da mídia,
o estopim estava detonado. O fantasma do estatismo de esquerda veio novamente
assombrar mentes e acender espíritos vigilantes contra "ideais sepultados com
lágrimas". Nomais, a conjuntura pré-eleitoral cumpriu seu papel, tornando o
espaço político mais sensível e mais inclinado ao confronto do que à
negociação. Assim, também ressuscitou o lado conservador da sociedade
brasileira, em matéria de hábitos e costumes, suas tradicionais dificuldades de
aceitar diferenças, de conviver com novos padrões de relacionamento, menos
hierarquizados, menos sujeitos a regras fixas e rígidas.
As críticas ao PNDH-3 são bem-vindas, porque necessárias à vida democrática. As
polêmicas revelaram-se exageradas. Há mais continuidade entre as três edições
do Programa Nacional de Direitos Humanos do que rupturas. Pensados na
Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena, esses programas foram
concebidos como instrumento capaz de conferir maior unidade e coerência à
proteção e à promoção desses direitos. Articulam diferentes e múltiplas
iniciativas, em torno de objetivos comuns e metas programáticas, conferindo
responsabilidades a agentes e agências. Não pretendem substituir os
instrumentos tradicionais de fazer política institucional, tampouco os espaços
onde a política é debatida, negociada e as leis são votadas. É curioso, aliás,
que as críticas não tenham se detido em um quesito presente nas três edições:
a exigência de monitoramento do programa, que deve ser feito periodicamente.
Esse é, de fato, o espaço da crítica. É nele que se pode confrontar o ideal e o
real, o que se propôs e o que se fez, avanços e recuos. É por meio do
monitoramento que os governos ficam sujeitos a cobranças e - mais do que isto -
vulneráveis em suas tarefas de proteger a espinha dorsal da constituição
política brasileira.
SÉRGIO ADORNO é professor titular do Departamento de Sociologia (FFLCH),
coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-CEPID-USP) e da Cátedra
Unesco de Direitos Humanos, Educação para a Paz, Tolerância e Democracia.
[1] Abreu, K. "Direitos humanos ou gato por lebre?". Folha de S. Paulo,
Opinião, 12/01/2010.
[2] Silva Martins, I. G. "Guerrilha e redemocratização". Folha de S. Paulo,
Tendências/Debates, 22/01/2010.
[3] A Cúpula do Milênio das Nações Unidas teve lugar em Nova York, de 6 a 8 de
setembro de 2000. Resultou na Declaração do Milênio das Nações Unidas (2000),
que estabeleceu metas para redução da miséria, da pobreza e das desigualdades
sociais. Contempla metas para redução da incidência de epidemias e endemias, da
mortalidade infantil e mortalidade materna, da proporção de pessoas vivendo com
rendimentos que a classificam como miseráveis e pobres; e para expansão da
alfabetização (feminina e masculina), do acesso à água e ao saneamento básico,
de acesso ao telefone e ao computador. Ver Biblioteca Virtual de Direitos
Humanos (USP), <http://www.direitoshumanos.usp.br>.
[4] A Declaração da Conferência Mundial de Viena recomendou que cada Estado
considerasse a oportunidade de elaboração de um plano de ação nacional voltado
para promoção e proteção dos Direitos Humanos. Em outras palavras, no âmbito da
ONU, reconhecia-se esse plano como política pública. Ao mesmo tempo, a
Declaração pondera a responsabilidade dos Estados na implementação dos Direitos
Humanos, particularmente quando envolvem convenções internacionais firmadas.
Nessa medida, os Programas são tanto planos governamentais como políticas de
Estado.
[5] Nunca é demais lembrar, o lançamento deu-se durante conjuntura bastante
conturbada: a do trauma nacional motivado pelo massacre de Eldorado dos
Carajás, no Pará.
[6] A Constituição de 1988 é denominada "cidadã" porque, pela primeira vez na
história republicana, não se limitou a enunciar formalmente direitos. Além de
estender o elenco dos direitos individuais e coletivos, inscrevê-los no terreno
dos direitos humanos, indicou instrumentos para sua garantia e efetividade. Os
instrumentos ampliaram a participação dos cidadãos na formulação e na
implementação de políticas públicas, através por exemplo dos conselhos
consultivos e deliberativos.
[7] Regulamentado pela Lei nº 8389/91.
[8] A noção de controle social, referida nos programas, é ambígua. Quem deve
exercer o controle social e em que consiste? É a sociedade que, por meio do
debate e da crítica, acompanha a veiculação de notícias a respeito de direitos
humanos, como, por exemplo, a Associação Nacional dos Direitos da Criança
(Andi) monitora as informações que circulam sobre crianças e adolescentes? Ou
será designado um órgão governamental para exercer essa tarefa, fundado em
regulamentos?
[9] Por certo, um tratamento mais denso e completo desta análise exigiria
considerar as mudanças que se verificaram no domínio dos conflitos sociais,
tanto na sociedade brasileira como nas esferas internacionais que podem ter
reascendido a polarização entre defensores e críticos dos direitos humanos.