À sombra de Charles de Gaulle: uma diplomacia carismática e intransferível. A
política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010)
O modelo ao qual mais se assemelha a diplomacia de Lula é o do general De
Gaulle1, embora muito provavelmente a semelhança não seja consciente e sim,
como se dizia nos filmes antigos, ela se deva à mera coincidência.
De fato, a política externa brasileira dos últimos oito anos possui as
seguintes características que foram tradicionalmente associadas à diplomacia
gaullista:
■É fortemente pessoal e carismática, inseparável mesmo da biografia e
da personalidade do chefe de Estado.
■Mais do que ditada por ideologias, é, acima de tudo, intensamente
nacionalista, buscando aproveitar oportunidades de acumular prestígio
internacional mediante o reconhecimento externo da grandeza do Brasil
e de sua aspiração de igualdade com as maiores potências.
■Sua principal marca externa é a contestação ao padrão de hegemonia
do sistema internacional simbolizado pelos Estados Unidos e demais
membros permanentes do Conselho de Segurança, em relação aos quais a
diplomacia brasileira manifesta constante independência, não
hesitando em patentear de público suas divergências.
■Busca estimular alianças e arranjos que se oponham ao sistema de
poder preponderante como se constata na aproximação com a Turquia no
acordo sobre o enriquecimento do urânio iraniano, na chamada
"parceria estratégica" com o Irã, expressão repetida em relação à
França de Nicolas Sarkozy (compra de armamentos), a China, a Rússia,
a África do Sul, ao grupo dos Brics.
■Exprime-se, como no exemplo gaullista, no intento de criar uma zona
de influência exclusiva no perímetro mais próximo da América do Sul,
com exclusão dos Estados Unidos, como tentava fazer De Gaulle na
Europa Ocidental.
■O estilo é crítico e não-consensual, lembrando os tempos de Jânio
Quadros, do qual afirmava seu chanceler, Afonso Arinos, que o
presidente acertava no atacado e errava no varejo. Os exemplos
abundam: as declarações em Cuba sobre a greve de fome de prisioneiros
de consciência; a crise financeira de responsabilidade de "louros de
olhos azuis"; as acusações de fraude nas eleições iranianas
comparadas à briga de torcidas no Fla-Flu e assim por diante.
Internamente acentua a ruptura, não a continuidade, vincula-se
claramente a uma facção partidária e a uma corrente ideológica, não
se preocupando em edificar um consenso nacional em torno de temas de
interesse nacional perdurável.
■Demonstra relativa indiferença pela falta de resultados econômicos e
comerciais tangíveis e imediatos em negociações e acordos bilaterais
ou regionais, dispondo-se a sacrificar interesses e direitos
materiais a objetivos políticos no relacionamento com vizinhos e
terceiros em geral (gás da Bolívia, reivindicações paraguaias,
medidas protecionistas argentinas, prioridade exclusiva na negociação
multilateral da Organização Mundial de Comércio).
■Revela escassa sensibilidade aos temas clássicos do idealismo e dos
valores morais nas relações internacionais: direitos humanos, defesa
da democracia, interferência internacional para impedir o genocídio e
crimes contra a humanidade, o esforço de evitar a não-proliferação
nuclear, preocupação com os efeitos planetários e globais da mudança
climática.
■Afasta-se do ideal republicano de
institucionalizaçãoeimpessoalidade, aproximando-se dos modelos
carismáticos de liderança personalizada típicos da América Latina,
exceções raras em democracias maduras (como a exceção gaullista).
Partindo das características esquemáticas resumidas, tentarei captar as linhas
gerais que conferem inconfundível perfil à diplomacia desenvolvida durante o
arco de tempo que cobre quase a inteira primeira década do século XXI.
DIPLOMACIA PESSOAL E CARISMÁTICA
O apogeu a que atingiu o prestígio do Brasil no mundo não se deve
exclusivamente a um só governante ou a um único fator. Ele resulta de uma
conjunção excepcional de oportunidades externas favoráveis com uma situação
interna de estabilidade política e econômica sem precedentes. O esforço
cumulativo de sucessivos governos desde o retorno do país à ordem
constitucional democrática foi responsável por muitas das razões da percepção
favorável ao Brasil e que, embora recentes, tendem a se tornar estruturais: a
estabilidade macroeconômica; a expansão do mercado interno de consumo; a
consolidação do regime democrático; a alternância normal no poder, sem
violência, de correntes e partidos diferentes, mas quase sempre próximos do
centro do espectro ideológico; a moderação e o pluralismo da vida política,
religiosa, cultural; o avanço em algumas reformas sociais; o desaparecimento da
ameaça de golpes militares e a subordinação das Forças Armadas ao poder civil;
a baixa intensidade de violências ou tensões raciais, religiosas, culturais.
Outras são conjunturais ou pessoais. Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)
desfrutou de considerável prestígio e admiração em razão de suas realizações
como intelectual, de sua decisiva contribuição à tarefa de estabilização da
economia, da relação estreita que havia estabelecido com estadistas como Bill
Clinton (Estados Unidos) e Tony Blair (Reino Unido). No período do governo
atual ocorreram fatos novos ou se acentuaram tendências anteriores que atuaram
todas no sentido de reforçar a imagem positiva do país. A descoberta da
gigantesca reserva petrolífera do pré-sal seguramente aumentou a importância
estratégica e as perspectivas econômicas futuras do Brasil. Da mesma forma
agiram a aceleração do crescimento, o relativo êxito com que se enfrentou a
crise financeira, as referências elogiosas de organizações internacionais a
programas sociais como o Bolsa Família, a atenuação da pobreza e da
desigualdade.
O presidente Lula potencializou e multiplicou essas condições propícias ao
simbolizar de certo modo, pela sua história pessoal, o exemplo de ascensão do
país como um todo. Sua identificação com as grandes causas sociais de luta
contra a fome e a pobreza, o carisma de personalidade autoconfiante, a vocação
inata à negociação foram elementos adicionais para reforçar a percepção externa
da emergência do Brasil como ator global.
Contudo, por excesso de protagonismo, o sucesso indiscutível da diplomacia
presidencial colou-se de forma tão inseparável ao carisma do presidente Lula
que se tornou demasiado personalista e intransferível. Na antevéspera da
sucessão, o debate sobre a orientação internacional que mais convém ao Brasil e
não apenas a um projeto de poder pessoal ou de uma facção não pode evitar o
exame dessas alegações. É a partir delas que se poderia separar, na linha de
ação atualmente seguida, o que reflete as realidades e os interesses do país
como um todo do que não passaria do efeito real, mas efêmero, da sedução
exercida por uma liderança carismática desacompanhada de resultados objetivos e
concretos.
PROJEÇÃO NACIONAL E BUSCA DE PRESTÍGIO
A evolução nos anos recentes do contexto político e econômico internacional
mostrou-se extremamente propícia à aspiração de países como o Brasil de adotar
e executar uma política externa de crescente afirmação.
Foi justamente nessa primeira década do século que se assistiu, em termos
políticos globais, ao aparecimento de espaço favorável à afirmação de um novo
policentrismo, isto é, à possibilidade de que atores de poder intermediário
(Brasil, Índia, África do Sul, Turquia) tomem iniciativas autônomas em temas
globais antes reservados às potências preponderantes (os cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança da ONU: Estados Unidos, China, Rússia,
Reino Unido, França). O policentrismo viabilizou-se aos poucos, à medida que o
unilateralismo da estratégia de George W. Bush na resposta aos atentados de
Onze de Setembro sobretudo a invasão do Iraque, a doutrina do preemptive
attack e do Eixo do Mal se revelaram incapazes de resolver com êxito o
engajamento militar não apenas no Iraque, mas também no Afeganistão. O
conseqüente enfraquecimento relativo do poder e do prestígio norte-americanos
sofreu o desgaste adicional da crise econômico-financeira, levando à aceitação
pelo próprio governo Obama dessa alteração na realidade internacional.
O cenário econômico foi marcado no início (2003-2008) por fase sem precedentes
de expansão da economia mundial (preços das commodities, liquidez financeira,
juros baixos), seguida por crise financeira aguda que desorganizou e debilitou
de preferência as economias ocidentais de capitalismo avançado, reforçando os
efeitos da emergência econômica da China e precipitando a aceitação do G-20
como instância substituta do G-7 na coordenação da economia global.
Na América Latina, registra-se um vazio de liderança, provocado pela acentuação
do desvio da atenção dos Estados Unidos para outras regiões prioritárias do
ponto de vista de segurança, em particular o Oriente Médio e a Ásia e pelo
apagamento temporário do México e da Argentina. Ao mesmo tempo, aumentaram em
intensidade as divergências e a heterogeneidade de regimes em decorrência das
experiências radicais de refundação encarnadas na Venezuela de Chávez, na
Bolívia de Morales e no Equador de Correa, complicando as perspectivas de
efetiva integração econômica ou de colaboração político-estratégica.
As duas primeiras tendências reforçaram-se uma à outra, abrindo possibilidades
inéditas para atores intermediários favorecidos por condições de estabilidade
político-econômica e dotados de capacidade de formulação e iniciativa
diplomáticas como o Brasil no começo de 2003. Superados os solavancos
econômicos iniciais, o governo Lula foi o afortunado herdeiro de uma Nova
República que havia consolidado a democracia de massas, a coesão social interna
e a estabilidade dos horizontes econômicos.
Inspirada pelo desejo de aproveitar as oportunidades surgidas, sobretudo em
âmbito global, a política externa do governo Lula desdobrou-se desde o início
ao longo de quatro eixos principais:
1. A obtenção do reconhecimento do Brasil como ator político global
de primeira ordem no sistema internacional policêntrico em formação,
o que normalmente se vem traduzindo pela busca de um posto permanente
no Conselho de Segurança da ONU, mas pode assumir eventualmente
outras modalidades de realização como a participação nos recém-
criados agrupamentos do G-20, Brics e Ibas.
2. A consolidação de condições econômicas internacionais que
favoreçam o desenvolvimento a partir das vantagens comparativas
brasileiras concentradas na agricultura, objetivo que se expressa
primordialmente na conclusão da Rodada Doha da OMC.
3. A dimensão reforçada emprestada às relações Sul-Sul, ensejada
naturalmente pela forte e visível emergência da China, da Índia, da
África do Sul, pela retomada do crescimento africano e expressa na
proliferação de foros de contatos, alguns superpostos aos gerais
(Ibas, Brics em parte), outros originais (Afras, Aapa, Brasil-Caricom
etc.).
4. A edificação de espaço político-estratégico e econômico-comercial
de composição exclusiva sul-americana (implicitamente de
preponderância brasileira no resultado, se não na intenção), a partir
da expansão gradual do Mercosul.
Dependendo do tema. o balanço dos resultados alcançados pela diplomacia mostra
que os avanços variam, mas, talvez com exceção do mais fácil, o eixo Sul-Sul,
em nenhum dos casos os objetivos foram realmente atingidos. Nem sempre,
contudo, a frustração das metas se deve a culpas e deficiências da política
exterior brasileira. De forma um tanto simplificada, pode-se afirmar que nos
dois primeiros eixos, o Brasil quer, mas não pode; no da América do Sul, o
governo pode, mas não quer.
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas
Na Organização das Nações Unidas e na Organização Mundial de Comércio, a
capacidade brasileira de influenciar os acontecimentos não é suficiente para
resolver os impasses. Por mais que o governo se esforce, não se logrou até
agora produzir consenso para reformar o Conselho de Segurança, nem para
concluir a Rodada Doha, quanto mais para fazê-lo de acordo com os interesses do
Brasil. Quer dizer: é mais um problema de insuficiência de poder ou vontade
política, não só do Brasil, mas dos demais, do que de falta de política
apropriada de parte da diplomacia nacional.
Isso não significa que não se tem feito nada. Ao contrário, em ambos os foros a
atuação brasileira nos havia posicionado até recentemente de maneira favorável
a tirar bom partido de eventual retorno de condições propícias a um avanço. É
inegável que o Brasil conquistou neste momento uma situação diferenciada em
relação a outros aspirantes latino-americanos como o México e a Argentina,
distanciando-se como o favorito para ocupar uma cadeira que vier acaso a ser
destinada à América Latina. Reflexo principalmente do próprio crescimento
econômico e estabilidade brasileira, a percepção diferenciada deve ser também
creditada ao ativismo e ao senso de oportunidade da atual política externa.
As negociações na Organização Mundial de Comércio (OMC)
Se houve, portanto, diferenças inegáveis em relação ao governo anterior na
ênfase dada ao Conselho de Segurança, bem como nas oportunidades antes
inexistentes sobre agrupamentos que só surgiram agora como o G-20, os Brics, e
outros, existe nas negociações da OMC muito mais continuidade do que mudança na
linha negociadora seguida pelos governos brasileiros ao longo de muitos anos,
primeiro no Gatt, mais tarde na sua sucessora, a Organização Mundial de
Comércio. Mesmo as eventuais alterações se afiguram quase sempre desdobramentos
naturais impostos por novas fases da Rodada Doha, originando-se nos governos
passados muitas das posições e alianças utilizadas na OMC.
O recurso à abertura de contenciosos exemplares, como o dos subsídios ao
algodão contra os Estados Unidos (posteriormente contra os subsídios da União
Européia ao açúcar), é uma boa ilustração da continuidade de política de
Estado, pois havia sido iniciado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Ademais, data igualmente da administração do ministro Celso Lafer (2001-2002) a
decisão de estabelecer na estrutura do Itamaraty um setor de contencioso
provido dos recursos capazes de empreender uma ação de extraordinária
complexidade técnica e jurídica como foi a dessa indiscutível vitória da
diplomacia comercial brasileira.
Outro exemplo da continuidade básica na política do Brasil nas negociações
comerciais multilaterais é o da criação do Grupo dos Vinte da OMC, inovação
tática que se deveu à iniciativa, acolhida pelo chanceler Celso Amorim, do
então embaixador do Brasil na OMC, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que havia sido
justamente o secretário-geral do Itamaraty (1999-2001) na gestão anterior, do
ministro Lafer.
CONTESTAÇÃO DA HEGEMONIA E AFIRMAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA
O Brasil há muito tempo empenha-se numa linha diplomática que favorece a
emergência de um sistema decisório mundial mais equilibrado e multipolar, ao
mesmo tempo em que defende ciosamente a autonomia e a independência de suas
opções. O que tem variado no tempo é o estilo mais ou menos construtivo dessa
postura. A evolução do atual governo registra uma tendência gradual a um
discurso acentuadamente mais militante e crítico em temas como o do impasse das
negociações da Rodada Doha, do comportamento norte-americano diante do golpe de
Honduras, do acordo militar entre os Estados Unidos e a Colômbia e, de modo
incalculavelmente mais importante, na questão do programa nuclear iraniano.
A recente guinada da atitude brasileira em relação a um regime como o de Teerã,
objeto de sucessivas sanções do Conselho de Segurança, conduziu o Brasil
perigosamente perto de uma rota de colisão com os Estados Unidos em dois
assuntos correlatos de importância crucial para o governo Obama: a legitimação
de regime recém-saído de eleições contestadas e a não-proliferação nuclear, uma
das prioridades principais da nova administração. Ao aceitar a troca de visitas
no mais alto nível com nação geralmente acusada de desafiar as sanções, violar
a democracia e os direitos humanos, negar o Holocausto e tentar adquirir armas
atômicas, contrariando o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o país tomou
decisão de implicações negativas junto a uma parcela importante e influente da
opinião pública norte-americana e mundial. Não se percebe bem quais os ganhos
que a diplomacia brasileira espera colher de iniciativa que se reveste de
alguns aspectos brilhantes como jogada diplomática, mas que arrisca deixar um
saldo pesado de ressentimentos e desconfianças.
O acordo com o Irã, mediado com a Turquia, teria sido um passo relevante,
talvez até decisivo, para valorizar a postura brasileira (e turca), caso
tivesse sido coordenado e harmonizado com o grupo de "Cinco mais Um" (os cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha). Para isso, ele
deveria ter sido precedido e acompanhado de consultas a esses países, dos quais
teria de depender a implementação do acordo no Conselho. Ficou evidente,
contudo, pela reação dos integrantes do grupo, que o resultado das tratativas
em Teerã apareceu como um fato consumado a ser imposto aos demais, já que a
solução negociada deixou de cobrir pontos vitais para dissipar a desconfiança.
Ademais, a própria atmosfera de triunfo desportivo que cercou a assinatura na
capital do Irã, com os patrocinadores erguendo os braços em sinal de vitória,
realçou no gesto os aspectos de desafio, não de conciliação, não contribuindo
naturalmente para fazer apreciar o acordo pelos destinatários da manobra.
O episódio revela, ao mesmo tempo, o potencial e os limites hoje existentes
para a afirmação de atores intermediários; e a lição a extrair do ocorrido é
que o potencial terá possibilidades maiores de se traduzir em frutos concretos
na medida em que as iniciativas assumirem natureza mais construtiva. O mérito
do esforço brasileiro permanece, mas amputado do êxito completo que se poderia
haver esperado, deixando até rescaldos de má vontade e suspeitas que poderão
complicar o atendimento das aspirações nacionais ao Conselho de Segurança.
Os resultados indecisos da empresa aconselhariam no futuro escolher com
critério cuidadoso as oportunidades de atuar. Convém sempre avaliar o balanço
de custos e benefícios potenciais, esforçando-se a agir de maneira cooperativa
com outros atores, de modo discreto, sem excessos ou jactâncias geradoras de
resistências e reações hostis.
Essa, aliás, deve ser a linha de orientação a ser seguida nos trabalhos do
Conselho de Segurança, no seio do qual o Brasil deve se firmar pelos méritos de
uma diplomacia que represente uma força de moderação e equilíbrio, de
conciliação e aproximação de adversários. Sem ansiedades ou ativismos
desnecessários, essa é a melhor postura para assegurar que o nome do Brasil se
imponha consensualmente como aspirante irrecusável no processo de tornar o
Conselho mais representativo das novas realidades internacionais.
ENCORAJAMENTO A ALIANÇAS E GRUPOS ALTERNATIVOS
Os novos grupos de coordenação diplomática
Os esforços de articular agrupamentos diplomáticos inéditos com a Rússia, a
Índia e a China (Brics) ou com a Índia e a África do Sul (Ibas) oferecem a
vantagem do fato consumado: pelo próprio peso específico, sem qualquer
necessidade de delegação dos outros, o Brasil tornou-se efetivamente o
representante da América Latina nesses grupos. Não por acaso eles reúnem os
membros permanentes do Conselho de Segurança (China e Rússia) e os aspirantes a
essa posição que têm em comum a circunstância de não serem aliados dos Estados
Unidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Seria uma espécie
de clube dos "candidatos naturais" ao reconhecimento de um status internacional
mais elevado em cada um dos três continentes: Índia (Ásia), África do Sul
(África) e Brasil (América Latina). Os foros Sul-Sul servem para realçar que o
Brasil é o ator mais "global" entre os latino-americanos, muitos dos quais
confinados a uma diplomacia meramente regional.
O desafio que o Brasil terá no futuro consistirá em contribuir para formular
uma plataforma de ação conjunta que unifique o comportamento de países de
interesses tão heterogêneos, condição para que aportem algum valor adicional ao
que já vem sendo feito pelo G-20. Todos esses grupos de geometria variável são
expressão do mesmo fenômeno: a procura por instituições e mecanismos de
coordenação e de governança global, diante do bloqueio da possibilidade de
reforma dentro do processo legitimador por excelência da Carta da ONU, como
seria ideal e desejável. Até o presente, no entanto, esses agrupamentos não se
mostraram capazes de ir além de documentos declaratórios genéricos, sem impacto
perceptível naquilo que seria sua finalidade natural: conseguir que os quatro
Brics atuem em uníssono, com uma plataforma de ação comum, no aprimoramento da
governança global.
O Grupo dos 20
Essa tarefa tem ficado virtualmente por conta do G-20, cuja emergência como
instância política suprema de coordenação macroeconômica foi, sem dúvida, uma
das mais impressionantes transformações da ordem internacional dos últimos
anos. A incorporação súbita de novos atores a um processo decisório até então
protegido com exclusividade pelas grandes economias avançadas representou, ao
mesmo tempo, a imposição de uma exigência nascida da crise financeira mundial e
o reconhecimento de modificação na correlação das forças econômicas que já
estava em curso. Para o Brasil, o salto foi ainda mais significativo por nos
habilitar a aceder ao âmbito das grandes decisões financeiras e monetárias a
que antes só comparecíamos como réus de moratórias e atrasos de pagamento.
Em estreita articulação com os demais Brics, o Brasil empenhou-se no seio do
grupo em contribuir para proporcionar aos países emergentes maiores poderes e
responsabilidades em todas as instâncias deliberativas na área monetária e
financeira. Esse esforço visou não só às instituições de Bretton Woods, mas
também à incorporação dos emergentes no Foro de Estabilidade Financeira (FSF),
transformado em Conselho de Estabilidade Financeira (FSB), assim como em outros
foros que congregam supervisores e reguladores do sistema financeiro.
Uma iniciativa de implicações relevantes foi a decisão dos Brics de
conquistarem virtual poder de veto (blocking minority) ao fazerem um aporte de
US$ 92 bilhões (US$ 50 bi da China e US$ 14 bi de cada um dos três, Brasil,
Índia e Rússia), mais de 15% do total, à nova estrutura criada para socorrer as
economias em crise, o chamado New Arrangements to Borrow (NAB). O poder desse
modo adquirido ganha relevo particular quando se considera que o volume da
facilidade criada (US$ 590 bi) é mais do que o dobro do que os US$ 250 bi das
quotas regulares/capital do Fundo Monetário Internacional.
A questão que ora se apresenta é de assegurar a contínua relevância do G-20
como foro central das decisões no momento, oxalá próximo, em que as crises
atuais, concentradas na Europa, tiverem afinal sido superadas. Isso significa
que o Brasil deve se preparar para contribuir com competência intelectual e
técnica à tarefa de edificar uma economia nova, menos sujeita a crises
catastróficas periódicas e evitáveis. Não bastará ao país se limitar a uma
atitude de vigilância e resistência à tendência das maiores economias avançadas
no sentido de reverterem os avanços de democratização do processo decisório uma
vez se retorne à normalidade. Será indispensável que, além da atitude
vigilante, o governo ganhe efetiva capacidade propositiva no debate sobre
macroeconomia mundial e instituições de regulamentação e supervisão.
A AMÉRICA DO SUL COMO ZONA DE INFLUÊNCIA
Na América do Sul, o Brasil não pode tudo, mas pode algo. Em tese, a diplomacia
brasileira teria tido condições de agir mais ou de agir de modo diferente. Por
exemplo, entre o Uruguai e a Argentina, para ajudar, como facilitador, dois
vizinhos prioritários e membros do mesmo acordo de integração a superarem o
conflito em torno da instalação de empresas de papel em solo uruguaio. O
Uruguai e a região do Rio da Prata são, incontestavelmente, as áreas do mundo
onde o Brasil possui mais longa tradição de envolvimento, melhor conhecimento
direto das situações e mais numerosas e legítimas razões para desejar um
desenvolvimento pacífico.
Justifica-se, antes e depois do pior momento da crise argentino-uruguaia, que o
governo brasileiro se empenhe em papel construtivo de aproximação entre os mais
íntimos de nossos vizinhos. Sem necessidade de estimular a proliferação de
organizações e burocracias redundantes, bastaria reativar o Tratado da Bacia do
Prata, injustamente esquecido e que possui competência temática em problemas de
vizinhança como os que ainda opõem o Uruguai à Argentina.
A mesma abordagem aplica-se à necessidade de corrigir a parcialidade ocasional
e a quase permanente omissão do atual governo em relação a outros conflitos
sul-americanos, voltando a observar rigorosa eqüidistância e não-ingerência em
eleições ou processos políticos internos de vizinhos, o que tem sido cada vez
menos freqüente nestes tempos de diplomacia de afinidades partidárias e
ideológicas. O corolário da confiança que decorreria de tal postura seria a
credibilidade para um esforço brasileiro de pacificação entre a Venezuela e a
Colômbia ou de reconciliação desta última com o Equador, todos vizinhos
próximos, com os quais mantemos relações de colaboração e cordialidade.
Um instrumento idôneo para impulsionar a colaboração de interesse recíproco de
potencial desaproveitado seria o Tratado de Cooperação Amazônica, que reúne
todos os países da metade setentrional da América do Sul, inclusive as duas
Guianas independentes. Representa a única estrutura que possibilita uma
coordenação dos esforços para melhor proteger os complexos e ameaçados biomas
dessa gigantesca região e para uma abordagem integrada dos rios amazônicos, a
maioria dos quais possue suas nascentes nos países vizinhos.
Diplomacia gestual
A contradição entre a busca incessante de resultados de prestígio nos
agrupamentos aparecidos em época recente como o G-20 e os Brics contrasta com o
desempenho sensivelmente mais mitigado no eixo de direta influência brasileira,
o imediato entorno da América Latina e do Sul. Não que tenham faltado aqui
exemplos do talento aparentemente inesgotável de criar foros novos (o Conselho
de Defesa) ou de rebatizar com nome novo grupos pré-existentes (como a
Comunidade de Nações Sul-Americanas ou Casa, transfigurada em União de Nações
Sul-Americanas ou Unasul). Não se deixou até de estabelecer uma "OEA sem
Estados Unidos ou Canadá", curiosamente iniciativa do México, o primeiro país
latino a se associar no Nafta aos dois gigantes desenvolvidos do hemisfério
norte num acordo de livre comércio, e talvez por isso preocupado em atenuar seu
isolamento em relação aos ibero-americanos.
Esse tipo de diplomacia (não só do Brasil) merece talvez o qualificativo de
"gestual" no sentido de que a ausência de condições objetivas ou de resultados
palpáveis é menos importante do que o gesto em si mesmo. Às vezes se assemelha
a uma fuite en avant: o aumento da dose de remédio que não está dando certo, um
pouco como a anotação feita por célebre orador peruano à margem de parágrafo de
um discurso argumento débil, reforzar el énfasis.
Nesse domínio, tanto o governo atual como o futuro deveria preocupar-se menos
em multiplicar estruturas novas do que em tornar efetivas e operacionais as
estruturas ou processos já existentes, sobretudo quando se justificam por
razões concretas e válidas. É o caso da Iniciativa para a Integração da Infra-
estrutura Regional Sul-Americana (Irsa) do governo passado, que tem avançado
sem alardes publicitários e conserva toda sua atualidade uma vez que o problema
da falta de uma integração das redes de transporte na América do Sul continua a
ser um dos maiores obstáculos à efetiva integração das economias. A mesma
afirmação aplica-se aos tratados já citados, o da Bacia do Prata e o de
Cooperação Amazônica.
Venezuela e Mercosul
O ingresso da Venezuela no Mercosul é um dos exemplos de decisões de graves
implicações na América Latina sobre os quais até hoje a opinião pública tem
dificuldade em compreender a motivação brasileira e o próprio desenrolar do
processo decisório. A impressão que se colheu no momento do convite formulado
por Nestor Kirchner, quando a Argentina exercia a presidência do bloco, foi de
que ele não havia sido precedido de consultas entre todos os membros, nem de
avaliação cuidadosa das implicações. Uma análise criteriosa teria provavelmente
demonstrado a falta de sentido em promover a entrada de país que só poderia
aumentar os problemas agudos de que sofre o grupo, entre eles, a ausência de
compatibilidade entre orientações macroeconômicas, adicionando um complicador
ideológico, o socialismo do século XXI, à economia de mercado dos demais. Se já
existe impaciência crescente com a pesada máquina decisória da união aduaneira
e as dificuldades, supostas ou reais, que ela cria para a negociação de acordos
comerciais com terceiros, a adição de governo atritado com inúmeros outros como
o venezuelano apenas dificultaria ainda mais os impasses.
Detentor do maior peso específico no grupo, teria sido normal que o Brasil
ponderasse que as adesões a acordos comerciais de extrema ambição como as
uniões aduaneiras demandam longo processo prévio de negociação técnico-
comercial, como ocorre na Organização Mundial de Comércio. Não seria necessário
antagonizar o regime de Chávez, nem invocar argumentos de ordem ideológica, mas
simplesmente lembrar e fazer respeitar um princípio elementar de negociação
comercial. O governo poderia ter feito algo nessa linha, mas preferiu não
fazer. A questão não seria tanto de falta de poder, mas da falta de vontade
para exercer tal poder da forma mais adequada para defender os direitos e
promover os interesses do Brasil, utilizando o diferencial em nosso favor.
Questões polêmicas
Sendo essa a região do mundo onde a influência brasileira, no passado e no
presente, sempre se fez sentir de modo mais forte e imediato, o natural é que
nela se tivessem concentrado as maiores realizações da diplomacia. É igualmente
nessa área que a diplomacia brasileira terá de demonstrar sua capacidade
superior para vencer obstáculos, persuadir recalcitrâncias, edificar obra
concreta. Paradoxalmente, entretanto, até agora, a maioria das divergências
sobre falhas e equívocos da política exterior se refere a assuntos sul ou
latino-americanos.
As prioridades do Brasil deveriam coincidir naturalmente com esses problemas, e
a efetividade da diplomacia tem de ser avaliada pela capacidade que revele de
encaminhar solução para as seguintes questões: a) o persistente fracasso em
resolver os contínuos atritos e contenciosos com a Argentina em matéria
comercial; b) a passividade e a falta de iniciativa corretiva diante do
descrédito do Mercosul; c) a incompreensível renúncia a acionar os meios
pacíficos do direito internacional em defesa de direitos brasileiros
atropelados em incidentes como o da violação boliviana de tratados e contratos
sobre o gás; d) a imprudente ingerência nas eleições bolivianas e paraguaias
por motivo de simpatias ideológicas; e) a parcialidade na campanha contra o
acordo militar entre a Colômbia e os Estados Unidos, em contraste com a omissão
diante de iniciativas de compra de armamentos de Chávez ou de suas freqüentes
provocações aos colombianos; f) a falta de senso de medida e equilíbrio em
relação ao golpe hondurenho, ao mesmo tempo em que se mantinha incoerente
complacência ante um regime controvertido como o cubano, sem falar no iraniano.
Muitas dessas dificuldades nos foram impostas nesses últimos anos por uma
adversa evolução que se processou em direção oposta à convergência de valores e
modelos de organização político-econômicos registrada na Europa e no mundo após
o fim do comunismo. Na América do Sul, ao contrário, a integração e até o bom
convívio normal têm sido dificultados por processos radicalizados de refundação
e lideranças polarizadoras de tensões e conflitos, internos e externos. Uma
leitura realista da situação exigiria reconhecer os limites do que é possível
fazer com esses governos. Abriria espaço, por outro lado, a uma diplomacia
alternativa mais sintonizada com os países que adotam posturas econômicas e
políticas centristas mais próximas às nossas. Não por acaso, esses países são
aqueles que, pelo tamanho ou desempenho econômico, ofereceriam oportunidades
mais promissoras: México, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai.
Unasul e Conselho de Defesa
Não obstante a evidente ausência dos requisitos objetivos mínimos, a diplomacia
atual insistiu em edificar um espaço político-econômico que utilizasse não o
conceito de América Latina, mas apenas o de América do Sul. Em projetos de
caráter territorial justifica-se optar por esse gênero de integração exclusiva,
como sucede com a referida Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura
Regional Sul-Americana. É muito mais difícil estender o critério a áreas mais
amplas e complexas como as do comércio e da defesa, que dependem não da
contigüidade territorial, mas da compatibilidade de visões políticas e
econômicas. Em contexto regional de aumento da divergência de modelos, de
desconfianças e animosidades, projetos como o da Unasul ou do Conselho de
Defesa correm risco considerável de passarem à história como meras expressões
de uma diplomacia gestual, cujo potencial se esgota em reuniões que constituem
um fim em si mesmo, sem maiores conseqüências.
O mínimo que se deveria exigir de tais grupos é que lograssem o que a
Argentina, o Brasil e o Chile tinham consolidado no Acordo do A.B.C., há mais
de um século, a saber, a reafirmação da mais estrita observância do princípio
de não-ingerência nos assuntos internos dos vizinhos e o compromisso de não
permitir a presença ou ações de movimentos armados nas zonas fronteiriças.
Objetivo como esse teria de constituir a precondição básica de qualquer união
de países, parecendo, entretanto, fora do alcance de uma organização que se
intitula com alguma pretensão de "União de Nações Sul-Americanas". Para que
serve o Conselho de Defesa se não somos sequer capazes de adotar uma posição
comum a respeito das guerrilhas das Farcs? Sem esse mínimo dos mínimos, não se
concebe que a Colômbia, país que luta há meio século contra guerrilhas e
narcotraficantes, aceitasse abrir mão da assistência militar dos Estados
Unidos. Por desejável que seja evitar a presença militar norte-americana no
continente, não se vê bem que alternativa existiria para que Bogotá obtivesse
os recursos e o know-how de que necessita. O Brasil, impotente diante do
controle exercido pelo narcotráfico em morros do Rio de Janeiro e longe de
poder oferecer assistência militar e policial a quem quer que seja, dispõe de
escassa autoridade para censurar os colombianos por buscarem quem os ajude.
A questão das preferências comerciais
É presumir demais da própria importância querer exigir de um vizinho ameaçado
por problemas de guerrilha e de narcotráfico que escolha entre nós e os Estados
Unidos em matéria de defesa contra tais flagelos. Situação idêntica prevalece
no âmbito econômico e comercial no caso daqueles países latinos e sul-
americanos e não são poucos para os quais o mercado norte-americano
representa 50% ou mais do destino de suas exportações. O Brasil não tem
evidentemente condições de rivalizar com os Estados Unidos como mercado
importador ou fonte de investimento, uma vez que há décadas acumulamos com
quase todos os sul-americanos saldos comerciais crescentes. Nem mesmo dentro do
Mercosul o país conseguiu desempenhar o papel de mercado impulsionador do
crescimento do Uruguai e do Paraguai.
Não surpreende, assim, que até no âmbito restrito da América do Sul três países
médios e talvez não por acaso os de melhores fundamentos e desempenho econômico
Chile, Peru e Colômbia tenham optado pelos acordos de livre comércio com os
Estados Unidos. Inviabilizou-se, pois, a possibilidade de uma zona comercial
puramente sul-americana, gerando ao mesmo tempo, para as exportações
brasileiras, o perigo de tratamento discriminatório em face das exportações de
procedência norte-americana.
As negociações da Alca não conseguiram infelizmente produzir um terreno de
equilíbrio e entendimento entre as expectativas demasiado ambiciosas de
Washington e concessões norte-americanas, especialmente em agricultura, que
atendessem aos interesses do Brasil e do Mercosul, proporcionando-nos no
mercado norte-americano tratamento preferencial equivalente ao dos outros. Na
ausência do acordo de livre comércio, a prioridade de qualquer governo
brasileiro futuro deve ser a de negociar algum arranjo alternativo que preencha
o vácuo desvantajoso da falta de preferências em que se encontram presentemente
os produtos brasileiros. Essa prioridade comercial vale tanto para o mercado
dos Estados Unidos, no qual estamos sendo discriminados pelas preferências
outorgadas aos produtos oriundos de acordos da Alca, como para os mercados dos
latinos (como o Chile ou o México), onde enfrentamos a concorrência favorecida
das exportações norte-americanas.
Relações com os Estados Unidos
Esse vazio ilustra a persistente incapacidade de alcançar com os Estados Unidos
uma relação madura e construtiva, da qual um elemento indispensável teria de
ser uma base de crescentes vantagens mútuas no comércio e na complementação de
cadeias produtivas e exportadoras. Tentou-se durante a administração de George
W. Bush revitalizar essas relações, superando o impasse da Alca, com uma
colaboração em torno do etanol. Além de obviamente estreito demais para
fundamentar uma relação mais vasta, o esforço não foi capaz de sobrepujar o
protecionismo em relação ao etanol de milho norte-americano.
É paradoxal que no governo Obama o relacionamento com Washington principie a
denunciar sinais de um alargamento das divergências em torno de uma agenda
negativa em expansão: o manejo do golpe de Honduras e agora da situação pós-
eleitoral naquele país; o acordo de cooperação militar da Colômbia com os
Estados Unidos; as responsabilidades norte-americanas pelo impasse da Rodada
Doha e, ultimamente, o complexo de questões relativas ao Irã, a seu programa
nuclear e à maneira de tratar com o regime iraniano.
A tensão oriunda da multiplicação de tais desencontros começa a encontrar
expressão na imprensa e no Congresso dos Estados Unidos e só tem sido
disfarçada na área oficial pelo reconhecimento do papel moderador do Brasil num
contexto sul-americano conturbado por personalidades mais abrasivas e
provocadoras que as dos nossos líderes.
ESTILO E FIM DO CONSENSO EM DIPLOMACIA
A crise do consenso em política exterior
Não faltam, por conseguinte, questões que vêm erodindo o relativo consenso
multipartidário que prevalecia na véspera de fundação da Nova República, a
julgar pelo discurso de fins de 1984, no qual Tancredo Neves declarava: "[...]
se há um ponto na política brasileira que encontrou consenso em todas as
correntes de pensamento, esse ponto é a política externa levada a efeito pelo
Itamaraty". Transcorridos 25 anos dessas palavras, a simples leitura dos
jornais ou o acompanhamento dos debates no Congresso são suficientes para
indicar que esse consenso deixou de existir.
A crise do consenso brasileiro é produto não só das questões substantivas da
política externa propriamente dita, mas também da "política interna" da
diplomacia, isto é, a maneira como ela é formulada e apresentada à opinião
pública, a seus formadores, aos políticos, e o modo como é percebida por esses
últimos. Dessa perspectiva, a responsabilidade maior cabe a comportamentos
concentrados nos seguintes fatores que afetam a possibilidade de edificar
consensos em política exterior: a ênfase na ruptura, em lugar da continuidade;
o excesso de protagonismo e glorificação da liderança pessoal de Lula; a
politização partidária e a ideologização da política externa.
Ênfase na ruptura
Os dirigentes atuais, destacando-se nisso o presidente, não souberam em geral
resistir à tentação de se atribuir o crédito total pelos eventuais êxitos que
tiveram. Buscaram fazer crer que era novo e sem precedentes tudo o que
empreendiam. De maneira geral, Lula e seus colaboradores no Itamaraty tiveram a
possibilidade de admitir e valorizar, nos assuntos que apresentavam autêntica
continuidade com o passado, a parcela maior ou menor que teriam acaso herdado
de governos anteriores, mas preferiram se apropriar de todo o mérito em nome do
governo atual e de seu partido.
Naturalmente é opção sem surpresa, mas seguramente não será a melhor em termos
de construção de consensos. Há, com efeito, nessa matéria uma espécie de trade
off: não é possível monopolizar o crédito para o governo e seu partido e
esperar, ao mesmo tempo, que os injustamente excluídos do reconhecimento se
sintam partes integrantes dessa política.
Excesso de protagonismo
São traços indiscutíveis desta fase política brasileira o abuso do protagonismo
e o excesso de glorificação personalista, criando a impressão de que se depende
cada vez mais das qualidades de desempenho do líder supremo. Aliás, a política
externa não constitui exceção no panorama geral de um governo cujos ministros
são quase anônimos.
Em democracias maduras sempre se procurou imprimir à diplomacia um caráter
aberto à participação efetiva mesmo da oposição. Nos Estados Unidos, por
exemplo, o modelo ideal de que se tem nostalgia até nossos dias é o do
"consenso bipartidário" com os republicanos no início da Guerra Fria. Na França
de Sarkozy, qualquer que tenha sido sua motivação, o presidente foi buscar no
partido socialista seu ministro de assuntos estrangeiros e numerosas
personalidades convidadas a cumprirem missões internacionais de relevo. No
Brasil de hoje seria difícil encontrar algum exemplo dessa tendência salutar.
Interferências partidárias e ideológicas
O discurso de Tancredo deixava claro não ser uma política externa qualquer a
que mereceria consenso, mas apenas a "levada a efeito pelo Itamaraty". Não se
tratava da política dos militares no poder, de um determinado governo ou
facção, mas de uma política de Estado, acima das disputas internas e a serviço
da nação. Convém recordar que a etimologia da palavra "partido" significa
fragmentado, rompido, quebrado, parte do todo que é a nação. Quem faz
diplomacia de partido mostra indiferença pelo esforço de converter tais ações
em causas autenticamente nacionais.
É incompatível com esse objetivo a existência de uma "diplomacia paralela" do
Partido dos Trabalhadores junto a governos ou movimentos ideologicamente afins,
exercida por meio de contatos fora dos canais diplomáticos e emissários como o
assessor de política externa da Presidência da República. Tal divisão de
"esferas de influência" converteu-se em causa de complicações, de que foram
exemplos as incursões na política interna da Venezuela, em momentos de tensões
naquele país; a falta de isenção ideológica com que se tem acompanhado a
campanha eleitoral em países vizinhos; a parcialidade já citada em relação ao
acordo militar da Colômbia com os Estados Unidos; o contraste entre as reações
ao golpe hondurenho e a complacência diante de Cuba ou do Irã e numerosos
outros episódios.
Não há evidências de que essas afinidades ou simpatias tenham demonstrado
eficácia ou utilidade perceptível para encaminhar soluções satisfatórias quando
surgem questões espinhosas como as que opuseram o Brasil à Bolívia ou ao
Equador. A diplomacia paralela do PT parece, assim, servir mais para contaminar
desnecessariamente a política exterior com suspeitas ideológicas do que para
qualquer propósito prático.
Mais do que um valor perfeito e absoluto, inatingível na prática, o consenso
sobre diplomacia é objetivo desejável sempre que possível de edificar mediante
compromissos razoáveis com a oposição, sem sacrifício de valores mais altos. Um
grau maior ou menor de honesta divergência pode ser até saudável desde que não
derive de uma subordinação instrumental da política externa a ganhos
partidários ou ideológicos internos. Nesse caso, renuncia-se à possibilidade de
assegurar a continuidade de políticas de Estado que devem, em princípio, fazer
apelo não a facções, mas ao conjunto dos cidadãos.
Nesse particular, seria difícil encontrar melhor explicação das vantagens
potenciais da busca do consenso do que as palavras com que o barão do Rio
Branco explicava por que se afastara em definitivo da política interna e não
tinha querido aproveitar sua imensa popularidade para lançar-se candidato a
presidente:
[...] seria discutido, atacado, diminuído, desautorizado [...] e não
teria como Presidente a força que hoje tenho [...] para dirigir as
relações exteriores. Ocupando-me de assuntos ou causas
incontestavelmente nacionais, sentir-me-ia mais forte e poderia
habilitar-me a merecer o concurso da animação de todos os meus
concidadãos (grifos meus).
INSUFICIÊNCIA DE RESULTADOS COMERCIAIS
Atualmente, o comércio exterior brasileiro vive uma aguda crise de
competitividade, manifestada no acelerado declínio do saldo na balança
comercial e no alarmante agravamento do déficit em conta corrente. A gravidade
da situação é acentuada pela tendência aparentemente irreversível para a erosão
das vantagens competitivas dos produtos manufaturados e a crescente
concentração das exportações em número sempre menor de commodities e artigos de
baixo nível de elaboração derivados de recursos naturais.
Não é este o lugar apropriado para discutir os desequilíbrios macroeconômicos
que se encontram na raiz do problema, a conjuntura de crescimento puxado quase
exclusivamente pelo consumo do governo e dos particulares, a baixa poupança, o
investimento insuficiente e a inelutável contrapartida de todo esse quadro, que
consiste no aumento da dependência em relação à poupança externa e aos influxos
financeiros de fora. O que não se pode esconder é que a taxa de câmbio
representa papel fundamental na deterioração das contas externas, não sendo
possível cogitar uma solução duradoura para os problemas do comércio exterior
sem levar em conta a questão cambial.
É verdade que, além do câmbio, outras deficiências estruturais afetam duramente
a capacidade brasileira de concorrer nos mercados mundiais com os asiáticos e
outras estrelas do comércio contemporâneo. O altíssimo custo do capital, a
sufocante carga de tributos, a burocratização e a baixa qualidade da
regulamentação governamental, a péssima infra-estrutura de transportes e
portos, enfim, o conjunto dos fatores que formam o "custo Brasil", responsável
pelo alto custo de transação em nosso país. Todos esses elementos situam-se em
área de competência muito além do alcance da política exterior, mas é inegável
que, sem a solução parcial ou completa dessas permanentes causas da baixa
capacidade brasileira de competir, não é muito o que a diplomacia comercial
poderá fazer deixada a si mesma.
Existem entre nós ilusões desmesuradas sobre a capacidade que têm as
negociações comerciais ou os acordos bilaterais e/ou regionais de alterar essa
ingrata realidade competitiva. Não se percebe o bastante que negociações e
acordos, mesmo quando bem-sucedidos e executados, podem no máximo gerar
oportunidades de exportação. Aproveitar essas oportunidades vai depender, como
sempre, da capacidade de oferta de produtos de qualidade e preço competitivos
nos mercados, o que passa por câmbio favorável acima de tudo e os demais
fatores citados.
Por essa razão, no futuro o governo terá de primeiramente equacionar e
encaminhar os problemas que ora afetam negativamente a taxa cambial e os outros
componentes da competitividade, o que exigirá o envolvimento pessoal e
constante do presidente da República a fim de que se possa de fato dispor de um
mecanismo eficiente de coordenação de todos os órgãos relevantes dos quais
depende uma boa condução do comércio exterior.
Diante do persistente impasse nas negociações da Rodada Doha, não se poderá
deixar de conduzir um exame criterioso da conveniência de remanejar as
prioridades da diplomacia comercial do Brasil. Não se trata de recomendar que
se desconheça o valor insubstituível da Organização Mundial de Comércio como o
foro por excelência para avanços em temas sistêmicos como o dos subsídios
agrícolas ou para a solução quase-judicial de contenciosos, mas de indagar até
que ponto se justifica uma concentração excessiva nas expectativas criadas pela
Rodada Doha.
A verdade é que a indústria brasileira, que sofre de problemas crônicos de
competitividade, revela escasso entusiasmo pelos ganhos potenciais da Rodada,
temendo que os benefícios da eventual redução nos picos tarifários em produtos
sensíveis (têxteis, calçados, artigos de couro) sejam praticamente
monopolizados pelos chineses e outros asiáticos.
A compensação que esperamos receber em agricultura precisa também ser submetida
a um crivo analítico rigoroso. Os subsídios agrícolas, é claro, somente serão
reduzidos de modo apreciável nas negociações multilaterais, sendo essa a razão
principal que aconselha nosso contínuo engajamento. Para entidades
representativas como a Confederação Nacional da Agricultura o problema maior
não viria tanto dos subsídios, mas sim das barreiras de acesso aos mercados
externos. O Banco Mundial chegou à mesma conclusão: os ganhos de acesso seriam
mais substanciais que a diminuição dos subsídios, indicando a experiência que,
em matéria de conquista de acesso, os acordos bilaterais são geralmente mais
eficazes que negociações longas e complicadas como as da OMC.
Portanto, paralelamente à continuação do empenho brasileiro na Rodada Doha,
conviria devotar tempo e esforços comparáveis a iniciativas menos ambiciosas,
nas quais é possível alcançar resultados mais imediatos e tangíveis. Se nos
últimos oito anos, em lugar de apostar tudo em Doha, tivéssemos dedicado mais
energia e atenção a remover ou reduzir barreiras fitossanitárias às nossas
carnes, frutas e vegetais frescos em mercados específicos, talvez tivéssemos
agora resultados mais alentadores.
Não será fácil obter acordos desse gênero com grandes países, mas recomenda-se,
com espírito aberto, explorar todos os caminhos comerciais possíveis,
procurando não concentrar nossa diplomacia comercial exclusivamente no âmbito
da OMC. Caso passemos a ter condições para uma política comercial menos
defensiva e capaz de oferecer compensações, seria factível encetar negociações
de acordos com atores médios como preparação para vôos mais ambiciosos em
relação aos grandes mercados.
No que tange ao futuro do Mercosul, o governo não terá como evitar um reexame
da conveniência de manter ou não a União Aduaneira e/ou a Tarifa Externa Comum
(TEC). Talvez seja viável trabalhar com fórmula de meio-termo: uma União
Tarifária, formal ou informal (alinhamento voluntário como na Asean), com
flexibilidade para negociações externas em separado, sem a sobrecarga
burocrática das exigências para uma efetiva União Aduaneira. Tal situação não
seria radicalmente diferente da realidade atual, faltando apenas a
flexibilidade para negociações externas dentro de critérios a definir.
ESCASSA SENSIBILIDADE AOS VALORES
Um dos aspectos em que a linha internacional de Lula mais se confunde com a
política externa gaullista é na invariável subordinação da promoção dos
direitos humanos e objetivos universais, como a luta contra o aquecimento
global, as armas de destruição maciça e o genocídio, a uma estreita e egoísta
consideração de interesses de curto prazo. A opinião pública brasileira está
ciente dos exemplos mais comentados dessa insensibilidade, tais como expressos
pelo próprio presidente durante a visita a Havana a apologia da repressão do
governo cubano contra dissidentes, a assimilação de greves de fome de
desesperados prisioneiros de consciência a ações de criminosos comuns ou a
descrição de "estratégica" da relação com o regime iraniano que, dias antes da
visita do presidente brasileiro, havia enforcado vários dos participantes das
manifestações contra as fraudes eleitorais.
Tem sido muito menos divulgado, fora de círculos especializados, o
comportamento no Conselho dos Direitos Humanos da ONU em Genebra da delegação
do Brasil, que se vem notabilizando pela cumplicidade com a sinistra aliança
responsável pelo bloqueio de todas as tentativas de investigação ou pressão
para alívio das vítimas de violações maciças dos direitos mais elementares. É
sugestivo que em direitos humanos o Brasil se afasta de sua proclamada
identificação com os valores latino-americanos. Em posição contrastante com a
da Argentina, do Chile, do México, que honram as melhores tradições da América
Latina, o governo brasileiro se tem alinhado nessa matéria aos mais notórios
violadores como Cuba e Paquistão.
Fazendo causa comum com regimes empenhados em debilitar o cumprimento dos
compromissos de direitos humanos, o governo brasileiro se tem desonrado a si
mesmo e ao país ao colaborar, por omissão absenteísta ou ação bloqueadora, na
vergonhosa tarefa de obstruir o correto funcionamento do Conselho. Ademais, é
uma triste ironia que o governo responsável por esse comportamento atraiçoe a
memória dos que se sacrificaram na resistência ao regime ditatorial em nosso
país ao concorrer ativamente para proteger e favorecer os autores dos piores
atentados aos valores humanos nos dias atuais, na Coréia do Norte, em Sri
Lanka, no Congo, no Irã, no Sudão do genocídio de Darfur.
Ao preferir ganhos diplomáticos imediatistas aos valores universais, o governo
brasileiro se torna culpado de dupla contradição. De um lado, suscita dúvidas
sobre a sinceridade das causas que afirma sustentar internamente como, por
exemplo, ao decretar o controvertido plano nacional de direitos humanos. De
outro, enfraquece e desmoraliza o próprio fundamento de seu recém-adquirido
prestígio internacional, que deriva da conjunção de duas imagens, a do Brasil e
a de Lula, ambas associadas a valores humanos como a paz, o combate à fome, à
injustiça e à miséria.
Há por detrás disso uma contradição mais profunda, que nasce da falta de
clareza em relação aos objetivos e valores finais que inspiram o esforço do
governo em conquistar reconhecimento e respeito internacionais. Já foi dito
acima que a diplomacia atual se caracteriza pela incessante busca de
oportunidades de acumular prestígio. O prestígio é um dos elementos componentes
do poder, do que hoje se denomina soft ou smart power, o poder suave, brando, o
poder inteligente, a capacidade de persuadir pelo exemplo e os argumentos, em
contraposição ao poder contundente dos armamentos ou da coerção econômica.
A singularidade do Brasil entre os países de grande território e população é
justamente o de ser o único que só dispõe a rigor da primeira modalidade de
poder. Dos quatro Brics, por exemplo, apenas o Brasil não é potência atômica
nem militar convencional. Isso se deve, no fundo, a um conjunto de razões
geográficas e históricas que nos beneficiaram com situação invulgar de
segurança. Em 1º de março de 2010, aniversário do fim da Guerra da Tríplice
Aliança, comemoramos 140 anos de paz ininterrupta com dez vizinhos, conquista
provavelmente sem paralelos entre países de porte e número de vizinhos
comparáveis aos nossos.
O próprio presidente Lula defendeu a tradição de autocontrole e moderação no
que tange à resposta a dar a ações adversas da Bolívia, do Equador, do
Paraguai, embora confunda cordura com a renúncia a acionar os mecanismos
jurídicos de defesa de direitos. Ora, o fato de não ser potência nuclear nem
militar, de não se comportar como os demais, longe de impedir, foi o fator que
habilitou o Brasil a se tornar credor de crescente prestígio internacional.
Esse patrimônio intangível de prestígio nasce em nosso caso não da potência,
mas da cultura da paz. Naquilo que não é reflexo do tamanho e da economia, a
irradiação brasileira é fruto do exemplo, da encarnação de valores morais. Por
que então destruir essa reputação ao proteger e se confundir com os inimigos do
reforço mundial dos direitos humanos?
A mesma pergunta aplica-se ao nosso atual papel de concorrer para o
enfraquecimento do regime internacional de não-proliferação nuclear ao recusar,
sem motivo convincente, a adesão ao Protocolo Adicional do Tratado de Não-
Proliferação (TNP). Se o governo é sincero em acatar a adesão ao Tratado,
efetuada pelo governo passado, se não tenciona violar a proibição
constitucional de armas nucleares, por que adotar atitude cômoda de crítica aos
defeitos inegáveis do TNP, sem utilizar sua reconhecida capacidade de
proposição diplomática para sugerir modos de fortalecê-lo?
O general De Gaulle era coerente em sua estratégia de se inspirar apenas na
grandeza da França, desafiando o mundo com os testes nucleares para edificar
seu arsenal. O Brasil, porém, parece vacilar entre perseverar no caminho
pacífico que lhe valeu o prestígio até agora ou passar a agir como aqueles que
sempre criticou com razão. A não ser que a ambigüidade sobre proliferação
esconda uma reserva mental para eventual reviravolta futura, em linha com o
programa de armamentos dispendiosos como o submarino nuclear, os aviões caça e
outros projetos recentes que evocam o fantasma do retorno aos sonhos de Brasil
Grande Potência da ditadura (aliás, o argumento da soberania invocado às vezes
para justificar os votos brasileiros no Conselho de Direitos Humanos é
exatamente o mesmo brandido pelos militares no passado).
A miopia de um falso "realismo" concentrado em ganhos de prestígio sem maior
substância acaba por levar ao desperdício de oportunidades de construir algo
muito mais valioso. É o que se constata na área onde o Brasil teria melhores
condições para reclamar o status de potência, o de potência ambiental. Graças
às características da matriz energética e do seu baixo custo potencial de
redução de emissões, o país poderia, sem afetar interesses econômicos
relevantes, tornar-se símbolo de uma política pró-ativa como primeiro grande
país em desenvolvimento a aceitar metas de redução. Em lugar de servir de
instrumento à China e à Índia na resistência a avanços nas negociações sobre
mudança climática, o governo brasileiro deveria voltar a desempenhar, como fez
durante a grande conferência do Rio de Janeiro em 1992, o papel de
intermediário e facilitador de um acordo histórico entre as nações avançadas e
os países em desenvolvimento, o que significaria de fato uma vitória
diplomática consagradora não só para o Brasil, mas para toda a humanidade.
LIMITAÇÕES DO PERSONALISMO CARISMÁTICO
Não se discute que a diplomacia do governo Lula tenha possibilitado elevar
exponencialmente o prestígio internacional do Brasil. Examinada, contudo, pelo
critério rigoroso dos problemas resolvidos ou dos ganhos concretizados o
balanço é indeciso, pois o prestígio não foi suficiente para realizar as
aspirações brasileiras em relação ao Conselho de Segurança ou nas negociações
da OMC. Tampouco logrou contribuir para pacificar as relações entre vizinhos
sul-americanos, reforçar a convergência, não a divergência adicional em matéria
de valores e práticas democráticas, superar os atritos comerciais recorrentes
com a Argentina, revitalizar o Mercosul, celebrar acordos comerciais para
neutralizar a falta de preferências no continente e no mundo, em outras
palavras, para produzir resultados concretos e tangíveis.
Essa constatação chama a atenção para os limites do prestígio nas relações
internacionais. Trata-se de elemento valioso, uma condição necessária na
maioria dos casos, mas não suficiente. O prestígio não se deve transformar em
objetivo narcisista em si mesmo, algo que se esgota na própria
autogratificação. Somente terá sentido se for posto a serviço de projeto de
nação que maximize a segurança, a paz, o bem-estar dos cidadãos, não metas
nebulosas como a "grandeza" desacompanhada de benefícios concretos e valores
morais.
À medida que o governo conseguiu superar sua insegurança inicial, acentuou-se
infelizmente a tendência à personalização na figura de Lula dos êxitos internos
e exteriores. Com isso o Brasil aproximou-se dos modelos de poder pessoal e
populista que têm proliferado na América do Sul, com os quais, aliás, o
presidente não esconde sua afinidade. É possível por isso que, desse ponto de
vista, a experiência do governo Lula passe à história como um retrocesso em
relação aos avanços em termos de institucionalização e impessoalidade do poder
registrados na Nova República.
Jamais como agora teve o Brasil uma política externa tão inseparavelmente
identificada, para o bem e para o mal, com a figura do Chefe de Estado, nem
mesmo na época do Imperador D. Pedro II, quando a diplomacia já se distinguia
pela institucionalidade. Mais até do que na insuficiência de ganhos efetivos, a
principal falha da diplomacia do período Lula se situa justamente na
ambigüidade dos valores morais e humanos, reflexo inevitável das contradições e
incoerências de seu protagonista central. Há incontestavelmente muitas coisas
de valor na política exterior do presidente que merecem ser valorizadas e
preservadas ou, quando necessário, corrigidas e complementadas. Não se inclui
entre elas a confusão entre personalidade e política, negação do espírito
republicano e obstáculo a uma diplomacia que traduza não um projeto de poder
pessoal ou de uma facção, mas o mais amplo consenso possível da nação como um
todo.
RUBENS RICUPERO, diplomata de carreira. Foi, entre outros cargos, Secretário-
Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) e Subsecretário-Geral da ONU nos períodos de 1995-99 e 1999-2004.
[1] Charles Joseph Marie de Gaulle (1890-1970), general e político francês.
Primeiro presidente (1959-1969) da Quinta República Francesa (1958) [N. E.].